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O que não se perdeu no aterro Jeane Santos e a voz de Canabrava
PERFIL
O QUE NÃO SE PERDEU NO ATERRO: JEANE SANTOS E A VOZ DE CANABRAVA
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A importância da coletividade na jornada da catadora que se tornou ativista social
Por Clarissa Narai Costa, Laura Pita e Paula Eduarda Araújo
Um lixão tem vida, muitos podem não saber. Mas, em meio ao lixo orgânico, pessoas sobrevivem encontrando novos sentidos aos objetos descartados, sem valor para seus antigos donos. Catadora de materiais recicláveis e moradora da comunidade de Canabrava, em Salvador, Jeane Santos é uma dessas vidas que foram moldadas em meio ao aterro sanitário a céu aberto que esteve ativo no bairro até 2001. Foi naquele espaço que ela conheceu o atual marido, deu à luz os dois filhos ainda na adolescência e descobriu-se voz ativa pelas causas sociais que defende.
Hoje aos 41 anos, Jeane é uma mulher preta, coordenadora estadual do Movimento Nacional de Catadores Recicláveis (MNCR) e presidente da Associação Cultural e Esportiva da Comunidade de Canabrava (ACECC), representando-o na Campanha Zeis Já. Enquanto trabalhou no aterro, dos 7 aos 19 anos, ela conviveu com mais de 3.000 famílias lutando contra dificuldades financeiras, riscos de doenças e a violência. Assim, aprendeu como a coletividade transforma a vida das pessoas.
Quando tinha 7 anos, Jeane fez parte de seu primeiro coletivo com os amigos do bairro. Guiada pela curiosidade, explorava os limites do lixão a 100 metros de casa. Mesmo sem necessidade, contrariava as broncas do pai, pescador, e da mãe, lavadeira de roupas, para encontrar merendas e organizar piqueniques. Eventualmente, procurar por danoninhos evoluiu para catar garrafas de vidro e trocá-las por algodão doce. Mas, a festa não durou muito. Ela resistiu ao sermão dos pais o quanto pôde, até ser obrigada a dizer adeus.
Para afastá-la do ambiente, Jeane foi mandada para a casa de sua avó, em Cachoeira de São Félix, no Recôncavo Baiano. Desse período, não carrega boas memórias. À mando da avó, acordava às 4 da manhã para realizar tarefas domésticas. Todos os dias, descia a ladeira do bairro onde morava até o rio e retornava aos tombos carregando dois tonéis d’água, que chegavam ao topo pela metade. “Minha avó era terrível, [morar com ela] era pior do que estar no lixão. Eu fazia trabalho escravo. Era uma criança e fazia tudo que um adulto tinha que fazer. Só entendo isso hoje”. Para uma criança sempre rodeada de amigos, a solidão a atingiu no tempo que morou em Cachoeira de São Félix. O conjunto de dificuldades foi razão para fugir da cidade.
As consequências vieram depois que sua família a encontrou. Seu comportamento foi considerado uma rebeldia. Expulsa pela avó, Jeane foi mandada para morar com a tia em Nazaré das Farinhas. Pelos três anos seguintes, continuou acordando às 04 da manhã para, além das
Jeane Santos Fonte: Arquivo pessoal
tarefas de casa, preparar o café da prima e ajudar a tia na cozinha da escola onde deveria estudar. “Foi pior do que a casa da minha avó. Eu fazia muito mais coisas. Minha prima era a princesinha da minha tia e eu tinha que cuidar de tudo”. Jeane não era o tipo de criança que facilmente se conformava. Por isso, contando com a sorte, se escondeu embaixo da lona de um caminhão de tomate esperando chegar ao ferry boat de Salvador.
De volta à capital baiana, foi direto para o aterro de Canabrava. Com apenas 13 anos, passou a morar com uma amiga e a viver dos recicláveis que coletava, a partir de então ninguém mais mandaria nela. A rotina era árdua e perigosa, levando Jeane a carregar consigo uma faca não só para trabalhar, mas também como um amuleto de autodefesa. Nessa época, a convivência coletiva voltou a ter força em sua realidade. Enquanto trabalhavam, Jeane e os demais catadores precisavam enfrentar tudo que chegava até eles. Drogas, fugitivos da polícia e até mesmo fetos escondidos entre outros detritos.
Jeane sobreviveu através do lixão por 6 anos. Nesse período, deu à luz seus dois filhos o primeiro quando tinha 14 anos e o segundo aos 17. Mesmo com o fechamento do aterro em 2001, ela seguiu contrariando ordens. Junto com outras famílias de catadores, ultrapassava os arames postos pela prefeitura para entrar escondida. Jeane foi uma das pessoas que ficou desassistida pelo poder público entre 1999 e 2000, quando acabou a vida útil do aterro. Durante esse período, recebia ajuda de quem aparecia. Marília, assistente social, levava a vacina e prestava atendimento aos catadores. Dona Nenê e outros bons moradores de Canabrava ajudavam com roupas, comida, direcionamento para o hospital e no que mais conseguissem. A relação de Jeane com a comunidade se fortalecia cada vez mais. na época com 22 anos, sentiu que estava mudando a vida das pessoas que alcançava.
Desde então, ela participa de palestras e congressos. Como em 2004, quando pela primeira vez foi falar sobre os catadores de materiais recicláveis e o papel da cooperativa para 10 mil pessoas no Centro de Convenções da Bahia. Antes mesmo de aprender a ler e escrever, Jeane aprendeu a decorar o que falar sobre seu trabalho. “Falei com as pessoas naquele lugar e senti um frio na barriga, mas foi massa no final. Nunca recebi tanto carinho, tanto apoio como daquela vez. Ali eu me encontrei e não parei mais”.
Depois da CAEC, a vida de Jeane foi mudando aos poucos. A partir dos programas do poder público, Mova Brasil e Petrobrás Fome Zero, ela pôde voltar a estudar. Nem a rotina como catadora, nem a maternidade fizeram Jeane desistir de enfim ser alfabetizada. O suporte com as crianças que a sua mãe oferecia foi importante naquele momento. A noite era seu momento de aprender a ler, com a companhia da professora, do zelador e de seu Cícero, um senhor de 60 anos. Em busca de novos conhecimentos, Jeane fez a prova de admissão para o programa ProJovem Urbano e durante os 2 anos seguintes ela viveu o que considera ter sido seu Ensino Fundamental 2. Ali, aprendeu a escrever palavras além de seu próprio nome, o nome de sua mãe, de seu pai e Canabrava.
Em 2002, quando começou a formalização das cooperativas dos catadores, foi a chance para Jeane se capacitar através da Cooperativa de Catadores e Agentes Ecológicos de Canabrava (CAEC). Ao se juntar à Organização, começou a trabalhar fazendo coleta seletiva de porta em porta e descobriu uma nova paixão e vocação: mobilizar. “ Fui descobrindo que eu gostava de sair para rua, eu gostava de mobilizar, de falar. Acabei me tornando a coordenadora da mobilização”. Através das coletas e panfletagens, Jeane,
Oficina de Formação de Catadores/as e Mobilizadores/as sociais oferecida pelo Fortalecimento do Associativismo e Cooperativismo dos Catadores de Materiais Recicláveis (CATAFORTE) em São Paulo, 2015. Fonte: Arquivo pessoal
Atualmente, junto com a Cooperativa de Catadores e a Associação Cultural e Esportiva da Comunidade de Canabrava, distribui alimentos e itens de necessidade para algumas localidades, mas não é possível chegar a todos. “Fazemos uma escolha muito difícil de escolher quem vai comer agora e quem vai comer depois. Mas é assim que funciona, não conseguimos dar comida a todo mundo de uma vez”.
Dentro do Movimento ela aprendeu a ser ambientalista, administradora, solidária e a fazer assistência social. “Eu dou minha opinião e sempre vou estar ao lado do povo, porque é de lá que eu vim e eu sei ficar desamparado não é fácil”. Logo, pensando nas futuras gerações, sonha com a construção de uma escola pública de ensino médio para o bairro, projeto que está sendo discutido há dois anos. A responsabilidade com a comunidade tornou Jeane uma das representantes da Zona Especial de Interesse Social de Canabrava. O bairro é considerado uma ZEIS de tipo 01, considerando a presença de assentamentos precários. Em 2021, ela conheceu e se envolveu com o projeto, contribuindo com a luta em busca dos direitos à moradia e à ocupação da cidade. Dentre suas motivações está dividir com a comunidade as oportunidades que conquistou.
Apesar de todo o trabalho e problemas que precisa resolver, Jeane se motiva ao ver suas ações refletirem na vida das pessoas que alcança. Sua mobilização permite ocupar lugares que nunca imaginou, desde viagens pelo Brasil até congressos internacionais representando o MNCR. Descobriu que um de seus maiores prazeres é andar de avião. Quando ainda trabalhava no lixão, ela catava refeições que vinham do aeroporto, via lindas aeromoças em revistas e se perguntava se um dia entraria naquele lugar. No momento que conseguiu, a mobilizadora sentiu-se realizada. “Eu não escolhi ser catadora, também não tive a oportunidade de escolher ser outra profissão. A profissão me escolheu, e eu a amo de verdade.”