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A Primeira, ZEIS cinco
RAIZ
A PRIMEIRA, ZEIS CINCO
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A primeira Zeis de comunidade pesqueira na cidade de Salvador é marcada por luta territorial, demarcação espacial e conservação da memória popular.
O atual Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador categorizou a Gamboa de Baixo como Zeis - 5, que consiste em garantia à moradia, recuperação ambiental e manutenção das tradições culturais em quilombos e comunidades de pescadores. A Gamboa é a mais avançada por ter sido a primeira regulamentada por essa categoria.
Por Kamila Macedo, Luanda Moreira e Marina Bello
Abaixo da Avenida Contorno, no centro da cidade de Salvador, existe uma comunidade com um mundo de tradições próprias que luta pelo reconhecimento de seu espaço e cultura dentro da lógica turística e da tentativa de alteração das dinâmicas da composição do local. Especula-se que a comunidade da Gamboa de Baixo, ficou assim conhecida por sua localização, abaixo da Avenida do Contorno. Construída em 1962 para delimitar aquele espaço abaixo como invisível enquanto em “posse” de pessoas marginalizadas pela sociedade. Dentre suas batalhas de permanência e garantia dos direitos dos moradores da Gamboa e da sua vizinha, o Solar do Unhão, moradores constroem e mantêm histórias e saberes das comunidades tradicionais da Bahia.
A história das comunidades tradicionais soteropolitanas é a história dos seus habitantes. Entre quem as construiu, Ana Caminha, ativista e filha da Gamboa, conta sobre sua realidade, de quem nasceu dentro de casa e lutou a vida toda por seu espaço. Para ela e a comunidade pesqueira que vive ali, a Gamboa é uma generosa casa com um mar que, além de belo, garante a sobrevivência e o sustento através da pesca. “Eu estou acostumada com uma Gamboa que você olha pela janela às quatro horas da manhã e já vê os pescadores gritando, pescando, sem ninguém se sentir incomodado com isso”, relata ela sobre a experiência cotidiana no local.
Situada no coração da cidade de Salvador, a Gamboa recebe muitos olhares interessados em suas atrações: seus bares e vista privilegiada para a Baía de Todos os Santos. Marcada por esses olhares, a comunidade sofre constantes ações de abandono e enfraquecimento em nome de projetos privados e governamentais para “embelezar” a região. Esses projetos envolvem o despejo de moradores da Gamboa e das outras comunidades tradicionais de Salvador, expulsão de famílias que habitam aquele espaço há séculos e que construíram juntos a cidade.
FILHOS DA GAMBOA
As obras representariam melhorias, mas para quem? Os gamboeiros não se beneficiam de obras que tentam retirá-los de sua principal fonte de renda e dos seus barcos. O processo de Pedro Dep / Setor Visitante Fonte: Twitter
despejo afeta a vida de diversas famílias, de toda a comunidade, que precisa estar sempre mobilizada para que esse risco de expulsão não se torne realidade. A Gamboa quer mostrar que lugar bom não é só onde tem branco, rico. Lugar bom é onde você pode contar com as pessoas, porque você as conhece.
Filhos da Gamboa, desde a década de 90, se organizam em associação de moradores para o fortalecimento de sua luta. Para Caminha, a luta de comunidades pretas e pobres não se faz sozinha. “Em um espaço valioso como Gamboa, precisamos fazer uma luta articulada com outras comunidades, universidades, ONGs e igrejas. Com pessoas que têm o mesmo sentimento social aguçado que nós”, completa a ativista. Pela manutenção dos seus territórios, identidades e culturas, membros da comunidade estão em oposição ao governo municipal para defender os seus companheiros contra as violências governamentais. Por toda a cidade de Salvador, comunidades tradicionais sofrem com investidas baseadas em preconceitos sociais e raciais que segregam o desenvolvimento urbano.
Por isso essas comunidades agem em conjunto. Para proteger os povos que ainda resistem do mesmo destino da Água Suja, comunidade desmantelada que ficava próxima à Gamboa, de acordo com Caminha. 26
O diálogo entre periferias por toda a cidade se faz necessário para que a luta por sua memória e identidade se mantenham vivas. Não apenas a Gamboa, como outras comunidades centrais de Salvador são atacadas diariamente. Perdendo membros por violência policial, descaso do governo com políticas de assistência pública de segurança. A madrugada de 1° de março de 2022 sempre estará marcada na vida dos moradores da Gamboa. A morte de três jovens ocorreu devido uma operação da Polícia Militar de Salvador. O Estado age de forma violenta e truculenta na tentativa de desmobilizar o movimento criado nas periferias. Não é a primeira vez que tragédias como essa acontecem na comunidade da Gamboa de Baixo. A violência em áreas periféricas é uma realidade contínua. Jovens convivem com o medo de andar pelas ruas à noite. Mães sentem alívio ao verem seus filhos voltarem vivos para casa.
Famílias temem ser destruídas pela perda de um parente. “Eu não quero que meu irmão ou meu sobrinho seja um dos meninos que morreram no dia 1º de março, porque estava num lugar errado, na hora errada e a polícia veio e matou”, declara Caminha, que apesar dessas ocorrências, acredita que se possa alcançar melhores condições. “Eu quero que desçam na Gamboa entendendo que aqui tem muita gente de bem”, afirma.
Comunidade Gamboa de Baixo Fonte: Mariana Domingues
Uma das conquistas dos moradores da comunidade foi o reconhecimento como ZEIS em 2016. A Gamboa de Baixo se encaixa como Zona Especial de Interesse Social 5, se enquadrando em assentamento de povo quilombola ou tradicional associado à pesca ou mariscagem, de acordo com o Capítulo III, Do Zoneamento, Seção IV Das Zonas Especiais de Interesse Social do Plano Diretor – Lei n.º9.069/2016. Ana Caminha comenta sobre o sentimento de validação que esse avanço traz: “A gente acredita que o processo de realização fundiária colado à regulamentação das ZEIS dá uma autoestima, porque a Gamboa é reconhecida como comunidade pesqueira. Ele dá autoestima porque as pessoas agora tem um documento”.
NETOS DA GAMBOA
O desejo da população local é ser conhecida e respeitada por sua história. Mesmo com a expansão do comércio e turismo no bairro, Caminha explica que sempre conta a história de Gamboa para os visitantes, em uma tentativa de fazê-los entender que a comunidade precisa ser preservada por completo. Há um pedido de atenção popular para os acontecimentos que rodeiam o bairro. A qualidade de vida da população é prejudicada por fatores em decorrência da negligência governamental no lugar. Ana Caminha Fonte: Acervo Pessoal
A Gamboa, embora seja tão visitada, não tem uma coleta de lixo adequada, tampouco um saneamento básico correto.
As lutas por demarcação e reconhecimento territorial têm como um de seus principais objetivos a construção de um futuro seguro. Visam a produtividade para todas as gerações que lá residem, principalmente para os jovens. As crianças da Gamboa hoje podem fazer mais do que brincar. Podem sonhar com a perspectiva de não serem somente pescadores. Adentrar em uma universidade, ter oportunidades para construir a vida que desejam e não somente aquela que lhes foi imposta por nascerem onde nasceram. A periferia quer ser ouvida, vista, quer falar e alcançar a população da cidade, a periferia quer viver e não mais sobreviver com os escassos recursos que lhes são dados como sobras. Miram no futuro, na seguridade de seus direitos à moradia, saneamento e à preservação de sua memória. Não querem que madrugadas como a de 1º de março ou ações como a obra de revitalização do Forte de São Pedro, na qual famílias serão desalojadas para a maquiagem de mais um ponto turístico se repitam. A comunidade da Gamboa luta pelo respeito à sua existência, pelo reconhecimento da sua importância na cidade e pela garantia de um futuro justo, onde suas necessidades sejam atendidas e amparadas. 27