Consciência e Liberdade N.º 15 (2003)

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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE

Nº 15 – 2003

DOSSIER

Colóquio "Direitos do Homem: Liberdade Religiosa e Insegurança" Sofia, Bulgária, 8 a 11 de Março de 2003 (I) Estudos .....................................................

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Dossier ...................................................... 39 Sessão de abertura .................................... 41 Alocuções .................................................. 41 Primeira sessão: "A Europa ocidental. central e oriental - as religiões históricas e os novos movimentos religiosos" .......... 52 Segunda sessão: "Modelos de liberdade de religião na Europa Ocidental e Oriental" ...... 67 Sumário do Próximo Número.................... 101

Mosteiron de Rila, Bulgária. Foto Heinz Gstrein.



ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa

Sede Internacional: Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 031 359 1527 E-mail 102555,1274@compuserve.com - Fax +41 031 359 1566 Secretário-Geral: Maurice VERFAILLIE Conselho de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antiga alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Iralndesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola prática de altos estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e sociologia do laicado na EPHE, Paris, França Beverly B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça Ilivier CLÉMANT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, director geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e professor universitário, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Trubunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos do Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal V. Norskov OLSEN, antigo reitor da Universidade de Loma Linda, Estados Unidos Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO CONSELHO Srª Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001


Consciência e Liberdade Nº 15 - Ano 2003

Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088

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R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 351 09 29

Director: Mário Brito Conselho de Redacção: Mário Brito, Mestre em Teologia Maria Augusta Lopes, Lic. em Filologia Românica Paulo Sérgio Macedo, Lic. em Relações Internacionais Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa e Liberdade Religiosa Tiragem: 700 exemplares Inscrição no I.C.S. nº 106 816 Depósito Legal: 125097/98 ISSN 0874-2405 Portugal

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Conscienza e libertà Lungotevere Michelangelo, 7-00192 Roma (Itália) Consciencia y libertad Cuevas 23, 28039 Madrid (Espanha) Savjest i sloboda (croata e sérvio) Krajiska 14, Zagreb (Croácia) Conscience and Liberty 119, St. Peter’s Street, St. Albans, Herts., ALI, 3EY (Inglaterra) Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial.

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Sumário Número 15

Editorial Os novos desafios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 Estudos ........................................9 J. Robert A educação escolar em relação com a liberdade de religião e de convicção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 R.M.Martinez Liberdade religiosa e justiça de Codes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 A. Garay O proselitismo religioso no seio da empresa . . . . 24 Dossier Colóquio “Direitos do Homem e liberdade de religião: liberdade religiosa e insegurança” de 8 a 11 de Março de 2003. Hotel Rodina, Sofia, Bulgária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Sessão de abertura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Alocuções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 J. Baubérot Das religiões históricas aos novos movimentos religiosos – as lições da laicidade francesa . . . . . 52 A. Krusteff A liberdade religiosa – uma questão relativa ao . . . desenvolvimento estratégico da Bulgária . . . . . . 61 J.E.M. Machado Direito e religião em Portugal – da libertas ecclesiae à liberdade religiosa . . . . . . . . . . . . . . . 67 J. Robert A liberdade religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Sumário do próximo número . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

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Mary Robinson Foto Keystone

A redacção da Consciência e Liberdade tem a honra de levar ao vosso conhecimento que Mary Robinson aceitou ser a presidente do Comité de Honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Um resumo da sua carreira foi publicado no número anterior da nossa revista (nº 14, pág. 46). É uma verdadeira honra para a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, poder contar com a colaboração de uma personalidade de tal envergadura, cuja dedicação não é necessário demonstrar. Queremos, de novo, exprimir a Mary Robinson todo o nosso reconhecimento.

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Editorial Os novos desafios Parece evidente que os efeitos dos atentados do 11 de Setembro de 2001 far­‑se­‑ão sentir ainda durante muito tempo, no mundo, tanto no plano político e económico, como religioso. A atenção pública continua a ser atraída para um nome, Bin Laden, e para uma organização de extremistas religiosos islâmicos com múltiplas ramificações, a Al Quaeda. “Religioso”! A palavra tem sido desprezada! Para o grande público, o culpado chama­‑se: o Islão. E, a partir daí, surgiram novos medos, acompanhados do habitual cortejo de generalizações imediatas, de amálgamas por vezes surpreendentes e de desconfianças irrazoáveis. Dois anos depois do drama, a emoção ainda percorre o mundo, suscitando, frequentemente, reacções dolorosas. Com surpresa geral, a religião, que durante muito tempo se acreditou apagada da paisagem pública, reaparecia e podia ser, também, fonte de perigos! As suspeições ultrapassam largamente o quadro dos meios islâmicos para atingir também, meios cristãos minoritários. A “ofensiva contra as seitas” dos últimos anos na Europa, não tem estado a preparar o terreno? Também no plano político, o discurso sobre o tema da religião é frequentemente recuperado para justificar medidas de segurança preventivas, com o pretexto de prevenir novas formas de ameaça trans­‑nacionais ou de desestabilização do regime político adoptado. Sobre este último ponto – salvas as devidas proporções – no contexto do lenço islâmico, em França, pensa­‑se nas reacções de certos meios franceses apoiantes de uma laicidade integrista, exageradamente refractária a toda a demonstração visível de uma pertença religiosa, mesmo aquelas que, há dezenas de anos, nunca perturbaram o ambiente escolar público. Sob a sua pressão, por cálculo político perante o Islão em França ou por cuidado igualitário, estamos no direito de recear ver aparecer novas disposições regulamentares que substituiriam a tolerância onde já foi experimentada, pela intolerância, trazendo, desta maneira, restrições severas para a liberdade religiosa doutros crentes não muçulmanos. Que os dirigentes dos Estados procurem proteger os seus representantes face ao terrorismo de inspiração religiosa ou dos abusos, está claramente conforme com o seu papel. Não podemos senão apoiá­‑los logo que os direitos do homem são violados. Porém no campo religioso, devem impor­‑se­‑lhes o discernimento e a prudência, mais do que em qualquer outro domínio. 6


Maurice Verfaillie

A actualidade religiosa recente mostra, infelizmente, os riscos dos desvios que existem na aplicação das novas disposições jurídicas e administrativas destinadas a esta prevenção. Encontram­‑se hoje, por todo o mundo, novos obstáculos à prática da liberdade religiosa, nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Austrália, na Rússia, na Bulgária, na Roménia, na Turquia, em numerosos Estados da Europa central e oriental, no Médio Oriente, no Sudoeste da Ásia, etc.: discriminações no estatuto jurídico de grupos religiosos minoritários, limitações nas deslocações, recusa de vistos, interdições de locais de culto, novas dificuldades para financiar acções de carácter religioso no estrangeiro, interdições abusivas de publicações religiosas, etc. Não podemos, de forma alguma, ignorar as consequências no domínio da liberdade religiosa, do discurso de algumas grandes religiões nacionalistas envolvidas com o poder político. Parecem, por vezes, encontrar, neste novo sentimento de insegurança generalizada algo que sirva os seus interesses geoestratégicos perante as minorias que os incomodam. A intolerância começa aí. Assim, há algum tempo, na Roménia, os actos de violência física praticados sob a instigação de um líder religioso e de um responsável civil local, contra uma família enlutada que reclamava apenas o direito a uma sepultura e a um enterramento realizado pelos dirigentes espirituais da sua confissão cristã. O seu erro era não pertencerem à Igreja ortodoxa que é maioritária no seu país. É também neste contexto que se desenvolve na Rússia uma campanha no seio das autoridades governamentais e religiosas contra “as seitas totalitárias que põem em risco a segurança nacional”*. Ao dirigir­‑se aos participantes de um fórum que se realizou em Moscovo ao qual assistiram personalidades oficiais do Ministério do Interior e representantes da Igreja Ortodoxa, Yuri Polischuck, chefe do departamento da Saúde do Instituto moscovita de psiquiatria, declarou que “a maior parte das organizações sectárias são de origem americana” e, continuou a sua intervenção dizendo, “a vaga de seitas é uma acção planificada coordenada e financiada a partir do estrangeiro, com o objectivo de subverter o nosso Estado”. O tema significativo das discussões era: “As seitas totalitárias: uma arma de destruição das massas”. Todavia, com o fim da URSS, a nova Constituição tinha posto fim às perseguições religiosas da era soviética. Apoderou­‑se da opinião pública russa um temor crescente desde que, perante o aparecimento na paisagem religiosa do país de Igreja cristãs minoritárias desconhecidas ou pouco conhecidas até então no seu meio. Fortemente apoiada pelo patriarca ortodoxo Alexis II, apesar das críticas do Vaticano, a lei muito controversa de 1997 devia responder a esta inquietação dando à ortodoxia russa um primado de facto do domínio religioso. Estes factos põem em evidência a evolução actual. As confrontações, as rivalidades, os debates no domínio religioso tornam­‑se, cada vez mais, sensíveis, sob vários aspectos, apesar de todos os discursos sobre os direitos do homem. A tal ponto que os especialistas falam hoje da fase de transição neste domínio. As mutações nas relações Igreja­‑Estado, mesmo 7


Editorial

na Europa, poderão conduzir a uma nova situação do direito à liberdade de religião e de convicção muito diferente daquela que conhecemos hoje. Como será amanhã? Ninguém o pode dizer. O importante não é tanto que ela mude, mas que ela não chegue à negação das heranças adquiridas no Ocidente, de quatro séculos de lutas pelo reconhecimento do valor da consciência individual. Neste contexto, é importante que a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa prolongue, sem desfalecimento, o apoio que proporciona, desde as suas origens, à causa de liberdade de religião e de convicção. Desde sempre se tem distinguido pelo seu envolvimento e palas suas actividades. Isso tem­‑lhe permitido exercer uma influência positiva em favor desta liberdade a diferentes níveis na nossa sociedade internacional. Todos nós devemos estar bem conscientes de que a questão da liberdade de religião e de convicção não é, em primeiro lugar, um assunto de Direito. Não são apenas as Constituições, as leis ou as jurisprudências dos tribunais que podem assegurar aos homens o respeito pela sua dignidade de homens e a sua liberdade. A liberdade de consciência e de religião que somos capazes de reconhecer, aos outros, reflecte, também, o grau da nossa maturidade como homens. A liberdade nem tem existência própria. Ela vê­‑se, sempre, através das relações dos homens entre si. Ela supõe da parte de cada um, uma contribuição efectiva para a construção de uma sociedade de respeito. Maurice Verfaillie * Sergei Balgov (CNSNews.com, 20 de Outubro de 2003)

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ESTUDOS A Educação escolar em relação com a liberdade de religião e de convicção * Jacques Robert** É fácil proclamar num texto constitucional que a liberdade religiosa é garantida a todos. É até mesmo bom dar uma definição dessa liberdade. É bem mais difícil fazê­‑la aplicar e introduzi­‑la nos espíritos. Seria necessário operar uma verdadeira revolução intelectual e moral! Gostaríamos aqui de nos demorar apenas sobre a situação de três protagonistas da liberdade religiosa que são – depois de Deus – a escola, o aluno e os pais. 1. A Escola a) O Relator especial sobre a liberdade religiosa e de convicção, Abdelfattah Amor, tem absoluta razão quando escreve que de forma alguma o Estado deve ter o monopólio do ensino. É necessário proteger estas “escolas separadas” que são complementares do ensino público. Não são separadas pelo nível dos alunos mas por uma diferença de inspiração, de organização e de tendência. Pessoalmente, sempre inscrevi os meus filhos na escola pública, mas bater-me-ei com todas as minhas forças pela manutenção de um ensino privado, certamente controlado, mas livre na sua orientação filosófica ou religiosa. b) Mas deverá a escola pública abrir-se ao ensino religioso? Deve ela ter “aulas de religião”? A questão é muito delicada porque, podemos nós definir o ensino religioso? Trata­‑se de ensinar os diferentes catecismos das diferentes religiões, de ensinas história das religiões ou de dar um curso de Direito comparado das religiões? Por outro lado é seguro que todas as religiões o apoiem? Em resultado de algumas conversas que me foi dado ter com altos responsáveis religiosos franceses, retirei a impressão de que muito se preocupam em saber quais os professores (designados por quem) que seriam responsáveis por um tal ensino. Receiam que um tal ensino seja dado de maneira parcial, não objectivo. Sem dúvida que está prevista uma escolha criteriosa dos professores. Mas quem formará os formadores? Algumas religiões maioritárias temem, sem dúvida, também, que um tal ensino as banalize não lhe dando senão um lugar estritamente equivalente às outras. 9


A educação escolar em relação com a liberdade de religião e de convicção

c) O problema dos manuais escolares coloca interrogações semelhantes. Evidentemente que é altamente desejável que os manuais de instrução religiosa a colocar, eventualmente, nas mãos dos alunos sejam redigidos de uma maneira consensual. Mas aqui, a liberdade religiosa choca com a liberdade de imprensa e de ensino. Numa democracia, cada um tem o direito de escrever o que pensa e cada professor tem a inteira liberdade de aconselhar aos seus alunos os livros que ele considera os melhores. Se o Estado não se intromete na redacção dos manuais de ensino religioso, atenção ao risco do “pensamento único”! Além disso, poderia uma república laica, como a França, aceitar encarregar­‑se da “revisão” eventual de obras religiosas e do seu controlo? 2. O Aluno Cada aluno, cada estudante deve beneficiar plenamente da liberdade religiosa. a) O problema dos sinais exteriores de filiação religiosa é um falso problema. Quem é que incomoda com o facto dos estudantes católicos usarem uma cruz, os protestantes a cruz huguenote e os judeus, o kippa? Porque é que se incomodarão com o uso do lenço islâmico? Encarregado de resolver esta questão, o Conselho de Estado francês, num ofício oficial, teve uma excelente oportunidade de recordar que o uso de um tal lenço, não podia ser interdito, de uma forma geral. Não o poderia ser, eventualmente senão pontualmente se, em determinado estabelecimento, esse uso fosse utilizado como instrumento de proselitismo ostentatório de forma a perturbar a consciência dos outros ou servindo de pretexto para ser dispensado de frequentar esta ou aquela aula. A ordem pública francesa estaria então atenta e a interdição do lenço, legítima. b) O problema do dia da semana reservado no ensino público ao exercício privado da religião deveria ser facilmente resolvido com um pouco de boa vontade de ambas as partes. E isso acontece, actualmente, em numerosos estabelecimentos de ensino em França. c) E o mesmo para os “dias de exame”. Fui presidente de uma grande universidade parisiense e consegui sempre resolver os problemas para que as provas escritas não tivessem lugar num dia que pudesse não convir tanto a uns como a outros. Quanto às provas orais, jamais me opus ao pedido de um estudante que, por razões religiosas, queria mudar o dia do seu interrogatório. Nunca ninguém se queixou por isso. d) O verdadeiro problema do aluno não é, aliás, hoje o da sua liberdade religiosa, mas o da desigualdade de oportunidades à partida. Nunca se poderá impedir que uma criança que tem o privilégio de nascer numa família de nível cultural elevado tenha muito maiores oportunidades de vir a ser um bom aluno do que aquele que nasceu num ambiente desfavorável. 10


Jacques Robert

Este não é um problema religioso, mas um problema de nível de educação. A descriminação não é aqui religiosa, mas social. Os filhos da burguesia, sejam eles cristãos, muçulmanos ou budistas, serão sempre educados em escolas e universidades de um alto nível onde estarão entre os seus. Resultará, necessariamente, que os outros – menos dotados – se encontrarão juntos em estabelecimentos em que o nível geral será menos elevado e as oportunidades de atingir planos elevados, reduzidas. Nenhuma lei humana pode obrigar à mistura das pessoas. Estamos no campo de uma questão de mentalidade. É necessário começar desde já a educar a opinião pública para lhe fazer entender que uma nação não é a justaposição de guetos sem comunicação entre si, mas o conjunto de homens que se devem considerar como iguais, e isso, desde o início da sua vida. 3. Os pais Todas as grandes declarações dos direitos internacionais dispõem que os pais têm o direito de dar aos seus filhos o género de educação e de instrução que desejam. Será que este direito implica, igualmente, o de escolher para eles a religião na qual deverão ser educados? Aqui, o direito dos pais opõe­‑se à liberdade da criança. Dir­‑se­‑á, certamente, que na maioridade, as crianças poderão sempre mudar de religião ou escolher uma pela primeira vez. Mas quem não vê que a escolha, à partida, é decisiva! Ora ela pertence aos pais. Todos os estudos sociológicos realizados sobre este ponto mostram que uma criança baptizada na sua infância em tal ou tal religião, não a abandona, em geral, alguns anos mais tarde, enquanto que a criança que não foi baptizada ou que não foi iniciada em tal religião ou crença, não escolheu nenhuma na sua maioridade. A responsabilidade dos pais é aqui essencial. Porque temos a oportunidade estranha de ser, uns e outros, qualquer que seja a nossa confissão, animados de uma fé ou de uma crença profunda, temos o dever de transmitir esse dom inestimável que recebemos. Desejo de todo o coração que as questões e as incertezas ou dúvidas que vos apresentei, nos ajudem a progredir juntos, no caminho difícil mas necessário da liberdade religiosa e da democracia. Neste caminho, a nossa conferência marcará uma etapa essencial. *Intervenção pronunciada por ocasião da Conferência Internacional consultiva sobre a educação escolar em relação com a liberdade de religião e de convicção, a tolerância e a não discriminação, que teve lugar em Madrid, de 22 a 25 de Novembro de 2001. **Presidente honorário da Universidade de Paris II (Panthéon­‑Assas), antigo membro do Centro Francês do Direito Comparado. 11


Liberdade Religiosa e justiça * Rosa Maria Martinez de Codes **

R. M. Martinez de Codes Foto IRLA

1. Preâmbulo “A dignidade da pessoa humana é, no nosso tempo, objecto de uma consciência mais viva; são cada vez mais numerosos os que reivindicam para o homem a possibilidade de agir em virtude das suas próprias opções e em livre responsabilidade; não sob a pressão de uma obrigação, mas sim guiados pela consciência do seu dever. Requerem igualmente que seja juridicamente delimitado o exercício da autoridade dos poderes públicos afim de que o campo de uma franca liberdade, quer se trate de pessoas ou de associações, não seja exagerada e estritamente circunscrito. Esta exigência de liberdade na sociedade humana olha principalmente para o que é o apanágio do espírito humano e, em primeiro plano, o que concerne ao livre exercício da religião na sociedade.” (Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, Vaticano II, 1965.) Com efeito, as concepções materialistas do indivíduo fracassaram parcialmente porque elas não tinham em conta o apanágio do espírito humano. Neste início do terceiro milénio, é um facto reconhecido que as nações se aproximam cada vez mais umas das outras. Os homens e as mulheres de culturas e de religiões diferentes mantêm relações mais estreitas. Consequentemente, a fim de que as relações de paz e de compreensão nasçam e perdurem para o bem da humanidade, é necessário que a liberdade religiosa seja universal e em todo o lado o objecto de uma garantia constitucional, e que seja respeitado o direito do ser humano a orientar livremente a sua vida religiosa no seio da sociedade. 12


Rosa Maria Martinez de Codes

II. A influência da religião sobre o desenvolvimento do Direito Internacional O direito de praticar livremente a sua religião ou as suas convicções foi frequentemente posto em perigo, ao longo da história, e é ainda, hoje em dia, muito frequentemente o caso. É surpreendente constatar que os maiores avanços em matéria de liberdade religiosa no mundo moderno são frequentemente oriundos, não das confissões religiosas, mas sim das Constituições, dos corpos legislativos e dos tribunais.1 Numerosas nações, incluindo a minha, a Espanha, são fundadas sobre Constituições que, elas mesmas, estão enraizadas na religião. O dilema é então conservar os valores da maioria respeitando os direitos das minorias religiosas, o que não é fácil numa sociedade em constante mutação. Contudo, a regra elementar do respeito de escolha e dos direitos do indivíduo é com efeito fácil de aplicar, se a vontade política caminha nesse sentido. O essencial não é que as leis de um país sejam definidas como sendo religiosas. O importante é que essas leis sejam aplicadas em benefício de todos os cidadãos, de acordo com as obrigações internacionais. Em muitos países, não é a falta de religião que provoca as violações ao direito à liberdade religiosa ou de convicção, mas, sobretudo, a falta de tolerância em relação a mais do que uma religião. A religião em si não coloca problemas, mas sim o modo como as religiões foram utilizadas e praticadas ao longo da história. Permitam-me que cite o exemplo do meu país. A história da Espanha extravasa de cruzadas contra os infiéis7 de perseguições religiosas, de inquisições e de autos-de-fé. Durante vários séculos, a Espanha foi um Estado confessional onde o catolicismo era a religião de Estado. A evolução positiva da Santa Sé no sentido de uma compreensão mais abrangente dos direitos do homem, conforme ás declarações internacionais, concluiu-se na Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis Humanae, abordando o direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria de religião, promulgada pelo Concilio Vaticano II a 7 de Dezembro de 1965; “O Concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste em que todos os homens devem ser subtraidos a toda a influência seja da parte de indivíduos, seja de grupos sociais e de qualquer poder humano, de modo a que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, nos limites do razoável, segundo a sua consciência, tanto em privado como em público, só ou associado a outros.”2 O Concilio declarou a seguir que este “direito à liberdade religiosa da pessoa humana” deveria ser reconhecido pelo direito constitucional que governa a sociedade e deve, portanto, tornar-se um direito civil. Consequentemente, o Estado espanhol, sob o regime do general Franco, tratou de proteger a liberdade religiosa e decretou uma lei sobre a liberdade 13


Liberdade religiosa e justiça

religiosa (Lei 44/1967) pela qual as denominações não católicas adquiriam direitos dos quais tinham sido privadas desde há séculos. Foi dado um outro passo neste domínio quando se misturou a democracia e se promulgou a Constituição espanhola a 6 de Dezembro de 1978. Criaram­ ‑se então as condições para a existência de uma verdadeira liberdade religiosa, conforme às obrigações internacionais. A Espanha não é mais um Estado confessional, mas as autoridades espanholas, que “têm em consideração as convicções religiosas da sociedade espanhola”, deverão, consequentemente, manter as relações de cooperação apropriadas com a Igreja Católica e com as outras confissões.3 Deste princípio constitucional resultou um importante corpus de legislação indo desde a Constituição de 1970 até às convenções mais recentes com diversas minorias religiosas, incluindo os acordos com a Igreja Católica e a Lei Geral sobre a Liberdade Religiosa, assim como os acordos com as três confissões – protestante, islâmica e judaica – que foram reconhecidas como “profundamente enraizadas” no nosso pais. 4 A Espanha é, entre outros países, um exemplo de intervenção crescente do Direito Internacional e dos mecanismos internacionais na condução dos Estados. III. Protecção internacional eficaz da liberdade religiosa ou de convicção Em praticamente todos os sistemas económicos, sociais e ideológicos, a intolerância e a discriminação baseadas na religião ou na convicção manifestam-se e não se limitam, em caso algum, a uma única religião ou convicção.3 As violações do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião podem assumir numerosas formas. Em 1995, o relator especial das Nações Unidas, o senhor Abdelfattah Amor, observou que a maioria das queixas que tinha recebido diziam respeito à liberdade de escolher a sua religião ou convicção; a liberdade de mudar de religião ou de convicção; a liberdade de manifestar e de praticar a sua religião ou a sua convicção em público e em privado; e o direito dos grupos e das pessoas a não serem discriminadas por parte do Estado ou de uma instituição com base na sua religião ou convicção.5 É um facto reconhecido que as medidas legislativas e os recursos legais são os meios cruciais para prevenir e eliminar a intolerância e a discriminação fundadas na religião ou na convicção. Contudo, as soluções reactivas não são suficientes. Devemos consagrar mais soluções pró-activas no domínio dos remédios não legais, em particular a educação e o ensino, sem esquecer o diálogo inter-religioso. 1. Medidas legislativas a) Domínio internacional Gostaria de chamar a vossa atenção para o grande papel que as Nações Unidas têm na articulação e na legalização dos instrumentos internacionais 14


Rosa Maria Martinez de Codes

relativos aos direitos do homem, em particular no domínio da liberdade religiosa. Se bem que a legislação internacional em matéria de liberdade de religião ou de convicção possa ser completada, por um instrumento do Direito Internacional específico e constrangedor, gostaria de sublinhar que as normas fundamentais actuais atingiram um nível significativo de consenso e de certeza. Para tentar resumir, podemos passar em revista as disposições importantes relativas à liberdade de religião ou de convicção oriundas do conjunto impressionante de instrumentos internacionais criados desde 1945. Começando pelo que é conhecido sob o nome de Carta Internacional dos Direitos do Homem, passando pela Declaração de 1981 até à Convenção Internacional dos Direitos da Criança, é evidente que existe actualmente um conjunto bem completo de normas em relação à liberdade de religião ou de convicção. Estas normas cobrem domínios como as minorias religiosas, a interdição da discriminação baseada na religião e a educação religiosa das crianças. Todos os instrumentos internacionais relativos à liberdade de religião ou de convicção consagram disposições que têm implicações não negligenciáveis para o direito das comunidades religiosas de poderem utilizar as formas e as estruturas legais afim de tratarem dos seus assuntos. Enquanto as normas existentes a respeito da liberdade religiosa representam um bom ponto de partida, as maiores lacunas são devidas às resistências no momento de as pôr em prática. A Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas, assim como os organismos intergovernamentais e os Estados deveriam tornar a colocação em prática prioritária. Nestes últimos anos pudemos dar-nos conta que as tentativas de pôr em funcionamento as normas em matéria de liberdade religiosa ou de convicção não são coisa fácil. Mais do que pensar em novos instrumentos legais ou de nos concentrarmos em detalhes na interpretação desses instrumentos legais, temos necessidade de ver as normas aplicadas pelos órgãos internacionais e governamentais. Para que os instrumentos internacionais relativos aos direitos do homem previnam realmente as violações em grande escala da liberdade religiosa, eles devem estender-se às acções das organizações privadas e às relações entre indivíduos. b) Domínio regional Os direitos relativos à religião ou à convicção são protegidos nas convenções gerais dos direitos do homem adoptados por três organizações regionais principais: A Organização de Unidade Africana, a Organização dos Estados Americanos e o Conselho da Europa. As disposições das convenções regionais a este respeito estão muito próximas das da Declaração Universal dos Direitos do Homem ou do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o aspecto da liberdade individual ocupa uma posição dominante. O artigo 9º da Convenção Europeia define a liberdade religiosa como o direito de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, e enumera extensamente os 15


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diferentes meios protegendo a expressão religiosa.8 Este artigo garante o direito do individuo à não ingerência por parte das autoridades públicas, o que parece subentender que existem poucos laços estruturais entre a religião e a lei. A Convenção Europeia supõe a existência prévia de disposições nacionais respeitantes à religião e ao Direito e não exprime qualquer preferência quanto a um modelo particular de relações entre a Igreja e o Estado. Contudo, o artigo 9º exerce uma função crítica em relação às leis nacionais existentes. Se os quadros legislativos nacionais não se conformam com esta garantia, não podem ser conservados.9 O artigo 9º garante igualmente o direito à não ingerência com a religião. Contudo, registaram-se maiores evoluções no domínio da responsabilidade do Estado para com os direitos fundamentais: a responsabilidade de respeitar, proteger, garantir e promover esses direitos. Baseando-se na jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os Estados actuam por múltiplas razões: proteger os interesses públicos legítimos (tais como a segurança pública, a ordem pública, a saúde ou a moral), proteger a liberdade religiosa e outros direitos humanos de qualquer ingerência. Em certos casos, a obrigação positiva de um Estado em relação à religião foi reconhecida, por exemplo, um tipo de acção positiva permitindo assegurar que uma religião pode realmente ser praticada. Assim, nos casos em que a intolerância religiosa praticada por certos cidadãos afecta a liberdade de outros. Poder-se-ia avançar que o artigo 9º é transgredido quando um Estado não age para conter uma acção privada cujo objectivo é inibir as práticas religiosas. 10 Concluímos pois que o artigo 9º serve não apenas para garantir a liberdade religiosa individual, mas também tem consequências na infra-estrutura legal da religião.11 Ficando no domínio regional, gostaria de sublinhar a importância de certos documentos da antiga Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa. Os Estados-Membros da OSCE. comprometeram-se ampla e cuidadosamente no domínio da liberdade de religião e de convicção. Todos os Estados da OSCE (quarenta e três) estão igualmente vinculados pelas normas das Nações Unidas relativas aos direitos do homem e a grande maioria deles estão igualmente submetidos às obrigações do Conselho da Europa em matéria de liberdade religiosa ou de convicção. O Documento da Reunião de Copenhaga da Conferência sobre a Dimensão Humana, adoptado em 1990, compreende disposições detalhadas sobre a acção governamental para condenar e controlar a xenofobia, o anti-semitismo, a discriminação ou a perseguição por razões religiosas e ideológicas, assim como em matéria de direitos das minorias nacionais.12 Ainda uma vez, podemos questionar-nos sobre quais seriam os mecanismos de controle e de implementação adequados que permitam assegurar a sua efectivação no seio da OSCE. 16


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2. Recursos legais a) Domínio internacional Na hora actual, a legislação internacional carece de uma comissão espe­ cializada encarregada de vigiar a aplicação dos tratados a nível mundial e regional. Seria composta por especialistas do domínio da liberdade religiosa ou de convicção. Foram sobretudo mecanismos correctores em matéria de direitos do homem que foram criados; entre eles encontram-se: - o processo de relatório dos Estados; - o processo de queixa individual; - o processo de queixa entre Estados. Esses procedimentos são enquadrados pelos órgãos encarregados de supervisionar os tratados multilaterais sobre os direitos do homem. 13 A Comissão dos Direitos do Homem, o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial e o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais ocupam-se dos processos de relatório dos Estados ligados ao domínio específico da liberdade religiosa ou de convicção. A Comissão dos Direitos do Homem (1976) é um órgão autónomo fundado sobre um tratado, encarregado de controlar a aplicação pelos Estados do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos e do Protocolo Facultativo. 14 A Comissão ocupou-se de numerosas questões relativas à liberdade religiosa e de convicção, sobretudo em relação com o artigo 18.0, a sua interpretação e a sua aplicação. A maioria das questões levantadas, nos relatórios da Comissão, aquando da Assembleia Geral anual, tratam da discriminação do Estado em relação a certas religiões ou convicções, da discriminação do Estado em relação aos adeptos de uma determinada religião ou convicção, do direito a estar livre de pressões, da interdição de apoiar o ódio religioso, do incitamento à intolerância religiosa, do direito parental a decidir sobre a educação dos filhos, da idade na qual as crianças são livres de escolher a sua própria religião ou convicção, da objecção de consciência, do direito de se reunir e de manter locais de culto, da publicação de escritos religiosos, dos dirigentes adequados, dos dias de repouso, dos prisioneiros.15 As organizações não governamentais (ONG) têm por vezes a possibilidade de trabalhar em cooperação com a Comissão, ajudando-a a formular questões que ela utilizará nas suas investigações. 16 Nestes últimos vinte anos, os membros da Comissão identificaram as zonas problemáticas onde existem restrições e violações do artigo 18º. Eles procuraram clarificar as medidas protectoras e sugeriram aos Estados redactores de relatórios como aplicar melhor o artigo 18º. Hoje, a Comissão evolui para uma confrontação mais directa com os Estados em relação aos seus compromissos específicos e põe-nos de sobreaviso contra certas tendências conducentes a restrições e a violações do artigo 18º. 17


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O Comité para a Eliminação da Discriminação Racial (1970) é um pioneiro entre os órgãos existentes relativos aos direitos do homem. Ele tem por tarefa supervisionar a aplicação, pelos Estados, da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A discriminação baseada na raça, em todo o caso, é objecto suficiente do Direito Internacional: é a sua aplicação que não é satisfatória. A interdição da discriminação racial tornou-se norma peremptória em Direito Internacional, e a tendência quer que se atribua o mesmo estatuto à discriminação por razões religiosas. Hoje, sente-se uma real necessidade de proteger os grupos religiosos contra uma eventual discriminação ou perseguição. 17 Se bem que a discriminação racial não faça mais que uma breve referência à liberdade religiosa ou de convicção (primeiro parágrafo do preâmbulo e artigo 5º parágrafo d, sub­‑parágrafo vii), o Comité abordou progressivamente, ao longo dos seus trinta anos de existência, um amplo conjunto de questões relativas a este tipo de liberdades.18 Por outro lado, os inquéritos do Comité dos Estados signatários ilustram que as discriminações e os prejuízos raciais, religiosos e étnicos são, sob diversos aspectos, inseparáveis. Eles sublinham a ligação entre identidades raciais, religiosas e étnicas. O artigo 4º da Convenção é, em Direito Internacional, a disposição mais clara visando combater não apenas a discriminação racial, mas também o ódio racial, toda a propaganda racista e as associações com objectivos racistas. 19 Esta disposição pode ser aplicada à interpretação de textos similares que se relacionam com a religião, esta Convenção Internacional tornou-se um instrumento complementar protegendo a liberdade de religião ou de convicção e os grupos indígenas. O Comité dos Direitos Económicos; Sociais e Culturais (1987) é o mais recente entre os órgãos de vigilância dos tratados. Enquanto que os órgãos subsidiários do Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), tem como tarefa supervisionar a colocação em prática do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDCP). Devido ao lugar preponderante que ocupa a educação no mandato do Comité, a maioria das questões levantadas pelos relatórios dos Estados partes tinham a ver com os direitos parentais de decidir sobre a educação dos seus filhos.20 No contexto do artigo 13º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, questionou-se se os pais tinham o direito de dar aos seus filhos uma educação religiosa e moral de acordo com as suas próprias convicções, e se a liberdade de religião ou de convicção tinha facilitado a educação religiosa e moral da escola. Mais, solicitou-se mais informação sobre o papel das Igrejas na educação, sobretudo sobre a orientação moral dos jovens; sobre a posição da educação laica; sobre a educação religiosa opcional. Entre os três órgãos de vigilância da aplicação dos direitos do homem, a Comissão dos Direitos do Homem é a que mais se ocupou da liberdade de 18


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religião ou de convicção. Pelo contrário, o Comité mais recente e o mais antigo preocuparam-se com mais pormenor, respectivamente, de certas questões ligadas à liberdade de religião os de convicção, da discriminação e da intolerância fundamentadas na religião ou na convicção e da educação religiosa das crianças É por isso que seria lógico encorajar uma melhor coordenação entre os órgãos de vigilância internacionais, afim de prevenir os riscos de multiplicar inutilmente actividades e de adoptar interpretações divergentes de normas comparáveis. Cada órgão deveria tomar conhecimento da jurisprudência pertinente dos outros órgãos baseados sobre os tratados.21 No que respeita aos “processos de queixa individuais”, é útil sublinhar que só existem duas vias para tais requerentes: O Protocolo Facultativo do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e o procedimento confidencial estabelecido pela resolução ECOSOC 1503. Conforme ao Protocolo Facultativo, um indivíduo não pode apresentar queixa junto do Comité dos Direitos do Homem, a não ser que a sua queixa provenha de um pais que tenha reconhecido a competência deste Comité para receber comunicações individuais. O autor da comunicação deve declarar ser vítima de violação pelo Estado de um dos direitos consagrados no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. O objectivo deste procedimento era estabelecer se um Estado parte tinha rompido com as suas obrigações definidas no tratado, não de ajudar o indivíduo. Se bem que as conclusões formuladas pelo Comité tomem por modelo as decisões judiciárias, elas não são vinculativas.22 Além disso, de um ponto de vista geral, é útil mencionar o procedimento “1503”. Por meio deste mecanismo, os indivíduos e as organizações podem submeter às Nações Unidas comunicações que não se refiram a um tratado. Um grupo nomeado pela Sub-Comissão da Luta contra as Medidas Discriminatórias e da Protecção das Minorias examina, segundo um procedimento confidencial, essas comunicações. A Sub-Comissão não pode transmitir a comunicação à Comissão a não ser que a situação revele aparentemente “violações flagrantes e sistemáticas dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”. Com efeito, a sua função é estabelecer se as violações graves têm lugar, e não de intervir em casos determinados. Enfim, no que respeita aos “procedimentos de queixas entre Estados”, o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial tem o direito de se ocupar dessas queixas, inclusivamente das queixas de um Estado parte que acusa outro Estado parte de não respeitar as obrigações do PIDCP. Até ao presente, o Comité nunca recebeu queixas deste tipo.24 b) Domínio regional No domínio regional, duas convenções regionais internacionais principais, a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos examinam os relatórios emanando dos Estados partes e estudam as comunicações de indivíduos cujos direitos protegidos foram alegadamente violados. 19


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Estas duas convenções estabelecem tribunais especiais para os direitos do homem. Os princípios do sistema europeu são fundamentalmente similares aos das Nações Unidas, se bem que o sistema europeu seja mais eficaz na execução. Com efeito, os mecanismos de controlo e o quadro institucional que protegem os direitos do homem postos em acção pelo Conselho da Europa e pela União Europeia criaram uma jurisprudência considerável relativa aos direitos religiosos. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou claramente que os direitos consagrados na Convenção Europeia criam obrigações para os Estados como a adopção de medidas com vista a assegurar o respeito da vida privada, mesmo na esfera das relações entre indivíduos. De acordo com o artigo 25º os indivíduos podem apresentar queixa em Estrasburgo em caso de violação dos direitos desta Convenção. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve de tratar de casos cada vez mais numerosos relativos à manifestação dos direitos religiosos,25 à educação religiosa, à liberdade de expressão, a objecção de consciência, a questões médicas, aos direitos parentais, ao emprego, à blasfémia e ao proselitismo. A disciplina exercida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem influenciou visivelmente os tribunais nacionais de muitos países europeus que se tinham afastado da sua visão tradicional.27 A título de comparação, existe na América o Tribunal Interamericano dos Direitos do Homem encarregado de resolver os conflitos, mas poucos casos relativos à religião retiveram a atenção das instituições de vigilância. Ele parece consagrar-se a outras liberdades fundamentais. Por outro lado, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos “garante a liberdade de consciência (...) a prática livre da religião” ii (artigo 8º) Contudo, a Comissão Africana dos Direitos do Homem não determinou claramente o que constitui a violação da liberdade de consciência. Enquanto que a liberdade de mudar de religião ou de convicção está firmemente alicerçada nas normas internacionais relativas aos direitos do homem, a sua aceitação por parte de numerosos Estados continua a ser muito controversa.28 Muitos Estados islâmicos não aceitam formalmente a interpretação da Comissão dos Direitos do Homem “de ter ou de adoptar” uma religião como significando o direito de substituir a sua própria religião ou de se tornar ateu.29 A aplicação da Charî’a islâmica levanta questões inquietantes porque ela implica a violação de outros direitos, ao punir, por exemplo, a apostasia e a blasfémia com a pena de morte.30 IV. Conclusões Desde a criação das Nações Unidas, a comunidade progrediu consi­ deravelmente em direcção à consolidação de uma ordem legal visando assegurar o respeito e a observância dos direitos religiosos. No contexto do papel desempenhado pela religião no plano internacional, numa época em que as relações entre direitos religiosos e ordem internacional são particularmente tensos, os governos deveriam procurar a maneira mais eficaz de utilizar os mecanismos de execução existentes. 20


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Cada governo deveria examinar o estatuto dos direitos do homem na sua jurisdição, rever a sua legislação constitucional e nacional, assim como os regulamentos, afim de detectar eventuais lacunas. As Constituições e as legislações nacionais deveriam, se necessário, ser adaptadas às normas internacionais relativas aos direitos do homem e à liberdade de religião ou de convicção. Além disso, é importante adoptar ou actualizar disposições legais com carácter preventivo ou curativo, incluindo as disposições respeitantes às revisões judiciárias e, se necessário for, as sanções penais. O que diz a lei escrita não representa necessariamente o que se faz na prática. Cada Estado deveria fornecer um quadro eficaz para remediar as lacunas ou as violações dos direitos do homem. Isto significa estabelecer e reforçar os recursos administrativos e judiciários das vitimas de violações da liberdade de religião ou de convicção junto dos tribunais competentes e de outras instituições judiciárias. Para mais, não se deve subestimar a importância dos processos de conciliação apropriados permitindo a resolução dos conflitos causados por actos de intolerância religiosa e de discriminação, tais como um conselho de conciliação nacional e um mediador a quem as vitimas de intolerância religiosa podem recorrer se tiverem necessidade de ser protegidas. À parte da responsabilidade dos Estados, os grupos religiosos e as associações humanistas devem consagrar prioritariamente os seus esforços a promover a tolerância e a combater todas as formas de discriminação baseadas na religião ou na convicção. Esta é a condição prévia para todo o real progresso a nível mundial. As próprias comunidades devem mudar a sua atitude em relação aos seus irmãos e irmãs das outras religiões ou associações humanistas. A difusão de informações, a formação e a educação não são apenas competência do Estado. É igualmente uma das tarefas das comunidades religiosas. Todos os actores da sociedade civil, e em particular as organizações não governamentais, devem participar nisso. Na alvorada de um novo milénio não devemos perder de vista o dever universal da humanidade: viver em conjunto no respeito, dignidade e tolerância. Eu gostaria, em jeito de conclusão, de lembrar que a aplicação prática dos direitos do homem é inseparável da questão mais geral da promoção do respeito de todos os direitos do homem. O Sr. Abdelfattah Amor, o relator especial7 declarou que “as acções que visam a promoção dos direitos do homem devem compreender medidas para estabelecer, reforçar e proteger a democracia enquanto expressão política dos direitos do homem e, paralelamente, medidas para minorar e eliminar progressivamente a pobreza, promover o direitos dos indivíduos e dos povos ao desenvolvimento como uma expressão dos direitos do homem e da solidariedade humana no domínio económico, social e cultural.”32 _____________ * Intervenção apresentada no Quinto Congresso Mundial da Liberdade Religiosa, que teve ligar em Manila, Filipinas, de 10 a 13 de Junho de 2002 (ver Consciência e Liberdade, nº 14, 2002). 21


Liberdade religiosa e justiça ** No momento da intervenção, professora na Universidade Complutense de Madrid e directora adjunta dos Assuntos Religiosos no Ministério da Justiça, Espanha.

i. Tradução efectuada pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos e publicado no L ‘Observatore Romano (edição francesa), 10 de Dezembro de 1965 (N. do T.). 1. S. Burr, “The Principle of Religious Liberty and the Practise of States” (1988) 6, in Dickinson Journal of International Law 273,241. Tradução livre.

2. Ver www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_decl_ 19651207_dig ou http://pages.infinit.net/jclem/Lalibertereligieuse.html para a fonte da tradução francesa. 3. A. de Hera, R. M. Martinez de Codes (ed.) Spanish Legislation on Religious Affairs, art. 16º, Constituição Espanhola, Ministério da Justiça, Madrid, 1998, p. 28. 4. Ibidem, p. 75‑113.

5. A. Amor, Aplication de la Déclaration sur l’élimination de toutes formes d’intolerance et de discrimination fondées sur la religion ou la conviction, U.N. Doc. EICN 4/1995/91, par. 146 (1995). 6. Ibidem.

7. T. Stahnke and J. P. Martin, Religious and Human Rights: Basic Documents, Center for the Study of Human Rights, Columbia University, 1998, pp. 56‑85

8. J. Duffar, “La liberté religieuse dans les textes internationaux », in Revue de droit public et de la science politique en France et à l’étranger, 1994, pp. 939‑967. 9. S.C. Van Bijsterveld, “Religion and the Law: Legal Structures in an International and Comparative Context”, in Church and State Consultation, Conference of European Churches, Genève, 1998.

10. Commission européenne des droits de l’homme, 14 de Julho de 1980, nº 8282/78, DR 21.109 11. M. D. Evans, Religions Liberty and International Law in Europe, Cambridge, 1997, cap. 10. 12. Cf. nota nº 7, Religious and Human Rights: Basic Documents, pp. 140‑160.

13. B. G. Tahzib, Freedom of Religion or Belief. Ensuring Effective International Legal Protection, La Haye, 1996, pp. 249‑421. 14. D. McGoldrick, the Human Rights Committee: its Role in the Development of the International Covenant on Civil and Political Rights, Oxford, 1994 15. Para uma investigação mais aprofundada sobre este órgão de vigilância da aplicação do Tratado, ver B. O. Tahzib, nota 13, pp. 249‑375.

16. Y. R. Tyagi, Cooperation Between the Human Rights Committee and Nongovernamental Organizations: Permissibility and Propositions, 18 TEX.INT’L L. J. 273, 1983. 17. K. Boyle e J. Sheen (cd.), Freedom of Religion and Belief: A World Report, 1997, P. Marshall, L. Gilbert, Their Blood Cries out, 1997. 18. B. O. Tahib, ver nota 13, pp. 375‑404

19. N. Lerner, Religion, Beliefs, and International Human Rights, New York, 2000, pp. 51‑68. 22


Rosa Maria Martinez de Codes 20. B. O. Tahib, ver nota 13, pp. 405‑421.

21. Vienna Statement of the International Human Rights Treaty / Déclaration de Vienne des organes crées en vertu d’instruments internationaux relatifs aux droits de l’homme, U.N. Doc. A/CONF. 157/TBB/4, PAR. 13, 1993.

22. Para saber mais sobre as propostas encorajando os Estados a aceitarem estas conclusões como vinculativas, ler Follow-up on Views Adopted under the Optional Protocol to the International Covenant on Civil and Political Rights, U.N. Doc. A/CONF. 157TBB/3, PAR. 15 (1993). 23. P. Alston (ed.), The United Nations and Human Rights: A critical Appraisal, 1992, pp. 145-155.

24. K. G. Partsch, “The Committee on the Elimination of Racial Discrimination” in The United Nations and Human Rights, nota 23, pp. 339-368. 25. Monoussakis, 29 de Agosto de 1996

26. K. V. Greece, 19 de Abril de 1993; Larissis and Others V. Greece, 30 de Janeiro de 1998.

27. Johan D. Van Der Vyver, John Witte, Religious Human Rights in Global Perspective. Legal Perspectives, La Haye, 1996, pp. 805-830; R. MacDonald, F. Matscher, H. Pazola (ed.), European System for the Protection of Human Rights Dortrecht, 1993, pp. 445-463. ii Fonte: http://www.droitshumains.org/Biblo/Tx_Afr/Oua_81.htm#1 (N. do T.).

28. J. A. Walkate, “The Right of everyone to change his religion or belief – Some Observations”, 30, in Netherlands International Law Review, 1983.

29. Commentaire général nº 22 au sujet de I’article 18 du Pacte international relatif aux droits civils et politiques, 1993, par. 5. 30. K. Boyle, Freedom of Religion and Belief: a World Report, nota 13, p. 9

31. Declaração de Viena e programa de acção, U.N. Doc. Pt. 1, par. 27 (1993).

32. A. Amor, Aplicação da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção, E/CN4/1997/91, 30 de Dezembro de 1996, par. 83.

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O Proselitismo Religioso no Seio da Empresa Alain Garay* “A requerente, membro da União russa das Igrejas Cristãs Evangélicas, juíza no Tribunal do distrito de Noïabrsk.... foi finalmente demitida das suas funções por ter “atentado à sua reputação de juíza” e por ter abusado das suas funções por fazer proselitismo (...) Numerosos testemunhos e queixas oriundos de agentes do Estado e de particulares permitiram constatar que a requerente tinha nomeadamente recrutado colegas da mesma confissão religiosa, tinha orado em público aquando das audiências e prometido a certas partes uma resolução favorável aos seus casos se elas aderissem à sua comunidade religiosa. Mais, essas actividades religiosas provocaram atrasos no tratamento dos casos e um certo número de pedidos de afastamento da arguida... Se se admitir a existência de uma certa margem para apreciação com respeito a isto, as razões invocadas pelas autoridades são suficientes para justificar a ingerência.” Decisão de inadmissibilidade tomada a 8 de Fevereiro de 2001 pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem — caso Pitkevich contra a Rússia. O diário Le Monde revelava na sua edição de 21 de Março de 2003 que as forças armadas americanas tinham enviado aos seus soldados, mobilizados no conflito contra o Iraque, um pequeno manual intitulado Soldier’s Guide in the Republic of Irac (Guia do Soldado na República iraquiana). Os militares americanos eram assim advertidos acerca da religião “totalmente a proscrever, do mesmo modo que todo o proselitismo”.... o empreendimento militar como qualquer empreendimento em geral coloca numerosas limitações à liberdade de manifestar as suas crenças.... Mas que se entende por “empreendimento”, por “proselitismo”1 e por “proselitismo religioso”? A difícil conciliação entre as liberdades do cidadão e o princípio da subordinação do assalariado sofreu desde há uma dezena de anos várias evoluções. O professor Jean­‑Emmanuel Jay considera que isso se deve a diversas razões. Desde 1992 que a lei assimilou que, no plano cultural, as gerações jovens integraram plenamente o questionamento de uma autoridade fundamentada simplesmente na posição hierárquica, da escola à empresa: “O art.º L 120‑2 do Código do Trabalho consagrou uma alteração no estatuto do assalariado, de subsidiariamente cidadão, à de cidadão assalariado” (‘Ninguém pode restringir os direitos das pessoas e as liberdades individuais e colectivas sem que isso se justifique pela natureza da tarefa a realizar e seja proporcional ao objectivo procurado’)”2. O mundo da empresa, lugar de produção colectiva, constitui um espaço em si favorável às manifestações das opiniões pessoais, garantidas a título 24


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de formas contemporâneas de expressão das liberdades dos assalariados no quadro das instituições representativas do pessoal. E “a evolução da palavra na empresa” tem­‑se feito progressivamente acompanhar da implicação dos assalariados, instrumento de optimização da produção (grupos de expressão), condição da qualidade da produção (círculos de qualidade) e garantias para a higiene e a segurança (CHSCT)3. Mas esta participação dos empregados termina onde começa a preservação do interesse da empresa. Toda a dificuldade reside na evolução e na própria definição do “interesse” da empresa, o que o texto citado do Código do Trabalho tenta circunscrever referindo­‑se à “natureza da tarefa a realizar”. A liberdade ideológica do empregado implica, portanto, a neutralidade do empregador com respeito às crenças e convicções do empregado nos limites das tarefas a realizar. Assim, para além da volatilidade das definições de “proselitismo religioso” e de “interesse da empresa”, a lei, sob o controle eventual do juiz, regula uma certa neutralidade da empresa que garante a manifestação matizada das crenças religiosas no seu seio (parte I). Em contrapartida, quando a empresa se torna o alvo ou o agente do “proselitismo religioso” abusivo, os tribunais raramente encarregues de resolver tais situações, sancionam os autores, sem sentimentalismos (parte II). I. O “proselitismo religioso” face às exigências dos interesses das empresas, objecto das liberdades dos empregados A. O exercício e a manifestação das convicções ou das crenças religiosas no seio da empresa são admitidos 1. O princípio da liberdade de expressar a fé no seio da empresa Sem que seja útil definir a noção polissémica de “religião” numa República que não reconhece e não professa nenhuma (art.º 2.º da Lei de 9 de Dezembro de 1905), é útil lembrar constantemente o art.º 10.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789 que diz: “Ninguém deve ser importunado pela suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. De modo que assegurando a “liberdade de consciência”, a República garante, mesmo no seio da empresa4, a expressão da fé religiosa. É, portanto, em nome da liberdade de expressão que é protegido o exercício do direito de manifestar as suas crenças e a tentativa de conversão do outro5. O acórdão proferido a 25 de Maio de 1993 pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso respeitante à repressão penal, na Grécia, do testemunho religioso de Minos Kokkinakis, lançou uma luz particular sobre o dispositivo europeu da liberdade de religião6. Detido mais de sessenta vezes por proselitismo e tendo sofrido diversos internamentos e sofrido pena de prisão em diversas ilhas do mar Egeu (§ 6), Minos Kokkinakis, Testemunha de Jeová, foi o primeiro requerente a contestar a legislação grega de 1938‑1939 reprimindo o proselitismo na Grécia. O art.º 2.º da Lei nº 1672/39 definiu “toda a tentativa directa ou indirecta de penetrar na consciência religiosa de uma pessoa de confissão diferen25


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te (heterodoxos) com o objectivo de lhe modificar o conteúdo, seja por qualquer tipo de prestação ou promessa de prestação ou de auxílio moral ou material, seja através de meios fraudulentos, seja abusando da sua inexperiência ou da sua confiança, seja aproveitando­‑se da sua necessidade, fraqueza intelectual ou inocência”. Estatuindo sobre a justeza das condenações penais sofridas por Minos Kokkinakis, o Tribunal Europeu teve o cuidado de lembrar que “Tal como a protege o art.º 9.º, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião representa um dos fundamentos de uma ‘sociedade democrática’ de acordo com a Convenção. ... Se a liberdade religiosa diz respeito em primeiro lugar ao foro interior, ela ‘implica’ além disso, e nomeadamente, a de ‘manifestar a sua religião’. O testemunho, em palavras e em actos encontra­‑se ligado à existência de convicções religiosas. Nos termos do art.º 9.º, a liberdade de manifestar a sua religião não se exerce unicamente de modo colectivo, ‘em público’ e no círculo daqueles que partilham da mesma fé: podendo­‑se também exercer ‘individualmente’ e ‘em privado’; além disso, ela comporta em princípio o direito de tentar convencer o seu próximo, por exemplo através de um ‘ensino’, sem o que de resto ‘a liberdade de mudar de religião ou de convicção’ consagrada pelo art.º 9.º arriscar­‑se­‑ia a permanecer letra morta” (§ 31). Na sua opinião parcialmente concordante, o juiz francês Louis­‑Edmond Pettiti explicava que “...o crente deve poder comunicar a sua fé e a sua convicção no domínio religioso assim como no domínio filosófico. ... A liberdade de religião e de consciência implica a aceitação do proselitismo. ... É um direito do crente ou do filósofo agnóstico expor as suas convicções, tentar partilhá­‑las e até tentar converter o seu interlocutor. Mutatis mutandis o Direito Europeu das Religiões inscreve, portanto, o Direito do Trabalho numa “filosofia personalista das liberdades fundamentais, afim de salvaguardar a componente humana da empresa e, desse modo, os valores essenciais da dignidade do trabalho”7. No entanto, na continuação do seu acórdão, Associação cultual israelita Cha’are Shalom Vs Tsedek, de 27 de Junho de 2000, segundo o Professor Jean­‑François com quem nós partilhamos as preocupações, “o Tribunal não tenciona entrar numa lógica de exacerbação do direito à diferença. Se a liberdade de religião constitui um dos fundamentos de uma sociedade democrática de acordo com a Convenção, o Tribunal não caiu, contudo, numa política jurisprudencial assente numa concepção hipertrofiada da liberdade religiosa”8. 2. Os quadros constitucionais e legais da tomada em conta das crenças religiosas no seio da empresa A alínea 5 do preâmbulo da Constituição de 27 de Outubro de 1946 decreta que: “Ninguém pode ser lesado, no seu trabalho ou no seu emprego, devido às suas origens, às suas opiniões ou às suas crenças”. O artigo citado, L 120‑2 do Código do Trabalho, consagrou, por consequência, o princípio do respeito pelas liberdades de crença do empregado, mesmo que colocado numa situação de subordinação jurídica no seio da empresa. Este dispositivo protector, de ordem constitucional e legislativa, 26


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organiza­‑se em torno do princípio de não­‑discriminação (artigos L 122‑35 – Regulamento Interno – e L 122‑45 9 – condições de contrato)10 que tem por corolário a neutralidade da empresa face à liberdade de convicção e de crença do empregado. A distinção constitucional estabelecida entre “trabalho” e “emprego” sublinha que são visadas as funções públicas e as situações assalariadas ou liberais. A própria noção de “empresa” é, portanto, a considerar aqui no sentido lato, do ponto de vista das protecções em questão.11 De modo que é, portanto, no plano constitucional e dos direitos da pessoa, nas suas relações com terceiros, que nos devemos colocar quando os tribunais ignoram este fundamento12. Tratando­‑se da exteriorização das convicções e das crenças religiosas, o artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclama que: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, salvo se abusar dessa liberdade nos casos determinados pela lei”. Mais uma vez, este princípio de valor constitucional constitui o fundamento e a garantia do proselitismo religioso no seio da empresa desde que associado à condição de neutralidade ideológica da empresa e do empregador. O empregado dispõe assim da liberdade de convicções e de crenças. Esta situação autoriza desde logo o empregado a exprimir as suas crenças e opiniões no quadro da relação de trabalho ou de emprego, por exemplo, durante uma conversa privada, sem que esse comportamento atente contra terceiros nem contra a execução das suas tarefas (infra)13. B. A priori o interesse da empresa não compromete, a liberdade de testemunhar da sua fé com o fim de conversão religiosa 1. A busca de um equilíbrio difícil entre a liberdade de expressão do empregado e o interesse da empresa A lei definiu quadros específicos de expressão dos assalariados no seio das empresas ao abrigo das sanções ou dos despedimentos fundamentados sobre as opiniões emitidas a esse título (artigo L 461‑1 e 2 do Código do Trabalho – Conteúdo, condições do exercício e organização do trabalho). Em contrapartida nenhum texto vem enquadrar a manifestação das convicções e das crenças religiosas, nem o proselitismo religioso, à excepção dos limites gerais fixados pelo artigo L 122‑2 do Código do Trabalho visando “a natureza da tarefa” e a proporcionalidade das restrições “ao objectivo visado”. Por outro lado nenhum texto jurídico define de forma explícita a noção de “interesse da empresa”. Alguns interrogam‑se sobre a oportunidade de melhorar o regime do direito de expressão individual no seio da empresa14. Reconhece­‑se, contudo, que a empresa, centro de poder e de autoridade, não é uma agora, nem uma tribuna e menos ainda um púlpito. O poder directorial do empregador é aqui determinante – pensa­‑se na edição do regulamento interno, acto unilateral do chefe da empresa – assim como com a forma que reveste o proselitismo religioso. Georges Dole sublinha muito justamente que “Tratando­‑se do direito de expressão, os seus limites não aparecem mais certamente definidos por 27


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um exercício abusivo que pela procura de um equilíbrio incerto entre a liberdade do assalariado e o interesse da empresa? Apesar da fragilidade do seu fundamento teórico o abuso do direito apresenta o mérito de oferecer uma justificação objectiva: a realidade de uma falta cometida sem interesse legítimo e com a intenção de prejudicar”15. O contencioso da legalidade dos regulamentos internos das empresas estipula que o empregador não dispõe de um poder de interdição da expressão das convicções e das crenças religiosas16. Sendo assim, é na análise de cada caso, em função das circunstâncias particulares de cada empresa e da situação social e económica, que um frágil ponto de equilíbrio poderá ser encontrado entre liberdades da empresa e liberdades do empregador17. As limitações das manifestações exteriores de fé do empregador permanecem proporcionais às suas incidências na execução da prestação de trabalho. 2. “O interesse da empresa”, sob o controle do juiz, não é uma noção pacífica Desde que a subordinação do empregado à empresa se limite apenas à execução da prestação de trabalho ou ao emprego, toda a sanção tal como uma suspensão com perda de vencimento deve satisfazer três condições colocadas pelo Supremo Tribunal de Justiça: a natureza das funções exercidas, a finalidade própria da empresa e um distúrbio caracterizado e objectivo que o comportamento do empregador causou a esta19. É assim considerado que “Não se pode proceder a um despedimento cuja causa objectiva esteja baseada no comportamento do assalariado que, tendo em conta a natureza das suas funções e a finalidade própria da empresa, criou uma perturbação caracterizada no seio desta última” e que “um despedimento por causa inerente à pessoa do assalariado deve ser baseado em elementos objectivos” (Soc. 20 Novembro, 1990, Bull. civ. V, nº 597). No seu decreto de 25 de Janeiro de 1989 (citado na nota 13), o Conselho de Estado adoptou um método pragmático e objectivo para censurar um regulamento interno que interditava “as discussões políticas ou religiosas e, de uma maneira geral, toda a conversa estranha ao serviço”. A Alta Jurisdição fez assim uma aplicação antecipada do dispositivo adoptado no quadro da Lei nº 82‑689 de 4 de Agosto de 1982 inscrita doravante no artigo L 122‑35 do Código do Trabalho que estipula que o regulamento interno “não pode conter distinções que lesem os assalariados no seu emprego ou no seu trabalho, devido (...) às suas opiniões ou às suas confissões” Para o Conselho de Estado, as disposições do regulamento interno acima referidas, “excedem­‑se tendo em consideração o prejuízo que elas implicam a nível dos direitos da pessoa, a extensão das sujeições que o empregador podia regulamentar com vista a assegurar a boa ordem e a disciplina na empresa, assim como a boa execução de certos trabalhos exigindo uma atenção particular”. Neste assunto o comissário do Governo, Josselin de Claussade tinha explicado que se o silêncio fosse uma condição indispensável ao bom funcionamento da oficina ou de um material, as disposições do regulamento interno em causa poderiam ser justificadas. 28


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Na prática, as decisões dos tribunais no domínio da liberdade de expressão e de manifestação da fé no seio da empresa são raríssimos. Esta constatação, à luz dos ensinos do decreto do Conselho de Estado de 25 de Janeiro de 1989, permitirá concluir que no Direito francês os empregados não estão autorizados “a realizar acções de propaganda, de ensinamento religioso (...)20” ? Esta questão pede aprofundamentos tanto mais que a empresa não constitui um “espaço de recrutamento”, nem um campo de evangelização. II. O “proselitismo religioso”, objecto de empresas sancionadas A. O trabalho ou o emprego posto em causa pelo “proselitismo religioso” enganador, desleal e abusivo 1. O engano e a deslealdade sancionadas A própria natureza do regime jurídico da relação de trabalho ou de emprego é susceptível de ser posta em causa devido a certos procedimentos de “proselitismo religioso”. Assim considerado, em matéria civil (artigo 1134 alínea 3 do Código Civil), de 23 de Janeiro de 1998 pelo Tribunal da Relação de Versailles devido a manobras proselitistas imputadas a um membro da Igreja da Cientologia que tirou proveito de um estágio de formação de modo qualificado como “desleal” (caso Cassan). A revogação do contrato de prestação de serviços foi aqui pronunciada devido a que, segundo o Tribunal, o mandatário “não executa a sua missão com lealdade e boa fé”21. Para alguns autores “a deslealdade no proselitismo conduz à deslealdade nas relações contratuais”22. Aqui, a execução de um contrato é revogada pela instrumentalização e o desvio de actuação, provocando uma anormalidade devido ao recurso a métodos não previstos inicialmente pelos contraentes e que manifestamente não estão ligados ao próprio objecto do contrato. Existe aqui, de certa forma, “erro na mercadoria”. Nada, aquando da elaboração ou da execução do contrato, previa o recurso ao “proselitismo religioso”. Das circunstâncias extraídas do conteúdo do estágio organizado pelo Sr. Cassan, os desembargadores de Versailles salientaram que o interessado “sabia claramente que um tal comportamento (o proselitismo) ultrapassava os limites aos quais um formador (...) se deve limitar, na medida em que ele pedia aos seus interlocutores que não falassem em nada e não dissessem nada ao empregador, sobre o que lhes era proposto (ou seja, actos de pressão)”. Este caso civil é comparável ao contencioso julgado em matéria social a 22 de Março de 2001, através de um acórdão do Tribunal da Relação de Versailles no seguimento do despedimento de assalariados que se recusaram a participar num seminário de conteúdo controverso (caso Petitjean contra Sociedade Óptica Essor)23. No caso em epígrafe, tratava­‑se de um seminário profissional organizado para os vendedores por um director comercial, “membro de uma associação classificada pelas comissões parlamentares belga e francesa pelas suas práticas sectárias”, da qual a sua esposa e dois assalariados da empresa eram, eles próprios, membros. Segundo alguns assalariados, em seminários anteriormente organizados procedeu­‑se a uma “auto­‑culpabilização 29


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pública dos participantes, o que lhes pareceu ser uma manipulação psicológica (...) que era empregue uma fraseologia que não podia deixar de levar os destinatários dessas formações a interrogarem­‑se sobre o seu objectivo (...). Tendo as inquietações e interrogações dos assalariados sido expressas em termos corteses, medidos e positivos, e em face da ausência de pessoas estranhas à sociedade, tendo em conta a gravidade do problema levantado, os assalariados não abusaram da sua liberdade de expressão na empresa, liberdade à qual não podem ser levantadas restrições justificadas pela natureza da tarefa a cumprir e proporcionais ao objectivo procurado. O despedimento dos assalariados que se recusaram a participar no seminário litigioso não repousa, consequentemente, sobre nenhuma causa real e séria”. Do ponto de vista penal, o delito de engano relativo a uma prestação de serviços foi sancionada na sequência de um estágio de formação profissional organizado por um membro da Igreja da Cientologia. Neste caso “omitindo aos candidatos a informação de que a sociedade que explorava o centro de formação em trabalho de vendas pertencia à Igreja da Cientologia, o gerente enganou­‑os no que respeita a uma das qualidades substanciais das prestações de serviços fornecidos... O carácter neutro ou orientado de um ensino é, para um candidato, uma das suas qualidades substanciais, tanto devido à sua influência determinante sobre a natureza da formação dispensada como ao destino dos fundos exigidos aquando da inscrição”24. São aqui reprimidos não apenas os efeitos que advêm da pertença a um movimento como a Igreja da Cientologia, mas também a informação deficiente e enganadora sobre o carácter “orientado” de um ensino dispensado a título de formação profissional25 (salienta­‑se que no caso Cassan, contencioso civil, o mesmo Tribunal da Relação de Versailles tomou nota de que “não é censurado ao Sr. Cassan (...) o facto de pertencer à Igreja da Cientologia, o que pertence ao foro da liberdade de consciência, nem de ter executado uma prestação de má qualidade, mas apenas de ter utilizado a sessão de formação para incitar os seus interlocutores a partilharem das suas ideias filosóficas e aderirem à organização à qual ele pertencia, desviando­‑se assim do objecto do contrato”. (No quadro do tratamento judicial destes casos o vai e vem entre “filiações de convicção” e “métodos de convicção” é constante26). 2. No seio da empresa, as “pressões de consciência” abusivas são puníveis27 O carácter polissémico da noção de proselitismo – quer seja entendido em termos de evangelização, de missão, de apostolado, de sacerdócio, de colportagem, de propaganda, de angariação, de contacto porta­‑a­‑porta, de ensinamento, de “colonização dos espíritos”, de lavagem ao cérebro, de manipulação, etc. – conduz, fundamentalmente, às modalidades de transmissão da mensagem religiosa28. Esta troca pode ser fonte de pressões que infringem os direitos e liberdades do outro (ele é também o objecto das qualificações das actividades em Direito do Trabalho e em Direito Social, sob a “pressão” das administrações encarregadas da aplicação 30


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das leis e regulamentos29!). No seu acórdão Kokkinakis contra Grécia o Tribunal Europeu distinguiu assim “o testemunho cristão do proselitismo abusivo”: “– o primeiro corresponde à verdadeira evangelização que um relatório elaborado em 1956, no quadro do Conselho Ecuménico das Igrejas, qualifica de “missão essencial” e de “responsabilidade de cada cristão e de cada Igreja”. – o segundo representa a corrupção ou a deformação. Pode apresentar­‑se sob a forma de “actividades que ofereçam vantagens materiais ou sociais com vista à obtenção de adesões a uma Igreja ou exercendo uma pressão abusiva sobre pessoas em situação de angústia ou de necessidade”, segundo a mesma relação, ou até implicar o recurso à violência ou à “lavagem do cérebro”; mais genericamente, não se enquadra com o respeito devido à liberdade de pensamento, de consciência e de religião do outro” (§ 48). De facto, distingue­‑se assim tradicionalmente o “caso de consciência”, tensão pessoal e individual, expressão de um conflito interno da pessoa, da “pressão de consciência” que se define no exterior da pessoa e pode causar um atentado à consciência do outro. O discurso de oposição ao “proselitismo religioso” põe frequentemente em cena a figura da vítima recorrendo à lógica infantilizante, situação ameaçadora contra a qual deveríamos estar prevenidos... A empresa e o empregador asseguram, deste ponto de vista, um muro protector contra as pressões de consciência em matéria religiosa? Ou serão também eles, por sua vez, vítimas das estratégias de instrumentalização e de desvio das “prescrições de opinião” em matéria religiosa? Qualquer que seja a situação em causa, a evolução dessas situações apela a uma avaliação minuciosa dos interesses presentes, a um exame circunstanciado dos factos em questão e a uma rigorosa análise dos princípios jurídicos em jogo. É a uma tal apreciação in concreto à qual se dedicou o Tribunal Europeu no caso Kokkinakis: “Em suma, o Tribunal não tem que definir in abstracto o proselitismo abusivo... O Tribunal realça que as jurisdições gregas estabeleceram a responsabilidade do requerente por motivos que se contentavam em reproduzir os termos do artigo 4, sem precisar suficientemente em que é que o arguido teria tentado convencer o seu próximo através de meios abusivos. Nenhum dos factos que elas relataram o permite constatar. Desde logo, não foi demonstrado que a condenação do arguido se justificava nas circunstâncias em análise por uma necessidade social imperiosa. A medida incriminada não parece ser proporcional ao objectivo legítimo que se pretendia alcançar, nem, portanto, “necessário numa sociedade democrática”, “à protecção dos direitos e liberdades do outro” (§ 48 e 49). Compreendeu­‑se que a invocação de uma pressão de consciência não é em si mesma uma justificação de natureza a sancionar um acto qualificado precipitadamente como comportamento prosélito abusivo. Assim, o Tribunal Administrativo de Versailles num julgamento datado de 20 de Abril de 2000 anulou uma decisão municipal pela qual um presidente de 31


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Câmara tinha infligido uma repreensão disciplinar a um agente municipal devido a que o arguido tinha tido um comportamento inaceitável durante as suas horas de trabalho: “Considerando que está provado que a Sra. M. entregou a um colega, num envelope timbrado da Câmara de Celle Saint­ ‑Cloud, uma publicação das Testemunhas de Jeová; que esta transmissão ocorreu na sequência de uma conversa tida por eles a 13 de Setembro de 1997 em casa deste funcionário; que não consta dos autos que este funcionário tenha sofrido uma pressão moral da parte da Sra. M.”30 B. A empresa religiosa prosélita, a instituição sob o olhar do Direito 1. Os rigores judiciários das “empresas sectárias” prosélitas O arquétipo contemporâneo da “empresa religiosa ou pseudo­‑religiosa prosélitista” é o modelo da “seita” pelo qual o relatório do inquérito parlamentar Les sectes en France, publicado a 10 de Janeiro de 1996, realçava o “carácter insidioso da deriva sectária, na medida em que é difícil de traçar uma fronteira entre o funcionamento “legítimo” e a zona perigosa, ou seja, entre a livre adesão e o grupo coercivo, ... o empenhamento e o fanatismo, ... a adesão leal a um grupo e a subserviência incondicional, a persuasão hábil e a manipulação programada, a linguagem mobilizadora e a “neolinguagem” (o discurso dogmático e estereotipado)” 31. Certos tribunais não hesitaram em transpor o Rubicão desta “submissão à análise parlamentar” considerando tratar­‑se de um movimento que figura na lista das 173 “seitas” elaborada pelos deputados, que “uma pessoa que reconhece pertencer à religião aumista, “fundada pelo senhor Hamsah Manarah” e que exprime um certo proselitismo neste ponto, não pode ser vista como apresentando garantias de neutralidade suficientes, exigidas para o acolhimento e desenvolvimento de menores confiados às assistentes maternais... A despeito do facto de que nenhuma infracção lhe era imputada, a não aceitação da sua licença de assistente maternal não ignora a liberdade de religião, nem o princípio de laicidade, e não é considerado erro de apreciação32. O Courrier Juridique des Affaires Sociales, publicação bimestral de informação jurídica do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, na sua edição de Maio/Junho de 1998, recomendava um método para avaliar as condições de aprovação requeridas para o acolhimento de crianças com respeito ao “fenómeno das seitas”33: “Desde que a simples adesão de um candidato a uma confissão ou a sua simples filiação religiosa não constitua um motivo de natureza a justificar legalmente uma recusa de aprovação ou a sua retirada e que não compita à administração de formular uma apreciação ou um juízo de valor sobre o próprio culto ou pôr em causa a existência da religião ou do culto ao qual o requerente aderiu, é indispensável que a administração examine em que medida o comportamento do requerente é de natureza a prejudicar ou a comprometer a saúde, a segurança e o desenvolvimento das crianças. Devem ser distinguidos diversos casos; se o candidato faz prova de proselitismo, uma decisão de recusa ou de remissão é legalmente 32


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justificada. Apenas os elementos factuais que estabelecem a actividade proselitista devem ser precisos e relatados na decisão tomada.” Aqui a actividade proselitista provada, na sequência de uma actividade realizada por um adepto de uma seita, é constitutiva de uma carência. Esta posição foi confirmada pelo Ministro da Educação Nacional numa resposta datada de 2 de Agosto de 1999: “A violação da obrigação de neutralidade do funcionário em relação aos utentes, nomeadamente por um docente que, no quadro do exercício das suas funções, faça proselitismo, conduz à aplicação de sanções disciplinares”34. Mas coloca­‑se invariavelmente a questão da oportunidade de reter a priori uma noção tão controversa como a de “seita” para ter em conta carências objectivas extraídas de um desvio ou de uma instrumentalização dos métodos de conversão religiosos no seio da empresa e de toda a estrutura organizada tal como a empresa estatal. 2. A concorrência das instituições (empresas e religião): um leito para dois sonhos? Os comportamentos de proselitismo no domínio religioso podem assumir contornos de verdadeiras empresas de conquista ideológica dos espíritos pelos quais os meios contemporâneos de difusão asseguram, mais que nunca, uma audiência considerável através da utilização de redes da Intranet e da Internet, etc. Os meios da propaganda35 são aqui constantemente renovados. De modo que a própria organização da propagação das mensagens religiosas destinadas a convencer os outros empregam métodos originais baseados na liberdade de consciência. A dimensão institucional das empresas proselitistas, na esfera das actividades propriamente religiosas, mas igualmente no espaço clássico da empresa, estrutura de produção de bens e serviços, apela a uma grelha de leitura e de interpretação de carácter transnacional e pluridisciplinar na hora da comunicação de massas, fluxos imediatos e redes mundiais. Imaginam­‑se aqui poderosos vectores de comunicação contemporâneos com utilização via telemática e satélites que veiculam mensagens religiosas de carácter proselitista no mundo inteiro tais como redes de cabos acessíveis no próprio seio das empresas aos empregados das empresas multinacionais. Estas novas dimensões asseguram uma oferta permanente e crescente e desmultiplica as correntes de responsabilidade. Ninguém duvida que o Direito deverá ter em consideração o conjunto dessas mutações contemporâneas zelando por preservar os frágeis equilíbrios conseguidos no século XX sob a acção do legislador e dos juizes. A concorrência simbólica e real a que se entregam as empresas, no sentido lato, no domínio do proselitismo religioso – grupos de imprensa “de tendência”, redes confessionais, multinacionais televisivas nos países muçulmanos e da América do Norte (por exemplo, “tele­‑evangelistas”) – formam um espaço e um mercado das crenças com fins de proselitismo. Esta nova configuração ao assegurar uma figura multiforme aos métodos clássicos de transmissão das mensagens religiosas – anteriormente baseadas apenas em escritos e na palavra – é, em nossa opinião, o reflexo das evoluções do religioso na geo­‑política transnacional36. Ela 33


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alimenta­‑se na base das inspirações religiosas reflectindo a modernidade dos meios de comunicação planetária. De modo que esta configuração marca uma ruptura e uma continuidade confiando, contudo, a eficácia do proselitismo religioso não apenas aos métodos clássicos dos dirigentes religiosos, mas, simultaneamente, aos comunicadores da “empresa de tendência”. Tratando­‑se de uma empresa estatal, considerada na sua função educativa, os pais beneficiam em França do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e à liberdade de receber ou de comunicar informações ou ideias. Este direito tal como resulta do artigo 2 do protocolo primeiro da Convenção Europeia, interdita a empresa estatal “de prosseguir um objectivo de doutrinamento que possa ser considerado como não respeitador das convicções dos pais37” Com efeito, segundo o Tribunal Europeu, o Estado “ao cumprir as obrigações que assume em matéria de ensino e de educação, deve zelar para que as informações ou conhecimentos incluídos no programa sejam difundidos de modo objectivo, crítico e pluralista”. De modo que o Estado é o garante da obrigação de reserva que os agentes públicos devem manifestar em matéria de expressão das suas convicções religiosas. Assim decidido pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem num caso X. contra o Reino Unido a 1 de Março de 1979, que numa escola laica e devido ao direito dos pais a respeito das suas próprias convicções, a interdição feita a um docente de anunciar na escola as suas convicções se justifica com a protecção dos direitos do próximo, quando a expressão das suas convicções tem um tom ofensivo ou é de natureza a perturbar as crianças. Neste caso concreto, numa escola secundária pública, o docente encarregado das disciplinas de inglês e de matemática, ministrava um ensino religioso durante as suas aulas e afixava nas suas roupas e na sua secretária autocolantes com mensagens religiosas. Aqui, a Comissão Europeia deu razão ao Reino Unido porque “a ingerência sofrida pelo requerente no exercício das sua liberdade de expressão se justificava como sendo necessária, numa sociedade democrática, à protecção dos direitos do próximo, de acordo com o disposto no artigo 10, parágrafo 2 da Convenção”. Esta resolução está conforme ao contencioso administrativo relativo à liberdade de expressão e ao dever de reserva dos agentes das funções públicas em França38. Aos comportamentos de tipo hegemónico das empresas, devido à dimensão e aos seus meios, o nosso Direito do Trabalho e das religiões opõe princípios fundamentais que reflectem uma dimensão individual das relações sociais pelo prisma da liberdade de consciência. Este modelo tradicional pode, no entanto, encobrir a própria implicação das instituições religiosas. Assim, a evolução contemporânea do direito da responsabilidade das pessoas morais não deveria, em nosso entender, fazer economia de uma reflexão sobre os mecanismos e as obrigações correspondentes das estruturas institucionais proselitistas. Com efeito, esta organização colectiva do proselitismo religioso não pode mais ser 34


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ignorada numa sociedade globalizada e globalizante onde o mais pequeno denominador comum é fonte de tensões. Conclusão A questão do proselitismo religioso no seio da empresa, na fronteira do Direito do Trabalho e do Direito das Religiões, é em si mesmo controverso, numa sociedade dita laica que exigiria uma secularização máxima dos espaços tais como o do mundo da empresa. Ora, a permeabilidade das crenças religiosas e a vontade de certos crentes de converter o próximo, qualquer que seja o contexto, colocam de novo a lancinante questão da difícil procura de pontos de equilíbrio entre os interesses à partida opostos da liberdade de consciência e de religião, por um lado, e, por outro lado, o interesse da empresa e do empregador. Esta procura não é neutra em função do ponto de partida da observação dos factos submetidos à tensão do que está em causa. Por um lado, a questão ligada à repressão do proselitismo religioso, que deu lugar a um dos primeiros acórdãos ditos “religiosos” pronunciado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (o famoso acórdão Kokkinakis contra a Grécia), tem valor de símbolo no que respeita à avaliação do estado das mentalidades e do Direito num determinado Estado. Por outro lado, não ignoramos que o que faz o senso comum nas nossas sociedades democráticas, insere­‑se na esfera do respeito responsável dos padrões de civilidade e de reciprocidade, a igualdade de direitos e obrigações, orientados para um ideal de liberdade. A empresa, à sua escala, não escapa também ela a essas exigências nem a esse ideal. Georges Dole lembra a este respeito a declaração anteriormente proferida pelo decano Jean Savatier segundo o qual quando “a disciplina da empresa prevalece sobre as obrigações que se impõem em consciência ao assalariado, é o eterno diálogo de Antígona e de Creonte)”. _________ * Advogado no Tribunal da Relação de Paris Encarregado de curso na Faculdade de Direito de Aix­‑Marseille III

Notas

Segundo o dicionário Le Petit Robert, por proselitismo entende­‑se o “zelo empregue na difusão da sua fé”. Esta noção é de contornos variáveis segundo a qualidade do autor. Qualificado de tentativa de convencer o outro, ela torna­‑se “arregimentação” ou “lavagem do cérebro” para outros... Gaston Piétri, padre católico, escreve que “A propaganda depara­‑se com uma desconfiança generalizada. E a propaganda é temida e considerada como um dos piores agentes da alienação” (La Croix, 17 Junho, 2003, p. 25 – Ver a nota 28, infra). Nós excluímos voluntariamente deste estudo as questões ligadas ao porte de símbolos religiosos e as que respeitam às “empresas de tendência”. 2 « Les limites à la liberté d’expression des cadres », Le Monde, 19 Novembro 2002. 1

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O Proselitismo Religioso no seio da empresa 3 Daniel Mothé, « L’évolution de la parole dans l’entreprise », in France: les révolutions invisibles, Calmann­‑Lévy, 1998. 4 As limitações impostas às manifestações em questão dizem respeito, portanto, ao legislador e não aos argumentos de circunstância, de pura oportunidade, das tendências, da moda... Ver Patrice Rolland, « Ordre public et pratiques religieuses », in « La protection internationale de la liberté religieuse », Bruylant, J.‑F. Flauss (Ed), 2002. 5 Diz respeito à liberdade pública: Jean Rivero, Les libertés publiques dans l’entreprise, Dr. soc. 1982, pp. 421ss; G. Lyon­‑Caen, Rapport sur les libertés publiques dans l’emploi, Doc. Française, Coll. Rapports officiels, févr. 1992. 6 François Rigaux, L’incrimination du prosélytisme face à la liberté d’expression, RTDH 1994, pp. 144‑150; Vincent Berger, Jurisprudence de la Cour européenne des droits de l’Homme, Sirey, 7ème édition, 2000, p. 435ss; Hélène Surrel, La liberté religieuse devant la Cour européenne des droits de l’Homme, RFDA, 1995, pp. 582ss.; Alain Garay, Liberté religieuse et prosélytisme: l’expérience européenne, RTDH, 1994, pp. 9ss.; Nicolas Valticos, Le premier arrêt de la Cour européenne des droits de l’Homme en matière de liberté de religion, Mélanges G. C. Vlachos, Sakkoulas­ ‑Bruylant, 1995, pp. 551ss. 7 Georges Dole, La liberté d’opinion et de conscience en droit comparé du travail, LGDJ, Bibl. Dr. soc., tomo 25, 1997, p. 6. 8 AJDA, 20 Dezembro 2000, 1014‑1015. 9 “Ninguém pode ser afastado de um processo de recrutamento, nenhum assalariado pode ser sancionado ou dispensado devido à sua origem, ao seu sexo, aos seus costumes, à sua situação familiar, à sua pertença a uma etnia, a uma nação ou a uma raça, às suas opiniões políticas, às suas actividades sindicais ou mutualistas, às suas convicções religiosas...” Ver Thierry Massis, La liberté de conscience, le sentiment religieux et le droit pénal, D 1992, Chr. 113. 10 Danielle Lochak, Réflexions sur la notion de discrimination, Dr. soc. 1987, pp. 778ss; Guy Aurenche, La lute contre l’attitude discriminatoire, RDP 1990, pp. 1297ss. 11 Ver o Code constitutionnel, Comentado e anotado por M. de Villiers et Th. S. Renoux, Litec, 2001, p. 197. 12 Para uma análise da teoria dita do “écran legislativo” ler Louis et Thierry S. Renoux, Contentieux constitutionnel [sic] des actes administratifs, Sirey, 1992, p. 36. 13 Ver Cons. d’État, 25 janv. 1989, Société ind. Teinture et apprêts, Dr. soc. 1990, 786, concl. J. de Clausade; JCP éd. G 1989, IV, p. 84. 14 O. de Tissot, Pour une meilleure définition du régime juridique de la liberté d’expression individuelle du salarié, Dr. soc. 1992, pp. 952ss, Ibid., p. 353. 15 Id., pp. 59‑60. 16 Cons. de Estado, 25 Janeiro. 1989, citado acima. 17 Para Dominique Laszlo­‑Fenouillet, “É, no entanto, difícil criticar o legislador que não podia dar às autoridades de controlo uma directiva para decidir em função de cada espécie entre interesses contraditórios. Uma tal decisão implicando “uma margem apreciável de incerteza” (G. Lyon‑Caen) é fonte de imprevisibilidade e corre o risco de gerar interpretações divergentes segundo a autoridade de controle

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Alain Garay (B. Teyssié, Les libertés des travailleurs dans l’entreprises, JCP 1983, I, 14017, p. 373)… “A autonomia de consciência do assalariado deve por vezes ceder perante o interesse da empresa. Mas é preciso tomar atenção e não admitir “uma concepção esmagadora da empresa’” (M. Despax, La vie extra­‑professionnelle du salarié et son incidence sur le contrat de travail, JCP 1963, I, 1176): La conscience, LGDJ, Biblio. Dr. privado, tomo 235, 1993, notas 202 e 203. 18 Não estudamos aqui a situação que, por derrogação do disposto no artigo L 122‑45 do Código do Trabalho, justifica um despedimento por motivo ideológico em benefício da empresa de tendência, estrutura tendo por objectivo a defesa ou a promoção de uma doutrina ou de uma ética tais como escolas, hospitais, associações, fundações “confessionais”: ver o acórdão dito Dlle Fischer, Soc. 20 Nov. 1986, Dr. soc. 1987, 375, nota J. Savatier; JCP 1987, II, 20786, nota T. Revet; Paris, 29 Jan. 1992, Dr. soc. 1992, 335. Ver Georges Dole, Op. cit. p. 127ss. 19 M.‑C. Escande­‑Varniol, Les éléments constitutifs d’une clause réelle et sérieuse de licenciement pour motif extra­‑professionnel, Rev. jur. soc. (F. Lefebvre), 7/1993, 408. 20 Maïlys Couffin­‑Kahn, La place des convictions religieuses du salarié lors de l’exécution de son contrat de travail, Direito do Trabalho, Jun. 1999, p. 241. 21 Christophe Willmann, La bonne foi contractuelle et les convictions religieuses, JCP 1999, 27 mai 1999, nº 21, JCP e 1998, Nº 20‑21, p. 781; Bull. inf. C. cass. 15 Set. 1998, nº 981. 22 Christophe Willmann, Op. cit., p. 900. 23 Bull. inf. C. cass 2º tri. 2001, nº 174, p. 38; Paris, 28 Setembro 1993, Juris‑Data nº 022979 citado por Jean‑Pierre Desideri, « Les discriminations dans le choix de son cocontractant », Droit et Patrimoine, nº 60, Maio 1998, p. 54. 24 Cass. crim. 15 Novembro 1990, Pouteau, Bull. crim. nº 386 ; JCP 1991, IV, p. 70. 25 O artigo 225‑2 do Código Penal sanciona os actos discriminatórios de natureza a entravar o exercício normal de uma actividade económica devido à filiação ou não, verdadeira ou suposta, a uma “religião determinada”. 26 Na realidade, nestes casos sensíveis, na medida em que são portadores do estigma social de “seita”, as diligências simbólicas e práticas do “exame parlamentar” (ver os dois relatórios dos inquéritos parlamentares sobre as seitas, de 1996 e 1999) são sempre perniciosas: ver a obra do psico­‑terapeuta Bernard Lempert intitulada Le retour de l’intolérance – Sectarisme et chasse aux sorcières (Bayard, 2002) que expõe, a seu modo, graves desvios do ostracismo social resultante da política de luta contra as seitas em França (o interessado assumiu das despesas da polémica política e social sobre as “seitas” no quadro das suas intervenções profissionais no seio da Associação L’Arbre au millieu). 27 Ler Dominique Laszlo­‑Fenouillet, La conscience, LGDJ, Biblio. Dr. privado, tomo 235, 1993, pp. 264ss. 28 Nota­‑se a dificuldade em circunscrever as modalidades de expressão das convicções e das práticas no domínio da consciência: assim, não é possível valer­‑se das protecções previstas no artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: “uma profissão de pretensa fé religiosa que mais não era na realidade que um argumento de venda em anúncios de carácter comercial”: CEDH, 5 Maio 1979, X. e 37


O Proselitismo Religioso no seio da empresa Eglise de Scientologie contre Suède, 7805/77, DR 16/78. Ver Gérard Gonzalez, La Convention européenne des droits de l’Homme et la liberté des religions, Economica, 1997; e Jean Duffar, Religion et travail dans la jurisprudence de la Cour de justice des communautés européennes et des organes de la Convention européenne des droits de l’Homme, RDP 1993, pp. 695‑718. 29 Ver a obra de base de Georges Dole, Les professions ecclésiastiques – fiction juridique et réalité sociologique, LGDJ, Biblio. Dr. soc., tomo 24, 1987: ver as suas explicações sobre a “colportagem bíblica” (pp. 273ss). 30 Sra. M. contra Município de Celle‑Saint‑Cloud, recurso nº 975872, inédito. 31 Página 12. 32 Tribunal administratif de Versailles, 7 février 1997, Dame Gohier contre Président du Conseil du Val d’Oise, Gazette du Palais, 26 Dezembro 1997, p. 211. 33 Nº 14, pp. 2ss. 34 J.O.A.N. 2 Agosto 1999, p. 4719. 35 Aqui remetemos para o clássico dos clássicos de uma grande actualidade, de Jacques Ellul, o seu livro de referência intitulado Propagandes (Economica, Março 1990). 36 Ver Blandine Chélini­‑Pont e Raphaël Liogier, Géopolitique du christianisme, Ellipses, 2003 ; Ariel Colonomos, Églises en réseaux, trajectoires politiques entre Europe et Amérique, Paris, FNSP, 2000. 37 CEDH, 7 Dezembro 1976, caso Kjeldsen, Busk Madsen e Pedersen contra a Dinamarca, série A nº 23. 38 Cons. de Estado, 8 Dezembro 1948, Dame Pasteau, Rec. p. 464 ; S. 1949, III, 41, nota Rivero ; 28 Abril 1938, Dlle Weiss, D 1939, III, 81, nota Waline, RDP 1938, p. 553, concl. Mayras. Ver Tribunal Administrativo de Paris, 17, Outubro 2002, Ebrahimian, Direito Administrativo, Janeiro. 2003, p. 4: “…o princípio da laicidade do Estado e dos seus organismos e o da neutralidade dos serviços públicos obstam a que estes agentes disponham, no exercício das suas funções, do direito de manifestar as suas crenças religiosas, nomeadamente através da sua exteriorização na indumentária... este princípio, que visa proteger os utentes dos serviços de todo o risco de influência ou de atentado à sua própria liberdade de consciência, concerne todos os serviços públicos e não apenas o do ensino”.

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Dossier

Jacques Robert

Colóquio Direitos do Homem e liberdade de religião: Liberdade religiosa e insegurança 8 a 11 de Março, Sofia, Bulgária Plano do dossier Sábado 8 de Março de 2003 Sessão de Abertura “Justifica­‑se um colóquio sobre a religião e a insegurança na Europa?” Alocuções M. Verfaillie R. M. Martinez de Codes L. Toshev K. Andreev L. Koulichev Domingo 9 de Março de 2003 Primeira Sessão “A Europa ocidental, central e oriental – as religiões histó‑ ricas e os novos movimentos religiosos numa óptica histórica e social” J. Baubérot, Das religiões históricas aos novos movimentos religiosos – as lições da laicidade francesa A. Krusteff, A liberdade religiosa – uma questão relativa ao desenvolvimento estratégico da Bulgária 39


Colóquio Direitos do Homem e Liberdade de Religião

Segunda Sessão “Modelos de liberdade de religião na Europa ocidental e oriental – aspecto jurídico e contexto histórico” J. E. Machado, Direito e religião em Portugal: algumas questões jurídicas J. Robert, A liberdade religiosa Segunda-feira, 10 de Março de 2003 Terceira Sessão “Religião e insegurança no mundo – actualidades, exacti‑ dões religiosas, manipulações políticas das religiões” R. Torfs, Segurança e liberdade religiosa: algumas questões jurídicas J. Graz, Liberdade religiosa e segurança no mundo Quarta Sessão “Os mecanismos jurídicos de luta contra as violações do direito à liberdade de religião e de convicção” M. Ventura, Proteccionismo e livre mudança – A nova gestão da religião na Europa M. A. Tyner, A protecção da liberdade religiosa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Terça-feira 11 de Março de 2003 Quinta sessão “A educação para a tolerância como antídoto contra as vio‑ lações religiosas da liberdade de religião e de convicções: discur‑ sos e publicações incitando à violência, medias e manipulações, autoridades centrais e locais e instruções sobre o tema religioso” J. Robert, Será necessário prover um ensino religioso nas escolas públicas?

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Discursos da Sessão de Abertura

Jacques Robert

“Justifica­‑se um colóquio sobre a religião e a insegurança na Europa?” Alocução do Dr. Maurice Verfaillie, Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Inscrevendo­‑se no tema geral do colóquio “Direitos do Homem e liberdade de religião: Liberdade religiosa e insegurança” o assunto tem o exame privilegiado do pólo “Europa” entendido como Europa política. Este assunto interessa ao historiador, ao jurista, ao sociólogo, ao teólogo, ao político, cujas diferentes luzes projectadas podem dar, em conjunto, a iluminação que esta questão requer, vasta para tratar e difícil para compreender. O assunto releva de temáticas mais vastas confrontando religião (ões) e sociedade, religião (ões) e Direito, religião (ões) e história, religião (ões) e cultura política. Mas pode, desde já, tirar proveito de um certo número de análises da laicidade, dos cultos, das religiões, dos seus regimes jurídicos, dos nacionalismos europeus e das construções europeias. Este colóquio de Sofia porá questões, mais particularmente, sobre a contribuição do regime de liberdade de religião e de convicção, no sentido mais amplo desta expressão, para a elaboração da segurança europeia. Supõe­‑se assim que a liberdade religiosa se situa no coração do processo europeu, que a Europa se constrói, portanto, no respeito pelo pluralismo das consciências e que, neste quadro, os Estados e as religiões, em conjunto, têm cada um algo específico para a promoção da segurança e da paz. É isso, já, uma realidade? É, por vezes, doloroso constatar na geopolítica das religiões, no território da Europa, as fortes rivalidades do poder que opõem – por vezes violentamente, e mais frequentemente de forma subtil no domínio das relações religiões­‑Estado – as maiorias às minorias e as minorias às maiorias e as tensões que podem surgir entre si e com as autoridades civis. Importa, em primeiro lugar, que as Igrejas cristãs se sintam ligadas pela educação, pela cidadania e a tolerância dos membros da Europa do futuro. Mas elas não estão sozinhas neste desenvolvimento. Outros actores e outros grupos, outras comunidades, participam, igualmente, na vida social da Europa, quer se trate das comunidades judaicas ou muçulmanas, ou do número dos não­‑ligados­‑a­‑nenhuma­‑igreja, dos não religiosos, dos descrentes, dos agnósticos. Mesmo se há, na igreja recenseados, pode dizer­‑se, sem nenhum risco de nos enganarmos, que não há uma maioria de praticantes. Em termos puramente “políticos”, as Igrejas cristãs não 41


Discursos da sessão de abertura

dispõe de uma “cidadania” maioritária adquirida. Não há uma corres‑ pondência precisa e unívoca entre a realidade do mundo europeu exterior e a imagem cristã que as Igrejas desejariam dar. É necessário, desde logo, admitir que a questão posta não deve constituir uma redução apenas às Igrejas e apenas às religiões, do problema mais geral da contribuição que as diferentes sensibilidades e famílias espirituais e as instituições civis podem dar à concepção da tolerância e da liberdade religiosa, e à sua promoção como direcção a tomar para lutar contra a insegurança na Europa em construção. É verdade que, depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque, a inquietação se tem manifestado por causa de um desvio possível dos poderes religiosos, ou políticos, que procurariam explorar esta actualidade. Quem é que, de facto, coloca esta questão? As instituições políticas da Europa? As organizações europeias? Os Estados, nos seus órgãos executivos, parlamentares ou consultivos? Os seus funcionários, ou ainda as Igrejas? A Igreja Ortodoxa, a Igreja Católica, as Igrejas protestantes? Uma maioria dentro das Igrejas, ou as direcções das Igrejas? A imprensa, os media? Quem quer que seja, a questão merece ser examinada, tendo em conta as reservas que acabo de colocar. O título pode então ser precisado; “A liberdade das religiões, as instituições políticas e a segurança europeia”.

Drª. Rosa Maria Martinez de Codes, Historiadora, professora na Universidade Complutense, Madrid, Espanha. Caros participantes desta conferência, bom dia! Durante estes últimos seis anos, trabalhei como sub­‑directora no Ministério da Justiça, que engloba o Ministério dos Assuntos Religiosos, mas actualmente, regressei à Universidade. Por isso, mas também por causa dos meus laços com o Ministério da Justiça e o meu envolvimento nos assuntos religiosos, Maurice Verfaillie pediu­‑me para vos explicar porque é que o Ministério da Justiça, em Espanha, se interessa tanto pela liberdade de religião e de convicção. É verdade que se trata de um tema crucial para as autoridades governamentais espanholas. Não ignoram que a Europa está a ponto de adoptar um novo tratado constitucional e reconhecem, certamente, o significado desse tratado – o primeiro da União Europeia. Se têm acompanhado as actualidades, sabem que os especialistas da Convenção Europeia que preparam uma proposta de Constituição discutem, neste momento, o papel que as religiões e as comunidades desempenharão no novo quadro da União Europeia. Este período é, portanto, decisivo. Penso que no decurso desta conferência, teremos ocasião de discutir a importância de defender a liberdade de religião e de convicção, poderemos, igualmente, assinalar esquemas comuns a todos os países europeus, a fim de defender e de garantir uma 42


Discursos da sessão de abertura

das liberdades fundamentais: refiro­‑me à liberdade de religião e de convicção. Não vou prolongar mais este discurso. Queria, apenas, exprimir a minha gratidão para com as organizações locais que deram a sua contribuição a esta conferência, e agradecer, igualmente, à Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, que não regateia esforços para garantir esta liberdade e este direito. Permitam­‑me acrescentar que o programa do colóquio é ambicioso. A maior parte dos pontos que aí figuram estão na ordem do dia das conferências que reúnem os maiores especialistas de toda a Europa. Sinto­me muito feliz por constatar que os habitantes da Bulgária dão uma grande importância a este tema. Por fim, quero agradecer às autoridades locais e governamentais, pelo interesse que nos dedicam, a nós e a todos os que defendem a liberdade religiosa, permitindo­‑nos partilhar as nossas energias e os nossos conhecimentos. Latchezar Toshev, presidente da Comissão dos Direitos do Homem e das Religiões no Parlamento Búlgaro. Agradeço­‑vos por me terem permitido assistir ao colóquio organizado pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) e de poder tomar a palavra. Gostaria de aproveitar esta ocasião para vos desejar, em nome da Comissão dos Direitos do Homem e dos Cultos junto do Parlamento Búlgaro, o pleno sucesso dos vossos trabalhos. Felicito­‑me que um tal colóquio tenha lugar na Bulgária. Isso mostra, tendo em conta os acontecimentos que se têm desenrolado nos países vizinhos situados a oeste dos Balcãs, que o espírito, a pouco e pouco, toma a supremacia sobre o materialismo, e que podemos olhar para o futuro com optimismo. O Dr. Maurice Verfaillie falou­‑me de várias discussões organizadas pela AIDLR e acho que o assunto que será tratado nos próximos dias é, não somente, extremamente interessante, mas muito importante para o desenvolvimento da sociedade. A liberdade religiosa é um direito fundamental que deve ser reconhecido a cada indivíduo, em todo o mundo. A liberdade religiosa está garantida pela Constituição búlgara, assim como pela Convenção Europeia para a Defesa dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais do Conselho da Europa e do Pacto Internacional relativamente aos Direitos Civis e Políticos da ONU, ambos ratificados pela Bulgária. Segundo a nossa Constituição, os tratados internacionais ratificados pelo Parlamento fazem parte integrante da nossa legislação interna e, assim sendo, tomam o lugar das normas já existentes que os contradizem. Uma nova lei relativa às religiões foi adoptada no quadro da legislação interna. Foi enviada ao Tribunal Constitucional e ao Conselho da Europa, 43


Discursos da sessão de abertura

que a submeterão uma avaliação. Espero que estas démarches resultarão numa regulamentação normativa estável, conforme os padrões europeus. Paralelamente, teve lugar um debate público, ligado à adopção da lei; e isto exerceu, provavelmente, um papel educativo nos cidadãos. Séneca disse: “Vãs são as leis se os costumes faltam”. É por isso que, sem negligenciar a codificação, colocaria, em primeiro lugar, a opinião e a mentalidade públicas, que desempenham um papel significativo ao nível do civismo de uma sociedade. A liberdade religiosa, e a atitude da sociedade perante ela, constituem o tema chave deste colóquio. O Dr. Jacques Ellul colocou o problema da ética da liberdade, uma questão fundamental que eu gostaria de ligar ao princípio da responsabilidade. É a responsabilidade e não a obrigação que eu tomaria em consideração, porque a responsabilidade é uma categoria de ordem moral a que se chega graças à formação e à educação e não pela via da codificação. Não tenho a intenção de repetir o que Hans Jonas e Hannah Ahrendt disseram, assim como Max Weber sobre a ética da fé; gostaria, acima de tudo, de recordar a Declaração do Conselho de Ministros do Conselho da Europa para a educação da sociedade democrática fundada sobre os direitos e as responsabilidades dos cidadãos. Ela foi votada em 1999 por ocasião do 50º aniversário da criação, em Londres, em 5 de Maio de 1949, a mais antiga organização europeia. A Igreja Ortodoxa Ecuménica foi, além disso, a primeira a apoiar esta declaração e a exprimir a sua vontade de aderir ao seu programa em curso. Ela tomou esta decisão durante o 6º Diálogo entre as Igrejas Ortodoxas e o Partido Popular Europeu, que teve lugar em Bucareste em 2002. A Igreja Ortodoxa Búlgara este aí representada pelo bispo de Adrianopoli Evlogui, reitor do seminário de Plovdiv. Convém, portanto, que as liberdades e direitos do homem sejam conhecidos e exercidos pelos cidadãos. Por “cidadãos” entendo os membros activos de uma sociedade que conhecem os seus direitos e os vivem num total respeito pelos outros. São eles que, nomeadamente os quadros dirigentes, escolhem os funcionários e exercem o controlo sobre eles. Parece­‑me importante sublinhar que as liberdades religiosas não podem trazer prejuízo aos direitos dos outros membros da sociedade, nem às liberdades e direitos fundamentais dos seus próprios correligionários, é nisso que consiste a responsabilidade da liberdade ou a ética da liberdade. Seria um acto consciente da parte de um membro de um culto, qualquer que ele seja, estar pronto, por vezes, a impor a si próprio limites, mais do que a criar problemas aos direitos dos outros. O princípio da responsabilidade está, aliás, profundamente enraizado nos fundamentos da moral cristã, que ensina o amor ao próximo, até ao seu inimigo. Estes são preceitos fundamentais que o Filho de Deus, Jesus Cristo, nos legou. Falar de tolerância e de diálogo entre as diferentes religiões está na moda, hoje. Sobretudo depois dos actos repreensíveis perpetrados por 44


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certos novos movimentos religiosos – como o AUM – que provocam extermínios e calamidades e conduzem a suicídios colectivos. Actos semelhantes representam um perigo para a sociedade e não podem ser tolerados. Daí, a necessidade de limitar a liberdade religiosa. Na minha opinião, o Estado não pode intervir senão para garantir a tolerância, no caso em que as diferenças se transformariam em conflitos ou ameaçariam os direitos do Homem, a ordem pública, a vida e a saúde das pessoas, ou a segurança nacional. Estas noções devem ser claramente definidas para não se cometerem abusos relativamente a esses actos. Se estudamos um pouco as principais religiões monoteístas, constata­ ‑se que nenhuma delas apela à intolerância. No entanto, alguns indivíduos tentam explorar – sobretudo para fins políticos – as diferentes religiões, levando­‑as, com bastante frequência, ao integrismo e à recusa dos princípios da sociedade cívica. Ao utilizar o termo “integrismo” não penso apenas no integrismo islâmico. Basta olhar para o que se passa da Irlanda do Norte, onde os conflitos entre protestantes e católicos perduram. Talvez não o saibam, mas numerosos católicos e protestantes aderiram à Igreja Ortodoxa, após esses conflitos e da reforma das doutrinas eclesiásticas. O mesmo facto se tem constatado nos Estado Unidos, na Bélgica e noutros países cujas tradições religiosas não são ortodoxas. Estas mudanças entram no quadro dos direitos ligados à liberdade religiosa. Eu não alinharia o cristianismo ortodoxo entre as confissões integristas. Com efeito, este é conservador e não admite nenhuma modificação da sua doutrina. Para os cristãos ortodoxos, a livre escolha é um valor essencial. Toda a escolha feita em consequência de uma violência, não é aceitável. É esta a razão pela qual, as cruzadas e os massacres dos heréticos, assim como os suplícios da fogueira lhe são estranhos. Os bogomilos búlgaros, donde saíram os cátaros e os Albigences, em França, foram condenados por ocasião de um concílio, mas isso não teve senão um efeito moral na época: eles não foram perseguidos. Além disso, até ao século XVII, a religião oficial na Bósnia era o bogomilismo. Até ao século XVIII ainda se encontravam cemitérios paulicianos em Plovdiv, como se pode constatar nas antigas cartas que foram conservadas, apesar das diferenças religiosas. Os paulicianos são uma variedade dos bogomilos que se converteram ao catolicismo no século XVIII. Deus tolera as diferenças para que o homem possa escolher, em toda a consciência, a via da sua salvação, que é única – Jesus Cristo, cujo corpo é a Igreja, isto é, a comunidade, a confraria cristã ortodoxa. A escolha que resulta de uma violência não tem, portanto, nenhum valor, se digo isto é porque nos encontramos na Bulgária, país em que a confissão tradicional é ortodoxa. A ortodoxia respeita o princípio de liberdade religiosa e o humanismo, e isso não vem de ontem. Eis um exemplo: o salvamento dos judeus 45


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búlgaros entre 1942 e 1943, no qual a Igreja Ortodoxa Búlgara desempenhou um papel primordial com o seu exarca Estêvão e o metropolita de Plovdiv, Cirilo que mais tarde se tornou patriarca. Que melhor exemplo se poderia apresentar da tolerância religiosa que ele manifesta para com os heterodoxos? Outras actividades foram realizadas, nesse sentido por um outro dirigente espiritual, o chefe da Fraternidade Branca, Petar Dunov, que agiu por intermédio do conselheiro do czar, Lyubomir Lultchev, um dos seus correligionários. A 9 e 10 de Março próximo, celebraremos a salvação dos judeus búlgaros suscitada, durante o holocausto, por Dimitar Pechev, vice­‑presidente da Assembleia Nacional da época e 43 deputados da maioria. Este acto moral, que não era realizado sem riscos, mostrou que durante este período, reinava na Bulgária, um espírito de tolerância. Foi assim que puderam ser salvos 43 000 judeus – um facto desconhecido, na época, que se desenrolou num território sob o controlo de Hitler. Gostaria, também, de lembrar que a Bulgária abriu as suas portas aos refugiados arménios turcos e que eles foram muito cordialmente acolhidos pelos búlgaros ortodoxos, apesar das diferenças religiosas que os separam. Poderia igualmente mencionar que entre os anos 1984 e 1989, durante as perseguições perpetradas pelo regime comunista sobre os turcos domiciliados na Bulgária, o povo recusou entrar nessa violência e manifestou muita compaixão para com estes últimos. Durante as festas religiosas, por exemplo, os vizinhos que O patriarca ecuménico Bartolumeu I (à pertenciam a cultos diferentes, esquerda) e o arcebispo Lazar de Simfero- ofereciam uns aos outros, doces e pol, Ucrânia, durante um encontro em Varna, ovos rituais coloridos. Esta toleBulgária. Foto Evangelischer Pressedienst rância pode ser dada como exemplo. Ela mostra que não é forçosamente necessário enveredar pela via do ecumenismo para obter bons resultados e gozar do pluralismo religioso. O ecumenismo é, aliás, sempre contestado nos meios ortodoxos. Vejo como demonstração disso os últimos protestos imanados do mosteiro Esphigmen do Monte Athos que criticam algumas acções ecuménicas do 46


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patriarca ecuménico, Bartolomeu I. Isso não significa, contudo, que não se deva tentar estabelecer o diálogo, desenvolver um espírito de tolerância e de respeito, ou procurar que nos conheçamos uns aos outros. Não me parece necessário insistir para que as missas sejam organizadas em comum. Isso poderia provocar a resistência do clero e de outros cultos e, de facto, isso não é verdadeiramente indispensável, sendo dado que se escolheu dialogar e praticar a tolerância para com as diferenças. Manter as diferenças culturais, étnicas, religiosas, linguísticas, etc., com base num tratamento igual, é nisso que consiste o modelo europeu que triunfa hoje. Desta forma, a liberdade religiosa não prejudica a segurança pública, bem ao contrário, contribui para ela. Mas tudo isto não se adquire de ofício, evidentemente, é necessário lutar para que estes dois valores sejam respeitados. A iniciativa do Papa João Paulo II de encetar, proximamente, uma discussão sobre a questão do estatuto do papa e, mais particularmente, sobre o princípio católico da supremacia papal sobre os outros episcopados, é um passo em frente, nessa direcção. Esta é uma questão que desde há mil anos, divide a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica. Poder­‑se­‑ia também acrescentar que o papa pronunciou o seu credo omitindo “e do Filho” (“fileoque”) à maneira da Igreja Ortodoxa, tal como se pronunciava na época anterior à cisão. Eis um exemplo de líder espiritual que trabalha. Não somente para o diálogo, mas também para a união da Igreja, voltando às raízes e aos dogmas comuns antes da cisão. Concluo desejando que este colóquio marque um passo em frente e contribua para a tolerância, para o diálogo, para o conhecimento mútuo e para o respeito pela liberdade religiosa, apesar das diferenças que existem entre os seres humanos. Isso será, de qualquer forma, um passo mais na direcção da mudança da mentalidade dos indivíduos e da sociedade, para construir um mundo melhor e uma sociedade mais justa e tolerante. Constantine Andreev, representante dos Ministério dos Assuntos Estrangeiros, Director da secção dos direitos do homem e das organi‑ zações humanitárias internacionais. Minhas senhoras e meus senhores Gostaria, como fizeram os meus predecessores, de saudar todos aqueles que aqui estão presentes e que representam uma das mais belas partes da humanidade. Permitam­‑me que formule para convosco, os meus melhores e mais sinceros votos. É para mim um privilégio e uma verdadeira alegria, assistir a esta prestigiada conferência, e o facto dela se realizar na Bulgária prova, uma vez mais, duas coisas: 1. A questão dos direitos do homem e da liberdade religiosa é um problema sensível. 2. O facto de Sofia ser a hospedeira de uma tal manifestação mostra que, no nosso país, esta sensibilidade já não é tão aguda como há dez anos. 47


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A este respeito, gostaria de sublinhar que a época em que se encaravam os aspectos desta problemática e as suas soluções, de ânimo leve, ao sabor dos acontecimentos, já acabou. Mais do que procurar saber até que ponto este problema é sensível, deveríamos procurar os elementos que permitissem resolvê­‑lo. Não devem surpreender­‑se que, na minha qualidade de representante do Ministério dos Assuntos Exteriores e membro do poder executivo, o meu discurso seja um pouco diferente dos dos intervenientes que me precederam. O respeito pelos direitos e pela liberdade religiosa é, sem dúvida, um problema que existe em numerosos países. Esta é a razão, pela qual, é necessário colaborar em conjunto e coordenar todos os nossos esforços para servir os interesses de todos. Como Luchezar Toschev sublinhou, é impossível resolver todos estes problemas se não dispusermos de uma base legislativa adequada. A este respeito, gostaria de chamar a vossa atenção para o facto de que a República búlgara partilha do conceito geral segundo o qual os direitos dos indivíduos pertencentes aos diversos grupos minoritários étnicos ou religiosos fazem parte integrante das liberdades e direitos fundamentais, muito complexos, do homem. A nossa Constituição garante que não será admitida nenhuma descriminação baseada na raça, no sexo, na nacionalidade, na origem étnica, na religião, ou na língua. Garante, igualmente, o direito de cada cidadão a desenvolver a sua cultura, de acordo com a sua origem étnica. Apoiando­ ‑se neste facto, os cidadãos búlgaros pertencentes a diferentes grupos minoritários, étnicos, religiosos ou linguísticos, têm os mesmos direitos de conservar e de desenvolver o que constitui a sua originalidade e a sua cultura. Lembremo­‑nos, também, que a República da Bulgária reconheceu os principais instrumentos jurídicos internacionais da ONU relativos à protecção dos direitos dos indivíduos pertencentes às minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, nomeadamente: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção Relativa aos Direitos da Criança, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Descriminação racial, etc. a República da Bulgária ratificou e aplica, igualmente, os principais instrumentos internacionais do Conselho da Europa, entre os quais, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Convenção Quadro da protecção dos direitos do homem ocupa um lugar particular. Sabem, talvez, que o Governo búlgaro apresentou, recentemente, o seu primeiro relatório, em cumprimento do artigo 23, alínea primeira da Convenção Quadro: ele será debatido, conforme os sistemas de procedimento do Conselho da Europa. Cada cidadão búlgaro tem a possibilidade de declarar a sua pertença a um grupo étnico, religioso ou linguístico. Goza, como os outros cidadãos, dos direitos e liberdades garantidos pela Constituição. Além disso, pode beneficiar das condições postas à sua disposição tendo em vista a sua integração completa na vida social. Constata­‑se uma harmonização entre as principais instituições do Estado que dizem respeito à promoção de uma 48


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política de protecção dos direitos das pessoas que pertençam a um grupo étnico, religioso ou linguístico minoritário. O poder central colabora com o poder local. Representantes dos grupos minoritários, étnicos, religiosos ou linguísticos, participam no poder legislativo e executivo, ao nível central, regional e local. A tolerância – tradicional na Bulgária – manifestada com as pessoas pertencentes a um grupo minoritário, étnico, religioso ou linguístico e a integração conseguida destes últimos na sociedade búlgara, durante estes últimos anos, favoreceram o aparecimento de um modelo nacional específico de relações entre as diferentes etnias. Os políticos, como as outras pessoas, são unânimes em reconhecer que este modelo é uma das principais conquistas do período de transição e uma das riquezas do país. Isso incita­‑nos a trabalhar sem interrupção para o conservar e desenvolver, aplicando de forma eficaz, os padrões internacionais relativos aos direitos do homem, à constituição de uma sociedade civil pluralista, a uma economia de mercado real e a instituições democráticas fundadas na supremacia da lei. Para a Bulgária, este é um dos meios que permitem oferecer uma ajuda real, ao desenvolvimento da Europa de Leste e contribuir para a promoção dos princípios europeus e as instituições democráticas na nossa região, uma região que está longe de ser calma. Estamos todos envolvidos em resolver os problemas ligados a este domínio. Espero que todos os participantes desta conferência encontrem políticas e métodos positivos, apropriados para resolver os problemas, com base na concertação tendo em conta os interesses de todos os países envolvidos. Como já foi sublinhado, o problema relativo ao direito à liberdade religiosa é um problema com que todos os países se defrontam, até os mais desenvolvidos e os que mantém relações democráticas com os outros. Alocução de Luben Koulichev, representando búlgaro da Comissão Europeia, contra o racismo e a intolerância, do Conselho da Europa, Estrasburgo. Senhor Presidente, minhas senhoras e meus senhores, caros colegas. Permitam, desde já, felicitar a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, pela organização deste colóquio consagrado a este assunto bem actual. Gostaria, igualmente, de saudar todos os participantes neste encontro, em nome da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância, ou ECRI, chamado, correntemente, European Commission against Racism and Intolerance. Esta Comissão foi criada logo no encontro inicial que teve lugar no Conselho da Europa, em 1993. Tem como tarefa, lutar contra o racismo, a xenofobia o anti­‑semitismo e a intolerância na grande Europa, no quadro do Conselho da Europa e da defesa dos direitos do homem. A ECRI exerce as suas actividades, em três direcções principais: 1. Convidando os países membros do Conselho da Europa, a forne­ce­ rem­‑lhe relatórios. 49


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2. Elaborando recomendações concernentes a questões gerais. 3. Mantendo relações com a sociedade civil. Eis, em resumo, o que a Comissão tem realizado nestes domínios. Até ao presente, os grandes problemas relativos à liberdade religiosa não figuravam no seu programa. Mas este importante assunto tem sido tratado, não só nas recomendações gerais que têm sido elaboradas, mas, igualmente, nos relatórios preparados sobre os diferentes países. A descriminação é muitas vezes baseada em motivos religiosos. É por isso que a luta contra este desvio faz parte das tarefas que entram no mandato da ECRI. Esta presta uma grande atenção às questões relativas à liberdade e à tolerância religiosas dos relatórios que redige sobre a situação dos diferentes países. Em muitos deles, constatam­‑se problemas de intolerância para com as minorias religiosas – que são, frequentemente, grupos religiosos não tradicionais. Muitos dos relatórios mencionam problemas diferentes ligados ao registo de organizações e grupos religiosos. O ensino nas escolas, num espírito de tolerância, também faz parte das suas preocupações. Durante estes nove últimos anos, a ECRI organizou dois ciclos de relatórios sobre vários países do Conselho da Europa. Um terceiro, que cobrirá, pelo menos quatro anos, está em preparação. Durante cada um dos anos, estudar­‑se­‑á a situação de uma dezena de países. O relatório sobre a Bulgária deverá ser elaborado e analisado em 2003. As análises da ECRI, que se reportam a temas comuns em matéria de racismo e de intolerância, levam, na maior parte dos casos, à elaboração de recomendações destinadas a todos os países – incluindo os países membros. Estas recomendações fazem, quase sempre, o inventário dos problemas ligados à liberdade e à tolerância religiosas. Na sua Recomendação nº 7, adoptada no ano passado e relativa à política geral em matéria de legislação social, a religião tem o seu lugar entre os numerosos motivos de luta contra o racismo e a descriminação racial. Este documento da ECRI tem sido utilizado na elaboração de um projecto de lei de prevenção e de descriminação, actualmente em fase de deliberação na Assembleia Nacional. Tendo em conta os temas tratados durante este colóquio, é conveniente prestar atenção à Recomendação nº 5 da ECRI, relativa à luta contra a intolerância e a descriminação para com os muçulmanos. Nas recomendações constantes do artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, estipula­‑se que para que as religiões coabitem em paz numa sociedade pluralista, é necessário que esta coabitação seja baseada no respeito pela igualdade e a não descriminação das religiões num Estado democrático que aplique a separação entre a lei do Estado e os preceitos religiosos. A situação das mulheres muçulmanas faz também parte das nossas reais preocupações. Estas são, frequentemente, vítimas de uma dupla descriminação, logo à partida como mulheres, depois como muçulmanas. Na Recomendação nº 6, relativa à difusão de material de conteúdo racista, xenófobo e anti­‑semita, faz­‑se apelo aos mecanismos jurídicos da luta contra a violação do direito à liberdade de religião, ou de 50


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convicção, sobretudo quando esse material é comunicado pela Internet. Ao examinar de mais perto as actividades da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, nota­‑se que a liberdade religiosa é objecto de uma grande atenção no trabalho da Comissão. Um estudo dos relatórios confirma uma antiga verdade, que se tem confirmado ao longo dos tempos: a liberdade religiosa e a tolerância são factores de segurança e de estabilidade no seio da sociedade. Estou convencido de que este colóquio dará uma contribuição das mais proveitosas, neste sentido.

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I. Primeira sessão “A Europa ocidental, central e oriental – as religiões históricas e os novos movimentos religiosos na óptica histórica e social” Das religiões históricas aos novos movimentos religiosos – as lições da laicidade francesa com as de outros países europeus e ocidentais. O termo “galicanismo” qualifica o regime que funcionou sob ao Antigo Regime e cujo apogeu se situa sob o reinado de Luís XIV (segunda metade do século XVII – início do século XVIII). Segundo o princípio “uma fé, uma lei, um rei”, o catolicismo é, então, a religião da nação, do Estado. O rei é sagrado, na cidade de Reims, pelo arcebispo daquela cidade. Por ocasião da cerimónia de sagração, ele compromete­‑se a proteger o catolicismo, e a combater a “heresia”. Mas esta defesa da “religião verdadeira” implica igualmente uma supervisão, um controlo. O rei é classificado o “bispo do exterior”, bispo laico. Ele nomeia os bispos, aos quais o papa confere investidura canónica. O mesmo é dizer que o soberano espera dos bispos católicos um máximo de lealdade, de obediência. Estes bispos devem ser o mais independentes possível, do papa. Em 1682, por exemplo, por ocasião de uma célebre assembleia do clero, Bossuet proclama “as liberdades da Igreja galicana” … face a Roma.

Jean Baubérot* Quando se evoca a situação francesa, pensa­‑se, quase auto­ ‑maticamente, na laicidade. A França aparece como um país emblemático nesta matéria. Mas, de facto, as relações entre o Estado e a religião estabeleceram­‑se, neste país, segundo duas modalidades principais: o galicanismo à partida, e a laicidade depois. As diversas situações concretas, desde a Revolução Francesa são, globalmente, constituídas pelas misturas entre galicanismo e laicidade. Estas misturas podem ser efectuadas de diferentes formas e em doses diversas, segundo os casos. Podem ainda juntar­‑se outros ingredientes, como elementos de religião civil. Mas, para não tornar esta exposição demasiado complexa e não ultrapassar o tempo que nos foi atribuído, iremos insistir nas misturas, muito frequentemente esquecidas, entre galicanismo e laicidade. Elas criaram uma relativa especificidade francesa, mesmo sem exagerar a especificidade do modelo francês em comparação 52


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O galicanismo constitui, portanto, uma situação onde existe uma subordinação da religião ao Estado, assim como uma impregnação do Estado e na nação pela religião. Quando tal caso se configura, o pluralismo religioso torna­‑se difícil, por vezes, impossível: como testemunho disso, em 1685, a revogação do Édito de Nantes (E. Labrousse, 1985). Totalmente diverso é o princípio da laicidade em que os elementos principais foram particularmente proclamados pela Revolução Francesa que, no entanto, os pôs bem pouco em acção. Napoleão Bonaparte fez uma primeira aplicação, que permaneceu parcial e que eu qualificaria de “primeiro patamar da laicisação” (J. Baubérot, 1990, 2000). A partir dos anos 1880, com a laicisação da escola pública e a criação da moral laica (J. Baubérot, 1997) e com a lei da separação das Igrejas e do Estado, de 1905, a aplicação da laicidade foi mais completa. É aquilo a que eu chamo “segundo patamar da laicisação” (J. Baubérot, 1990, 2000). A laicidade implica o dissociar a filiação religiosa, por um lado, a filiação nacional e a cidadania, por outro. O respeito pela liberdade de consciência permite ao pluralismo religioso existir explicitamente, e o Estado deve garantir o livre exercício das diferentes religiões e convicções não religiosas. Neste caso em análise, o Estado reconhece­‑se, com efeito, religiosamente neutro e árbitro imparcial entre as diversas crenças. Existe uma separação entre a esfera política e a esfera religiosa, entre as leis civis e as normas ligadas às convicções pes-

soais. Não pode existir, em consequência, nem religião oficial, nem ateísmo de Estado. Em geral, a laicidade é a lógica que predomina em França. No entanto, permanecem alguns traços de galicanismo. Quando se é historiador e sociólogo, pode notar­‑se isso, particularmente, na situação do Islão e, sobretudo, nos novos movimentos religiosos. A minha exposição compreenderá duas partes. A primeira será consagrada à predominância da laicidade; a segunda à coabitação entre a laicidade e os restos do galicanismo. O princípio da laicidade e as suas aplicações Em França, a laicidade é um princípio constitucional. O Artigo 2 da Constituição da Vª República, promulgada em Outubro de 1958, enuncia: “A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Assegura a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem, raça ou religião. Respeita todas as crenças”. Este conjunto de princípios concretiza­‑se nas leis e regras sociais precisas. Desde logo, ninguém pode ser obrigado a exprimir as suas convicções religiosas ou filosóficas. Assim, a menção de filiação religiosa em todos os documentos oficiais (bilhete de identidade, etc.) assim como em todos os documentos administrativos (especialmente para os funcionários) é interdita. Uma tal medida permite àqueles que o desejem, exprimir as suas convicções, sem que daí resulte registos oficiais, nem, bem entendido, penalidade social. De igual forma, exercer uma qualquer ameaça sobre alguém, seja para 53


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incitar a ter uma prática religiosa ou para se abster dela, constitui um delito. A garantia da liberdade religiosa individual e colectiva está de tal forma integrada pela cultura comum que nem passa pela cabeça de ninguém, perturbar o exercício de uma cerimónia religiosa. Mas, acontecimentos políticos, como a guerra do Golfo de 1991 ou, mais recentemente, a exacerbação do conflito israelo­‑palestiniano, obrigou, preventivamente, as forças públicas a proteger certos edifícios religiosos, como as sinagogas. A partir do momento em que não haja atentados contra o direito de outrem, a livre manifestação das convicções religiosas não põe problemas particulares. Por vezes estas manifestações podem ser impressionantes, como as Jornadas Mundiais da Juventude, em 1997, em que milhares de jovens católicos envolveram Paris numa cadeia simbólica da Amizade. Outras religiões efectuam regularmente grandes concentrações, como a de Bourget, organizada cada ano pela União das Organizações Islâmicas de França (UOIF). Os numerosos contactos entre os representantes das comunidades religiosas e os poderes públicos, assim como os encontros entre as próprias comunidades, contribuem para o carácter pacífico da expressão das manifestações religiosas. A liberdade de religião faz, portanto, parte integrante da laicidade francesa. Lembremo­‑nos, por outro lado, que a França ratificou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e as Liberdades Fundamentais, cujo artigo 9 defi-

niu, de forma precisa, a liberdade de consciência e de religião. Permitam­‑me citar e comentar brevemente, este artigo. Ele comporta dois parágrafos. Primeiro parágrafo: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, das práticas e da realização dos ritos.” Desde já, chamo a vossa atenção para o continuum estabelecido entre a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. A liberdade de religião está, portanto, incluída num conjunto mais vasto. Por outro lado ela é logo questão de “religião e de convicção”. O direito de ser agnóstico, ateu, “humanista secular” está garantido. Para ser autêntica, a liberdade de religião implica a liberdade de não­‑religião. Depois, é necessário insistir sobre a indicação imediata da “liberdade de mudar de religião ou de convicção”. Esta afirmação mostra que esta liberdade de religião ou de convicção é, em primeiro lugar, uma liberdade da pessoa, da consciência individual. Não se trata portanto, em primeiro lugar de uma liberdade de grupo, mesmo se a liberdade individual se prolonga com o direito de “manifestar a sua religião” em liberdade igualmente colectiva. Ainda menos se trata de uma liberdade de ordem étnica: não é de forma alguma “a cada etnia a 54


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Notemos também que a saúde e a moral são qualificadas de saúde e de moral “públicas”. Não se trata, por exemplo, de proteger um ideal moral, uma visão da moral, mas regras elementares da moral pública. Dá depois a cada um a liberdade de ter uma concepção mais exigente da moral. Notemos, por fim, a importância da menção “dos direitos o liberdades de outrem”. Reencontraremos estas limitações quando for a questão dos novos movimentos religiosos. Indiquemos, por agora, que este segundo parágrafo – que, contrariamente ao primeiro, não existe na Convenção Europeia dos Direitos do Homem – é tanto mais necessária quanto a Convenção Europeia não é apenas uma declaração de princípios, mas um texto jurídico. Este texto pode servir de recurso perante a Comissão Europeia e perante o Tribunal dos Direitos do Homem para todas as pessoas que pensam não ter obtido, junto das diferentes jurisdições francesas, o respeito pelos seus direitos fundamentais. A laicidade visa igualmente assegurar a distinção das esferas, a neutralidade do Estado perante as religiões e, idealmente, a igualdade destas últimas. Estes diferentes objectivos concretizam­‑se, em França, desde a separação das Igrejas e do Estado de 1905, pela ausência de financiamento dos diversos cultos, o facto de nenhum serviço público estar ao serviço das religiões e o desaparecimento dos serviços públicos do Estado, de toda a menção ou de todo o símbolo de carácter religioso, excepção feita aos imóveis construídos antes

sua religião”, bem ao contrário, pois que o direito de mudar de religião é considerado como fundamental. Acabámos de o dizer, o direito “de manifestar a sua religião” não é apenas uma liberdade individual, é igualmente uma liberdade colectiva e isso é explicitamente indicado. Esta conjugação de uma liberdade individual e de uma liberdade colectiva não é, necessariamente fácil, especialmente para o cidadão que pertença a uma religião ou uma convicção minoritária. Mas se estes direitos constituem conquistas históricas é porque são enunciados de forma assaz detalhada. O segundo parágrafo precisa ainda as coisas: “A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções não pode ser objecto de outras restrições do que as que, previstas pela lei, constituem medidas necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde ou da moral públicas, ou à protecção dos direitos e das liberdades de outrem”. A liberdade de manifestar a sua religião, ou as suas convicções, não pode ser absoluta, porque deve articular­‑se com outros valores que permitam um viver em conjunto, o mais livre, o mais pacífico possível. Mas estes valores não devem servir de pretexto para algo de arbitrário. É por isso que são explicitamente mencionados “guarda­‑fogos”: as limitações à liberdade de convicção devem ser anteriormente previstas pela lei. É o princípio da não retroactividade. Em seguida, a lei não pode emitir limitações que não respeitem a democracia (é o inciso: “numa sociedade democrática”). 55


Das religiões históricas aos novos movimentos religiosos - as lições...

não vêem as suas festas ser tidas em conta senão a título de autorização individual para a ausência dos funcionários, agentes públicos e alunos. Além desta diferença estrutural, isso obriga estas pes­ soas, se querem poder beneficiar de autorização para celebrar as suas festas, a declarar qual é a sua religião, contrariamente ao direito que já foi mencionado. Isso mostra que a articulação dos diferentes campos induz, de facto, algumas desigualdades. Com efeito, estes dois exem­plos mostram a dificuldade de atingir completamente o ideal da igualdade entre as religiões, ligada à laicidade. Jules Ferry, afirmou: “As questões da liberdade de consciência não são questões de quantidade, são questões de princípio” (P. Chevallier, 1981). De facto, este princípio de igualdade funciona frequentemente de forma conveniente, mas nem sempre funciona. Em certos casos, os poderes públicos têm em conta o tamanho e, mais ainda, aquilo que se poderia classificar de “legitimidade histórica e simbólica” das religiões. Assim, as emissões religiosas, que fazem parte do caderno de encargos da televisão pública, incluem o catolicismo, o protestantismo, a ortodoxia, outras comunidades cristãs orientais, o judaísmo, o Islão, o budismo. As autoridades públicas dir­‑vos­‑ão que não é possível abrir até ao infinito, o acesso a este tipo de emissões. Isto é verdade mas – para um sociólogo – não é sem dúvida por acaso que as Testemunhas de Jeová que constituem, numericamente a sexta religião de França, não figuram neste conjunto.

de 1905. Esta última restrição parece apenas prevenir toda a destruição de edifícios antigos que tenham uma inscrição ou um símbolo religioso. Mas indirectamente, ela tem mais importância de que parece e toca o nosso tema desta manhã: as “religiões históricas”. Com efeito, se já não existe religião oficial em França (e se cada dispositivo jurídico existe para assegurar a igualdade formal das religiões), subsistem traços do papel histórico desempenhado pela religião, especialmente o catolicismo. Dois exemplos. O primeiro diz respeito a todos os antigos “cultos reconhecidos” do compromisso napoleónico (catolicismo, protestantismo e judaísmo). Os edifícios religiosos que datam de antes de 1905 e que são propriedades públicas são conservados com fundos públicos e postos gratuitamente à disposição das religiões correspondentes. Isso aplica­‑se à maior parte das igrejas católicas e a maioria dos templos e das sinagogas. Compreende­‑se então facilmente que se põe um problema, especialmente ao nível das mesquitas. O segundo exemplo prende­‑se com o calendário em que seis dias feriados anuais são “festas obrigatórias” católicas, ou mesmo o dia seguinte às festas: Natal, Segunda­‑feira de Páscoa, Ascensão, Segunda­‑feira do Pentecostes e o Dia de Todos os Santos. Se desta forma, a França não rompe com as raízes religiosas (restos de galicanismo?) devemos notar que outras religiões, como a ortodoxia, o judaísmo, o Islão […] 56


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da lei de 1901. Mas quando se trata dos novos movimentos religiosos, na falta de associações de culto, a opinião pública e as autoridades administrativas têm a tendência de considerar que não estão, ainda, em presença de religiões. Laicidade e Galicanismo Insensivelmente “entrámos” na segunda parte da nossa exposição. Agora trata­‑se de entender a laicidade tentando coabitar com formas de galicanismo. Esta coabitação tem razões mais cul­turais, até mesmo políticas, do que jurídicas. Os “restos” culturais do galicanismo podem resumir­‑se deste modo: a necessidade de uma certa correspondência dos valores dominantes entre religião e nação, o facto de que uma “religião liberal” seja preferível a uma “religião tradicionalista” ou (considerada como) “fundamentalista”. A opi­ nião comum faz mesmo com muita frequência, a este respeito, uma confusão entre laicidade e galicanismo. Todavia, o fundamento da lei de 1905 consiste em aceitar as religiões tal qual são (contra aqueles que queriam promover um “catolicismo republicano” dissidente da Roma e da hierarquia católica), a partir do momento em que estas religiões aceitam a tolerância civil e as leis (o que significa, certamente, um mínimo de afinidade de valores mas que toma lugar nos sistemas diferentes de valores e não supõem, de forma alguma, uma forma “liberal” de religião). Outro aspecto do galicanismo: a não neutralidade do Estado que – na opinião galicana – intervém legitimamente para obrigar, ou – no mínimo – incitar a

Último ponto que deriva desta primeira parte e que pode servir de transição para a segunda: se o Estado é neutro perante as religiões, como é que ele sabe que existe uma questão religiosa? A lei de 1905 previa associações específicas ditas “associações de culto”; estas associações deviam “ter como objectivo, exclusivamente, o exercício de um culto”. Tratava­‑se, para o legislador, de separar completamente as actividades religiosas e as actividades políticas, numa época em que se suspeitava que o catolicismo não aceitava verdadeiramente a República. No entanto, o Conselho de Estado considera que associações que têm funções de edição, de publicação, de curas religiosas, sobretudo se essas actividades são lucrativas, não podem ser associações de culto. Logo que se trata de religiões históricas, unanimemente conside­ radas pela opinião pública como “religiões” os problemas derivados desta interpretação da lei permanecem, em geral, menores. Uma lei complementar, votada em 1907, após a declaração do papa interditando os católicos franceses de constituírem associações de culto, permitiu aos grupos religiosos organizarem­‑se no quadro associativo geral, resultado de uma lei votada em 1901. Os católicos utilizaram esta possibilidade até que em 1923/24, em que um acordo entre o governo francês e a Santa Sé lhes permitiu formar “associações diocesanas”, variante das “associações de culto” mas, a priori mais controla­ das pela hierarquia. Hoje, algumas associações muçulmanas escolhe­ ram, igualmente, o quadro 57


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religião a partilhar os seus valores dominantes da nação. Um bom exemplo poderia ser o que foi chamado “o caso dos lenços”. Esquematicamente, o Conselho de Estado defendeu os princípios de uma laicidade jurídica; os adversários da tolerân­cia do uso do lenço na escola colocaram­ ‑se numa posição mais galicana. Mas não adianto mais, porque este “caso” é muito complexo e necessitaria de uma exposição que se dedicasse apenas a ele. Daria, rapidamente, um outro exemplo; o da constituição de uma autoridade consultiva. Se o Estado toma em consideração (ele é neutro) o pluralismo interno do Islão, força as diversas tendências desta religião a organizarem­‑se, pelo menos de forma federal, para ter perante ele um interlocutor único. Pode constar­‑se, desde logo, uma visão cato­‑galicana. No início do século XX, os laicos louvavam o Islão, por causa da sua ausência de hierarquia. No entanto, a estrutura unificada do catolicismo serve, se não de modelo, pelo menos de referência implícita para considerar como desejável que uma religião tenha, à sua testa, uma autoridade, pelo menos colegial. Os budistas criaram, sozinhos (o que é laico: organizarem­‑se livremente) a União Budista em França. Quando aos muçulmanos, o Estado interveio, o que parece mais uma lógica mais galicana do que laica. Ele afirma “acompanhar” o processo; de facto tenta, controlar, mais ou menos. Em contrapartida, o que é conforme a laicidade, incluiu neste processo a UOIF, organização considerada “fundamentalista” por alguns, contra os galicanos que

querem reservar a instância colegial para aqueles a quem chamam “o Islão moderado”. O Islão mostra, portanto, uma certa mistura que se efectua entre os princípios laicos e as tendências galicanas, tendências essas ainda mais presentes quando está em questão os novos movimentos religiosos. Naturalmente, não seria necessário ter uma óptica idílica que reduziria a complexidade do problema. Duas razões, particularmente, tornam o problema difícil. Desde logo, a eufemisação actual da fronteira – historicamente sempre porosa – entre religião e não religião. Esta fronteira é difusa, flutuante, e se o Estado é neutro, não é ele que a pode verdadeiramente determinar. Mas é necessário compreender, então, o seu embaraço. Depois, o facto da religião (como a não religião) não estar sob a alçada da lei. A segunda parte do artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem indica explicitamente, já o vimos, as limitações “legítimas” da liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções. Ora, acontece que muitos novos movimentos religiosos cometem delitos. Não só os actos delituosos devem ser punidos, mas parece impossível censurar o Estado por ter, no respeito pelas liberdades públicas (e, naturalmente, todo o problema está aí), um cuidado de prevenção. O Japão foi, durante muito tempo, um país de tolerância para com os novos movimentos religiosos mas, conservando a preocupação com as liberdades, tornou­­‑se mais circuns­pecto depois do atentado com o gás sarim cometido no metro de Tóquio. Ater-se a uma posição de princípio, que não queira ter em conta 58


Jean Bauberot

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que em França tem valor constitucional) que deve visar actos e não grupos particulares (ver P. Rolland, 2003). Nela encontra­‑se visada, de forma específica, a esfera religiosa, ou, pelo menos, uma parte dela. Encontra­‑se a noção de uma vigilância necessária de religião, típica da óptica galicana. Os principais aspectos desta lei são: - a possibilidade da dissolução civil de certas pessoas morais, por decisão judicial e sob duas condições; os promotores da lei desejarem a possibilidade de uma dissolução por decisão administrativa, o que teria sido claramente mais arbitrário, - a extensão da responsabilidade penal, - a limitação da publicidade, - a sanção do “abuso fraudulento do estado de ignorância ou de fraqueza”; as pessoas atingidas por esta designação são “menores”, as “pessoas particularmente vulneráveis por causa da idade, da doença, da enfermidade, da gravidez, ou de uma deficiência mental ou física”, as pessoas em “estado de sujeição psicológica ou física resultante do exercício de pressões graves ou reiteradas, ou de técnicas próprias para alterar a capacidade de julgamento”. Os promotores de lei teriam querido estabelecer um delito de “manipulação mental”, mas vivas reacções, especialmente da Liga dos Direitos do Homem e da Federação Protestante de França, fizeram com que esta tentativa falhasse. O “abuso fraudulento”

os problemas concretos, parece­‑me, portanto, difícil. Dito isto é preciso acrescentar que nos afastamos da laicidade em proveito de uma óptica galicana quando se exprime uma oposição entre “religião” e “seita”, subentendendo que a “religião” é forçosamente boa e a “seita” fundamentalmente má. Derivamos rapidamente, então, por outro lado, para a expressão “religiões reconhecidas”, contrária ao artigo 2 da lei de 1905, como fez a Comissão Parlamentar francesa de 1995/1996 (ver F. Champion­‑M.Cohen, 1999). Numerosos textos jurídicos franceses e europeus têm­‑no afirmado: não há a possibilidade objectiva de distinguir formalmente religião e seita. E, paradoxalmente, a contestada lei, de 12 de Junho de 2001 é, a esse respeito, no parecer dos seus promotores, um bom exemplo. Segundo o seu título, esta lei, diz respeito aos “movimentos sectários que impliquem atentados contra os direitos do homem”. Todavia, e isso é muito significativo, o texto jamais comporta o termo “seita”, pela dificuldade de o definir. Incorporado no código penal sem o seu título (como é habitual), vale para todos os grupos e todas as associações. O artigo primeiro precisa, por outro lado, que é visada “toda a pessoa moral, qualquer que seja a forma ou o objecto”. No entanto, Picard, relator da lei à Câmara dos Deputados, declarou explicitamente que os partidos políticos, os sindicatos e os grupos profissionais não eram visados pela lei. Declaração bem surpreendente de um Estado democrático, porque contradiz, formalmente, o aspecto geral que deve ter a lei (segundo a Declaração dos 59


Das religiões históricas aos novos movimentos religiosos - as lições...

menciona explicitamente as pessoas que podem ser envolvidas: em certos casos, os critérios são objectivos mas podem, por vezes, parecer contestáveis (ver o estado de gravidez, por exemplo), noutros casos, são mais difíceis de definir objectivamente. Esta lei é, portanto, ambígua, parece perigosa a alguns defensores dos direitos do homem. Alguns juristas minimizam esse perigo afirmando que esta lei lhes parece inaplicável. Talvez se trate, efectivamente, de uma lei a considerar, antes de mais, simbólica, depois de numerosos casos como o da Ordem do Templo Solar. Mas, por um lado, é necessário não negligenciar a importância do simbólico, e, por outro lado, é bastante doentio, em democracia, desculpar o conteúdo de uma lei contando que não seja aplicada. Alguns aspectos da lei, e mais ainda as propostas de alguns deputados, durante os debates parlamentares, mostram que a vigilância continua a ser necessária para que o indispensável respeito pelos valores mencionados no segundo parágrafo do artigo 9, se efectue, como é dito no texto, segundo os critérios de uma “sociedade democrática” e não vá contra a liberdade de religião ou de convicção.

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* Presidente honorário da Escola Prática dos Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia da laicidade na EPHE, Paris, França

Elementos bibliográficos citados: Baubérot, J., Vers un nouveau pacte laïque, Paris, Le Seuil, 1990. Baubérot J., La morale laïque contre l’ordre moral, Paris, Le Seuil, 1997. Baubérot J., Histoire de la laïcité française, Paris, PUF, “ Que sais­ ‑je ? ”, 2000 Boussinesq, J., La laïcité mémento juridique, Paris, Le Seuil, 1994. Champion F.‑Cohen M. (ed.), Sectes et Démocratie, Paris. Le Seuil, 1999. Chevallier P., La séparation de l’Église et de l’École, Paris, Fayard, 1981. Rolland P., “A lei de 12 de Junho de 2001 contra os movimentos sectários que conduzem a atentados contra os direitos do homem. Anatomia de um debate legislativo”, in Archives de Sciences sociales des religions, nº 121, Janeiro­‑Março de 2003, p. 149‑166.

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A liberdade religiosa – uma questão relativa ao desenvolvimento estratégico da Bulgária Atanas Krusteff* para uma severa violação dos direitos dos membros das religiões não tradicionais. 3. Em que medida a nova lei tem respondido às necessidades de reforçar os princípios da Constituição e os acordos do Direito Internacional de dela fazem parte?2 Mesmo os mais entusiastas compreenderam até que ponto o objectivo era ambicioso. Algumas dificuldades estão ligadas ao ecletismo da própria Constituição. Após as disposições relativas à liberdade religiosa, em grande parte compatíveis com as normas internacionais, a Constituição clas­sificou a ortodoxia como “religião tradicional da República da Bulgária”3. Sem representar, em si mesmo, um problema, estritamente jurídico, esta declaração, que foi retomada na nova lei, gerou uma movimentada discussão que chegou até ao Tribunal Constitucional. Todavia, esta lei tem o mérito, indiscutível, de ter reanimado o debate e de clarificar as posições. II. O Direito – uma área de influ‑ ências culturais 1. A Lei foi adoptada mesmo antes do Natal. Este simbolismo não foi uma coincidência. Bem pelo contrário. De acordo com as declarações dos autores e dos apoios políticos a esta lei, é evidente que este simbolismo foi introduzido como um valor jurídico independente. O tom cerimonioso

O facto deste colóquio se realizar na Bulgária serve-me de pretexto, se não virem nenhum inconveniente nisso, para abordar o assunto, sob o ponto de vista búlgaro. Por outro lado a Bulgária deve fazer face ao agitado debate sobre a nova Lei sobre as denominações religiosas, que foi adoptada no fim do ano passado. I. Bases 1. A nova Constituição de 1991 tornou-se a base normativa de uma radical reforma liberal na Bulgária. A esse facto, devemos acrescentar que a Lei sobre as denominações religiosas de 1949, adoptada durante o mais sinistro período da ditadura totalitária, tem permanecido em vigor em matéria de direitos religiosos. As suas mais extremas e mais restritivas disposições foram declaradas anticonstitucionais por uma decisão do Tribunal Constitucional1, mas o restante da Lei tem continuado a ser aplicado, conferindo ao executivo enormes poderes de regulamentação e de controlo. 2. A falta de definição sobre o assunto do âmbito do qual o Estado pode intervir assim como uma série de medidas coercivas emanando do Estado têm provocado uma divisão no seio da denominação mais representativa no nosso país: a ortodoxia cristã. A ausência de firmeza na defesa da liberdade religiosa, tem, igualmente, contri­buído 61


A liberdade religiosa - uma questão relativa ao desenvolvimento estratégico...

da citada disposição tem sido reutilizado, para se transformar num estilo legislativo particular. Um instrumento assaz técnico de governação como o Direito, que se reveste de uma certa irracionalidade, qual formula mágica, é utilizada para fazer sugestões culturais e procurar mensagens subtis, para além do simples impacto sobre certas relações legais. E não se trata de uma caso isolado. A longa batalha sobre o assunto do brasão búlgaro, que acabou por ser coroado, prova também, que a simbologia no Estado búlgaro, a mensagem implícita e os subentendidos são particularmente importantes. Do mesmo modo, certos actos denotam esperanças, promessas e confrontações escondidas que esperam o momento oportuno para serem revelados. 2. Os ornamentos irracionais da política búlgara vão, invariavelmente, a par com um historicismo político ou de Estado. A história serve também para como justificação para o estatuto particular da Igreja Ortodoxa. O historicismo épico, tão místico que passa silenciosamente as dificuldades do quotidiano e que, pelo menos, destaca-nos psicologicamente dos países desenvolvidos, tem revelado ser um instrumento um importante instrumento de governação. Os complexos nacionais tem sido ultrapassados, como que por milagres, quer na época do comunismo, quer na democracia, graças à noção emocional da grandeza do Estado perpetuado ao longo dos séculos. Os Balcans procuram as características domi­nantes da sua identidade e da sua segurança num passado bem longínquo, o que explicaria uma parte dos seus problemas. Um viajante cosmopolita não seria capaz

de se imaginar sobre que ponto o Estado histórico e os seus atributos são aqui apresentados. Isso explica-se parcialmente. Séculos de descriminação feita a uma minoria, uma curta pausa devastada por duas catástrofes nacionais e um meio século de ditadura comunista, naturalmente impessoal, abreviaram, incrivelmente a época preferida da nossa história e isso é também verdade para, praticamente, todo o conjunto dos Balcans. Um período histórico recente e relativamente longo forma uma espécie de hiato sem etiqueta; não se tente encontrar as características desta época na fisionomia actual da cultura e do Estado. Da mesma forma a política actual procura frequentemente pontos de comparação no passado distante, correndo assim o risco enorme de cometer um anacronismo na avaliação das necessidades modernas. 3. No domínio das relações Igreja/Estado, o conjunto de factores culturais e históricos, que se imbricam uns nos outros, desenham um modelo césaro­‑papista muito moderado, mas, apesar disso, típico, já inerente ao Império Romano do Oriente. Trata-se de uma tradição caracterizada por um regime onde o Estado e a Igreja nacional estão em perfeita simbiose, no interesse primordial do Estado. 4. O nó do problema é que este sistema de Estado foi desenvolvido num quadro legal decalcado sobre o modelo ocidental, aceite imediatamente pela Bulgária na sua ressurgência, no fim do século XIX, e já introduzido no Império Otomano na época das reformas conhecidas sob o nome da era Tanzamit. Este modelo importado é um sistema racional de organiza62


Atanas Kruasteff

ção, um método normativo baseado sobre o Estado de direito, posto em prática nas estruturas por via do constitucionalismo, a igualdade entre os indivíduos, o pluralismo político, ideológico e económico. Este modelo visava reprimir o poder arbitrário. 5. Desta coexistência advieram incompatibilidades e a rejeição dos corpos estranhos. Donde deriva a questão: que elementos serão integrados na amálgama cultural e quais serão rejeitados? A despeito da influência duradoura de certos impérios asiáticos, a Bulgária identifica a sua escolha como um “regresso” à Europa (essencialmente à Europa Ocidental). No fim de contas, esta auto-identificação parece dominar as outras ascendências culturais possíveis. Contudo, este regresso à “casa” está semeado­ de armadilhas. De uma forma geral, o conflito cultural toma, por vezes, proporções dramáticas e degenera em complexos culturais que encorajam, cada vez menos, a integração. O carácter universal do modelo ocidental parece ser posto em questão e a escolha estratégica para numerosas nações é formada de dois extremos: renunciar ou tomar o caminho da emigração cultural. Integrar uma outra cultura parece cada vez mais difícil, e as civilizações concentram-se em si mesmas. Estas energias antagónicas tornar-se particularmente violentas nas regiões situadas nas regiões situadas na periferia das culturas que Huntington4 qualificou como falhas. Ele nota a interacção entre estes energias, antes de mais, como um choque. É este problema em que se crê ver extremos. Mas o que se passa, realmente, nos espaços intermédios? A falha não

tem um traçado tão preciso como a fronteira de um Estado e essas áreas de contacto são, muitas vezes, bandas assaz largas dotadas de nomes estranhos, por exemplo, “Eurásia” que compreende nações inteiras e fragmentos de nações, como os Balcans. Nestes espaços, contendo densos núcleos de civilizações, dispostas como um tabuleiro de xadrez, a confrontação não constitui um choque, muito mais um quebra-cabeças, um dilema5. Forças poderosas – económicas, culturais e, sobretudo, geopolíticas – atraem as sociedades intermédias, para os pólos opostos e estas devem fazer face ao dilema de escolher uma via de desenvolvimento estratégico. O grande perigo que ameaça as culturas não homogéneas provém do facto de que as contradições alteram, frequentemente, a quali­ dade original de certos ingredientes, tal como o equilíbrio exacto pode ser perturbado se as peças originais são substituídas por outras feitas por curiosos. Uma tal substituição altera, normalmente, a qualidade, se bem que a embalagem seja igual à original. Daí, o perigo de que uma pseudo democracia funcionando em pleno, ameace todos os países situados na periferia das culturas. A “democracia do povo” e o “pluralismo controlado”, como lhes chamam, tal como o oxímero “silêncio falante”, são inerentes a este tipo de fenómeno. Eis o que o bispo metropolitano da Igreja Ortodoxa Russa em Smolensk, citado pelo professor Nikolas Gvozdev,6 entende por “direitos do homem”: “O papel de uma norma geralmente reconhecida e realmente universal, pode ser atribuída não à norma mais liberal, mas antes à que seria compatível com as orientações culturais e

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A liberdade religiosa - uma questão relativa ao desenvolvimento estratégico...

religiosas dos países subscritores dessa norma”. Assim, o critério de benefício universal permanece no misticismo dos valores tradicionais da maioria, num relativismo etno­ ‑religioso muito cómodo. Desta forma, vemos o lado positivo da nova lei, na medida em que ela remete para a ordem do dia, a solução do cacete sobre o desenvolvimento estratégico da Bulgária. A liberdade religiosa na Bulgária pode, com toda a segurança, tomar a forma de um mosteiro ortodoxo romântico cujos pensionistas pertencem a todas as comunidades religiosas, ou não passará de uma perigosa ilusão? Vejamos agora, como a nova lei foi votada no Parlamento. Uma parte da maioria no poder votou a favor desta lei, assim como a esquerda, na oposição, enquanto que os membros da coligação do partido do poder – representantes políticos da minoria muçulmana na Bulgária – assim como a oposição democrata-cristã abandonaram a sala em sinal de protesto. Enquanto isso, representantes de quase todas as organizações religiosas se mani­ festavam contra a lei, diante do edifício do Parlamento. III. Características do modelo búlgaro Gostaria, à guisa de ilustração, de fazer notar que os problemas de conflito cultural, mencionados atrás, e da percepção anacrónica de um modelo césaro-papista, se bem que um pouco moderado, são introduzidos na lei, sob diversos aspectos. 1. O estatuto particular da Igreja ortodoxa. Ela viu ser-lhe concedida uma posição especial por causa dos seus méritos históricos. Enquanto

que a Constituição associa a orto­ doxia oriental à teologia, a lei identifica-a como uma associação concreta de crentes. Por meio de um acto do poder do Direito Público, ex lege, o Estado institui um sujeito jurídico pertencendo, logicamente, à esfera do Direito Privado, aproxima-se dele e faz dele um parceiro no governo. Noutros termos, a Igreja Ortodoxa torna-se sujeito de Direito Público com todas as consequências jurídicas que daí resultam. Utilizando uma linguagem bem afastada do vocabulário neutro do Estado secular, a lei determina os parâmetros ideológicos e organizacionais da Igreja, inteiramente derivado da sua autonomia interna. Desta forma, o Estado é identificado pomposamente e de forma paternalista com a Igreja, e estando “ligado” pela ideologia, atribui-lhe uma posição de Direito Público chegando a considerá-la como tendo “uma importância para a vida do Estado”7. Um dos elementos que provam o estatuto particular desta organização, é a sua isenção do regime geral de registo. Como consequência directa, é impossível submetê-la aos controlos que existem para as outras denominações religiosas. É por isto que o limite entre o Estado e a Igreja Ortodoxa se tornou num assunto demasiado delicado. 2. Em segundo lugar, a forma como se regulamenta o estatuto das outras religiões pode ser descrito como uma manifestação de sus­ peição legislativa e de tolerância passiva. Sanções severas e pouco habituais8, que não aplicadas nem à Igreja Ortodoxa, nem contra nenhuma outra organização sem fins lucrativos, o registo como condição prévia para o exercício 64


Atanas Kruasteff

dos direitos mais importantes para as comunidades religiosas e outros meios servem para criar uma espécie de cordão sanitário, com o fim de isolar a ameaça potencial que acompanham as religiões não tradicionais. Assim, a atitude para com as religiões não ortodoxas, na qualidade de comunidades minoritárias, tomam o aspecto de uma lógica contrária às normas internacionais. O sistema começa a assemelhar­ ‑se simultaneamente ao sistema bizantino e otomano de natureza fragmentária isto é, a uma coexistência não integrada e insular das comunidades religiosas. Em princípio, a vontade das maiorias conduz o mundo. No entanto, nas sociedades que aceitaram o princípio do Estado de direito, entre os quais a nossa Constituição nos coloca, o impacto das maiorias é travado e limitado pelo conceito de responsabilidades e de direitos individuais iguais para todos. Este conceito está, naturalmente, presente na men­ talidade dessas maiorias. O conceito dos direitos do homem não se baseia sobre os direitos na humanidade, no seu conjunto, mas sobre os direitos que pertencem a cada indivíduo. O Estado de direito moderno e democrático prevê, igualmente, disposições para certas comunidades ou colectividades específicas, sem, bem entendido, se afastar do ponto de partida: o indivíduo sujeito determinante do Direito. No entanto, estas comunidades ou colectividades não são as maiorias, mas as minorias. O modelo ocidental apresenta a democracia como uma técnica para as minorias e o núcleo central: o indivíduo, cujos interesses são o elemento em volta

do qual os interesses das comunidades se agrupam, porque as maiorias não têm necessidade desse tipo de atenção. Eles defendem-se perante o mundo, simplesmente apoiando­ ‑se nos números. O indivíduo contra a comunidade, a minoria contra a maioria: tal é uma das relações chave do conflito cultural mencionada anteriormente. 3. Convém sublinhar que as Constituições de alguns países desenvolvidos, entre os quais, membros da UE, contêm disposições que concedendo uma importância especial a uma religião predominante. É um dos exemplos favoritos dos partidários da nova lei, que citam essas disposições tirando-as do contexto da época, sem precisarem qual é a sua real importância nos nossos dias. Estas disposições datam de um outro período histórico de formação e de consolidação física das nações, semelhante ao período da Renascença nacional e à Constituição de Turnovo na história búlgara, período em que os deveres nacionais diferiam. No momento actual, disposições semelhantes inscritas em algumas (raras, na verdade) Constituições comportam textos rudimentares, sem aplicação nenhuma, se estão em contradição com outros princípios fundamentais tais como a igualdade, a não discriminação e os direitos do homem, entre os quais a liberdade religiosa, que são os valores que transcendem as fronteiras nacionais, humanas e universais. A maior parte das vezes, desde a Segunda Guerra mundial, e sobretudo, após o início das reformas na Europa de Leste, as normas constitucionais no mundo, deslocam lenta mas seguramente o seu peso relativo das normas muito específicas e centradas na nação, para as normas com 65


A liberdade religiosa - uma questão relativa ao desenvolvimento estratégico...

carácter universal e aglutinador. Isto resulta, igualmente, numa mudança da estrutura do constitucionalismo: adoptam-se, cada vez mais, mecanismos normativos internacionais cuja acção directa é prevista pelas leis nacionais. IV. Conclusão Portanto, a Bulgária ergue-se lentamente – veremos se é para o bem – do seu período de sincretismo político-cultural. Com a imagem radiosa do seu rei Primeiro Ministro, que se entrega inteiramente a esta experiência de governação, aquilo a que os seus genes o tinham predestinado, numa ambiente bem pouco habitual. Também com a sociedade, que entende o Estado cada vez mais, categoricamente como uma ferramenta racional, que permite atingir objectivos benéficos para a sociedade. Esta nova sociedade moderna deveria preservar a tendência da legislação em matéria de liberdade religiosa para se aproximar sempre e cada vez mais, das normas inter-

nacionais. Assim, conseguiremos encontrar respostas claras a questões tão essenciais como estas: poderá um país dilacerado pelas controvérsias estratégicas, culturais e políticas ser um factor de estabilidade e de segurança numa região de qualquer forma envolvido em contradições tais, em que as maiorias de um país são minorias em casa dos seus vizinhos? Existirá a unidade se este repousa na força e não na coexistência diga de concidadãos? Como é que a conduta dos assuntos do Estado de acordo com um protocolo que se refere aos símbolos da maioria, contribui para a sua unidade? A contribuição histórica de uma comunidade étnica onde, no caso presente, da sua religião como força motriz e energia com a qual se identifica a independência do Estado pode a priori, ex officio, tomar o primeiro lugar no percurso dinâmico das contribuições quotidianas, tal como a democracia, cujos fundadores pertencem a comunidades étnicas e religiosas diferentes?

____________ * Director do Centro Europeu do Direito, Sofia, Bulgária Notas 1. Decisão nº 5 de 11 de Junho de 1992 relativo ao processo nº 11/1992 do Tribunal Constitucional da República da Bulgária. 2. Artigo 5 parágrafo 4 da Constituição da República da Bulgária de 1991 3. Artigo 13, parágrafo 3 da Constituição da República da Bulgária de 1991 4. Ver Samuel Huntington, Le choc des civilisations, ed. Odile Jacob, Paris, 2000 (em francês) 5. Ver Nikolas Gvosdev, Toleration Versus Pluralism: The Eurasian Dilemma. 6. Ver Nikolas Gvosdev, Idem 7. Artigo 10 parágrafo 1, alínea 2 da Lei sobre as denominações religiosas. 8. Artigo 8 da Lei sobre as denominações religiosas. 66


II. Segunda Sessão “Modelos de liberdade de religião na Europa ocidental e oriental – aspecto jurídico e contexto histórico” Direito e religião em Portugal – De la libertas ecclesiae à liberdade religiosa

Jónatas E. M. Machado *

1 – Libertas ecclesiae Devido à influência exercida durante séculos pela Igreja católica sobre a península ibérica, a historia das relações entre a Igreja e o Estado, o Direito e a religião em Portugal foi impregnada pela doutrina teológica da libertas ecclesiae. Esta doutrina, da qual os mais iminentes defensores não são outros senão S. Agostinho e S. Tomaz de Aquino, estipula que só a verdade absoluta tem o direito de existir. Todas as outras formas de expressão religiosa são consideradas como erróneas e não devem, por consequência, ser toleradas. A menos, naturalmente, que a prudência recomende a tolerância por razões pragmáticas. A Respublica

Christiana da Idade Média conseguiu definir a política e o Direito por meio de termos religiosos. A estrutura da sociedade estava fundada sobre as noções religiosas de comunidade, tradição, autoridade e hierarquia. O indivíduo, considerado apenas como uma parte da verdade objectiva proclamada pela autoridade religiosa, devia ser protegido de todas as formas de erro por meios coercivos seculares.1 Só a verdade tinha o direito a se exprimir. O erro não tinha o direito de existir. A verdade objectiva definida nestes termos era considerada como uma limitação do discurso público e da dissidência religiosa. Roma locuta, causa finita. (Roma falou, o assunto está entendido). 67


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

manifesta ou velada, qualquer que fosse a natureza política, jurídica, social ou cultural, contra os não católicos. Estes não eram considerados como inteiramente membros da comunidade política mas, pelo contrário, como à parte do sistema. Como acima referimos, os direitos dos católicos eram, eles também, restritos visto que a situação os constrangia a observar a mesma religião. Se um católico mudava de religião, tornava­‑se imediatamente um cidadão de segunda categoria e sofria a discriminação. Todo o culto religioso, quer se tratasse de catolicismo, de ortodoxismo ou de protestantismo, que encoraje este tipo de medidas – perseguindo sistematicamente e fazendo discriminação contra os outros cultos – chegará facilmente a tornar­‑se o grupo religioso dominante. Convém notar que, nos países que não são sociedades livres e democráticas, o domínio religioso acompanha muitas vezes o abuso de posição dominante. Como sublinha Richard Posner, “quando os fanáticos religiosos conseguem impor uma crença única perseguindo os dissidentes, não se apercebem de que desse facto resultam perseguições. Deduzem que a sua religião é a única verdadeira”3. Isto era, sem dúvida alguma, verdadeiro em Portugal, em todo o caso antes da Constituição de 1976. II – Constitucionalismo liberal e liberdade religiosa Antes de examinar a Consti­ tuição portuguesa, desejaria abordar o modo como o constitucionalismo liberal pôs em perigo a doutrina da libertas ecclesiae. Com

Como salienta John Rawls, a inquisição decorreu naturalmente desta concepção teológica e política dominante2. Esta concepção teve um impacto não negligenciável sobre a regulamentação religiosa em Portugal. Mesmo depois da abolição da inquisição no decurso da revolução liberal de 1820, muitas regras e regulamentos, algumas delas retomadas na Concordata de 1940, impediam os cidadãos portugueses de exercer livremente qualquer outra religião diferente do catolicismo, o que limitava a sua liberdade de mudar de religião – os estrangeiros estavam isentos desta regra. Além disso, o proselitismo foi criminalizado, todos os livros cujo conteúdo se opunha aos dogmas católicos foram censurados, era interdita a construção de lugares de culto assemelhando­‑se exteriormente a um templo, a instrução católica tornou­‑se obrigatória nas escolas públicas e centros de educação para a juventude. Estas regras permitiram que o clero católico se introduzisse nas prisões, nos lugares de cuidados de saúde e no exército. A liberdade de reunião e de associação era severamente restringida para os grupos religiosos não católicos, assim os membros e ministros do culto sofriam de discriminação, por exemplo, em matéria de impostos. Até à Constituição de 1976, após a revolução dos cravos em Portugal, a Igreja católica era considerada como a religião, seja do Estado português seja da Nação portuguesa, o que tornava legítima toda a forma de discriminação 68


Jónatas E. M. Machado

julgam ser­‑Lhe agradável e próprio para lhes fazer obter a salvação. Eu digo que essa é uma sociedade livre e voluntária7”. Um pouco mais longe ele acrescenta: “não há ninguém que, pelo seu nascimento, esteja ligado a uma certa Igreja ou a uma certa seita, e não a uma outra; mas cada um une­‑se voluntariamente à sociedade cujo culto crê que é mais agradável a Deus”. Sendo a religião uma questão de convicção e de escolha pessoal, e não o contrário, Locke conclui daí que “é assim pois em vão que os príncipes forcem os seus súbditos a entrar na sua Igreja, sob o pretexto de salvar as suas almas”. Segundo Locke, os princípios de autonomia individual e de consentimento são, à evidência, as bases da vida política e religiosa. Segundo ele, a liberdade de expressão deveria antes de tudo ser vista como indo a par com os princípios, fosse qual fosse o assunto. Citemos ainda Locke: “Mas persuadir ou comandar, empregar argumentos ou sanções, são coisas bem diferentes. Apenas o poder civil tem direito a uma, e a benevolência basta para qualquer homem autorizar a outra. Temos por missão advertir o nosso próximo que cremos estar no erro, e conduzi­‑lo ao conhecimento da verdade pelas boas provas”8. III – A liberdade religiosa no Direito Constitucional português No princípio do século 19, apareceram em Portugal ideias liberais no contexto das invasões francesas da Península Ibérica. Esta mudança é marcada pela efémera Constituição de 1822. A história política e constitucional portuguesa

efeito, a visão liberal moderna da liberdade religiosa domina o constitucionalismo democrático português. Convém sublinhar que o discurso religioso dissidente teve um papel crucial no desenvolvimento do pensamento liberal moderno4. Certos defensores mais entusiastas da liberdade de expressão eram dissidentes religiosos. John Milton, o secretário pessoal de Olivier Comwell, é um exemplo clássico disso. Em pleno coração da tormenta política e religiosa, ele escreveu que “se todos os ventos de doutrina fossem livres de sobrevoar a terra, a Verdade manifestar­‑se­‑ia e nós injuria­‑la­‑íamos ao permitir e ao interditar as dúvidas da sua força. Deixemo­‑la medir­‑se com a mentira (que alguém conhecedor da verdade seja posto à prova) num combate justo e aberto”5. Esta perspectiva punha como postulado uma espécie de revolução copérnica no pensamento político, visto que, a partir desse momento, a verdade deixa de ser o limite a priori da discussão pública, mas antes um dos seus objectivos principais. John Locke é um dos fundadores do constitucionalismo liberal moderno. As suas ideias acerca dos direitos naturais, da soberania do povo, da instauração dos limites do poder político e da separação entre Igreja e Estado resultam das suas convicções em matéria de liberdade de consciência e de liberdade de religião6. Para o citar, “(uma) Igreja (…) (é) (…) uma sociedade de homens que se associam e se reúnem voluntariamente para servir Deus em público e render­‑Lhe o culto que 69


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

ao Parlamento mais de vinte anos para votar uma nova lei sobre a liberdade religiosa, anulando assim uma lei ultrapassada e restritiva datando de 1971. A nova lei sobre liberdade religiosa (LLR), proposta pelo antigo ministro socialista da Justiça, Vera Jardim, saiu em grande parte destas evoluções doutrinais e dos trabalhos de José de Sousa e Brito, antigo juiz do tribunal constitucional português. Esta lei foi publicada no Diário da República em Junho de 200110. 1. Direitos fundamentais em geral Antes de analisar as disposições legais e constitucionais, que estão directamente ligadas à liberdade religiosa, é importante examinar o quadro constitucional dos direitos fundamentais em geral. A Constituição portuguesa assenta sobre os valores do respeito e da dignidade humana, fundamento dos princípios da liberdade e da igualdade para os seres humanos. Isto significa que todos os direitos fundamentais dos cidadãos livres e iguais têm valor igual e são dignos do mesmo respeito e da mesma atenção. Isto significa também que a protecção dos direitos do homem pela Constituição é uma questão de princípio, e não de poder social ou de privilégio. Como escreveu Cass Sunstein, “se as únicas preferências são uma razão legítima para a acção governamental, basta que um grupo particular tenha podido acumular o poder político para obter o que quer”11. O artigo 16/2 da Constituição portuguesa prevê que “as normas constitucionais e legais, regendo­‑se

nos séculos XIX e XX é muito rica. De um modo geral, este período pode ser descrito como um conflito ideológico e constitucional entre as forças liberais modernas, à imagem de outros países europeus. O triunfo final das ideias constitucionais liberais modernas somente foi possível graças à Constituição de 1976. Hoje, a questão constitucional pertinente acerca da religião é: Quais são as medidas a tomar permitindo pôr fim às situações existentes de discriminação religiosa e de minimizar as consequências actuais das descriminações passadas? No que concerne a liberdade religiosa, a Constituição representou uma mudança de paradigma na relação entre Direito e religião. Em Direito Constitucional, os direitos da verdade não existem. A liberdade religiosa não corresponde mais à libertas ecclesiae, visto não se tratar duma doutrina teológica nem eclesiástica mas sim dum direito fundamental que encontra a sua origem no vasto conceito da dignidade humana, de liberdade e de igualdade. Os direitos da verdade foram substituídos pelos direitos dos cidadãos livres e iguais. Estes direitos formam os fundamentos do Direito Constitucional português em matéria de religião. Isto foi explicitado pela doutrina do Direito Constitucional português no decurso dos anos seguintes à promulgação da Constituição por­tuguesa9. Contudo, a regulamentação da actividade religiosa é muitíssimo influenciada pela história e pelo poder da religião dominante. Por essa razão, mesmo após a Constituição de 1976, foi preciso 70


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pelos direitos fundamentais, devem ser interpretados e aplicados em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”. O artigo primeiro da Lei sobre a liberdade religiosa reafirma esta conexão com a Declaração Universal e o Direito Internacional em matéria de liberdade religiosa. A este respeito, o artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem reveste­‑se duma grande importância, assim como a sua interpretação pelo Tribunal europeu dos direitos do homem. A liberdade religiosa é assim considerada como um direito universal fundado sobre a moral humana e a autonomia racional, e não como um direito próprio a uma etnia ou a um grupo; também não é uma doutrina religiosa de tal ou tal grupo religioso. Entre os direitos fundamentais, o Direito Constitucional português faz a distinção entre, por um lado, os direitos, liberdades e garantias – mais ou menos idênticos aos direitos civis e políticos clássicos – e por outro, os direitos económicos sociais e culturais. A liberdade religiosa faz parte da categoria dos direitos, liberdades e garantias. Estes direitos são directamente aplicáveis e impõem­‑se aos organismos públicos e privados12. Eles só podem ser objecto duma restrição através de uma lei parlamentar ou por um acto legal emanando do governo após autorização do Parlamento no quadro da protecção dum direito ou dum interesse constitucional inviolável. A restrição será propor­ cional ao objectivo visado. Ela será igualmente geral, abstracta mas não retroactiva. Enfim, ela deve

proteger a essência do conteúdo do direito cujo exercício procura limitar13. A noção, muito querida do Direito Constitucional liberal, que subentende o regime constitucional é que a liberdade deveria ser a regra, a limitação da liberdade a excepção14. Assim, os próprios direitos deveriam ser largamente interpretados e as suas limitações claramente especificadas, justifi­ cadas com precaução e estritamente interpretadas15. 2. Liberdade e Religião a) Dimensão individual A liberdade de religião é, na sua base, um direito individual. O artigo 41/1 da Constituição portuguesa estipula: “A liberdade de consciência, de religião ou de culto é inviolável16.” O artigo primeiro da Lei sobre a liberdade religiosa não faz senão repetir esta garantia. Este artigo reconhece que a liberdade de consciência é o fundamento da liberdade de religião e do culto, e igualmente da liberdade de expressão17. O carácter inviolável destes direitos não significa que eles não podem ser limitados, mas vela para que toda a restrição destes direitos invioláveis seja cuidadosamente medida para servir a protecção inerente aos direitos e interesses constitucionais, e a que ela seja submetida a um exame estrito por parte dos tribunais. A Constituição e a nova lei estipulam ambas que “ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou dispensado de obrigações ou de deveres cívicos por causa das suas convicções ou práticas religiosas”18. Um dos princípios importantes que influenciam a regulamentação em matéria de 71


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

religião é a tolerância, mencionada explicitamente pela lei sobre a liberdade religiosa19. Este princípio nada tem a ver com as antigas noções de tolerância do erro pela verdade, mas significa simplesmente que os conflitos relativos aos direitos religiosos e de consciência entre vários indivíduos devem ser resolvidos sobre a base do respeito mútuo, de modo a que os dois direitos sejam protegidos tanto quanto possível, in pari materia, e não somente um dos dois. A LLR garante, entre outros, o direito de ter convicções religiosas, de as não ter ou de as mudar, o direito de agir de acordo com as suas convicções e de praticar a sua fé em público ou em privado. Isto compreende os direitos de constituir uma assembleia ou grupo religioso, assim como manifestar a sua religião. Em conformidade com a LLR, nenhuma forma de pratica religiosa, seja individual ou colectiva, pode ser imposta a um indivíduo, e o respeito da vida privada, no que toca a religião, deve ser mantido20. Isto constitui um limite importante quer ao poder público do Estado quer ao do poder privado da Igreja. O direito de comunicar aos outros as suas convicções e de tentar persuadi­‑los em as aceitar é igualmente protegido21. De facto, é protegido pela liberdade de expressão em geral que se aplica ao discurso religiosos e ao direito de falar de religião. A LLR protege também o direito à informação religiosa, assim como o direito de aprender e ensinar a sua religião22. Um dispositivo realmente inovador é o que permite aos pais atribuir aos filhos

nomes de acordo com a sua convicção religiosa23, um direito que pode revelar­‑se muito importante, sobretudo para as comunidades islâmicas e hindus em Portugal, visto que elas se situam fora das raízes judéo­‑cristãs e greco­‑romanas na origem da maior parte dos nomes portugueses. b) Dimensão colectiva Os indivíduos são, por natureza, sociais. Tanto como a liberdade de religião, a expressão religiosa colectiva é uma parte essencial da expressão religiosa. Para proteger um direito igual à liberdade religiosa, o Direito Constitucional deve utilizar conceitos amplos de religião e de comunidade reli‑ giosa que não apliquem pela força uma concepção religiosa particular à sociedade inteira24. A religião está em geral ligada aos últimos aspectos da vida humana, a partir duma perspectiva que não é nem completamente naturalista, nem completamente materialista. Em numerosos casos, ela aceita a existência dum ser supremo ou duma realidade espiritual, mas este nem sempre é o caso. O distinguir duma ideologia releva muitas vezes mais duma questão de matiz do que de substância. Compreender que “as convicções religiosas não devem ser aceitáveis, lógicas, coerentes ou compreensíveis aos olhos dos outros para merecerem ser protegidas (constitucionalmente)” é crucial 25. A “verdade” duma doutrina religiosa está igualmente fora de propósito em Direito Constitucional26. Um Estado onde os cidadãos são livres e iguais não tem como 72


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da autoridade do Estado, constitui em si uma barreira importante contra o desvio do dogma religioso, afim de usurpar os direitos iguais dos indivíduos e grupos religiosos ou não religiosos. Isto não é senão uma etapa necessária que vai a par com a protecção da liberdade individual de consciência, os direitos iguais para todos e a neutralidade do governo em matéria de religião32. A perseguição ou descriminação por razões religiosas é interdita, uma noção particularmente per­ tinente quando se examina o estatuto constitucional e jurídico das comunidades religiosas. No entanto, à luz deste princípio, é difícil compreender as disposições do artigo 58 da LLR, segundo o qual as disposições da Concordata de 1940 entre Portugal e a Santa Sé permanecem em vigor. Esta contradição interna da lei, que poderia chocar­‑nos, explica­‑se unicamente por razões políticas, Para mim, o melhor meio de evitar esta contradição é afirmar­‑se que apenas as disposições da Concordata compatíveis com a liberdade religiosa para todos, princípio do Direito Constitucional e Internacional, serão considerados como aplicáveis. Todas as outras disposições serão tornadas nulas. Com efeito, é esta a abordagem que a doutrina constitucional portuguesa, em geral, faz. c) Dimensão institucional A LLR dedica uma atenção muito particular aos direitos institucionais das comunidades religiosas. Eles contribuem para a protecção dos direitos religiosos pessoais33.

prerrogativa inquirir sobre a verdade em religião. Como o Supremo Tribunal do Estados Unidos declarou, “no domínio da fé religiosa, como no das convicções políticas, manifestam­‑se muitas diferenças. Nos dois domínios, as convicções dum homem podem representar o cúmulo do erro para o seu vizinho”27. A LLR afirma, sem rodeios, que o Estado não tem o direito de se imiscuir na definição da doutrina religiosa28. Nós consideramos que isto implica a adopção duma doutrina sobre a questão religio‑ sa limitando as acções do Estado. Do ponto de vista do Direito Constitucional, a religião deve ser definida duma maneira geral afim de proteger as convicções minoritárias pouco conhecidas e não convencionais29. Assim, para beneficiar da protecção da Constituição, um grupo religioso não deve necessariamente dispor dum conjunto de dogmas e de ritos, nem duma teologia elaborada, duma hierarquia institucional, nem de qualquer atributo externo particular. Basta que deste grupo se exprima um sentimento de comunidade fundada sobre uma compreensão religiosa comum30. Os conceitos de religião e comunidade religiosa não podem ser definidos por medida no objectivo de servir, nesta concorrência, os interesses das religiões tradicionais e dominantes sobre o que alguns apelidam, por analogia, de merca‑ do religioso31 Reunir estes grandes conceitos de religião, de comunidade religiosa e de liberdade religiosa, protegidos pelo sistema jurídico e pelo poder 73


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

O quadro normativo actual, após a promulgação da LLR, prevê diferentes graus de institucionalização. Primeiramente, é sempre possível criar associações de direito privado. Isto permanece uma opção válida para todo o novo movimento religioso que deseje iniciar­‑se em Portugal. Além da liberdade de associação, um novo movimento religiosos goza de todos os outros direitos e liberdades constitucionais pertinentes. Ele deve apenas seguir as disposições do Código Civil aplicáveis às organizações internas democráticas. Em segundo lugar, é possível fazer o registo na qualidade de comunidade religiosa. É outra opção válida para os novos movimentos religiosos. Isto permite uma maior liberdade interna, visto que a comunidade religiosa pode conformar­‑se com as suas próprias regras34. Este segundo nível de institucionalização dá acesso às emissões do serviço público35 e dá igualmente a possibilidade de ensinar a religião nas escolas públicas, se um número mínimo de estudantes o deseja. Assim, registar­‑se permite também beneficiar de abatimentos de impostos importantes e de vantagens fiscais, tais como a dedução fiscal dos dons e a redistribuição de 0,5 % da soma do imposto pessoal sobre o rendimento a uma Igreja ou a uma organização de beneficência da sua escolha36. Convém assinalar que a LLR pediu ao governo para regularizar o registo das comunidades religiosas em 60 dias37 Como advogado “extremamente liberal”, interpretei este prazo como 60 dias reais de uma duração de

24 horas. Aparentemente, o nosso governo escolheu uma abordagem mais liberal e provavelmente interpretou­‑os como o equivalente às idades geológicas, visto que esta lei foi votada em 2001 e que a regulamentação necessária deve ainda ser promulgada. Este segundo nível de institucionalização basta amplamente para exercer a maior parte dos direitos colectivos das comunidades religiosas, tais como o direito de abater animais no quadro de rituais religiosos, de utilizar edifícios para fim religiosos, de desenvolver actividades, incluindo comerciais, complementares ao seu objectivo principal, isto é, religioso. As comunidades religiosas têm igualmente o direito de dar a sua opinião no decurso da preparação de leis discriminatórias. Pode ser recusado o registo de comunidades que não respondam às condições jurídicas, que deram falsas informações ou cujas doutrinas e princípios violam os limites constitucionais em matéria de liberdade religiosa38. As comunidades religiosas que tenham provado que estão pertinentemente ligadas ao país têm a possibilidade de aceder a um terceiro nível de institucionalização. A lei fala de estar enraizada no país. De facto, o principal aqui não é tanto o estar muito ligada ao país, mas antes de poder oferecer uma garantia de estabilidade pelas relações e a cooperação a longo termo com o Estado39. É este o caso, logo que uma comunidade religiosa registada pode justificar com uma presença organizada no país de mais de trinta anos ou duma 74


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presença fora do país durante mais de sessenta anos40. É necessário ter atingido o terceiro nível de institucionalização para que os casamentos celebrados nestas comunidades religiosas sejam legalmente reconhecidos41. Para ser representada na Comissão das emissões religiosas42 e na Comissão da liberdade religiosa43, e para ter a capacidade de concluir tratados com o Estado português, isto é acordos confessionais (Kirchenvertrag; intese) acerca de interesses comuns 44. Estes acordos serão em substância (senão formalmente) equivalentes à Concordata. O quarto nível de institucionalização é o dos cultos que tenham assinado um acordo com o Estado. Até ao presente, apenas a Igreja católica atingiu este nível, mas, a longo termo, outros grupos religiosos poderão chegar aí. É importante sublinhar que o exercício dos direitos constitucionais fundamentais não depende dum acordo com o Estado. Isto seria inconstitucional, porque não existe Direito que permita assinar um tal acordo, e que os direitos fundamentais não podem ser função do poder social ou político. Na hora actual, a Igreja católica negoceia a Concordata. Examinaremos com atenção o que resultará deste processo, não apenas do ponto de vista do Direito Constitucional português, mas igualmente do ponto de vista da legislação internacional em matéria de direitos do homem. Por agora, o segredo que paira sobre estas negociações parece suspeito, considerando o quadro pós vestefa-

liano fundado sobre os direitos do Direito Internacional. Deveríamos sublinhar que a Igreja católica não pode utilizar o Direito Constitucional e a Concordata para obter uma posição privilegiada em Direito Nacional, pois que o princípio da igualdade religiosa e de não discriminação é um princípio fundamental ao mesmo tempo em Direito Nacional e Internacional. O artigo 3 da Declaração sobre a eliminação de tantas formas de intolerância e de discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção estipula que: “a discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou convicção constitue uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas, e deve ser condenada como uma violação dos direitos do homem e das liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e enunciadas em detalhe nos Pactos internacionais relativos aos direitos do homem, e como um obstáculo às relações amigáveis e pacíficas entre as nações”. Além dos direitos das comu­ nidades religiosas, a LLR garante direitos específicos aos ministros do culto. Estes são designados pelas comunidades religiosas, que decidem também os seus direitos e deveres45. Entre os direitos dos ministros do culto, notar­‑se­‑á o seu direito de exercer livremente o seu ministério, o seu direito ao segredo profissional no quadro da ajuda espiritual, à segurança social, a ser dispensado dos deveres de serem jurados num tribunal, etc.46. 75


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

nal onde todos têm direito à liberdade religiosa. A separação entre as comunidades religiosas e o Estado significa uma separação normativa, institucional, simbólica e financeira. Esta visão é perfeitamente compatível com as formas pertinentes de reconhecimento e de cooperação, num quadro normativo fundado sobre a promoção do interesse público e o respeito da liberdade para todos os cidadãos e para as comunidades tanto religiosas como não religiosas. A LLR restringe o princípio da separação por meio dum princípio de cooperação entre o Estado e as comunidades religiosas mais estáveis, no domínio dos direitos do homem, da evolução pessoal, da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância50. Do ponto de vista constitucional, nada impede, aparentemente, este princípio de cooperação, visto que as comunidades religiosas fazem legitimamente parte da sociedade civil e que uma separação estrita parece indesejável, senão impossível. O importante é garantir uma cooperação entre o Estado e as comunidades religiosas nos limites da liberdade, da justiça e da imparcialidade para todos. O princípio da separação entre comunidades religiosas e Estado não está fundado sobre uma visão do mundo puramente naturalista, racionalista e anti­‑metafísico. Aqui, a separação é uma expressão do princípio geral da neutralidade do Estado em matéria de diferentes convicções, ideologias, filosofias, partidos políticos, corporações, grupos cívicos, etc., o tipo de neu-

3. Separação da Igreja e do Estado Afim de melhor compreender o conteúdo e o alcance da liberdade religiosa na Constituição portuguesa, é necessário examinar o princípio da separação das Igrejas e do Estado, que é, na estrutura, um corolário importante do direito à liberdade religiosa para todos e à liberdade para todos em geral47. O artigo 41/4 da Constituição portuguesa48 estabelece este princípio e o artigo 288/c49 vela para que dificilmente seja corrigido. Este mesmo princípio constitui uma parte importante da LLR. Ainda que talvez não exista uma correlação directa entre liberdade religiosa e separação entre as confissões religiosas e o Estado, este princípio deveria ser considerado como um corolário estrutural da liberdade religiosa no quadro duma ordem constitucional livre e democrática, não obstante o facto que ele possa conduzir a soluções práticas e institucionais diversas segundo os contextos históricos e políticos. É interessante notar que a Constituição fala de Igrejas e de comunidades religiosas, termi­ nologia adequada se são tomados a sério os direitos iguais das diferentes comunidades religiosas cristãs e não cristãs. Esta referência explícita ao pluralismo religioso pode ser interpretada como uma outra reacção consciente a respeito da tradição constitucional feita de descriminação e de privilégios religiosos, mas também como o reconhecimento que é natural esperar, cedo ou tarde, com o pluralismo religioso num regime constitucio76


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tralidade que o imperativo constitucional de tratar todos os indivíduos com o mesmo respeito tanto necessita como condiciona. (Ronald Dworkin)51. Ninguém reclama a neutralidade absoluta, bem entendido, mas antes a neutralidade real e comportamental que subentende a escolha moral e normativa em favor duma sociedade aberta52 livre, justa, tolerante e democrática. Trata­‑se aqui duma neutralidade voluntária53 e de uma separação não adversária entre as Igrejas e o Estado. Longe de ser uma hostilidade para com a experiência ou o sentimento religioso, este princípio será melhor interpretado à luz de grandes objectivos constitucionais54. Em primeiro lugar, este princípio retira ao Estado o seu poder de constrangimento e de adesão no domínio religioso, considerando que a convicção e a escolha religiosa são demasiado cruciais para serem quer proscritos, quer prescritos pelo Estado. Isto constitui uma importante garantia institucional da autonomia humana55. Em segundo lugar, impede o governo de se unir à religião maioritária, em geral por razões políticas, como era o caso durante o governo autoritário antes da Revolução dos cravos de 1974. Em terceiro lugar, a separação entre as comunidades religiosas e o Estado serve para prevenir a formação duma coligação entre o Estado e a religião dominante que ameaçaria a dignidade e a liberdade às quais têm direito os membros das comunidades religiosas minoritárias56. Isto é então uma parte da estrutura da igualdade não dominada que

deveria caracterizar o constitucionalismo liberal57. A História mostrou­‑nos que a perseguição a as descriminações, manifestas ou veladas, das religiões minoritárias assim como dos fiéis da religião maioritária que decidem converter­ ‑se a um deste grupos, baseiam­‑se muitas vezes num tipo de coligação Igreja­‑Estado.58 A teoria reguladora lembra­‑nos que “o Estado dispõe dum recurso de base que, em princípio, ele não partilha, mesmo com os cidadãos mais poderosos: o poder de constranger”59. Impedir as convicções religiosas dominantes de se apoderarem e abusarem deste poder para colocar o seu próprio monopólio da graça (Michael Walzer) é uma componente estrutural importante da liberdade para todos60. Um quarto argumento em favor da separação entre a Igreja e o Estado está ligado à salvaguarda dum discurso público não inibido, vigoroso e muito aberto permitindo debater e estudar em profundidade todo e qualquer tema, doutrina, visão do mundo, teoria ou opinião. Robert Post escreveu que o conceito do discurso público necessita que o Estado fique neutral sobre o “mercado das comunidades61”. Com efeito, um dos objectivos da liberdade de expressão religiosa é tornar possível a emergência de novas convicções e de novas comunidades religiosas que possam estimular as que já existem. Esta ideia pode, entre outras, ser considerada como uma exigência de equidade para as gerações futuras62. Neste sentido, a separação entre a Igreja e o Estado é uma condição prévia 77


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa

tuem os acordos entre o Estado e as diferentes comunidades religiosas, e será a ligação adequada entre as comunidades e o Estado66. Ela dará igualmente o seu parecer no momento do registo de cultos religiosos e poderá mesmo conduzir a audiências públicas em caso de dificuldades.67 Se for aplicada a teoria dos mercados à regulamentação religiosa, este aspecto levanta muitas dúvidas visto que religiões já existentes serão chamadas a decidir sobre a entrada de novas religiões no mercado. Isto poderia ir contra o princípio de imparcialidade do governo nas suas relações com os diferentes cidadãos e grupos. Se o serviço de registo competente lhe pede ajuda, a Comissão dá o seu parecer sobre a composição da Comissão das emissões religiosas e sobre a inscrição de comunidades religiosas. A composição da comissão foi sujeita a controvérsia, ainda que muitas comunidades religiosas não católicas tenham decidido aceitá­‑la, de modo a não adiar a adopção da lei68. A Comissão compõe­‑se de membros nomeados pelo governo e por diversos cultos religiosos. A composição deve respeitar os objectivos de pluralismo e de neutralidade do Estado. Teme­‑se no entanto que o número de católicos presente no seio da Comissão seja excessivo. A LLR menciona explicitamente dois católicos nomeados pela Conferência portuguesa dos bispos católicos, mas teme­‑se entretanto que outros sejam nomeados pelo governo visto os católicos formarem uma maioria esmagadora em Portugal. Uma maioria católica seria um real problema, porque esta Comissão se ocupará principalmen-

à forma de concorrência livre e igualitária entre comunidades religiosas que a liberdade e a igualdade entre os homens nenecessitam63. Segundo o Juiz Frankfurter, “a convicção imposta implica a ausência de possibilidade de a combater e de expor opiniões dissidentes”64. Esta frase reveste­‑se duma importância crucial quando se trata de liberdade de expressão religiosa e de liberdade de expressão em matéria de religião. Para atingir os objectivos consequentes, este princípio deve aplicar­‑se à situação de direito e de facto. 4. A Comissão para a liberdade religiosa A Lei sobre a liberdade religiosa cria uma Comissão para a liberdade religiosa, que tem como responsabilidade verificar a colocação em prática desta lei65. Trata­‑se dum organismo consultivo e independente que serve para assistir o Parlamento e o governo nas questões religiosas. A Comissão não está ainda em actividade. Não é uma agência que regulamenta o mercado religioso, ainda que por vezes o pareça. As suas tarefas principais são de supervisionar a aplicação da lei, de fazer recomendações judiciosas sobre as disposições relativas à religião em Direito português e de o fazer evoluir. Ela tem igualmente a responsabilidade de estudar cientificamente as comunidades religiosas. Este papel pode parecer estranho, visto que as universidades parecem mais aptas a cumprir esta tarefa. A Comissão dará, particularmente, conselhos no momento da preparação dos artigos que consti78


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te de comunidades religiosas não católicas. IV – Conclusões A adopção da LLR representa uma evolução crucial no sistema legislativo português. Ainda que algumas soluções estejam sujeitas à controvérsia e necessitem de ser revistas no futuro, o facto é que, pela primeira vez, o legislador português fez prova duma sensibilidade particular a respeito dos problemas jurídicos que os cidadãos e os cultos religiosos não católicos encontram. Do mesmo modo, ele tentou, honestamente e de boa fé, conciliar as diferentes formas de convicções e de expressões religiosas existentes e promover os objectivos não negligenciáveis de liberdade para todos, de neutralidade e duma imparcialidade do Estado no que respeita à religião. Estes objectivos

visam corrigir as situações presentes de descriminação religiosa e ao mesmo tempo minimizar as consequências actuais de descriminações passa-das. O Direito Constitucional português não está fundado sobre postulados naturalistas, religiosos ou anti­‑clericais. Pelo contrário, ele considera que a religião é uma dimensão importante da vida humana. Quer justamente ter um papel de reconstrução da sociedade portuguesa, afim de permitir a todos os cidadãos, quaisquer que sejam as suas convicções e práticas religiosas, gozar dos seus direitos constitucionais69. Antes de tudo, a Lei sobre a liberdade religiosa pode ser considerada como um meio precioso para atingir este objectivo. _________ * Professor de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal

Notas

1. S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, III, Westminster, Maryland, 1948, p. 1220, ver também Thomas Fleiner-Gerster, Allgemeine Staatslehre, 2ª edição, Berlim, 1995, p. 39 e seg,; Rose Staps, Bekenntnisfreiheit- ein Unterfall der Meinungsfreiheit?, Kehl 1990, p. 121 e seg. 2. John Rawls, Political Liberalism, Nova Iorque, 1993, p. 37, Jónatas E. M. Machado Liberdade religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva, Dos Direitos da Verdade aos Direitos dos Cidadãos, Coimbra, 1996, p. 30 e seg. 3. Richard Posner, Overcoming Law, Cambridge, Mass., 1995, p. 58.

4. Michael Al1en Gillespie, “The Theological Origins of Modemity “, in Critical Review, 13, 1999, p. 1 e seg., p. 14 e seg. ; Reinhold Zippelius, “Die Entstehung des demokratischen Rechtsstaates aus dem Geiste der Aufklag” in Juristenzeitung, 23, 1999, p. 1126; Manfred Brocker, Die Grundlegung des liberalen Verfassungsstaates, Von der Levellern zu John Locke, Munique, 1995, p. 89 e seg.; Gerald Stourzh, Wege zur Grundrechtsdemokratie, Studien zur 79


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa Begriffs- und Institutionengeschichte des liberalen Verfassungstaats, Viena, 1989, p. 175 e seg. 5. John Milton, Aeropagitica, A Speech for Liberty of Unlicensed Printing (1644).

6. David A. J. Richards, “Revolution and Constitutionalism in America “, in Constitutionalism, Identity, Difference and Legitimacy, Theorical Perspectives, ed. Michel Rosenfeld, Durham, 1994, p. 85 e seg.; Walter Euchner, “Individuelle und politische Macht: Der Beitrag John Lockes im Vergleich zu Hobbes und Spinoza”, in Bürgerschaft und Herrschaft, éd., Jürgen Gebhardt, Herfried Münkler, Baden-Baden, 1993, p. 117 e seg. 7. John Locke, A Letter on Toleration, ed., Raymond Klibansky, Oxford, 1968, p. 71 8. John Locke, op. cit., p. 69.

9. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 2ª ed., Coimbra, 1993; José de Sonsa e Brito, La situation des Églises et des communautés religieuses, Milão, 1994; J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., Coimbra, 1993, p. 241; Vitalino Canas, State and Church in Portugal, State and Church in the European Union (Gerhard Robbers), Baden-Baden; J.S. Teles Pereira, “La liberté religieuse au Portugal dans les années 90”, in European Journal for Church and State Research, Lovaina, 1995. 10. Lei n° 16/2001, de 22.6

11. The Partial Constitution, Cambridge, Mass., 1993, p. 28.

12. Art. 18/1 da Constituição. Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição [...], op. cit., p. 436 e seg. 13. Art. 18/2/3 da Constituição. Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição [..], op. cit., p. 450 e seg. 14. Andreas vou Arnauld, Die Freiheitsrechte und ihre Shranken, Baden-Baden, 1998, p. 110 e seg.

15. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfort-am-Main, 1986, p. 290 e seg. p. 309 e seg.; Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição [...], op. cit., p. 1257 e seg. assim como p. 1201 e seg. 16. Canotilho, Moreira, Constituição da República Portuguesa [...], op cit., p. 241 e seg.

17. Segundo John Rawls, A Theory of Justice, Oxford, 1971 (1991), p. 210 e seg., “a liberdade de consciência igual é o único princípio que as pessoas reconhecem à partida”. Referindo-se às clausulas sobre o livre exercício e o estabelecimento, Richards, Toleration and the Constitution [...], op. cit, p. 140, afirma que: “[…] as clausulas protegem, penso, um direito comum a todos, o direito inalienável à consciência em diversos pontos do seu percurso político. Portanto, o cuidado comum dá, a cada um, cláusulas com o seu próprio significado. Sugere-nos formas que permitam resolver um conflito implícito. 18. Art. 41/2 CRP; art. 2 da Llei n° 16/2001. 19. Art. 2 da Lei n° 16/2001. 20. Art. 9 da Lei n° 16/2001

21. Art. 8 da Lei n° 16/2001. 22. Art. 8 da Lei n° 16/2001.

23. Art. 8/h) da Lei n° 16/2001.

24. Jónatas Machado, “Pré-Compreensões na Disciplina Jurídica do Fenómeno Religioso”, 80


Jónatas E. M. Machado Boletim da Faculdade de Direito, LXVllI, 1992, 165 e seg.; Derek H. Davis, “The Courts and the Constitutional Meaning of Religion: A History and Critique”, in The Role of Govemment in Regulating Religion in Public Life, eds. James Wood Jr., Derek Davis, Waco, Tx, 89 e seg. 25. Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Église du Lukumi Babablu Aye 113, S. Ct. 2217 (1993).

26. No caso Estados Unidos contra Ballard, 332 US.78 (1944), O Supremo Tribunal dos Estados Unidos declarou que “os tribunais podem inquirir da sinceridade das convicções religiosas supostas, mas não sobre a sua exactidão ou veracidade”. 27. Cantwell contra Conneetieut, 310, US. 296, 310 (1940). 28. Art. 4/1 da Lei nº 16/2001.

29. Henry Abraham, Freedom and the Court, Nova Iorque, 1977, p. 251 e seg.; Derek Davies, “The Courts and the Constitutional Meaning of ‘Religion’: A History and Critique”, in The Role of Govemment in Regulating Religion in Publie Life. ed. James Wood Jr., Derek Davies, Waco, Tx, 1993, p. 89 e seg.

30. Laurence Tribe, American Constitutional Law, Nova, Iorque, 1988, p. 1179 e seg.; Augustin Motilla, “Aproximación a la Categoria de Confession Religiosa”, in Il Diritto Ecclesiastico, 1988, p. 175 e seg.; Joachim Wieland, “Die Angelegenheiten der religiosen Gesellschaft”, in Der Staat, 10, 1986, p. 321 e seg. 31. Dean Kelly, “Free Enterprise in Religion, of How the Constitution Protects Religion and Religious Freedom”, How does the Constitution Protect Religious Freedom?, ed. Goldgwin et Kaufman, Washington D.C., 1987, p. 119 e seg.; Michael McConnel, Richard Posner, “An Economic Approach to Issues of Religious Freedom”, in The University of Chicago Law Review, 56, 1989, p. 1. e seg.; Bodo Klein, Konkurrenz auf dem Markt der geistigen Freiheiten, Berlim, 1990, p. 19 e seg., p. 105 e seg.

32. David Richards, Toleration and the Constitution, Nova Iorque, 1986, p. 142 e seg.; Joseph Listl, “Glaubens-, Bekenntnis- und Kirchenfreiheit”, Handbuch des Staatskirchensrechts der Bundesrepublik Deutschland, I, ed. Listl, Pirson, Berlim, 1994, p. 449. 33. Konrad Hesse, “Das Selbstbestimmungsrecht der Kirchen und Religionsgemeinschaften”, in Handbuch des Staatskirchensrechts der Bundesrepublik Deutschland [...], op. it., p. 521 e seg. 34. Art. 22 da Lei n° 16/2001. 35. Art. 25 da Lei n° 16/2001

36. Art. 32 da Lei n° 16/2001. 37. Art. 69 da Lei n° 16/2001. 38. Art. 39 da Lei n° 16/2001. 39. Art. 5 da Lei n° 16/2001.

40. Art. 37 da Lei n° 16/2001. 41. Art. 19 da Lei n° 16/2001.

42. Art. 25/3 da Lei n° 16/2001. 43 Art. 56 da Lei n° 16/2001.

44. Art. 43 e seguintes da Lei nº 16/2001 81


Direito e Religião em Portugal - da libertas ecclesiae à liberdade religiosa 45. Art. 15 da Lei n° 16/2001. 46. Art. 16 da Lei n° 16/2001.

47. Canotilho, Moreira Constituição da República Portuguesa [...], op. cit., p. 244.

48. “As Igrejas e comunidades religiosas são separadas do Estado e podem organizar­‑se livremente, exercer as suas funções e celebrar o seu culto.” 49. Art. 288: “As leis que revejam esta Constituição deverão respeitar […] c) a separação entre as Igrejas e o Estado.” 50. Art. 5 da Lei n° 16/2001.

51. Sob este aspecto, o artigo 43°/2 da Constituição portuguesa estipula que “[o] Estado não pode determinar a educação e a cultura segundo grandes linhas filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.”

52. John Rawls, Political Liberalism, Nova Iorque 1993 (1996), p. 191, 195 e seg. explica que “se um regime constitucional toma certas medidas a fim de reforçar as virtudes da tolerância e da confiança mútua, por exemplo desencorajando os diversos tipos de discriminação racial e religiosa - através de meios que respeitam os princípios da liberdade de consciência e de expressão - este Estado não se torna automaticamente um Estado perfeccionista como Platão ou Aristóteles o tinham imaginado, e também não criou os Estados católicos e protestantes do início dos Tempos modernos. Toma acima de tudo medidas razoáveis para promover as formas de pensamento e de sentimento mantendo uma justa cooperação social entre os seus cidadãos considerados livres e iguais. Isso difere grandemente de um Estado que aplicaria em seu nome uma doutrina completa e particular”. 53. A expressão original (benevolent neutrality) provem de Robert T. Miller, Ronald B. Flowers, Toward Benevolent Neutrality: Church, State and the Supreme Court, 3ª ed., Waco, Tx., 1987.

54. Wojciech Sadursky, “Neutrality of Law Towards Religion”, in The Sidney Law Review, 12, 1990, p. 441 e seg.; Lucas Swaine, “Principled separation: Liberal Governance and Religious Free Exercise “, in Journal of Church and State, 38, 1996, p. 595 e seg. 55. Michael Walzer, Spheres of Justice, A Defense of Pluralism &Equality, Oxford, 1983, p. 243 e seg.

56. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos enunciou-o claramente no julgamento do caso Engel contra Vitale, 421, 431 (1962), quando declarou que “quando o poder, o prestígio e o apoio financeiro do governo se fazem sentir sobre uma convicção religiosa particular, a pressão coerciva indirecta, que obriga as minorias religiosas a conformarem-se com a religião oficialmente aprovada, é evidente”. 57. Bruce Ackerman, The Future of the Liberal Revolution, Yale, 1992, p. 7 e seg.

58. No caso Everson contra Board of Education, 330 US. 1, 9 (1947), O Supremo Tribunal dos Estados Unidos lembra que “com o apoio do poder governamental, em diferentes épocas e em diferentes locais, os católicos perseguiram os protestantes, os protestantes perseguiram os católicos, seitas protestantes perseguiram outras seitas protestantes, católicos de uma facção perseguiram católicos de uma outra forma de convicção, e todos num momento ou noutro perseguiram os judeus”. Ver Robert A. Holland, “A Theory ofEstablishment Clause: Individualism, Social Contract in Identifying Threats to Religious Liberty”, 80, California Law Review, 1992, p. 599 e seg. and 1658 e seg. 82


Jónatas E. M. Machado 59. George J. Stigler, “The Theory of Economic Regulation”, Bell Journal of Economics & Mgmt Science, 2, 1971,4.

60. Isto aplica-se em geral aos diferentes domínios de regulamentação das actividades privadas e das concentrações do poder. Richard Posner, “Natural Monopoly and its Regulation”, 21, Standford Law Review, 21, 1969, p. 548 e seg. e 620 e seg.

61. Robert Post, Constitutional Domains, Democracy Community, Management, Cambridge, Mass., 1995, p. 139 e seg. 62. John Rawls, A Theory of Justice, Oxford (1991), p. 205 e seg. ; Edith Brown Weiss, In Fairness to Future Generations, Tokyo, 1989 (1992), p. 40 e seg. Na mesma ordem de ideias, Emmanuel Kant afirmou: “É absolutamente inadmissível submeter-se, mesmo na duração de uma só vida, a uma Constituição religiosa permanente que ninguém possa pôr em questão publicamente”, “What is Enlightment?”, in Kant’s Polítical Writings, ed. Hans Reiss, Cambridge, 1970, p. 57 e seg. 63. Michael McConnell, Richard Posner, “An Economic Approach to Issues of Religious

64. Opinião dissidente in Virginia State Board of Education contre Barnette 319 U. S. 624 (1943). 6S Art. 52 da Lei n° 16/2001. 66 Art. 54 da Lei n° 16/2001.

67 Art. 38/2 da Lei n° 16/2001. 68 Art. 56 da lei nº 16/2001

69 Jane S. Schachter, “Metademocracy”. The Changing Stucture of Legitimacy in Statutory Interpretation”, in Harvard Law Review, 108, 1995, p. 593 e seg.

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A Liberdade Religiosa* Jacques Robert **

O Estado democrático que faz ponto de honra o respeitar todas as opiniões, deve estabelecer a sua protecção ao conjunto das religiões, uma vez que a liberdade de religião não é senão um aspecto da liberdade de opinião; está contida nela, mas transcende­‑a. A liberdade religiosa é, em primeiro lugar, uma liberdade “individual” dado que consiste, para o indivíduo, em dar ou não a sua adesão intelectual a uma religião, escolhendo-a, ou rejeitando-a livre­mente. Mas é também uma liberdade “colectiva” no sentido de que não se esgotando na fé ou na crença, dá, necessariamente, origem a uma “prática” cujo livre exercício deve ser garantido. Com efeito, é preciso garantir o livre exercício dos cultos se se pretende plenamente transmitir a liberdade religiosa, e isso pressupõe que todo o movimento religioso deve ser senhor da sua actividade, e, portanto, possuir o direi­to de se organizar livremente. Esta livre organização coloca, inevitavelmente, o problema delicado das relações entre as religiões – ou as Igrejas – e o Estado. Religiões e Estados É preciso, entretanto, e de imediato, constatar que não há um ponto de

estreita concordância entre tal sistema de relações entre as Igrejas e o Estado e o respeito ou o desconhecimento da liberdade religiosa. Digamos apenas que tal forma de relações pode ir em primeiro lugar a par com o respeito da liberdade religiosa A França, por seu lado, tem experimentado, ao longo da sua história, quase todas as fórmulas de relações entre as religiões e o Estado, e se finalmente optou por um regime dito de “laicidade” é porque, no começo do século XX, o achou mais conforme do que outros, à sua vocação e aos seus ideais. Este regime de “laicidade” não é o único a ser praticado pelos Estados democráticos. Outros são perfeitamente concebíveis, e o seu número é aliás importante. Mesmo num Estado democrático, é completamente possível que haja uma espécie de confusão ou fusão entre o “temporal” e o “espiritual” no mínimo uma “união” entre eles, que pode manifestar-se sob formas diversas: religião do Estado, Igrejas “reconhecidas”, incorporação da Igreja no Estado. Limitando-nos apenas à Europa, notar-se-á a extraordinária comple­ xidade das situa­ções das Igrejas face ao Estado. 84


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Se todos os países europeus são profundamente marcados pelo cris­ tianismo, nenhum sistema jurídico é comparável a outro. Aí encontramos ao mesmo tempo sistemas de Igrejas do Estado (Inglaterra, Dinamarca, Grécia, Suécia, Finlândia …), regi­ mes de separação (Holanda, Irlanda, França), fórmulas combinando se­paração de base e cooperação (Ale­ manha, Bélgica, Áustria, Espanha, Itália, Portugal). Mas as influências profundas são diversas. Nem sempre no sentido em que se crê. A influência religiosa é mais forte na Irlanda (portanto regime de separação) de que na Suécia (Igreja de Estado). Os laços Igreja-Estado são menos fortes na Europa católica do que na Europa protestante ou ortodoxa. No plano jurídico – especialmente o das fontes – os princípios funda­ mentais que governam as relações entre o poder político e as religiões encontram-se muito dispersos: nas Constituições Nacionais, nos textos europeus (Convenção Europeia dos Direitos do Homem), nas leis de cada Estado, na prática observada internamente, igualmente nas con­ cordatas concluídas com a Igreja Católica Romana, objecto de Direito Internacional, nas convenções diver­ sas passadas com certas confissões (por exemplo na Espanha ou na Itália) nos acordos informais. Dir-se-á mais que o reconhe­ cimento variável de certos cultos, permite, sem o dizer, distinguir os mais representativos e, aparen­ temente, os mais sérios e afastar alguns outros. Mas quais? À escolha discricionária do poder?

Ao mesmo tempo, certas confis­ sões vêem ser-lhes reconhecido um estatuto de Direito Público ou de Direito Privado, de Direito Comum, ou “sui generis”. As fórmulas variam. A separação radical é rara, mas, mais frequente quando ela está acom­ panhada da ideia de “neutralidade positiva”, ou seja, de cooperação oficiosa. O papel cultural das Igrejas está marcado, especialmente no ensino, com todas as modalidades de adap­ tação imagináveis. Ao mesmo tempo, o financiamento das Igrejas raramente é directo, sendo a maior parte das vezes, escondido no hábil meio de remunerações muitas vezes ocultas, subvenções, disfarçadas ou não, isenções fiscais ou manutenção de monumentos históricos. A própria secularização está limitada. Na Holanda, por exemplo, a secularização vincada da sociedade holandesa não impede que um número de instituições sociais e de partidos políticos, seja organizada sobre uma base confessional. Ou aceitar-se-ia, em França, um partido político protestante, muçulmano, budista, ortodoxo, judeu? Todas estas formas diferentes não são, em si mesmas, incompatíveis com o reconhecimento de uma grande tolerância religiosa. A escolha, por um Estado, de uma Igreja, ou uma religião privilegiada, não significa necessariamente que as outras sejam desprezadas, a fortiori perseguidas. Simplesmente pareceu à França que um regime de total separação, 85


A liberdade religiosa

nem mesmo no que seja hostil, mas, pelo contrário, grandemente tolerante, era a mais adaptada a um Estado democrático moderno.

A consequência inevitável é que a República não pode assalariar, nem subvencionar um culto. A Separação As implicações da supressão do serviço público da Igreja são, na origem, numerosas: desaparecimento do ministério e do orçamento dos Cultos; supressão dos pagamentos concedidos aos ministros dos cultos; cessação da intervenção do Estado na organização dos cultos, particularmente na nomeação dos dignitários eclesiásticos. Por outro lado, a partir do momento em que as Igrejas não realizam mais uma missão de serviço público, não há mais organização “pública” dos cultos e, logo, não mais o direito de supervisão “institucional” do poder público sobre o seu exercício. O corolário desta supressão do “serviço público” da Igreja é a liber­ dade total deixada à Igreja – a todas as Igrejas – de se organizarem e, por isso, de interpretarem as suas regras internas. Mas não há contradição no facto de rejeitar no “privado” as religiões outrora investidas de uma missão de serviço público e para­ lelamente admitir as suas regras de organização interpretadas e aplicadas pelos tribunais judiciais ordinários? A jurisprudência dos tribunais – judiciais e administrativos – fran­ ceses testifica da sua prudência em não se imiscuir, neste domínio, num direito que não é o seu (ver C.E. 8 de Fevereiro de 1908, Abade Deliard, rec. P. 128; G. Cass., 6 de Fevereiro de 1912, Compilação Sirey 1912.137; C.E., 16 de Fevereiro de 1923, Associação Presbiteriana da Igreja Reformada, Rec. p. 115; 25 de

A laicidade Francesa O conteúdo desta noção de laicidade encontra-se integralmente em dois artigos da lei francesa de 1905: - Artigo primeiro: “A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos, sob as restrições promulgadas no interesse da ordem pública”. - Artigo segundo: “A República não reconhece, não assalaria nem subvenciona nenhum culto”. A Neutralidade do Estado O facto de que a República não reconhece mais nenhum culto, não significa que o Estado ignora a existência de religiões, de Igrejas ou de movimentos de culto. Isto apenas quer dizer que está definitivamente abandonado o sistema dito de “religiões reconhecidas”. A República quis apagar toda a distinção entre antigos cultos reconhecidos – o culto católico, as duas principais Igrejas protestantes, o culto israelita – e os outros. Ele coloca-os assim a todos no mesmo plano. O “não reconhecimento” não significa, de forma alguma, que o Estado não deseja manter boas relações com as religiões. O “não reconhecimento” não é uma atitude de hostilidade ou de desconfiança; implica simplesmente, que o facto religioso, contrariamente às soluções concordatárias, deixa de ser um facto público. 86


Jacques Robert

Maio de 1919, Comuna de Montjois, Rec. p. 429). Esta separação institucional das Igrejas do Estado, desejada em 1905 que – como acabamos de ver – implica que a República, de modo algum desconhece as religiões, mas cessa de as reconhecer e, portanto, de lhes pagar ou subvencionar, com a obrigação implícita, de ser “religiosamente neutro”. Mas esta neutralidade é, ao mesmo tempo, “negativa” e “positiva” (v. Jean Rivero, “A noção jurídica da laicidade” D. 1949, Chronique, p. 137; J. B. Trotabas “A noção de laicidade no Direito da Igreja Católica e do Estado republicano”, L.G.O.J. Paris, 1960, p.223; J. Coulombel “O Direito Privado francês perante o facto religioso desde a separação da Igreja e do Estado” in Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1957, p. 7). Negativa, porque a República, que admite todas as manifestações diversas do pensamento, que não rejeita nenhuma ideologia e as acolhe a todas, não saberia escolher uma dentre elas, para dela se fazer oficialmente o campeão e da qual se instituiria propagandista. De modo nenhum significa isto que o próprio Estado não possa ter as suas preferências particulares. Mas deve evitar de as proclamar, de favorecer prioritariamente quem as partilha ou de tentar impô-las a outrem por pressão. Dois textos merecem ser recor­ dados aqui: - o artigo 10 da Declaração dos direitos do homem e do cidadão que dispõe que ninguém deve ser molestado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas (…)

Janeiro de 1943, Igreja Reformada de Marselha, Rec. p.116; T.G.I., Paris, 29 de Outubro de 1976, SOVEDOCA e Assembleia consistorial israelita de Paris; J.C. p. 1977, nº 18664, nota J. Carbonnier; C. CASS. Civ. 17 de Outubro de 1978, Abade Cache c/Abade Bellego, D. 1979. 120 Bull. Civ. L308) “Coexistência” Financeira Repare-se que no plano financeiro, a lei da separação não interdita senão a “inscrição de créditos com vista a subvencionar, a título permanente e regular, o serviço dos cultos”. Portanto, pode concluir-se que a lei de 1905 admite: - a possibilidade de o Estado subvencionar actividades que apre­ sentem um carácter geral, embora se exerçam num quadro confessional: lares, hospitais, creches, obras de beneficência, etc.; - a despesa directa, pelas colecti­ vidades públicas, tais como liceus, colégios, hospitais, asilos ou lares, prisões, etc.) desde o momento em que a sua organização seja indispensável para garantir a todos, o livre exercício do culto; - a remuneração de ministros do culto, quando eles prestam serviços às pessoas públicas (cerimónias re­ligiosas nacionais, prestações nos media, etc.). Em contrapartida, os tribunais exercem uma certa “desforra” quando eles são apanhados com “subvenções disfarçadas”, embora muitas vezes a sua jurisprudência se mostre indulgente. (V; c; e; 28 de Novembro de 1913, Comuna de Chambon, Rec., p. 1164; C.E. 26 de Janeiro de 1924, Perfeito do Departamento dos Altos­ ‑Pirinéus, Rec. p. 774; C. E. 16 de 87


A liberdade religiosa

Direito Público”, in Revue trimestrielle du droit civil, 1962, p. 242.) O Estado “indiferente” não tem que se questionar sobre o que é uma religião, dado que, em princípio, ele não a professa e nem conhece nenhuma. O princípio da liberdade religiosa não exclui a possibilidade de se fazer qualquer distinção entre os cultos, quer sejam praticados por uma “seita” ou por uma Igreja tradicional? É aqui que encontramos as aplicações principais da liberdade religiosa, que são os princípios da igualdade a da não discriminação entre os cultos. Ora o princípio da não discriminação arrasta consigo uma atitude positiva por parte do Estado: este deve proteger os cultos minoritários em nome da liberdade religiosa. A afirmação de que a República garante a liberdade de consciência significa, com efeito, não apenas que o Estado se obriga a si mesmo a respeitar esta liberdade, mas que ele se empenha em que ela não seja violada por quem quer que seja (ver Y. Geraldy “A religião em Direito Privado” tese de Direito, Limoges, 1978). O princípio da liberdade de consciência é, aliás, sancionada penalmente. A lei de 1905 criou o delito de atentado contra a liberdade de consciência, punindo, (artigo 31) aqueles que, por via de facto, de violência ou de ameaça contra um indivíduo, ou por fazê-lo temer perder o seu emprego, ou por causar danos à sua pessoa, à sua família ou os seus bens, o levasse a exercer ou a abster-se de exercer um culto. De uma maneira mais ampla, o respeito pela liberdade de consciên-

- o artigo 2 de da Constituição de 4 de Outubro de 1958 nos termos do qual a França é uma República (…) “laica” (…) que “garante a igualdade de todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça ou de religião diante da lei (…)” Estes dois textos fazem perfei­ tamente o elo de ligação entre a noção de neutralidade negativa que supõe a “prudência” do Estado e a da neutralidade “positiva” que implica o empenhamento do Estado em garantir na prática, a cada um, na vivência do seu dia a dia, o livre exercício da sua religião, quer dizer, pôr à sua disposição, se a necessidade o impuser, os meios que lhe permitam observar os respectivos preceitos. Desta exigência derivam, especialmente em França, o estatuto dos capelães, a regulamentação das condições de abate dos animais de açougue e o reconhecimento da objecção de consciência. É por isso que se demonstra solenemente que a “neutralidade” – positiva ou negativa – do Estado não pode exercer-se sem o respeito pela liberdade de consciência. A liberdade de consciência A não confessionalidade do Estado coloca os cidadãos num plano de igualdade moral rigorosa, perante o Estado, pelo facto de que este assume não professar nenhuma fé particular em nome da Nação. Não há pois espaço para “cidadãos de segunda” por causa das suas convicções religiosas. A vontade do Estado de não conhecer o espiritual é, por isso mesmo, uma garantia da liberdade para todas as diversas confissões religiosas. (ver L. de Naurois “Nos confins do Direito Privado e do 88


Jacques Robert

cia é afirmado pelo reconhecimento de um carácter ilícito a toda a atitude que busque criar discriminações sobre a base de crenças expressas ou subentendidas e a molestar de qualquer modo uma pessoa, por causa das suas opiniões. (ver C.E. 28 de Abril de 1938, Demoiselle Weiss, R.D.P. 1938.553; Demoiselle Pasteau, 08 de Dezembro de 1948, R.D.P. 1949.73; C. Cass., 19 de Julho de 1988, D .1998.1424; Trib. civ. de La Seine, 03 de Março de 1933, 5.1934.2.67; Trib, civ. de La Seine, l8 de Junho de 1945, G.P., 1945.2.38; C. Appel Amiens, 03 de Março de 1975, Guy Ferchault c/ Mascelle Bascot, esposa de Ferchault, D. 1975 p. 706, nótula Geraldy; ver, acerca de todos estes pontos: Jacques Robert, A liberdade religiosa e o regime dos cultos P. U. F., colecção “SUP” Paris 1977, página 109 e seguintes.). Esta interdição de toda a atitude prejudicial a esta ou aquela religião impõe-se a todos, e em particular, às Igrejas e ao Estado. Neutral e laico, este último (o Estado) não saberia praticar a menor discriminação a respeito deste ou daquele movimento religioso nem favorecer esta ou aquela propaganda que pudesse causar prejuízo a um deles, na medida, bem entendido, em que cada um respeita, nas suas manifestações sociais, as prescrições do Estado para a ordem pública.

pode ser molestado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, con­tanto que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. E recordar-se-á que se a nossa primeira Constituição (3 de Setembro de 1791) considera como “Direito Natural e Civil” a 1iberdade conferida a todo o homem de exercer o culto religioso ao qual está ligado, o seu título primeiro, consagrado às “Disposições fundamentais garantidas pela Constituição”, não determina menos que a liberdade consiste senão em poder fazer tudo o que não é prejudicial nem aos direitos nem à segurança pública; logo a lei, e apenas a lei, poderá aplicar sanções aos autores de actos que, atentando contra a segurança pública ou desprezando os direitos da terceiros, se manifestassem prejudiciais à sociedade. O véu islâmico 1 Esta referência à ordem pública, que igualmente se encontra na lei da 1905, apareceu recentemente num aviso do Conselho da Estado de 27 de Novembro de 1989 relativo ao uso de sinais de pertença a uma comunidade religiosa nas escolas públicas francesas e à sua compatibilidade com o princípio da laicidade do serviço público de ensino. Depois de ter recordado os textos internos e internacionais sobre os quais se fundamenta este princípio, o Conselho de Estado indica muito claramente que este é apenas um aspecto do princípio geral de laicidade e neutralidade do Estado e que implica, como tal, o respeito pela liberdade de consciência dos alunos, ou seja, a interdição de toda a discriminação no acesso ao ensino, que fosse fundamentado sobre as

Ordem pública e liberdade religiosa Os textos franceses têm, muitas vezes – e talvez até abusivamente – ligado ordem pública e liberdade religiosa. Evoca-se a fórmula ambígua e restritiva do artigo 16 da Proclamação dos direitos do homem: “Ninguém 89


A liberdade religiosa

do ensino público. A partir daí a decisão da expulsar várias jovens do colégio tomada sobre a única base desta interdição geral, deve ser anulada. Efectivamente convinha, antes de tomar tais decisões, estabelecer as condições nas quais o uso do véu islâmico seria considerado sinal de filiação religiosa com a natureza de “conferir ao uso desse véu pe­las interessadas, o carácter da um acto de pressão, de provocação, de proselitismo ou de propaganda, ou a perturbar a ordem no estabelecimento ou o desenvolver das activi­dades de ensino”. (C.E. 2 de Novembro de 1992, Les Petites Affiches; 24 de Maio de 1993, nº 62, ver nótula Gilles Lebraton “Uso de símbolos religiosos e laicidade do ensino público”). A questão do véu islâmico não perturbou, à partida, senão a consciência dos outros alunos. Iria por fim perturbar também a dos docentes? Já alguns, dentre eles, afirmavam que não estavam longe de recusar leccionar para alunos cuja maneira de vestir – no seu entender – era a negação dos valores de que a escola republicana deveria ser a portadora (…). Mas uma tal atitude era intolerável; o princípio da laicidade postula, em si mesmo, a ausência total de discriminação entre os alunos por causa da sua religião. O corpo docente não deve, de modo algum, ser autorizado a seleccionar os seus alunos. Em resumo, a República laica, neutra, respeitadora de todas as opiniões e crenças, garante a liberdade religiosa e dos cultos, não é propagandista de nenhuma fé ou ideologia, e não pode, com seriedade, opor-se aos movimentos religiosos que prosperam no seu solo senão no prescrito sobre a ordem pública.

con­vicções ou crenças religiosas dos alunos. A liberdade assim reconhecida aos alunos, confere-lhes o direito de exprimir e manifestar as suas preferências religiosas no interior dos estabelecimentos escolares, no respeito pelo pluralismo e pela liberdade dos outros; mas essa liberdade não lhes poderia permitir ostentar símbolos de pertença religiosa que, pela sua natureza, pelas con­dições em que seriam usados individual ou colectivamente ou pelo seu carácter ostensivo ou reivindicativo, constituiriam um acto de pressão, de provocação, de proselitismo ou de propaganda, levariam a um atentado à dignidade ou à 1iberdede do aluno ou de outros membros da comunidade educativa, comprometeriam a sua saúde, perturbariam o desenvolvimento das actividades de ensino e o papel educativo dos docentes, enfim, perturbariam a ordem no estabelecimento ou o funcionamento normal do serviço público (ver Aviso nº 34893, Assembleia Geral em plenário, L.A.J.D.A., 1990, p. 3495, nota J‑P.C.; R.F.D.A., 1990, páginas 1 e 9, nota Jean Rivero). Depois deste aviso o Conselho de Estado foi 1evado a definir com precisão a sua posição. Considerou que eram ilegais as disposições de um regulamento interno do colégio que estipulava que “o uso de todo o sinal distintivo, vestuário ou outro, de ordem religiosa, política ou filosófica é rigorosamente proibido”. Um tal regulamento, pelos termos gerais em que se expressa, institui, efectivamente uma interdição geral e absoluta no total desprezo pela liberdade de expressão reconhecida aos alunos no contexto dos princípios de neutralidade e de laicidade 90


Jacques Robert

Ainda seria preciso determinar, com exactidão, os critérios da seita. Muitos têm sido sucessivamente apresentados pela sociedade mo­derna. O seu conjunto, para ela, “identificaria” a seita. Que critérios? Desde logo o pequeno número de adeptos. Podia facilmente aduzir­ ‑se aqui a contradição que existe em manter tal critério numa época em que o respeito pelas minorias é proclamado como um princípio de moral nacional e internacional. Mas colocando-nos simplesmente no interior da própria noção de religião não se pode deixar de notar que há religiões, cujo carácter de religião não é, ou já não é contestado, que escolhem, por exigência teológica, ser religiões de professantes e não de multidões. Sobre o simples terreno dos factos, seria também necessário esperar fracassos na gestão do critério quantitativo. Uma comunidade numericamente fraca num país, muitas vezes não é mais do que um ramo particular de um conjunto muito mas considerável disperso por diversos países. Julga-se encontrar a seguir um segundo critério na excentricidade. Se ela deve ser definida em relação à razão, não há religião que não possa ser qualificada de seita, porque é da natureza da fé ser, pelo menos por certos lados, irracional e mística. A novidade? É provavelmente este critério o que, sem ser explícito, desempenha o papel mais relevante, porque é de verificação simples, talvez também porque o tempo é uma dimensão familiar ao Direito. A seita seria, no fundo, uma religião “nascente”. É não ligar importância aos fenómenos analisados em ciência

Ainda é preciso, quando elas res­ peitam esta ordem pública, que todos os movimentos religiosos vejam o exercício do seu culto garantido de modo igual. Ou a História não tem dado um lugar privilegiado a certas religiões, mais ajudadas porque aceites há muito tempo, aceites com menos reticências porque se está habituado a elas? Muitos insistem hoje sobre a face totalmente transformada de uma nova liberdade religiosa confrontada com a proliferação de movimentos, surgidos muito bruscamente, cujo dinamismo e originalidade fascinam, mas, ao mesmo tempo, inquietam. Como se podem identificar e caracterizar estes agrupamentos? São “religiosos” no sentido em que nós o entendemos? Por outro lado, multiplicam-se nos nossos países religiões muito mais antigas que reivindicam igualmente um estatuto “oficial” reconhecido a outras. Como responder a estes apelos tão diferentes? O fenómeno sectário Nos nossos países, pouco habituados à multiplicação de denominações religiosas e à multiplicidade das igrejas que conhecem as sociedades anglo­‑saxónicas, a noção de “seita” tem uma conotação pejorativa que ignoram, aliás, rejeitam, nos nossos dias, as grandes democracias. Entre nós, está laboriosamente organizada ao longo dos anos e através de discussões por vezes apaixonadas, uma teoria jurídica da seita, distinta, diz-se, da religião e que, por esse facto, não se poderia fazer valer da protecção garantida a esta última pelos textos internacionais. 91


A liberdade religiosa

das religiões, tais como dissidência, cisma, heresia, reforma, que atestam a possibilidade de confissões novas, levantadas instantaneamente. É, sobretudo, menosprezar a liberdade de consciência sob uma das suas formas essenciais, erguendo uma barreira ante a experiência religiosa, interditando toda a criatividade na busca teológica. É verdade que a objecção de novidade é algumas vezes transposta da história para a geografia e torna­‑se uma espécie de objecção de “estra‑ nheza”. Mas este é um argumento inadmissível. Com efeito, valeria contra mais do que uma religião estabelecida e, em última análise, contra todo o cristianismo. Em Direito é condenado por um princípio de livre comunicação, hoje inscrito no artigo 10‑1 da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem que reconhece a todas as pessoas a liberdade de receber ou comunicar ideias sem consideração de frontei‑ ras. A noção de seita, como se vê, é difícil de delimitar. A noção de religião Poderia dizer-se que a religião está definida por dois elementos: um objectivo, o outro subjectivo. O elemento objectivo é dado pela existência de uma comunidade. Uma comunidade não é um simples agregado de indivíduos; é um grupo coerente, um “ser moral”. A religião é um fenómeno colec‑ tivo; não é necessariamente um fenómeno de massas. É de Igrejas que se querem nacionais, outras que se reconhecem minoritárias e mesmo microminoritárias. O nosso Direito Positivo, muito sabiamente, recusou-se a integrar a estatística confessional nas suas normas. O artigo 19 da Lei de 1905 é significa-

tivo. Não se preocupa absolutamente nada, para a constituição de uma associação de culto, com o maior ou menor número de fiéis unindo-se à confissão particular em questão. O segundo elemento é o elemento subjectivo, ou seja, a fé. A fé tem a sua sede na consciência individual. Não obstante, não é uma consciência solitária mas a reciprocidade das consciências que faz a religião, no que estes dois elementos, objectivo e subjectivo, são indissociáveis. É a fé que dará significado ao grupo, mas será necessário o grupo, por limi‑ tado que seja, para fazer sair a fé da interioridade que o Direito não seria capaz de captar. É de uma fé comum, duma comunhão espiritual, dum conjunto de crenças que o grupo tira a sua coerência. Mas como caracterizar a crença religiosa? Poderia ser-se tentado a compreendê-la pelos comportamentos que a manifestam: práticas, observâncias, ritos, liturgias, sacramentos. O facto é que estes comportamentos, muitas vezes têm a originalidade que assinala a presença de uma religião. O argumento não é, no entanto, decisivo. Afinal, há Câmaras Municipais que organizaram um baptismo civil e os Tribunais têm o seu ritual. Os gestos são formas vazias: somente a crença que os anima lhes pode insuflar um significado. É preciso voltar ao que é o cerne da questão: o objecto da crença. Nem toda a convicção é uma fé; um partido político, uma escola filosófica não são uma religião. A essência da religião é o apelo a uma divindade ou, no mínimo a um sobrenatural, à transcendência, ao absoluto, ao sagrado. As fórmulas variam. 92


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Mas, no entanto, nem todos os casos, são igualmente litigiosos. Pode haver, por exemplo, uma zona indecisa entre invocação do sobrenatural – que é religião – e a especulação sobre a metafísica, que não passa de filosofia. Mas a crença num Deus faz, em geral, surgir uma religião, sem que, no entanto, seja imprescindível a representação exterior desse Deus. Qual a diferença entre um profeta, um mago, um guru, um grande arquitecto do universo? Todos devem respeitar a lei Não há dúvida de que nenhum movimento religioso se poderia elevar acima das leis. Cada Igreja, associação ou seita deve responder pelos seus actos. O Direito francês não admite que fiquem sem sanções as condutas condenáveis e todos aqueles que viessem, motivados por um proselitismo dedicado, a infringir, voluntariamente ou não, as prescrições da lei e, por esse facto, colocar­ ‑se-iam à margem da sociedade. As infracções puníveis são muito numerosas e exactamente qualifi­ cadas: fraude, abuso de confiança, violências e injúrias, sequestro ilegal, não assistência a pessoa em perigo, ofensas aos bons costumes, proxenetismo, exercício ilegal da medicina, rapto e desvio de menores, etc. … Esta lista não é suficiente? Seria necessário criar novos delitos e as respectivas penalidades? Além de todos os processos penais, a administração pode, ou constatar a nulidade de uma “associação fundada sobre uma causa ou em vista de um objecto ilícito, contrário às leis ou aos bons costumes” ou pronunciar uma dissolução administrativa que se poderia apoiar sobre o decreto de 2 de Outubro de 1943

que autoriza a dissolução dos grupos e associações “tendo uma actividade contrária à liberdade de consciência e à liberdade dos cultos”. A administração poderia ainda invocar o texto modificado em 1972 de 10 de Junho de 1936 relativo aos grupos de combate e às milícias privadas … Quer se trate de antigas ou de novas religiões, o Estado não po­ deria, evidentemente, tolerar o menor atentado à ordem e à lei. A Acção preventiva Acrescente-se que, no domínio da prevenção privada, não é proibido a quem quer que seja, especialmente às famílias, alertar os seus filhos ou os seus parentes mais vulneráveis, contra todas as tentações ou perigos sociais. Os pais têm tido, sempre, a total liberdade de proteger a sua progénie contra as más companhias, as seduções perversas, os contágios maléficos. Mas ainda é preciso que eles tenham o desejo, a vontade … ou o tempo! Resta que a noção de ordem pú­blica possa dar lugar a interpretações diferentes. Contra toda a “ordem moral reli‑ giosa” Evidentemente que a ordem pública e social não se confunde hoje com a ordem moral e religiosa; e o Estado laico, desde 1905, respeita e protege todos os cultos. Mas não se pode esquecer que o pensamento judaico­‑cristão forjou a mentalidade ocidental e que nós estamos mais familiarizados com certos cultos do que com outros que nos podem chocar pelo seu aspecto exterior, pelo seu esoterismo, ou a sua adesão ostensiva a crenças e ritos estranhos 93


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inoportuna e impossível toda a legislação do Estado especial de carácter religioso. Tensão permanente, contudo, sentida até este momento, entre a tentação da denúncia ideológica e a neutralidade do Estado. A política francesa As flutuações da política francesa, com respeito às seitas, reflectem perfeitamente a ambiguidade deste perigoso dilema. Primeiramente, multiplicam-se as iniciativas para tentar barrar as novas seitas, em todo o caso para, no mínimo, as vigiar e estudar os meios de impedir desvios. Em Novembro de 1998, o Obser­ vatório Internacional das Seitas, criado em Maio de l996 junto do Primeiro Ministro para analisar o seu desenvolvimento e melhorar os meios de lutar contra elas, foi substituído por uma “Missão Interministerial de Luta Contra as Seitas (MILS), posta de pé com o intuito anunciado de fazer dela uma ferramenta mais operacional. No fim do ano de 1998, uma lei de 18 de Dezembro sobre a obrigatoriedade escolar, dá a possibilidade ao Estado de, através dos inspectores da Academia, controlar o conteúdo do ensino ministrado no quadro de “estrutura privadas”. Em Junho de 1999, uma comissão de inquérito parlamentar presidida por Jacques Guyard apresenta um relatório sobre “as seitas e o dinheiro”, que avança trinta, propostas para contrariar a influência sectária em todos os domínios em que as seitas – da qual uma lista, recentemente estruturada foi muito contestada – actuam.

à nossa cultura… As seitas não são as únicas a causar inquietação. O despertar de certas religiões antigas, ou a extensão dos seus adeptos, pode também colocar problemas. Desde logo não se correria o risco de causar uma discriminação entre os antigos e os novos cultos, na medida em que nem todos exercem a mesma influência sobre e cultura nacional, e não têm o mesmo lugar no património comum? Se o Direito Público não pode ignorar tais “especificidades religiosas”, o reconhecimento de uma diferença entre os cultos não poderia, em caso algum, desembocar numa discriminação entre eles. A igualdade protectora da laicidade, não deve apagar-se diante da diferenciação. Que pensa disso a opinião pública? Duas grandes correntes dividem as opiniões. Há de um lado, aqueles que admitindo que as análises clássicas de Max Weber, distinguindo Igrejas e seitas, estão inteiramente ultrapassadas, consideram que a evolução da ciência e da fé conduziu a uma espécie de perda de regulamentações de todas as crenças, por transferências, migrações que podem estar carregadas de amálgamas e de desvios. Por outro lado, há os que continuam a pensar que, para evitar – o que pode parecer louvável – os abusos de certos grupos sem rumo, convém empregar, de uma maneia sistemática e indiferenciada, uma polícia geral de todos os grupos de aparências sec­ tárias… E aí voltamos ao problema das definições, de tal modo difícil de regular, que toda a gente, todas as tendências misturadas, durante muito tempo se reuniram e consideraram 94


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O relatório que o presidente da Missão interministerial de luta contra as seitas oficialmente enviou, em 7 de Fevereiro de 2000 ao Primeiro Ministro, em Matignon retoma, infelizmente, toda a ideia de um reforço de legislação repressiva contra as seitas, mas perecia, à primeira vista, reservar os novos meios de luta tendo em vista as únicas seitas consideradas perigosas, pelo que, uma definição muito restritiva, seria então dada (associação totalitária utilizando métodos de manipulação …). Todavia, o Senado adoptou em Maio da 2001, uma “lei tendente a reforçar a prevenção e a repressão contra os grupos de carácter sectário”. Este texto foi o resultado de uma longa negociação entre as duas Assembleias, o governo e a Missão Interministerial de Luta contra as Seitas (MILS). A primeira versão do texto adoptado pelo Senado na primeira leitura a 16 de Dezembro de 1999, ti­nha sido profundamente modificado em 22 de Junho de 2000, quando passou pe­ la Assembleia Nacional. Com efeito os deputados tinham introduzido no texto, a pedido de Catherine Picard, a criação de um delito específico de “manipulação mental”. Esta disposição tinha desencadeado numerosas reacções hostis, e Elisabeth Guigou, Ministra da Justiça, manifestou o desejo de que se faça sobre este assunto uma reflexão mais aprofundada em conjunto com a Comissão nacional consultiva dos direitos do homem (CNCDH). Esta última, tendo considerado inoportuna a criação de um tal delito, foi o texto modificado para não reprimir, alargando-o, senão o delito

Em Dezembro de 1999 a Comis­ são das leis do Senado adoptou uma proposta de Nicolas About tendo em vista a dissolução dos grupos deli­ tuosos”. Todas estas iniciativas põem em evidência, que o fenómeno sectário é, em si mesmo, considerado como suspeito e que convém organizar, seriamente, contra ele, a defesa da sociedade. O exagero de certas posições contra as seitas e a impossibilidade, tanto jurídica ­como política, de pôr em prática as soluções propostas, parece, no momento actual, justificar uma posição um pouco menos ambígua dos poderes públicos. Suscita muitas reservas a proposta visando incluir nos “grupos de combate e milícias armadas” evocadas na Lei de 10 de Janeiro de 1936, aqueles que foram objecto da várias condenações penais e todos os agrupamentos que constituem “uma perturbação à ordem pública ou um perigo maior para a pessoa humana”. Quanto ao Ministério do Interior, teve por bem precisar, numa circular de 20 de Dezembro de 1999 que “a qualificação de movimento sectário que é dado a uma associação pelos diversos relatórios parlamentares não poderia revelar, por si só, qualquer perturbação da ordem pública”. Parecia pois que se encontrava definitivamente descartada a ideia de uma legislação específica sobre as seitas no seu conjunto, mesmo que não estivesse excluído que fosse activada uma luta contra elas que não seria senão conduzida através da legislação existente e do seu arsenal jurídico concernente ao respeito pela obrigação fiscal ou escolar. 95


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“abuso fraudulento do estado de ignorância e de fraqueza”. Isto quer dizer que se algum “chefe de Igreja”, guru ou mago fica, evidentemente livre para apresentar a mensagem que deseja, cairá, por outro lado, sob a alçada da lei se colocar em risco a segurança física, moral ou material daqueles que decidem segui-lo, ou se os explora. Por outro lado, o direito é outorgado às associações, que se propõem combater as seitas, de suportarem a parte civil. Certos organismos, associações ou agremiações que, sob siglas diversas, combatem energicamente os novos movimentos religiosos poderão assim substituir-se aos fiéis fragilizados ou abusados, para obter condenações, ou indemnizações. Isto promete muitas discussões acaloradas com os grupos pro­‑seitas que têm constituído estes novos movimentos e que não escondem que querem estar presentes nas arenas judiciais. Não demorará muito tempo, que percebendo a responsabilidade penal das pessoas físicas ante novos delitos, desenvolvendo a responsabilidade penal das pessoas morais, prevendo possíveis dissoluções, se a pessoa moral incriminada ou os seus dirigentes são objecto de condenações penais definitivas por uma ou outra das infracções que figuram na lista introduzida pelo novo texto, a lei de 2 de Junho de 2001 constitui um instrumento novo de luta contra as seitas. Sem esconder, no entanto, que será de uma gestão delicada e de uma aplicação necessariamente subjectiva. Com se definirá, como se viu acima, e sobretudo como se chegará a circunscrever esse “estado de

de abuso fraudulento da condição de ignorância ou da situação de fraqueza. Não foi pois, tido em conta, no texto adoptado pelo Senado, senão o caso de alguém em estado de sujeição psicológica ou física resultante do exercício de pressões graves ou reiteradas, ou de técnicas próprias para alterar a sua capacidade de julgar, para induzir esse menor, ou essa pessoa, a um acto ou a uma abstenção que lhe sejam gravemente prejudiciais. Mas, os representantes das gran­ des religiões interrogam-se hoje, quem ajuizará do carácter prejudicial desse acto ou dessa abstenção. Necessariamente o juiz. E o seu julgamento estará sujeito às modas, às variações no tempo e às pressões exteriores. Acrescente-se que o texto submetido ao Senado previa também a possibilidade de dissolução judicial dos agrupamentos de carácter sectário, quando tiverem sido objecto de várias condenações por infracções tais como: atentados contra a vida, torturas e actos de barbárie, violações e agressões sexuais, ou o exercício ilegal de medicina e da farmácia. Não haveria então, para lutar contra as “seitas” senão o arsenal repressivo? Não se deveria, antes, desenvolver a prevenção e reflectir, talvez um pouco, sobre as verdadeiras raízes do mal? Finalmente foi votada, por unanimidade, uma lei na Assembleia Nacional, em 12 de Junho de 2001. Este texto retém essencialmente duas disposições que foram longa­ mente discutidas. De qualquer maneira, temos revestida a velha noção do tempo do Código de Napoleão de 96


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belecimentos públicos de culto às novas associações de culto. Não estava preocupada com o futuro e não previa, especialmente, a possibilidade de se enraizarem na França cultos que não existiam em 1905. O Islão não dispõe pois, de um “património” nem de edifícios afectados. Depois, há a formação dos “imans”… Para fazer ouvir a sua voz, o Islão tem, igualmente necessidade de dispor de emissões religiosas e de rádios de qualidade afim de dar de si uma imagem positiva das suas diversidades e das suas riquezas. Perante a liberdade, todos os cultos estão em um plano de igualdade. Mas alguns são mais iguais do que outros, porque beneficiam de todas as vantagens da lei. Estes são os antigos “cultos reconhecidos”. Estas têm estruturas sólidas habilitadas a debater com o Estado. E depois, o problema da propriedade e da afectação dos seus bens está regulamentado, como vimos. Daí que nada foi previsto para as construções das outras religiões ulteriores a 1905. Avançam-se hoje algumas soluções. As colectividades locais deveriam ser estimuladas a construir mesquitas ou a garantir empréstimos com esse objectivo, ou aceitar a cedência de terrenos ou buscar arrendamentos vantajosos… Mas o Islão não pode contar hoje senão com as suas próprias forças. E com o estrangeiro. Seria assim, a penhora ao estrangeiro, o preço a pagar pela ausência de toda a subvenção pública e pela escassez das ajudas indirectas (formação e ensino)? Torna-se urgente inovar sem, no entanto, maltratar a Lei de 1905 e o princípio da laicidade.

sujeição” que é uma noção complexa e delicada? Quanto à necessidade do carácter gravemente prejudicial do acto ou da abstenção censurado, não conduzirá ela a uma apreciação dificilmente objectiva? Além disso, certas regras ou práticas respeitadas durante lustros por congregações de prestígio, como o jejum, a pobreza, a castidade, a abstinência, não poderiam vir a ser consideradas como gravemente prejudiciais ao indivíduo? Os muçulmanos em França O problema do Islão francês é, na realidade, diferente. Mas não deixa de trazer problemas bem delicados. O Islão é numericamente, a segunda religião em França. Ora ele não ocupa na vida social, todo o espaço que lhe poderia caber. A presença destes numerosos muçulmanos é um fenómeno recente que explica que se nós temos uma jurisprudência abundante acerca do toque dos sinos, das atribuições dos presbíteros e das procissões, não temos praticamente nada sobre os minaretes e sobre o apelo do muezzin à oração. Assiste-se assim ao grande afastamento entre o Direito e a fé. A igualdade de Direito entre as religiões é, inegavelmente, total e pode ser considerada constitucionalmente como um princípio advindo da laicidade. Mas, efectivamente, a Lei de 1905 não conhece senão “as Igrejas” isto é, instituições cristãs, e é terrivelmente complexo e diabolicamente difícil fazer passar pelo molde de uma Igreja as comunida­des muçulmanas. A Lei de 1905 limita-se a gerir o existente, isto é, antes de tudo a devolução de todos os bens dos esta97


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dente é o único habilitado a fa­lar em nome de todos os bispos. Por seu turno, a Federação pro­ testante da França é uma associação desde 1901 en­ globando diferentes associações de culto da Lei de 1905. Quatro Igrejas principais fazem parte dela: a Igreja Reformada da França, a Igreja Reformada da Alsácia-Lorena, a Igreja da Confissão de Augsbourg da Alsácia-Lorena e a Igreja Lute­ rana. É preciso acrescentar-lhes a Igreja Reformada Evangélica Inde­ pendente, a Federação das Igrejas Baptistas e a Missão Evangélica. Mas certas confissões mantêm-se independentes: a Federação das Igrejas Evangélicas, os Darbistas e os Adventistas. Os cristãos ortodoxos estão, no seu caso, agrupados numa Confederação episcopal ortodoxa, mas cada igreja mantém a sua autonomia (o mesmo acontece com os arménios e os coptas). Mas todas as Igrejas de rito oriental juntaram-se para propor uma emissão religiosa em todas as cadeias públicas intitulada “Cristãos orientais”, o que é um factor impor­ tante de aglutinação e favorece a sua irradiação. O Consistório central israelita da França e da Argélia, por sua vez, designa o grande rabino de França, mas há diferentes tendências no seu seio (os ortodoxos e os liberais). Além do mais, existem outros movimentos judaicos que defendem, num plano laico, os interesses mate­ riais e morais da comunidade. A maior parte está agrupada no CRIE (Conselho Representativo das Organizações Judaicas de França) que, por vezes, tem relações confli-

É absolutamente necessário que o Estado tenha diante de si as estruturas muçulmanas representativas para negociar com elas. As transformações sucessivas da mesquita de Paris, sobre a qual a Argélia parecia há muito tempo apoiar, levaram Pierre Joxe, em 1990 a criar o CORIF (Conselho de reflexão sobre o Islão da França) constituído por personalidades de diferentes origens designadas “intuitu personae”. O objectivo era duplo: criar um órgão de concertação susceptível de aconselhar os p­ oderes públicos sobre os problemas concretos do exercício do culto muçulmano e favorecer a constituição de uma estrutura representativa do Islão em França. O CORIF fez progredir nume­ rosos problemas (criação de espaços confessionais nos cemitérios, habilitação legal dos sacerdotes, construção de mesquitas, fixação da da­ta das festas religiosas). Mas a ausência de uma verdadeira estrutura plenamente representativa do Islão, faz-se hoje sentir cada vez mais dolorosamente. Causa desconforto aos poderes públicos, nacionais e locais, que desejariam permitir aos muçulmanos ter, na sociedade francesa, um lugar legítimo, de ocuparem todo o espaço que a lei lhes faculta afim de favorecer uma integração que respeitasse as crenças e as identidades religiosas. Os representantes oficiais das Igrejas Todas as outras grandes religiões têm tais estruturas. A Igreja Católica de França tem um autêntico governo colegial: a Conferência dos bispos de França que se reúne cada ano e cujo presi98


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tuosas com o Consistório. E ainda há a Fundação do judaísmo francês que mantém marcadamente o culto da Shoa em ligação com o Congresso judeu mundial. Que representação oficial muçul‑ mana? Qual deveria ser, amanhã a organização do Islão em França? É evidente que uma estrutura hierárquica como a da Igreja Cató­lica, não corresponde, como se viu, à religião muçulmana que nunca criou uma Igreja e que não tem clero. E seria necessário evitar continuar à procura desta autoridade no estrangeiro visto que a Igreja Católica tem sido bastante criticada por ser muito ultra-montana e muito pouco gaulesa. Indubitavelmente conviria hoje meter mãos à obra de pôr de pé uma espécie de federação que englobasse, por exemplo, fosse por tendências ou por regiões, as dife­rentes associações de culto. Foi feita em 1999, lançada por Chevènement uma vasta consulta sobre o Islão que parecia ter conservado a ideia de uma instância representativa nacional eleita pelos responsáveis regionais, eles mesmos escolhidos pelos representantes das mesquitas. Mas não foi possível um acordo sobre a possível presença de “personalidades independentes”… Mas conseguiram-se progressos na reflexão. E podemos ter esperança numa solução no fim do túnel per­ corrido. Mas cada vez que os protagonistas se juntam, parece que se põem de acordo sobre um processo, complicado, de designação dos seus futuros delegados a uma instância central, o dia e as modalidades de consulta, protelam … ou adiam.

A importância dos símbolos Toda a religião marca a paisagem com símbolos e o ritmo das suas festas e a respectiva cronologia. Assim se enraíza na tradição e perpetua o seu destino. Deci­ dir, por isso um dia feriado ou determinar a data de uma celebração nunca é uma acção neutra. O calendário francês não é, porventura, um calendário cristão e até, como alguns afirmaram, “ocidental­ ‑gregoriano” que não é seguido pelos cristãos orientais e os Arménios? Se exceptuarmos as festas “nacionais” (1º de Janeiro, 1º de Maio, 8 de Maio, 14 de Julho, 11 de Novembro) os outros principais feriados são cristãos (Ascensão, Páscoa, Pentecostes, Natal) e mesmo católicas romanas (15 de Agosto). Mas as outras grandes religiões (Judaísmo, Islão, etc.) – e nós esquecemo-nos desses factos – também têm as suas próprias festas, que são numerosas. São oficialmente reconhecidas? Não são. Admitimo-las, é certo. Por vezes marca-se-lhes a data. De facto, fazem-se adaptações. A sexta-feira para os muçulmanos. O sábado para os judeus. Fazem-se arranjos também para os preceitos alimentares. Fazem-se arranjos também para o abate ritual… Mas essas adaptações e arranjos são uma solução digna? Porquê tais diferenças? Salta aos olhos que nem sequer chegamos a sair do velho trilho – tão cómodo – das religiões reconhecidas. Aquelas às quais de há muito estamos habituados. E como elas – sem que disso tenhamos tomado clara consciência 99


A liberdade religiosa

– estão hoje totalmente desacreditadas, rejeitadas, substituídas! Não teriam as espiritualidades sem Deus, sem nos apercebermos, tomado o lugar das grandes tradições monoteístas que deram origem às civilizações judaico-cristãs ou islâmicas? As grandes tradições religiosas, como aliás as ideologias, tendo-se mos­ trado dramaticamente incapacitadas do impedir as tragédias e os massacres da história, não é de admirar que a palavra “religião”, nessas condições, se tenha tornado suspeita… Teremos já chegada a uma era de transcendência sem Deus? Finalmente, nesta hora de moder­ nidade, temos nós ainda necessidade de uma referência divina, de dogmas intocáveis, de verdades impostas do alto? Centralizar tudo no indivíduo, a sua felicidade, a sua experiência, o seu carácter único? Prestemos atenção à solidão in­quieta do homem sem bússola, ao caminhante na noite sem estrelas! Necessitamos, acima de tudo, de reencontrar Deus.

*Esta intervenção não poude ser apresentada oralmente. No entanto, o seu autor, aceitou que publicássemos este texto. **Presidente honorário da Universidade Pantheon-Assas antigo membro do Conselho Constitucional de Paris.

1. NR. Depois da redacção deste texto, e na sequência do relatório da Comissão Stasi, no fim de 2003, a Assembleia Nacional francesa envolveu-se num debate sobre um projecto de lei sobre a laicidade e o uso de insígnias religiosas, nos estabelecimentos de ensino público em França.

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Jónatas E. M. Machado

Sumário do próximo número

Dossier Colóquio “Direitos do Homem e liberdade de religião: liberdade religiosa e insegurança” de 8 a 11 de Março de 2003. Hotel Rodina, Sofia, Bulgária

R. Torfs Segurança e liberdade religiosa: algumas questões jurídicas J. Graz A liberdade religiosa e a segurança no mundo M. Ventura Proteccionismo e livre mudança – A nova gestão jurídica da religião na Europa M.A. Tyner A protecção da liberdade religiosa no Tribunal . . . . Europeu dos Direitos do Homem J. Robert Será necessário prover um ensino religioso nas . . . escolas públicas?

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Declaração de princípios Acreditamos que o direito a liberdade religiosa foi dado por Deus e afirma‑ mos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover­namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária da cada individuo. Acreditamos no direito natural inalienável do indivíduo a liberdade de pen‑ samento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de man‑ ter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da descriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essen­ciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, a fim de que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resu‑ mido na regra áurea: Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei­‑o a eles.

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