ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel.: +41 (0)31 359 1527 E-mail: info@aidlr.org – Fax: +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Liviu Olteanu Comité de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia da Laicidade na EPHE, Paris, França Bert B. BEACH, antigo Secretário-Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos François BELLANGER, professor universitário, Suíça Alberto DE LA HERA, professor universitário, Diretor-Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor, Chile Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia, e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, diretor de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF, Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001
Consciência e Liberdade Nº 24 – Ano 2012
Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Sede da Redação: Rua da Serra, 1, Sabugo – 2715-398 Almargem do Bispo Tel.: 219 626 207, info@aidlr.org.pt Edição em Português: Direção: Artur Machado Edição: Paulo Sérgio Macedo Conselho de Redação: Artur Machado Maria Augusta Lopes Mário Brito Paulo Sérgio Macedo Ruben de Abreu Comissão Internacional de Redação: Liviu OLTEANU, Doutor em Direito e Teologia, Suíça Roberto BADENAS, Doutor em Filosofia, Espanha Jean-Paul BARQUON, Licenciado em Estudos dos Direitos Humanos, França Reinder BRUINSMA, Doutor em Teologia, Holanda John GRAZ, Doutor em História das Religiões, Estados Unidos da América Pierre HESS, Doutor em Filosofia, Suíça Paulo Sérgio MACEDO, Licenciado em Relações Internacionais, Portugal Harald MUELLER, Doutor em Direito, Alemanha Tiziano RIMOLDI, Doutor em Direito, Itália Maurice VERFAILLIE, Doutor em Ciências da Religião, Suíça Outras Edições: Gewissen und Freiheit
Schosshaldenstrasse 17, CH – 3006 Berne (Suíça) Hildesheimer str. 426, D – 30519 Hanover (Alemanha) Nussdorferstrasse 5, A – 1090 Viena (Áustria)
Conscienza e libertà
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Consciencia y libertad
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© Novembro 2012 – Consciência e Liberdade Distribuição gratuita Tiragem: 750 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 286548/08 ISSN: 0874 – 2405 Execução Gráfica: Publito – estúdio de artes gráficas, Lda. Braga
Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo Editor da Revista são submetidos à apreciação do Conselho de Redação.
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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro ato governamental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito à obediência respeitosa e voluntária de cada indivíduo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a ação contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.
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SUMÁRIO Número 24
Consciência e Liberdade
2012
Edição especial Os direitos das comunidades de fé e os direitos do crente
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 C. Evans
Religião e liberdade de expressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
R. W. Garnett Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade . . . . . . . . . . . . . . . 28 W. W. Bassett As organizações religiosas e o Estado: O Direito do regime eclesiástico e os tribunais civis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 J.D. van der Vyver O direito à autodeterminação das comunidades religiosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 J.Witte, Jr. Democracias ocidentais: e J.A.Nichols um direito familiar baseado na fé? . . . . . . . . . . . . . . 85
Outros artigos no nosso sítio na Internet Temos o prazer de informar os nossos leitores de que o sítio da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade religiosa, de que Consciência e Liberdade é o órgão oficial, está à vossa disposição em Português, em Francês, em Alemão e em Inglês. Convidamo-vos a visitar o nosso sítio: www.aidlr.org.pt e www.aidlr.org/fr/conscience-et-liberte
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A AIDLR ESTÁ DE LUTO
É com espanto e uma enorme tristeza que a redação da revista Consciência e Liberdade e os especialistas da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR, em Berna, Suíça) e da International Religious Liberty Association (IRLA, Silver Springs, Estados Unidos) tiveram conhecimento, na sexta-feira 19 de agosto de 2011, da morte acidental e trágica de Karel Nowak, secretário-geral da AIDLR, de sessenta e oito anos. Encontrava-se na Austrália para participar no 13º encontro de especialistas das duas associações, de 21 a 24 de agosto, na Faculdade de Direito da Universidade de Sidney. Karel Nowak tinha assumido as suas funções de secretário-geral da AIDLR e de diretor-redator da revista Conscience et Liberté em 2005. Era um homem de profundas convicções, de fé cristã, muito envolvido na causa da liberdade de consciência e de religião, que defendia como um princípio de base no respeito pela dignidade humana. Para os que o conheceram, representava o homem distinto cheio de cortesia cristã, caloroso e discreto, cujo sorriso demonstrava a sua calma interior e a sua capacidade de acolher o outro. O perfil do seu percurso de vida reflete bem quer a sua pessoa, quer o seu permanente envolvimento. Dispunha de numerosas qualidades que o qualificavam para o serviço da AIDLR e da sua causa: a administração, a edição, as relações humanas, o espírito de colaboração, a visão dos homens e das coisas, qualidades a que podemos juntar a sua faculdade de falar diversas línguas – Checo, Russo, Polaco, Inglês, Francês e tinha também uma boa compreensão de Alemão. Karel Nowak, vindo do meio da indústria da latoaria, nasceu a 10 de dezembro de 1950, em Velopoli, na Morávia, República Checa. O seu envolvimento religioso levou-o a estudar teologia em Praga, e depois, na 5
Faculdade Adventista de Teologia de Collonges-sous-Salève, em França. Obteve um mestrado em teologia da Universidade de Andrews, em Berrien Springs (Michigan) nos Estados Unidos, Para além do seu envolvimento pastoral, ocupou até 2004 diferentes altas responsabilidades no seio da sua Igreja na República Checa e na Eslováquia. Foi durante este período – no decurso de visitas e da organização de manifestações em favor da liberdade religiosa nesses dois países – que tive o privilégio, como secretário-geral da AIDLR, de conhecer, de apreciar e de colaborar com ele no lançamento e no desenvolvimento da secção checa da AIDLR. O período, muito curto, infelizmente, durante o qual exerceu o cargo de diretor da Associação, pode ser dividido em dois tempos: de 2005 a 2010, durante o qual, Karel Nowak não poupou energias para desempenhar bem o seu mandato de secretário-geral, se bem que tendo outras responsabilidades em simultâneo; depois, de 2010 até este trágico acidente no dia 19 de agosto de 2011, em que no desempenho das suas obrigações desenvolveu outros esforços na promoção da liberdade de consciência e de religião. Foi neste quadro – sendo a AIDLR uma ONG acreditada junto das Nações Unidas, do Conselho da Europa, em Estrasburgo e da União Europeia, em Bruxelas – que Karel Nowak se consagrou, como todos os seus antecessores, a estabelecer novas relações públicas e tomando parte nas suas assembleias e reuniões. Além disso, para além destes organismos, participou em diversos colóquios, conferências e encontros. Não é possível traçar este percurso sem sublinhar o importante contributo de Karel Nowak para o impacto da revista Conscience et Liberté no mundo. Com efeito, em simultâneo com outras edições, envolveu-se, corajosamente na tarefa de voltar a publicar esta revista em Inglês, publicação essa que tinha sido interrompida. Devido a meios financeiros limitados, tinha assumido a pesada tarefa de criar e de montar, ele mesmo, a nova maqueta. A AIDLR sente dolorosamente o desaparecimento de Karel Nowak, a perda de um servidor da causa da liberdade religiosa que será difícil de colmatar. Mas, acima de tudo, a equipa da AIDLR, a todos os níveis, nacionais e internacionais, tem um sentimento muito especial para com a sua esposa Dana e os seus três filhos. Mais do que para a Associação duramente afetada, é o desaparecimento tão inesperado como brutal de um esposo e de um pai que marcará para sempre as suas vidas. Pela direção e a redação da AIDLR Maurice Verfaillie, antigo secretário-geral
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Editorial A edição de 2012 da revista Consciência e Liberdade é um número excecional. Os artigos que a compõem foram preparados por eminentes universitários americanos. Eles representam apenas uma parte dos assuntos apresentados por ocasião de um colóquio organizado pelo Centro de Estudos Emory sobre o Direito e a Religião em Atlanta, nos Estados Unidos. A série completa foi publicada em Inglês na revista Fides et Libertas, em 2010. A enriquecedora colaboração que temos tido no passado com o Centro e a notável qualidade das suas exposições leva-nos a torná-la igualmente acessível aos nossos leitores. Já em 1966, a nossa revista tinha publicado um conjunto de textos preparados pelo Centro Emory e a sua alta qualidade foi muito apreciada – tratava-se, também, de textos de conferências. A maior parte dos artigos da presente edição abordam as questões da liberdade religiosa sob a perspetiva americana. Isso pode ajudar-nos a encarar estes assuntos sob um ângulo mais amplo e apreender melhor a realidade na sua “globalidade”. Os eminentes especialistas que aqui apresentam os seus trabalhos são particularmente qualificados para esta tarefa porque têm refletido longa e intensamente sobre os problemas com os quais somos confrontados. Eis o que disse John Witt Jr., diretor do Centro Emory: “No decurso dos dois últimos decénios, o Centro de Estudos do Direito e da Religião da Universidade Emory tem tido o privilégio de realizar uma quinzena de projetos de importantes estudos sobre o Direito, a Religião e os direitos do Homem, sob o ponto de vista internacional, interdisciplinar e inter-religioso. Estes projetos têm permitido explorar as diferentes formas como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e as outras religiões têm contribuído para o desenvolvimento – ou a limitação – dos direitos do Homem e das regras democráticas nas legislações internacionais e nacionais. Aprofundaram certas questões entre as mais complexas, sobre a perseguição religiosa e o sectarismo, o proselitismo e a discriminação religiosa, os direitos das mulheres e das crianças, os direitos no seio do casamento e da família, e ainda outros. Forneceram assim uma base comum e uma tribuna aberta para o diálogo e o debate aprofundado entre os antagonistas, representando as diversas confissões e crenças através do mundo. Procuraram também antecipar e fornecer as fontes necessárias para debates culturais sérios antes de serem reduzidos a fórmulas lapidares nos média ou em iniciativas legislativas. Por si só, estes projetos foram objeto de 4 grandes conferências internacionais, 50 mesas redondas, 60 novas publicações importantes e mobilizaram uma rede de cerca de 1200 investigadores no mundo inteiro. 7
Editorial
O postulado evidente destes estudos é que a democracia, os direitos do Homem e a liberdade religiosa são indispensáveis para o estabelecimento da ordem ao nível local e mundial. O postulado menos evidente é que a religião é uma dimensão essencial de todo o regime democrático real baseado na proteção dos direitos do Homem. Porque a democracia e os direitos do Homem são, por natureza, ideias abstratas – que são citadas, geralmente, como fundamentos de uma vida melhor e de uma sociedade de boa saúde, elas dependem da visão e dos valores das comunidades e das sociedades humanas, que lhe dão um conteúdo e coerência. Ora, a religião é uma disposição inextirpável inerente à pessoa humana e às comunidades. As religiões fornecem, invariavelmente, bases e escalas de valores essenciais pelos quais numerosas pessoas e comunidades se podem orientar e, ao mesmo tempo, se podem avaliar. Elas impregnam sempre a identidade cultural, étnica e nacional dos indivíduos e dos povos. Devem portanto, ser consideradas como aliados indispensáveis no combate atual pelos direitos do Homem e desenvolvimento da democracia. É necessário apoiar-se na fé que elas comunicam e as obras que realizam, sobre os símbolos e as estruturas culturais e étnicas que são suas, para dar sentido e medida às reivindicações abstratas das leis e das normas dos direitos democráticos e dos direitos do Homem. A liberdade religiosa de cada pessoa e de cada povo que quer a paz deve, portanto, ser zelosamente protegida. Os artigos apresentados neste número “especial colóquio” oferecem algumas abordagens de estudo recentes realizadas no quadro dos projetos do nosso Centro, em particular sobre as questões da liberdade religiosa na América e ao nível internacional. O primeiro dentre eles, assinado por Carolyn Evans, trata dos problemas que são colocados pelas relações entre a liberdade de consciência e a liberdade de expressão religiosa. Richard Garnett, William Bassett e Johan van der Vyver traçam depois um quadro da situação atual dos direitos coletivos protegidos pelo Establishment Clause e a Clause de libre exercice inscritos na primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, assim como nos instrumentos internacionais dos direitos do Homem que garantem o direito à autodeterminação religiosa e à autonomia das Igrejas. Quanto a Joel Nichols e eu próprio, desenvolvemos um assunto que se situa na fronteira da liberdade religiosa: o direito dos grupos religiosos regerem as questões do Direito da família dos seus fiéis quando estes escolhem, voluntariamente, não depender do Direito de família do Estado.”. Esperamos que estes artigos contribuam para difundir e fazer chegar ao grande público os princípios da verdadeira liberdade religiosa, uma liberdade que não procura caucionar ou garantir os privilégios ou os interesses de certos 8
Editorial
grupos – embora sejam maioritários – mas que defende a justiça e a equidade dos direitos para todos, mesmo para os mais pequenos e mais fracos. Os Editores
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RELIGIÃO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO Carolyn Evans* Se a liberdade de religião desaparecesse de um dia para o outro dos diversos tratados, constituições e projetos de lei estatutários em que atualmente se encontra, a maior parte do que hoje é protegido como religião, poderia igualmente sê-lo, como manifestação da liberdade de expressão. Enquanto que a religião comporta, seguramente, uma dimensão de recolhimento, uma dimensão interior, a maior parte das confissões utilizam diversos modos de comunicação: os crentes podem orar e cantar juntos, ler os seus livros sagrados, ensinar os seus filhos, escrever textos religiosos sobre vários assuntos, pregar, testemunhar e praticar proselitismo – tanto exemplos de liberdade de expressão como do livre exercício da religião. Além disso, as religiões utilizam diferentes formas de expressões simbólicas: nas roupas, no uso de símbolos, nos ritos religiosos e no uso de objetos ou de penteados particulares. Tudo isso deriva igualmente da noção de liberdade de expressão em numerosas jurisdições. Enquanto nas democracias certas formas de expressão religiosa permaneceram para além do domínio de intervenção legítima do Estado, outras têm-se revelado muito mais controversas. Este artigo explora diversas áreas particularmente sujeitas à controvérsia porque as liber-
dades de expressão e de religião lhe estão ligadas: em particular, o uso de roupas ou de símbolos religiosos, discursos de ódio e difamação religiosa, a oração ou a educação religiosa nas escolas públicas, e os símbolos religiosos em instituições públicas.
O uso de roupas e símbolos religiosos Muitos crentes sentem-se, por razões religiosas, quer obrigados, quer muito desejosos de usar roupas e símbolos que testemunhem da sua adesão a uma religião particular. Entre as práticas que os membros de certas confissões por vezes adotam, está o uso do turbante ou do kirpan (o punhal religioso) entre os Sikhs (homens), os dreadlocks pelos rastafáris, o kipah pelos homens judeus e uma cobertura para a cabeça pelas mulheres muçulmanas ou judias, ou ainda a cruz para os cristãos.1 No seio da mesma religião os indivíduos podem também ter diferentes conceções do que a sua religião requer nesse aspeto. Por exemplo, o caso inglês de SB c. Denbigh Hige,2 envolvendo uma aluna que queria usar o jilbab (o véu islâmico) mais estrito do que o shalwar kameeze, o uniforme escolar das jovens muçulmanas, concebido em resultado de uma consulta com a comunida10
Religião e liberdade de expressão
de escolar muçulmana. Este processo mostrou as diferenças de opinião entre os muçulmanos no seio da escola, como nas comunidades locais e nacional, sobre qual era a forma religiosa apropriada, ou requerida, para uma adolescente muçulmana. Para além de trajes aprovados pela generalidade dos crentes, alguns devem, em função do seu cargo, usar trajes de cerimónia, vestes sacerdotais ou símbolos que assinalam a sua função de uma forma que os diferencia dos membros da mesma comunidade. O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas reconheceu que o facto de exibir símbolos religiosos ou de “usar vestuário distintivo ou cobertura da cabeça distintivos” é uma forma de manifestar a sua religião e, portanto, beneficia da proteção do Direito Internacional.3 É essencialmente aos indivíduos que incumbe decidir se usam ou não traje religioso ou de simbolismo. Naturalmente, as diversas organizações e os seus dirigentes terão visões particulares sobre estas questões e podem tentar convencer os adeptos dos seus méritos (e talvez até recusar àqueles que não os aceitam, a permissão de pertencer à sua comunidade). Mas o Estado não tem como função implantar uma forma de ortodoxia religiosa como lei estadual. Em países, como o Irão ou a Arábia Saudita, as mulheres são forçadas a cobrir-se independentemente de acreditarem ou não que isso é imposto pela sua religião e, de facto, independentemente da sua religião. Um exemplo: de acordo com o relatório do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Liberdade de Religião e Crença,
o chefe da Polícia do Irão declarou que, em 2006, mais de um milhão de mulheres foram detidas por causa da forma como elas usam o hijab (véu islâmico) e dez mil condenadas por violarem o código de vestimenta.4 Uma tal coerção limita a liberdade religiosa e de expressão dos indivíduos, consistindo numa grave ingerência do Estado nos direitos à liberdade e à igualdade dos sexos. A situação inversa começa a surgir em vários países, particularmente na Europa, onde as mulheres muçulmanas que queiram usar o lenço na cabeça veem cada vez mais negado o direito de o fazer.5 O espaço para as mulheres poderem usar o véu parece estar a diminuir em alguns países europeus, e também houve movimentos contra o uso do véu nas escolas em países como Singapura.6 Num dos primeiros casos em que teve de se pronunciar sobre este problema, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que era normal exigir que uma professora de escola primária retire o seu lenço, em parte por causa da vulnerabilidade dos seus alunos ao proselitismo.7 No entanto, no espaço de menos de dez anos, o Tribunal também aprovou uma lei turca, que impedia uma estudante de medicina muçulmana de estudar na universidade com a cabeça coberta e uma lei francesa que se opunha a que uma aluna do ensino secundário usasse o lenço numa escola pública, apesar de não ter havido, neste caso, problema de vulnerabilidade dos alunos.8 Esses casos foram marcantes pelo facto de que a vontade de proibir o uso do véu estar ligada às mensagens – de 11
Carolyn Evans Uma mulher de burka com uma criança, na estrada do norte do Afeganistão Foto: Steve Evans / Wikipédia
proselitismo, de fundamentalismo e sobre a igualdade dos sexos – que era suscetível de fazer passar e porque o Tribunal parece estar pouco preocupado (mesmo se se admite a hipótese – grave – de que tais ligações controversas eram justificadas) de saber se uma tal interdição estava suficientemente fundada. Pelo contrário, os argumentos basearam-se apenas na dimensão religiosa que reveste o facto de usar a cabeça coberta. Em países como a França, a Bélgica e a Itália assiste-se, desde há pouco, a uma evolução no sentido de restrições ainda mais circunstanciadas que poderiam ter como efeito excluir de muitos espaços públicos toda a mulher usando um véu sobre o rosto. Os políticos que promovem
tais leis, em alguns destes Estados, também têm caído no erro de assumir que podem decidir o que é exigido por uma religião. Por exemplo, Mara Carfagna, Ministra italiana da Igualdade de Oportunidades, indicou que a interdição do uso da burka não era uma restrição imposta à liberdade de religião, porque não é um símbolo religioso. Para validar esta proposta, ela referiu-se às afirmações de clérigos muçulmanos: “Não somos nós que o dizemos, mas as principais autoridades religiosas do mundo islâmico, como os imãs de Cairo e Paris.”9 Mas ao dizer isso, passa ao lado do assunto. Há, sem dúvida uma escola de pensamento que afirma que o véu não é exigido pelo Islão, mas há outros que pretendem o contrário. 12
Religião e liberdade de expressão
Este é um importante debate no seio do Islão, mas não cabe ao governo italiano determinar o resultado desse debate religioso e impor isso aos muçulmanos italianos, mais do que o governo iraniano impor o ponto de vista religioso oposto. Contudo, uma série de outras razões têm sido invocadas para justificar as restrições ao uso de roupas e símbolos religiosos. Mesmo se não é possível estudá-los em detalhe aqui, podemos salientar os mais significativos.10 Uma coisa é a segurança pública. Por vezes, tais limitações são específicas e inteiramente justificadas. Por exemplo, um sikh que foi condenado por um crime violento foi proibido de usar o kirpan pelo tribunal, exatamente pelo risco de o poder usar de forma a pôr em perigo outras pessoas; esta decisão foi confirmada no recurso. Por outro lado, os tribunais canadianos julgaram que um estabelecimento de ensino tinha violado os direitos de um jovem estudante sikh que foi proibido de usar o seu kirpan na escola, por causa da proibição geral do uso de navalhas (a despeito do aluno estar pronto a tomar as precauções necessárias para limitar os perigos eventuais postos pelo kirpan).11 Este caso demonstra a viabilidade de uma abordagem diferenciada para o uso de símbolos religiosos e das questões de segurança, em vez de se deter em generalidades, declarando que restrições são possíveis – ou que nenhuma o é. Noutros casos, são formuladas alegações mais gerais sobre o perigo que pode representar para a segurança nacional o uso de trajes religiosos, particularmente os véus islâmicos
que dissimulam o rosto. Tais véus são muitas vezes apresentados como estando ligados ao fundamentalismo ou de favorecer (sem precisar de que forma) os atentados à segurança nacional. O Conselho de Estado francês advertiu recentemente que as propostas francesas visando interditar essas roupas, geralmente com base na segurança nacional, não eram adaptadas ou não correspondiam a uma ameaça comprovada contra a segurança pública e arriscavam-se a violar a liberdade religiosa tal como protegida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem.12 Outra razão apresentada vulgarmente para interditar o lenço islâmico é que o seu uso é incompatível com os direitos das mulheres. Esta questão é em si mesmo um tema de debate no interior da comunidade muçulmana, assim como de debates com alguns grupos de mulheres muçulmanas favoráveis, porque defendem os direitos das mulheres à interdição de algumas ou de todas as formas do véu, mas também com outros que se opõem. Num dos casos mais importantes instruídos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o direito de uma estudante usar o lenço islâmico na universidade, a maioria concluiu que: uma das razões que justificam a lei proibindo o uso do véu em certas instituições públicas turcas era a importância da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Mas, o Tribunal não apresentou, verdadeiramente, elementos para explicar se, e como, este uso perpetua a desigualdade entre os sexos. Na sua opinião dissidente, o juiz Tulkens declarou: 13
Carolyn Evans
“(O) uso do véu é considerado como a marca da alienação da mulher. Desde logo, a sua interdição aparece como uma forma de promover a igualdade entre homens. Mas qual é, de facto, a ligação entre o uso do véu e a igualdade dos sexos? O acórdão não o diz. Por outro lado, qual é o sentido do uso do lenço? Como o Tribunal Constitucional alemão observou no seu acórdão de 24 de setembro de 2003, o uso do véu não tem um significado único; esta prática responde a motivações várias. Não simboliza, necessariamente, a submissão da mulher ao homem e há aqueles que afirmam que, em certos casos, pode até ser um meio de emancipação das mulheres. O que está a faltar neste debate é a opinião das mulheres, tanto as que usam o véu como as que escolhem não o usar.”13
giosos de vestuário.14 A relação entre liberdade religiosa e direitos entre homens e mulheres é uma noção complexa e contestada. Basta saber que a promoção da igualdade em direitos dos homens e das mulheres é um motivo admissível para limitar a liberdade religiosa com base no Direito Internacional. Mas é preciso cuidado para assegurar que existe uma ligação racional entre a promoção dos direitos das mulheres e as medidas de proteção selecionadas e que estas medidas são proporcionais aos prejuízos sofridos. As mulheres das minorias religiosas, em particular, mais do que as mulheres das comunidades religiosas maioritárias, podem sofrer do paternalismo do Estado e da ignorância ou dos estereótipos que conduzem a uma maior intervenção legal na sua vida e uma maior regulamentação da sua expressão religiosa.
Discurso do ódio religioso e difamação das religiões Um outro aspeto da interceção entre a religião e a liberdade de expressão tem sido o debate sobre se (e, em caso afirmativo, como) o Estado deve lidar com formas de expressão que expõem as religiões, ou os crentes como indivíduos, ao ódio, ao desprezo, ao ridículo ou aos estereótipos negativos. O artigo 20(2) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) dispõe que “todo o apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constitui incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência é proibido por lei”.15 Os Estados signatários são, portanto, obrigados a aplicar leis que “proíbem aquilo que por vezes
Em alguns casos, pode estar presente uma outra preocupação análoga à precedente: o receio de que o vestuário religioso não esteja a ser usado voluntariamente mas sob pressão – possivelmente até mesmo sob ameaças de violência – por membros da família ou da Comunidade. Isto é particularmente pertinente em casos envolvendo alunas e está provado que há em certas escolas algumas jovens muçulmanas muito favoráveis ou às restrições ou à interdição das roupas religiosas, porque sem elas arriscam-se a ser objeto de pressão ou de críticas por não cumprirem mais estritamente os códigos reli14
Religião e liberdade de expressão
é conhecido como “discurso de ódio religioso” ou “difamação das religiões”. Mas tais leis têm uma relação complexa quer com a liberdade de religião, quer com a liberdade de expressão. Por outro lado, o apelo ao ódio contra as religiões minoritárias pode desempenhar um papel determinante na criação de condições de discriminação, hostilidade, ou até mesmo genocídio. Estes riscos são particularmente sérios em comunidades profundamente divididas, onde reina a tensão entre grupos religiosos, ou onde, no passado, houve perseguição religiosa. Quando uma comunidade religiosa minoritária se sente ameaçada ou atacada, os indivíduos não podem praticar a sua religião livremente e sem medo. Por causa das ameaças, da intimidação e do discurso de ódio religioso, os membros dos grupos minoritários encontrarão dificuldade em exprimir-se abertamente sobre as questões que lhe são essenciais e reprimem-se de utilizar o seu direito à palavra para conter o discurso de ódio, com medo de atraírem sobre si os insultos ou mesmo a violência. Por outro lado, quando as leis que condenam o ódio religioso são demasiado amplas, isso torna-se, também, por vezes, problemático tanto do ponto de vista da liberdade religiosa como da liberdade de expressão.16 O discurso religioso pode muito bem constituir-se como uma forma muito perigosa de ódio religioso – não podemos ignorar que os líderes religiosos fazem parte daqueles que têm atiçado a animosidade contra os outros grupos religiosos, que têm
pregado a violência e justificado a discriminação. Mas há também formas de discurso religioso suscetíveis de cair sob a alçada da lei porque, eles mesmos, ameaçam a liberdade de religião. Nalgumas tradições religiosas, por exemplo, a denúncia dos erros de outras religiões e a proclamação de que a sua própria religião detém a única verdade é uma forma essencial de exprimir as suas convicções religiosas. Contudo – particularmente se as leis sobre o ódio religioso são redigidas em termos vagos – um tal discurso poderia ser interpretado como ódio religioso. Assim, na Austrália, num caso controverso, dois pastores cristãos de uma pequena Igreja Cristã Evangélica foram objeto de uma queixa em virtude do Racial and Religious Tolerance Act (Vic) [RRTA, Lei Sobre a Tolerância Racial e Religiosa no Estado de Vitória] de 2001, por várias alegações feitas em publicações durante um seminário sobre o Islão. Estas declarações eram numerosas e de caráter geral. Mas algumas entre elas insinuavam que no Islão “a mulher não tem muito valor”, que aqueles a quem chamamos “terroristas” são “de facto verdadeiros muçulmanos (sic) porque leram o Corão e hoje não o praticam”. Davam a entender que o dinheiro proveniente do comércio da droga servia para patrocinar o proselitismo muçulmano, e que a população muçulmana na Austrália tinha duplicado em sete anos porque os muçulmanos controlam o Ministério da Imigração.17 Numa primeira instância, foi decido que o efeito cumulativo destas declarações equivalia à difamação da religião. Mas foi interposto recurso desta decisão perante 15
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o Supremo Tribunal de Justiça de Vitória que a anulou (mas sem especificar se o discurso em questão era ou não infamante).18 A decisão em primeira instância comportava, com efeito, um aspeto particularmente problemático na medida em que o Tribunal se tinha referido aos elementos controversos da lei islâmica: a questão de saber se o Islão era “realmente” uma religião de paz ou se “realmente” incentivava a discriminação contra as mulheres. Mesmo se algumas das alegações feitas pelos pastores (como a duplicação da população e controlo sobre o Departamento de Imigração) eram incendiárias e desmentidas pelos factos, outras, apesar do seu caráter exagerado, constituíam ainda uma questão para debate e discussão e não competia ao Tribunal decidir quanto à sua “verdade”. Este caso salienta os problemas que podem surgir com essa legislação quando os juízes são chamados, por vezes, a decidir sobre o que é um debate aceitável, vigoroso (talvez mesmo com propósitos chocantes e que ferem) sobre questões sujeitas a controvérsia, e os que ultrapassam certos limites e geram um ódio tal que pode levar à violência ou outras formas de males.19 As leis sobre o ódio religioso arriscam-se a impedir o público de participar, com medo de cair na ilegalidade, em debates apaixonados, mas importantes para ele, em particular os debates que não estariam protegidos pela legislação – é aquilo a que se chama por vezes, o “efeito dissuasor” das leis que restringem a liberdade de expressão; as pessoas podem autocensurar-se porque temem a possibilidade de um eventual processo. Quando interlocutores (quer os favoráveis a uma religião
particular quer aqueles que são profundamente críticos da religião em geral ou de uma religião específica) receiam dizer o que pensam com medo das consequências, um debate público essencial sobre um fenómeno social é sufocado. A elaboração da “difamação da religião” foi uma abordagem ainda mais problemática da proteção das religiões contra os discursos ofensivos. Este conceito, que parece apoiar-se sobre as noções de direitos humanos, tais como a proibição do discurso do ódio, do racismo e da xenofobia, foi apresentado, em nome da Organização da Conferência Islâmica desde logo pelo Paquistão em abril de 1999, perante a Comissão dos Direitos do Homem na sua 62ª reunião,20 depois pelo Azerbaijão em dezembro de 2006, perante a Assembleia-Geral, na sua 81ª reunião.21 Desde então, a Comissão dos Direitos do Homem e o Conselho de Direitos Humanos que lhe sucedeu adotaram, várias vezes, resoluções não vinculativas condenando a difamação das religiões. Mas esta noção permaneceu fonte de controvérsias, e isso desde a sua criação: por exemplo, a resolução de 25 de março de 2010 foi aprovada por apenas 20 votos a favor, 17 contra e 8 abstenções.22 A difamação das religiões é, com efeito, um conceito nubloso, e as resoluções relativas a este assunto abrangem um número de interrogações sobre as quais há um grande consenso internacional e que se apoiam fortemente na legislação internacional dos direitos humanos. Isto refere-se, entre outras, à luta contra a discriminação, a intimidação ou a violência para com pessoas por causa da sua religião, mas também a preservação 16
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“Hamandir Sahib” (também conhecido informalmente por Templo de Ouro) é, para os sikhs, o mais sagrado dos edifícios. Está situado na cidade de Amritsar, na Índia.
Foto: Oleg Yunakov / Creative Commons
de locais religiosos contra os ataques. Enquanto as resoluções se concentram sobre a proteção dos indivíduos ou grupos contra a violação dos seus direitos fundamentais, inscrevem-se na tendência geral dos direitos humanos. Mas onde eles se tornam mais controversos é quando elas recomendam que se tomem medidas jurídicas para proteger a reputação da própria religião. Por exemplo, a primeira resolução que a Comissão de Direitos Humanos votou exprimindo a sua preocupação sobre que os média incitavam “à intolerância […] e à discriminação para com o Islão ou qualquer outra religião”. Por outro lado, deplorava profunda-
mente “o facto de as religiões serem estereotipadas de forma negativa” e que “o Islão seja frequente e erradamente associado às violações dos direitos humanos e ao terrorismo”.23 Mesmo se esses estereótipos podem certamente levar à hostilidade contra seguidores de uma religião, existe o perigo de, protegendo a religião como tal, a colocar ao abrigo da crítica legítima, do questionamento, do debate ou das dissensões internas. Numa declaração conjunta, os três Relatores Especiais das Nações Unidas com responsabilidades nos domínios da liberdade de religião, da liberdade de expressão e do racismo sublinharam a sua preocupação: 17
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“As dificuldades em fornecer uma definição objetiva da expressão “difamação das religiões”, à escala internacional, fazem com que o próprio conceito possa dar lugar a desvios. Ao nível de cada país, leis nacionais sobre a blasfémia podem revelar-se contraproducentes, pois isso pode resultar, de facto, na censura da crítica inter-religiosa e intra-religiosa. Muitas dessas leis fornecem diferentes níveis de proteção para as diferentes religiões e acontece que, muitas vezes, são usadas de forma discriminatória.”24
do Conselho dos Direitos Humanos coloca, ela própria e várias vezes, a ênfase na necessidade de proteger os muçulmanos, mas não faz nenhuma menção de outras formas de perseguição comum, em particular as de que são vítimas as minorias religiosas em Estados muçulmanos.27 As legislações sobre o ódio religioso são previstas para proteger (mesmo que nem sempre consigam) as minorias religiosas vulneráveis contra as consequências da calúnia ao nível dos indivíduos. Se as leis sobre o ódio vão para além disso, até ao conceito de difamação de religiões, corre-se o risco de serem usadas para consolidar o poder e a autoridade de maioria religiosa e da sua hierarquia política e religiosa. Adotando as instituições internacionais dos direitos humanos e colocando uma parte da formulação das resoluções sobre a difamação em harmonia com a linguagem de direitos humanos, os Estados que têm apoiado o desenvolvimento do conceito de difamação das religiões têm procurado legitimar medidas que, caso contrário, constituiriam atentados às liberdades de religião e de expressão. O perigo que representa o argumento segundo o qual a ortodoxia religiosa requer a proteção do Estado está longe de ser hipotético. Em relatórios recentes, o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de religião ou crença mencionou o recurso frequente a leis nacionais para impor pontos de vista religiosos particulares e para punir aqueles que parecem desviar-se deles. Relatórios recentes descreveram a repressão das comunidades ahmadies em países
A noção de difamação das religiões tem sido alvo de numerosas críticas por parte dos políticos e dos especialistas. Preocupam-se, particularmente, de que dê a impressão de justificar as leis sobre a blasfémia e a apostasia. De facto, ela tem servido para legitimar as sanções infligidas pelos Estados muçulmanos para os delitos abertamente religiosos como a blasfémia, a heresia e a apostasia e para protestar contra a islamafobia (mas não contra outras formas de ódio religioso) nos países não-muçulmanos.25 Contudo, o primeiro projeto de resolução sobre a difamação das religiões, apresentado pelo Paquistão, condenava apenas “as novas manifestações de intolerância e de incompreensão, para não dizer de ódio, ao Islão e aos muçulmanos”; e a sua reformulação nos termos mais neutros para com a religião deu lugar a debates e encontrou resistência.26 A mais recente resolução 18
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como o Paquistão e a Indonésia, porque o seu ensino do Islão se afasta da regra. Eles mencionam o uso generalizado da legislação sobre a blasfémia, no Paquistão, contra as minorias religiosas e os muçulmanos que questionam a ortodoxia admitida; a introdução no Irão da pena de morte por apostasia; a proibição de ensino religioso privado no Cazaquistão; e a pressão exercida na Birmânia contra os cristãos para que eles destruam as suas próprias igrejas e os seus símbolos religiosos.28 Para justificar e legitimar tais ações repressivas, invoca-se, cada vez mais, nesses países, a difamação ou dano moral que sofrem as maiorias religiosas.
de outras formas de expressão religiosa, tais como a leitura da Bíblia ou a meditação. Além disso, os pais – ou, por vezes, as próprias crianças – podem desejar que a escola ensine valores da religião ou uma doutrina religiosa ou que exclua do currículo os assuntos que sentem comprometer os ensinamentos da sua religião (por exemplo, educação sexual ou evolução). Por outro lado, pode haver pais ou alunos hostis a essas formas de expressão religiosa ou que se sentem oprimidos por eles ou ainda pressionados a participar neles. O Direito Internacional fornece algumas orientações para tratar esta questão. O artigo 18 (4) do PIDCP declara: “Os Estados signatários do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando aplicável, dos tutores legais, para garantir a educação moral e religiosa dos seus filhos de acordo com suas próprias convicções”. Esta disposição dá claramente aos pais o direito fundamental de decidir sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos; com efeito, foi elaborada para reagir às práticas odiosas dos regimes totalitários que utilizaram o sistema educativo para fazer com que as crianças rejeitem e combatam os valores dos seus pais. No entanto, a forma exata como essa proteção se desenrola na prática, particularmente nas escolas públicas, onde as crianças de todas as religiões e crenças devem coexistir, está longe de ser simples. Os tribunais, em diferentes jurisdições, adotaram diversas abordagens para resolver estas tensões. Regra geral, admite-se que há violação dos direitos humanos quan-
Oração e ensino religioso na escola A liberdade de religião e a liberdade de expressão tomam, ambas, um caráter diferente quando se situam no contexto de uma instituição pública. É o caso, nomeadamente, de instituições como escolas, prisões, ou forças armadas, onde não se deixa muitas vezes aos indivíduos muita liberdade de se subtraírem a formas de discurso religioso ou outras expressões que eles consideram ofensivos. Verifica-se que as escolas são um campo de batalha particularmente litigioso para as questões que tocam as liberdades de expressão e de religião. Os professores e os estudantes crentes que passam uma grande parte do seu tempo nas escolas podem querer expressar a sua religião de várias maneiras durante o horário escolar. Isso pode incluir usar roupas ou símbolos religiosos (como discutido atrás), seja orando, ou participando 19
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do se força os alunos a participar em práticas abertamente religiosas ou quando se lhes impõe assistir a um ensino religioso obrigatório confessional ou outras formas de expressão religiosa.29 Alguns países que têm uma muito rigorosa separação entre Igreja e Estado, como os Estados Unidos, colocam limites mais rigorosos à colaboração que as escolas podem ter com a religião, mesmo que essa cooperação não seja obrigatória.30 Por exemplo, no caso McCollum, o Supremo Tribunal entendeu que o sistema de “opt’in” [permissão prévia], que permite aos pais matricularem os seus filhos em cursos de instrução religiosa dispensados pela escola, pelos representantes de diferentes religiões, constitui uma violação do Establishment Clause da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Este ensino, com efeito, era ministrado numa propriedade financiada por fundos públicos e necessitava da “estreita cooperação” das autoridades religiosas e escolares.31 O facto de que as crianças que não quiserem assistir a essas aulas pudessem assistir a outras aulas de estudos seculares durante esse tempo foi irrelevante para a questão constitucional.32 Da mesma forma, as escolas foram proibidas de encorajar a religião através do uso da oração, mesmo se a participação era voluntária. O Supremo Tribunal de Justiça disse que: “O apoio dado pela escola para veicular uma mensagem religiosa é inadmissível porque é uma forma implícita de dizer aos que não aderem ‘que são estranhos à comunidade política e que não são membros por inteiro’ e aos que aderem ‘que eles
fazem parte da comunidade política, e que, por isso, são membros previlegiados’.”33 Os Tribunais, nalgumas outras jurisdições, e o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas não têm sido tão prescritivos, sem dúvida, especialmente porque colocaram a sua ênfase na liberdade religiosa sem o fator complicativo de uma cláusula de não estabelecimento. Eles têm-se demonstrado prontos para admitir o ensino religioso em que quer os pais quer os alunos possam verdadeiramente escolher não assistir – e isso sem condições exorbitantes e injustificadas. Por outro lado, o assunto que é ensinado (incluindo a informação sobre a religião) não deve ser excluído simplesmente porque alguns pais ou alunos se oponham, por motivos religiosos ou filosóficos, à sua inclusão no programa. Na sequência de um requerimento contra o ensino de religião nas escolas públicas da Noruega, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sumarizou a sua jurisprudência das décadas precedentes.34 O Tribunal constatou que a instrução religiosa é uma matéria como qualquer outra e que a religião ou as crenças dos pais devem ser respeitadas pelo Estado “no conjunto do programa de ensino público […] Esta obrigação tem uma larga aplicação porque vale não só pelo conteúdo da instrução e a forma de o ministrar, mas também no exercício de todas as ‘funções’ assumidas pelo Estado”.35 Os interesses das minorias não podem, simplesmente, ser subordinados aos da maioria: “deve ser encontrado um equilíbrio que assegure um tratamento justo e equi20
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librado e que evite qualquer abuso de posição dominante.”36 Mas os pais não têm o direito “de deixar os seus filhos na ignorância em matéria de religião, ou filosofia”, na educação que recebem.37 O Tribunal Europeu também tem estado mais aberto à noção de que o facto de permitir aos alunos deixarem de assistir às aulas de religião é suficiente para proteger os seus direitos, mas parece dar muita atenção às pressões sociais que isso pode causar nas crianças.38
Contudo outros acham que não tem nenhuma importância a distância que deve separar, normalmente, a Igreja e o Estado, e afirmam que a presença de símbolos religiosos torna as instituições públicas locais hostis e alienantes para aqueles que pertencem a minorias religiosas e os que não são religiosos. O vestuário religioso também pode causar problemas quando usado por indivíduos no seu trabalho do setor público, que pode questionar-se se é proselitismo impróprio ou se significa que o Estado aprova a religião dos que o usam ou que aderem a ela. Este é em geral o caso com os funcionários cujas funções os põem em contacto com o público e muito particularmente para os que têm uma posição de autoridade (como um professor ou um juiz).45 Mesmo se as vestes religiosas são usadas por particulares, logo que seja usada por funcionários do setor público, pode levantar dúvidas para saber se uma tal forma de vestir não é em si uma forma censurável de impor o simbolismo religioso nos espaços públicos. A paixão com que estas questões são debatidas pode ser vista nas reações do público ao acórdão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Lautsi c. Itália, “do crucifixo italiano”.46 O caso foi-lhe submetido pela mãe de duas crianças alunas de uma escola pública que tinha crucifixos nas paredes: isso, dizia ela, atentava contra a sua liberdade de religião e o seu direito de educar os filhos de acordo com as suas crenças e valores. A requerente contestava igualmente uma diretiva do Ministério da Educação que
Símbolos religiosos em espaços públicos Uma tensão semelhante ao que se verifica nas escolas é causada pela questão de símbolos religiosos em espaços públicos ou instituições. Entre os casos que levantaram esta questão salienta-se, especialmente, os que se referem, na Itália, à presença do crucifixo nas salas de aula,39 e, nos Estados Unidos, das decorações estatutárias dos Dez Mandamentos nas paredes de um tribunal40 e nos terrenos do Capitólio de um dos Estados,41 a recusa de erguer monumentos pelas religiões concorrentes,42 a exposição de presépios por um conselho municipal,43 e a construção de souccahs para celebrar a festa do outono judaico de Suoccot.44 Particularmente nos países em que há uma predominância fortemente histórica de um grupo religioso particular, alguns pensam talvez que os símbolos desse grupo não são simplesmente religiosos, mas que fazem parte da cultura geral, e que têm direito de ser exibidos como um reconhecimento do importante papel da dita religião dentro dessa cultura. 21
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recomendava a presença do crucifixo nas salas de aula. A requerente argumentava que “a exposição de crucifixos tem como consequência uma pressão indiscutível sobre os menores e dava a impressão de que o Estado se distanciava daqueles que não partilham as convicções cristãs. O conceito de laicidade requer que o Estado seja neutro e que faça prova de uma distância igual para com todas as religiões, não devendo ser visto como estando mais perto de alguns cidadãos do que dos outros”. Pelo contrário, o governo argumentava que a colocação da cruz não era um “sinal de uma preferência por uma religião, uma vez que era uma recordação de uma tradição cultural e de valores humanistas partilhados por outras pessoas não cristãs”. O Estado reconheceu que tinha o dever de neutralidade e imparcialidade, mas sublinhou que esse dever não foi violado neste caso. Mesmo admitindo que o crucifixo tinha “vários significados”, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que o seu “significado predominante era religioso”. Conclui, portanto, que a sua presença tinha violado o direito dos pais de educarem o seu filho segundo as suas convicções (artigo 2 do protocolo nº1) conjuntamente com o direito à liberdade de religião ou convicção (artigo 9 da Convenção).47 O Tribunal fundamentou assim a sua decisão:
num ambiente escolar marcado por uma religião particular. O que pode ser encorajador para alguns alunos religiosos pode ser emocionalmente perturbador para alunos de outras religiões ou para os que não professam nenhuma religião. Este risco está particularmente presente entre alunos pertencentes a religiões minoritárias. A liberdade de religião negativa não é restrita à ausência de serviços religiosos ou educação religiosa. Estende-se a práticas e símbolos que exprimem, em particular, ou em geral, uma crença, uma religião ou o ateísmo. Esse direito negativo merece proteção especial se é o Estado que exprime uma crença e se aqueles que não a perfilham são colocados numa situação da qual não podem eximir-se a não ser fazendo esforços e sacrifícios desproporcionados.”48 A decisão do Tribunal de Justiça (que foi sujeita a recurso) foi acolhida com uma veemente reprovação pelos políticos italianos, o Vaticano e grande parte da opinião pública italiana. Pode fazer-se uma ideia dos discursos que se multiplicaram em torno do lugar de símbolos religiosos na vida pública e da maneira como as questões são, por vezes, percebidas como tendo implicações culturais e lendo a reflexão da Ministra italiana da Educação, Maria Stella Gelmini, que teria declarado: “Ninguém, nem mesmo algum Tribunal Europeu ide-
“A presença de um crucifixo pode facilmente ser interpretado pelos alunos de todas as idades como um sinal religioso, e sentir-se-ão educados 22
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ologicamente motivado, conseguirá apagar a nossa identidade.” Um outro Ministro do governo acrescentou: “O Tribunal Europeu pisou os nossos direitos, a nossa cultura, a nossa história, as nossas tradições e os nossos valores.”49 Tais declarações refletem o alto padrão cultural que se ligam a símbolos religiosos em alguns contextos, mas essas paixões arriscam-se a comprometer um regulamento negociado sobre tais questões.
sivas e alienantes, porque associam o Estado a um ponto de vista religioso específico em detrimento de outras formas de religião ou crença. Quanto ao uso de roupas religiosas, ele tem um valor religioso e representativo considerável, mas pode levantar questões complexas sobre os direitos das mulheres ou a segurança nacional. Não há nenhuma forma simples, ou uma fórmula, para resolver essas tensões. A liberdade de religião ou de crença e a liberdade de expressão não beneficiam, nem uma nem outra, de uma proteção absoluta no Direito Internacional ou na maior parte das legislações nacionais, que reconheçam que estes direitos, por vezes, devem dar lugar a outras considerações importantes. Quando se trata de encontrar soluções concretas para problemas particulares em certos países, os fatores culturais e políticos podem ser tão importantes como as considerações de ordem legal e as preocupações com os direitos humanos. É provável que as questões discutidas neste artigo ainda se acentuem mais nos próximos anos. Certas formas de religiosidade tornaram-se intolerantes para com formas de expressão que não observam estritamente os pontos de vista religiosos ortodoxos; e, ao mesmo tempo, está a crescer uma divisão entre aqueles que desejam ver mais expressão da religiosidade na esfera pública e aqueles que desejam ver menos símbolos religiosos. A mundialização implica que logo que um conflito estala na Itália (pela questão da cruz) ou na Dinamarca (por causa das caricaturas) pode espalhar-se por
Conclusão A relação entre liberdade de religião e liberdade de expressão é complexa. Os crentes expressam as suas crenças quer através de declarações explícitas, quer por meio de símbolos que são importantes para eles. Sem uma sólida proteção da liberdade de expressão, muitas práticas religiosas são ameaçadas. Nessa medida, as duas liberdades têm um relacionamento importante e complementar. No entanto, algumas formas de expressão constituem uma ameaça para aqueles que creem, ou para a liberdade religiosa. O discurso de ódio, a calúnia, a blasfêmia e outras formas de discurso visando as opiniões religiosas são frequentemente difíceis de suportar por certos crentes e conduz a restrições à liberdade de expressão para proteger os crentes contra injúrias, ofensas ou troça. Por outro lado, a exibição de símbolos religiosos nas instituições públicas ou o ensino da religião nas escolas públicas pode aparecer como um reconhecimento da importância cultural de uma determinada religião numa sociedade. Mas para outros, tais expressões podem parecer opres23
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todo o mundo em questão de dias e causar graves perturbações sociais nos países longe da origem do litígio. Em tais circunstâncias, as sociedades e os tribunais são suscetíveis de ter de lidar com uma vasta gama de
questões complexas no cruzamento da religião e da expressão, com as consequências políticas e sociais de tais resoluções, que serão cada vez mais numerosas.
* Professora de Direito e Diretora adjunta do Centre for Comparative Constitutional Studies, da Faculdade de Direito de Melbourne, na Austrália. Este artigo é baseado, em parte, num trabalho de pesquisa no quadro de um projeto de estudo sobre a legislação da liberdade religiosa e a não discriminação, financiado pelo Australian Research Coucil. Os agradecimentos do autor vão para Duncan Kauffman pelo seu apoio na pesquisa deste assunto. Uma primeira versão deste texto foi publicada na obra de John Witte, Jr. and M. Christian Green, eds., Religion and Human Rights, Oxford University Press, Oxford, 2011, e é usado aqui com permissão do autor e do editor.
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Religião e liberdade de expressão Notas: 1. Ver, por exemplo, Homa Hoodfar, “The Veil In Their Minds and On Our Heads: Veiling Practices and Muslim Women”, in Elizabeth Castelli, ed., Women, Gender, Religion: A Reader, Palgrave, New York, 2001, pág. 420-446; Wasif Shadid e Pieter Sjoerd van Koningsveld, “Muslim Dress in Europe: Debates on the Headscarf,” in Journal of Islamic Studies nº 16, 2005, pág. 35; Susan Michelman, “Changing Old Habits: Dress of Women Religious and its Relationship to Personal and Social Identity”, in Sociological Inquiry, nº 67, 1997, pág. 350; Janet Mayo, A History of Ecclesiastical Dress, BT Batsford, Londres, 1984. Uma parte destes escritos mencionam a ambivalência em relação às vestes religiosas, e os múltiplos significados atribuídos a estas últimas por alguns daqueles que as usam. 2. R (SB) c Governors of Denbigh High School, 2007, 1 AC 100. 3. Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, Observation général 22: Le droit à la liberte de pensée, de conscience et de religion, Art 18, Add. 4, UN Doc CCPR/C/21/Rev.1/Add.4 (1993) (‘General Comment 22’). 4. Asma Jahangir, Repport de la Rapporteure spéciale sur la liberté de religion ou de conviction – Addendum – Resumé des cas portés devant les gouvernements et des réponses reçus, UN Doc.A/ HRC/7/10/Add.1 [125], 28 de fevereiro de 2008. 5. Gareth Davies, “Banning the Jilbab: Reflections on Restricting Religious Clothing in the Light of the Court of Appeal in SB c. Denbigh High School, Decision of 2 March 2005”, in European Constitutional Law Review 1, 2005, pp. 511-530, observa que uma “onda de proibições e restrições de roupas religiosas está a varrer a Europa”. 6. Ver, por exemplo, BBC News Online, "Singapore Headscarf Ban Faces Lawsuit”, 22 de abril de 2002: http://news.bbc.co.uk/2/low/asia-pacific/1943999.stm. 7. Dahlab c. Switzerland 2001-V Eur Ct. H.R. 449. 8. Şahin c. Turkey, 2005-XI CEDH, 175; Dogru v France, 2009-49 CEDH, Rep 8. 9. David Charter, “Belgium Poised to be First in EU to Ban the Burqa,” in The Times, Londres, 1 de abril de 2010. Para uma explicação das medidas tomadas no Egito que têm servido de referência a alguns países europeus, para justificar a interdição do véu, ver “Niqab banned at al-Azhar University,” DAWN. com, 9 de outubro de 2009: http://www.dawn.com/wps/wcm/connect/dawn-content-library/dawn/news/ world/11-burqas-banned-at-al-azhar-university-il-08. 10. Para uma análise mais detalhada ver: Bahia G. Tahzib-Lie, “Dissenting Women, Religion or Belief and the State: Contemporary Challenges that Require Attention,” in Tore Lindholm e outros, eds., Facilitating Freedom of Religion or Belief: A Deskbook, Martinus Nijhoff, Haia, 2004, pág. 455. 11. Ver Multani c. Commission Scolaire Marguerite-Bourgeoys, 2006, 1 SCR 256 (processo sobre um aluno); Hothi v The Queen, 1985, 33 Man R (2d) 180 (processo penal). 12. Assembleia-Geral Plenária do Conselho de Estado, Étude Relative Aux Possibilités Juridiques d'Interdiction du Port du Voile Intégral, 25 de março de 2010; relatório consultável em : http//www. counseil-etat.fr/cde/media/document/avis/etude_vi_30032010.pdf; Henry Samuel, “French Burka Ban ‘Unconstitutional’,” in The Daily Telegraph, Londres, 31 de março de 2010. 13. Şahin c. Turkey, 2005-XI CEDH, 175, opinião dissidente do Juiz Tulkens, [11]. 14. Davies, “Banning the Jilbab: Reflections on Restricting Religious Clouthing in the Light of the Court of Appel, in SB c. Denbing High School, decisão de 2 de Março de 2005” in European Constitutional Law Review, vol. 1, 2005, pp. 518 e 519. 15. Aberta à assinatura a 16 de dezembro de 1966, art 20(2) e entrou em vigor a 23 de março de 1976. Rés. A.G. 2200A (XXI), 21 UN GAOR Sup. (nº 16) at 52, UN Doc. A/6313 (1966). 16. Sobre as questões complexas do discurso do ódio em geral, ver Ivan Hare e James Weinstein, Extreme Speech and Democracy, Oxford University Press, Oxford 2008. 17. Catch the Fire Ministries Inc and Others and Islamic Council of Victoria Inc (2006) 15 VR 207 [41], [47], [60], [62]. Nesta secção do julgamento, o juiz Nettle critica a forma como o juiz Higgins (do Tribunal Civil e Administrativo de Vitória) parafraseou as declarações dos dois pastores e expõe estes últimos com mais detalhe e no seu contexto – o que não é possível reproduzir neste artigo. 18. O Tribunal de Recurso considerou que a decisão do tribunal continham erros, mas como voltava ao
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Carolyn Evans juiz administrativo para reconsiderar a sua posição, não era a ele que cabia determinar de forma definitiva, o mérito do pedido. O Tribunal preferiu reenviar o assunto para o Tribunal para ser tratado por um outro juiz. As partes, em seguida, chegaram a uma resolução amigável, de modo que nenhum julgamento definitivo foi feito para saber se o comportamento incriminado constituía ou não uma violação da Lei (a RRTA). 19. Ver, por exemplo Rex Ahdar, “Religious Vilification: Confused Policy, Unsound Principle and Unfortunate Law”, in University of Queensland Law Journal, vol. 26, 2007, pág 293; Dermot Feenan, “Religious Vilification Laws: Quelling Fires of Hatred?” in Alternative Law Journal, vol. 31, 2006, pág. 153; Lawrence McNamara, “Salvation and the State: Religious Vilification Laws and Religious Speech,” in Katharine Gelber and Adrienne Stone, eds., Hate Speech and Freedom of Speech in Australia, Federation Press, Sydney, 2007, pp. 45-68; Dan Meagher, “The Protection of Political Communication under the Australian Constitution”, in University of New South Wales Law Journal vol. 28, 2004, pág. 30. 20. Comissão dos Direitos Humanos da ONU, La diffamation des religions, CHR Rés 1999/82, 55ª sessão, 62ª reunião plenária UN Doc E/CN.4/1999/L.40/Rev.1, 30 de abril de 1999. 21. Assembleia-Geral da ONU, Lutter contre la diffamation des religions, GA Res 13/16, UN GAOR, 61ª sess, 81ª reunião plenária, Ordem do dia 67(b), UN Doc A/RES/61/164, 19 de dezembro de 2006. 22. Conselho dos Direitos Humanos da ONU, Lutter contre la diffamation des religions, HRC Rés 13/16, 13ª sessão, 42ª reunião, Ordem do dia 9, UN Doc A/HRC/RES/13/16, 25 de março de 2010. 23. Comissão dos Direitos Humanos da ONU, La diffamation des religions, CHR Rés 1999/82, 55ª sessão, 62ª reunião, UN Doc E/CN.4/1999/L.40/Rev.1, 30 de abril de 1999. 24. Githu Muigai, Asma Jahangir e Frank La Rue, Declaração conjunta sobre a liberdade de expressão e incitamento ao ódio racial ou religioso pela Relatora Especial sobre a liberdade de religião, ou de convicção, a Relatora Especial sobre as Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e o Relator Especial sobre a Promoção e a Proteção do Direito à liberdade de Opinião e de Expressão, Escritório do Alto Comissário para os Direitos Humanos, reunião ocorrida à margem da Conferência de Revisão de Durban, Genebra, 22 de abril de 2009, http://www2.ohchr.org/english/issues/opinion/docs/ SRJointstatement22April09New.pdf. 25. Rebecca J. Dobras, “Is the United Nations Endorsing Human Rights Violations? An Analysis of the United Nations Combating Defamation of Religions Resolutions and Pakistan’s Blasphemy Law”, in Georgia Journal of International and Comparative Law, vol. 37, 2009, pág. 339; Julian Rivers, “The Question of Freedom of Religion or Belief and Defamation of Religion.” in Religion and Human Rights: An International Journal, vol. 2, 2007, pág. 113. 26. Ver Lorenz Langer, “The Rise (and Fall?) of Defamation of Religion”, in Yale Journal of International Law, vol. 35, 2010, pp. 257 e 258. 27. Conselho dos Direitos Humanos da ONU, Lutter contre la diffamation des religions, HRC Rés 13/16, 13ª sessão, 42ª reunião, Ordem do dia 9, UN Doc A/HRC/RES/13/16, 25 de março de 2010. 28. Asma Jahangir, Report of the Special Rapporteur on Freedom of Religion or Belief – Addendum – Summary of Cases Transmitted to Governments and Replies Received, UN Doc A/HRC/7/10/Ad.1, 28 de fevereiro de 2008, [178]-[182] (tratamento infligido aos Cristãos da Birmânia); Asma Jahangir, UN Doc A/HRC/10/8/Ad.1, 16 de fevereiro de 2009, [55]-[60] (tratamento infligido à comunidade Ahmadia na Indonésia), [95]-[100] (pena de morte por apostasia no Irão), [117]-[121], (proibição do ensino religioso privado no Kazakistão), [158]-[161] (tratamento inflingido à comunidade Ahmadia no Paquistão), UN Doc A/HRC/13/40/Ad.1, 16 de fevereiro de 2010, [194]. 29.Conselho dos direitos do Homem das Nações Unidas, Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, Observation Général 22, [6]: “O Conselho nota que a educação pública incluindo o ensino de uma religião ou crença particular é incompatível com o parágrafo 4 do artigo 18, a menos que preveja exceções ou possibilidades de escolha não-discriminatórias correspondendo à vontade dos pais e dos tutores”. Art. 18, Par. 4, UN Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Par.4 (General Comment 22), 1993 30. Ver, por exemplo, Illinois ex rel McCollum c. Board of Education 333 US 203, 1948; School District of Abingdon Township c. Schempp, 374 US 203, 1963; Wallace c. Jaffree, 472 US 38, 1985; Edwards c. Aguillard, 482 US 578, 1987; Kitzmiller c. Dover Area School District, 400 F. Supp. 2d 707, 2005. 31. McCollum c. Board of Education, 333 US 203, 1948, 333 US, 464 (J. Black, decisão do Tribunal).
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Religião e liberdade de expressão 32. Id. em 472-75 (J. Frankfurter, opinião concordante). 33. Santa Fe Independent School District c. Doe 530 US 290 at 309, 2000 (J. Stevens, decisão do Tribunal) que cita Lynch c. Donnelly, 465 US 668 a 688, 1984 (J. O’Connor, opinião concordante). 34. Folgerø c. Norway (2008) 46 EHRR 47 at 1186-7. Consultável em: http//www.cingo-strasbourg. eu/Reference/Folgero.pdf. Entre os principais julgamentos anteriores do Tribunal sobre este assunto: Kjeldsen, Busk Madsen and Pedersen c. Denmark, 1976, 23 ECHR (ser. A); 1976 1 EHRR 711 (‘Pedersen c. Denmark’); Campbell and Cosans c. the United Kingdom, 1982 48 ECHR (ser. A); 1982, 4 EHRR 293. 35. Folgerø c. Norway, idem. Isso não compromete a escola a conformar-se com qualquer capricho ou preferência passageira dos pais, mas apenas com as “opiniões que atingirem um certo nível de firmeza, de seriedade, de coerência e importância”. 36. Id., 1187. 37. Id., 1188-9. Ver também: The Office for Democratic Institutions and e Human Rights Advisory Council of Experts on Freedom on Religion or Belief, Toledo Guiding Principles on Teaching About Religions and Beliefs in Public Schools, OSCE/ODIHR, 2007. Conselho Consultivo de peritos sobre a liberdade de religião e de convicção da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) “Princípios Diretores do Toledo sobre o ensino relativo às religiões e convicções nas escolas públicas”. IESR – Instituto Europeu em Ciências da Religião apresentado em 01/04/2008, URL: http//www.iesr.ephe. sorbonne.fr/index4392.html. 38. Embora o Tribunal tenha dado um pouco de consideração aos problemas ligados ao “opting out” (cláusula de exceção) em Folgerø c. Norway, 2008, 46 EHRR 47. 39. Lautsi c. Italy (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Segunda Secção, Aplicação Nº 30814/06, 3 de novembro de 2009). Ver também Capitol Square Review Board c. Pinette, 515 US 753, 1995. 40. McCreary County, Kentucky c. ACLU of Kentucky, 545 US 844, 2005. 41. Van Orden c. Perry, 545 US 677, 2005. 42. Pleasant Grove City, Utah c. Summum, 129 S.Ct. 1125, 2009. 43. County of Allegheny c. ACLU of Greater Pittsburgh, 492 US 573, 1989; Lynch c. Donnelly, 465 US 668, 1984. 44. Syndicat Northcrest c. Amselem, SCC 47, 2004. 45. Holly Bastian, “Religious Garb Statutes and Title VII: An Uneasy Coexistence,” in Georgetown Law Journal vol. 80, 1991-1992, pág. 211; Derek Davis, “Reacting to France’s Ban: Headscarves and Other Religious Attire in American Public Schools”, in Journal of Church and State vol. 46, 2004, pág. 221; Human Rights Watch, Discrimination in the Name of Neutrality: Headscarf Bans for Teachers and Civil Servants in Germany, relatório de fevereiro de 2009, consultável em http//www.hrw.org/en/ node/80829/section/1,sqq.; Karl Klare, “Power/Dressing: Regulation of Employee Appearance,” in New England Law Review vol. 26, 1991-1992, pág. 1395; Sylvie Langlaude, “Indoctrination, Secularism, Religious Liberty and the ECHR,” in International and Comparative Law Quarterly vol. 55, 2006, pág. 929; Hindy Lauer Schachter, ”Public School Teachers and Religiously Distinctive Dress: A DiversityCentred Approach,” in Journal of Law and Education, vol. 22, 1993, pág. 61. 46. Lautsi c. Italy, Aplicação Nº 30814/06 (Não declarada, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Segunda Secção, 3 de novembro de 2009). 47. Id., em [32] (argumento da requerente), [40] (argumento do governo), [51], [57] e [58] (decisão do Tribunal). 48. Id., em [55]. 49. John Hooper, “Human Rights Ruling Against Classroom Crucifixes Angers Italy”, in The Guardian (Londres), 3 de novembro de 2009. Ver também Richard Owen, “Italy Challenges Ruling That Crucifix in Class Violates Religious Freedom”, The Times, Londres, 3 de novembro de 2009.
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LIBERDADE RELIGIOSA, AUTONOMIA DAS IGREJAS E A ESTRUTURA DA LIBERDADE Richard W. Garnett * Temos o hábito de considerar a religião – os crentes e as práticas, os ritos e os serviços de adoração, as diferentes formas de expressão e de envolvimento religioso – como um dos objetos das leis relativas aos direitos do Homem. Ou seja, pensamos que estas leis protegem a religião, ou, pelo menos, tendem a proteger. Os principais instrumentos dos direitos humanos confirmam esta abordagem lógica. Por exemplo segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948: “Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, e os órgãos da sociedade devem esforçar-se “para desenvolver o respeito por estes direitos e assegurar (…) o reconhecimento e a aplicação universal e efetiva”. Da mesma forma, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 declara que os signatários “reconhecem este direito a todos, dentro da sua jurisdição”. A Constituição americana aborda a questão de forma assaz característica, isto é, em termos de encargo do governo, mais do que recomendações ou aspirações, mas coloca, igualmente, a liberdade religiosa – ou o “livre exercício” da religião – em primeiro lugar dos direitos protegidos pela Primeira Emenda.
Disposições como estas são o sinal de um envolvimento para proteger a liberdade religiosa que parece ser hoje largamente partilhada. Porém uma coisa é professar um tal envolvimento e inscrevê-la na lei, mas outra é pô-la em prática e mantê-la. Se quisermos “juntar o gesto à palavra” então devemos fazer face às duas dificuldades, distintas mas ligadas apesar de tudo. Em primeiro lugar, precisamos de definir a “liberdade religiosa” que estamos decididos a garantir. Ora, isso é mais fácil dizer do que fazer. Declaramos, orgulhosamente e com segurança que “todos têm direito à liberdade de religião”, mas de que é que estamos a falar exatamente? O que é “religião”? E o que significa para ela ser “livre”? Livre de quê? Para fazer o quê? O que significa “ter o direito à liberdade” – de religião ou de qualquer outra coisa? O que distingue a “liberdade religiosa” da liberdade pura e simples? Pode a distinção entre as duas ser justificável, supondo que ela possa ser definida pela lei? E assim por diante. Suponhamos, agora, que somos capazes de encontrar respostas válidas e convincentes a estas perguntas, respostas que correspondam à natureza, às experiências, às necessida28
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade
des e aspirações dos seres humanos. Conservando o espírito do “fim”, podemos então passar à questão dos “meios”. Por outras palavras, devemos decidir que mecanismos legais, ou outros, desejamos pôr em ação para manter o nosso compromisso e justificá-lo. No fim de tudo, o que esperamos, é erguer mais do que “meras barreiras de pergaminho” – de acordo com a expressão de James Madison – contra as violações da liberdade religiosa. Para isso existem, talvez, mecanismos melhores – ou menos maus – concebidos para o efeito e assim podem funcionar melhor – ou menos mal; atores e autoridades políticas talvez mais – ou menos – fiáveis e eficazes do que outros, no seu papel de proteção. As nossas expectativas cheias de otimismo para com alguns processos poderiam ser irrealistas e o nosso ceticismo (quem sabe se o nosso cinismo) em relação a outros processos, infundado. O facto é que todo o projeto visando proteger os direitos do Homem – incluindo o direito à liberdade religiosa – exige uma reflexão sobre as necessidades e as aspirações dos homens, mas implica, também, que se debata com questões de organização e de competência institucional. Agora, com relação à primeira dificuldade evocada acima, é fácil propor algumas definições de base – mas apenas algumas – não se prestando a controvérsia e a partir das quais poderemos aprofundar a nossa compreensão do que é a “liberdade de religião”. Entre estas, por exemplo, estará, evidentemente, a definição proposta pelo Supremo
Tribunal dos Estados Unidos no dossier Employment Division c. Smith (1990), a saber “o direito de crer e de professar qualquer doutrina religiosa da sua escolha”. Bastante justo. Mas, o que mais? Para a segunda dificuldade, poderíamos certamente recordar que existem algumas restrições impostas aos governos, confirmados no plano político e constitucional – restrições como as previstas pela Declaração dos Direitos do Cidadão (o Bill of Rights) – como sendo um meio essencial de concretizar as nossas aspirações. É verdade que – para citar as palavras cheias de sabedoria do juiz Learned Hand – a “liberdade está inscrita no coração dos homens e das mulheres; mas quando ela morre aí, nenhuma Constituição, lei, ou tribunal a pode salvar”.1 No entanto, não se pode negar que as Constituições, as leis e os tribunais desempenham um papel capital para o nosso projeto. Até aqui, tudo bem. Mas novamente, o que mais podemos fazer? Que outras medidas podemos tomar, ou ferramentas usar, para permitir que a liberdade religiosa se espalhe, não só nos “corações de homens e mulheres”, mas também neste mundo de desordem e de violência onde reina a miséria, o interesse pessoal, os compromissos e a discórdia? Este artigo é uma tentativa de tratar estes dois aspetos, isto é, ter em consideração, ao mesmo tempo, a essência da liberdade religiosa e os diversos meios usados para a proteger e promover. Proponho, em primeiro lugar, que o “direito à liberdade de religião” pertence não só 29
Richard W. Garnett Sir Thomas More (1478-1535), homem de Estado inglês e célebre escritor humanista da Renascensa, grande chanceler na corte dos Tudor sob o rei Henrique VIII, santo e mártir da Igreja Católica Romana. Pintura a óleo de Hans Holbein o jovem, 1527. Foto: Wikipédia Commons
aos indivíduos, mas também às instituições, associações, comunidades e congregações. Assim como cada pessoa tem o direito de procurar a verdade em matéria de religião e aderir a ela quando a encontra, também as comunidades religiosas têm o direito de manter e ensinar as suas próprias doutrinas; assim como cada pessoa deveria ser livre de toda a pressão administrativa quando se trata das suas práticas e das suas profissões de fé, também as instituições religiosas têm o direito de se governarem e de exercer a sua própria autoridade, livre de interferência oficial; assim como cada pessoa tem o direito de escolher os ensinamentos religiosos que vai abraçar, as igrejas têm o direito de selecionar os Ministros que irá ordenar. No caso Wisconsin c. Yoder (1972), o juiz William Douglas sublinhou que “a religião é, uma experiência indi-
vidual”; este é certamente o caso, mas não é só isso. Afinal de contas, como o Juiz William Brennan nos recordou, no caso Corporation of the Bishop c. Amos (1987), “para muitos indivíduos, a atividade religiosa deriva em grande medida do seu sentido, da adesão a uma comunidade religiosa mais alargada, caracterizada por uma tradição viva partilhada por outros crentes; uma entidade fundamental que não se pode reduzir a um mero agregado de indivíduos”. Essas “entidades fundamentais” são o assunto, e não apenas o resultado ou uma consequência indireta, da liberdade religiosa. Assim, no centro da liberdade religiosa está o que se chama em Direito Constitucional norte-americano a “autonomia da Igreja”, aquilo a que o teólogo jesuíta americano John Courtney Murray (e muitos outros) chama “a liberdade da Igreja”.2 30
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade
Este direito à autonomia das Igrejas – uma das dimensões da liberdade religiosa – é, ela, também, um objeto da lei dos direitos humanos. Mas é também um meio – um mecanismo estrutural – destinado a proteger de uma forma mais geral, tanto a liberdade de religião como os direitos humanos. A relação entre a proteção dos direitos humanos e o direito à autodeterminação dos grupos religiosos é uma relação dinâmica, na qual estes dois aspetos se reforçam mutuamente. Por outras palavras, a legislação dos direitos humanos preserva a autonomia das Igrejas – garante aos grupos a liberdade de se organizar e de se administrar, de tomar decisões no domínio religioso sem ingerência do governo, de aplicar os seus próprios critérios sobre os membros, os responsáveis, as doutrinas, etc.. Por sua vez, a autonomia das Igrejas favorece o exercício dos direitos humanos e os benefícios que eles comportam. Segundo Murray, este mecanismo é “a contribuição essencial do cristianismo para a liberdade na ordem política”.3 Se chegarmos a entender e apreciar essa contribuição, poderemos entender melhor e apreciar no seu justo valor uma noção muitas vezes mal compreendida e utilizada de forma errada, “a separação entre Igreja e Estado”.
seus interesses e na sua autonomia perante toda a autoridade exterior. Logo, não nos devemos admirar se na América as decisões judiciais e as intervenções públicas sobre liberdade religiosa tendam a concentrar-se sobre os direitos e as práticas individuais. Ora, como o demonstrou, há cerca de vinte anos Mary Ann Glendon na sua crítica irrefutável do discurso político americano e do regime jurídico que ele reflete e produz, este foco é redutor e distorce a realidade.4 Ela leva-nos a negligenciar e a pôr de lado o contexto social em que as pessoas se situam e formam, assim como a natureza específica, o papel distintivo e as liberdades particulares dos grupos, organizações e instituições. Devemos notar que cometemos não só este erro, no que se refere à liberdade religiosa. O especialista em Direito Constitucional, Frederick Schauer, mostrou que a nossa legislação que se refere mais geralmente à liberdade de expressão, de consciência e de crença, tem sido “constantemente reticente em elaborar princípios adaptados às instituições e, assim, a ter em conta as diferenças culturais, políticas e económicas existentes entre as diferentes instituições que, em conjunto, formam uma sociedade”.5 É certo que a pessoa humana – cada pessoa tomada individualmente – tem a sua importância. Ela “tem um valor sem limite, é absolutamente única e infinitamente digna de interesse”.6 De acordo com os termos do escritor irlandês C.S.Lewis, cada um tem em si um “peso de glória”. E ele insiste dizendo que “não há pessoas vulgares”:
A natureza dos direitos dos grupos religiosos Os americanos têm uma conceção muito individualista dos direitos. Nós pensamos que os direitos dizem respeito a alguns indivíduos e protegem-nos – na sua vida privada, nos 31
Richard W. Garnett
“Nunca falaram a um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as civilizações, tudo é mortal e a sua vida é para nós como a vida de um morrão. Mas são seres imortais com os quais nos divertimos, trabalhamos, que desposamos, repousamos e exploramos – horrores imortais ou esplendores eternos.”7 É, portanto normal que a imagem de um dissidente religioso isolado, afrontando heroicamente a tirania administrativa ou as pretensões extravagantes do poder do Estado, apenas armado com os imperativos da sua consciência, seja para nós evocador e eterno. Basta pensar em Thomas More – e talvez também em todos os dissidentes que ele contribuiu para fazer perseguir – tal como aparece no filme Um homem para a eternidade. Nada do que se poderia dizer sobre a liberdade religiosa estaria completo se fizermos silêncio sobre estes conflitos ou se nos esquecermos de celebrar uma tal coragem. Contudo, Mary Ann Glendon tinha razão: há qualquer coisa que falta quando a liberdade religiosa se resume à liberdade de consciência do indivíduo, à sua liberdade de crença ou mesmo ao seu direito de escolher praticar um culto ou de empreender ações motivadas pela sua religião. Um sistema jurídico consagrado aos direitos do Homem que não visa senão proteger esta noção redutora da liberdade religiosa fragilizará alguns aspetos importantes desta liberdade e deixá-los-á sem proteção. Este sistema não poderá durar porque dá uma imagem incompleta do mundo, talvez mesmo falsa, deixando de lado e esquecendo alguns dos seus aspe-
tos importantes. Deveríamos estar determinados a que as nossas leis – e talvez ainda mais as que dizem respeito aos direitos do Homem – sejam o reflexo fiel do que é essencial e que conte verdadeiramente num mundo real que elas regem e ao qual se dirigem. Por outras palavras, deveríamos estar decididos a que as nossas legislações sobre os direitos do Homem reconheçam, e portanto respeitem e protejam, a liberdade que, legitimamente, pertence aos grupos religiosos, às associações e às organizações religiosas. O que é, portanto, esta liberdade que contribui para que os indivíduos continuem a beneficiar dos seus direitos à liberdade religiosa? Parece lógico voltar, desde logo, à proposta de base segundo a qual, segundo Murray, a Constituição garante a liberdade de religião, não apenas aos crentes como indivíduos mas também à “Igreja como sociedade organizada com as suas leis e jurisdições”.8 Os direitos a que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos chamou de “direitos eclesiásticos”9 são protegidos pela Primeira Emenda, assim como pelos outros instrumentos dos direitos do Homem, assim como os direitos individuais. Eles não são – ou pelo menos não deveriam ser – considerados como simples derivados ou substitutos dos direitos individuais. A sua proteção não é apenas um meio para garantir as liberdades dos indivíduos.10 É necessário, igualmente, sublinhar que a proteção dos “direitos eclesiásticos” previstos pela Constituição americana não é nem uma exceção, nem uma anomalia. O 32
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade
facto da liberdade religiosa ter um aspeto comunitário, coletivo, e que compreende um direito à autonomia e à autodeterminação para os grupos religiosos é reconhecido pelas legislações nacionais de numerosos países e, ao nível internacional, nos processos, nos julgamentos e nos instrumentos relativos aos direitos do Homem.11 De facto, parece que, por um certo número de razões históricas, culturais e filosóficas, o princípio da autonomia das Igrejas seja mais facilmente aceite na Europa do que na América pelo Direito e pela prática. Como os direitos do Homem fazem geralmente salientar, a perceção que os juristas têm dos direitos dos grupos religiosos e a forma como esses direitos são protegidos têm sido largamente aperfeiçoados pelo cristianismo e a visão cristã da pessoa humana, da Igreja e do Estado. A declaração histórica sobre a liberdade religiosa que o papa Paulo VI fez votar durante o Concílio Vaticano II é particularmente interessante sob essa perspetiva; ela confirmou, de forma admirável, o direito que cada ser humano tem de praticar a sua religião de acordo com a sua consciência. Esta declaração começava por uma afirmação forte, a saber, que “a liberdade religiosa tem o seu real fundamento na dignidade da pessoa humana […] Isto não assenta, portanto, sobre uma disposição subjetiva da pessoa, mas sobre a sua própria natureza, que é a base do direito à liberdade religiosa”.12 Isso significa que o desejo das pessoas – e a sua responsabilidade – de procurarem a verdade, de a encontrarem e de aderir a ela, 33
e, paralelamente, a sua imunidade moral perante todo o constrangimento exterior em matéria de consciência religiosa, estão, ambas, bem implantadas na nossa “própria natureza”. (Em 1785, James Madison fazia uma declaração semelhante na sua célebre obra A Memorial and Remonstrance Against Religious Assessments.) No entanto, a declaração do Vaticano II não se deteve na afirmação da liberdade de consciência religiosa, entendida como uma “isenção de qualquer constrangimento”. Não se contenta em insistir – apesar de insistir bastante – sobre o facto que os indivíduos têm o direito de se associar em volta de um objetivo religioso e de exprimir as suas crenças religiosas no seio de uma comunidade prestando um culto, ou de qualquer outra forma. Foi ainda mais longe. O documento precisa que as “comunidades religiosas, com efeito, são uma exigência da natureza social do homem e da própria religião […] essas comunidades estão no direito de gozar dessa ausência de constrangimento a fim de se poderem reger segundo as suas próprias normas, honrar, através de um culto público, a Divindade suprema, ajudar os seus membros na prática da sua vida religiosa e afirmá-las através do ensino, enfim, promover as instituições no seio das quais os seus membros cooperem em orientar as suas próprias vidas segundo os seus princípios religiosos.13 Eles “têm igualmente o direito de não serem impedidos, por meios legislativos, […] de escolher os seus próprios ministros, de os formar, de os nomear, de os substituir, de comunicar com as autoridades
Richard W. Garnett
ou comunidades religiosas residentes noutras partes do mundo, de construir edifícios religiosos, assim como adquirir e gerir os bens de que necessitam”. Não basta, sublinhamos nós, dizer que a fé e a experiência religiosa têm uma dimensão comunitária. A liberdade de que os grupos religiosos devem beneficiar não é garantida como sendo um efeito da prática religiosa dos indivíduos, mas como sendo um direito moral desses grupos, um direito enraizado – como o direito à liberdade religiosa de uma forma geral – na dignidade do indivíduo e o plano de Deus para o mundo. Assim, a legislação dos direitos do Homem, nos Estados Unidos, como por todo o lado, reconhece e protege o exercício apropriado da autoridade religiosa, a autonomia das instituições religiosas e o direito à autodeterminação dos grupos religiosos. Exatamente aquilo que na Constituição americana cobre o princípio da autonomia das Igrejas não está inteiramente estabelecido, mas parece claro que tanto as instituições como os indivíduos beneficiam da liberdade religiosa que está garantida. Qual é, portanto, a natureza exata desta proteção? O que é que é exatamente “a autonomia da Igreja”? O que é que, para uma comunidade religiosa, significa, em termos práticos e “no terreno”, o facto de beneficiar do “direito à autodeterminação”? Gerard Bradley, especialista das relações Direito-religião, afirma que “a autonomia das Igrejas” é “um assunto maior para a Igreja e o Estado”, o “teste decisivo ao envolvimento de um regime em assegurar uma liber34
dade espiritual autêntica”.14 O que é que um regime deveria fazer, ou evitar fazer, se deseja “passar” este “teste” e dar toda a sua importância a este “assunto maior”? O princípio da autonomia das Igrejas pode ser posto em causa, eventualmente, em muitas situações e litígios diferentes. Citaremos apenas alguns: a supervisão das finanças diocesanas por um tribunal de falências ou uma outra instância administrativa; a obrigação, para os organismos filiados a uma Igreja, de financiarem a contraceção dos seus empregados, ou, para os médicos, trabalhar em hospitais ligados a uma organização religiosa, o praticarem abortos; litígios a propósito de procedimentos disciplinares ou sobre os critérios de adesão dos membros; a partilha dos bens de uma Igreja depois de um cisma ou uma rutura; a aplicação das leis anti-discriminação por ocasião da contratação ou licenciamento de membros do clero por uma Igreja, ou de professores para uma escola religiosa, e as tentativas realizadas pelos governantes para controlarem ou regulamentarem a forma como as Igrejas escolhem os seus responsáveis. Este princípio não se reduz a um simples “teste”, mesmo que pareça haver várias propostas importantes que não se prestem a controvérsia, a partir das quais um direito mais vasto à autodeterminação possa ser estabelecido (como por exemplo, a longa enumeração de aplicações específicas que figuram na Declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa e já mencionadas atrás). A vários títulos, a “doutrina” da autonomia das Igrejas é menos
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade
Abertura da segunda sessão do Concílio Vaticano II (1962-1965), Praça de S. Pedro em Roma.
Foto: Peter Geymayer / Wikipédia Commons
uma regra geral do que uma mescla de opiniões ou um conjunto de temas cujo ponto comum é um “espírito de liberdade para as organizações religiosas”.15 Como sabemos, a Primeira Emenda não autoriza as ações do Estado estabelecendo ou necessitando de uma “interpretação excessiva” entre o Governo e a religião, seja ao nível das instituições, das práticas, dos ensinos ou das decisões.16 Ela exige que “as autoridades laicas e religiosas […] não interfiram mutuamente nas suas respetivas esferas de escolha e de influência”.17 Os juízes recusaram “encarregar-se de resolver os diferendos (religiosos)”, porque “existe sempre o risco de impedir o livre desenvolvimento da doutrina religiosa e de implicar interesses profanos nas questões de ordem puramente eclesiástica”.18 O Tribunal
confirmou várias vezes o “direito fundamental das Igrejas decidirem por si mesmas, sem nenhuma interferência do Estado, questões de administração eclesial assim como questões de fé e de doutrina”.19 E poderíamos continuar. Segundo Bradley, “a autonomia das Igrejas” é “a questão que se põe quando os princípios legais tomam o lugar das regras internas que regem as relações interpessoais nos grupos religiosos”. Diz-se que este princípio impede todo “o direito dos tribunais civis” sobre os “diferendos religiosos internos sobre questões de fé, de doutrina, de gestão da Igreja e de administração”.20 E o juiz Brennan apresentou este assunto de uma forma particularmente prática fazendo observar que a autonomia das organizações religiosas no “regu35
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lamento dos seus assuntos internos” compreende a liberdade de “escolherem, eles mesmos, os seus responsáveis, de definir eles mesmos as suas doutrinas, de resolver eles mesmos os seus diferendos e de gerir, eles mesmos, as suas instituições”.21 Esta formulação tem, contudo, em conta o conjunto das dificuldades que as instituições religiosas encontram e as circunstâncias nas quais eles se apresentam.
fora da esfera política ordinária – e autorizando os tribunais a declarar não válidas as ações dos governos e dos funcionários que impeçam esses direitos.22 Como fizemos notar anteriormente, no início deste artigo, esta abordagem reflete-se na Constituição americana e de outros países e nos instrumentos internacionais fundamentais que suportam os direitos do Homem. A declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa também sublinha que é necessário “que seja juridicamente delimitado o exercício da autoridade dos poderes públicos, para que o campo de uma digna liberdade, quer se trate de indivíduos, quer de organizações, não seja demasiadamente circunscrita”. Se é aconselhado que “não se conceda a nossa confiança aos príncipes” parece, contudo, lógico envolver as autoridades políticas, incluindo o seu braço jurídico, em trabalhar para proteger os direitos do Homem. Sugerir que outros mecanismos estruturais complementares possam ser úteis, talvez até necessários, para se assegurar da realidade da liberdade religiosa não diminui, em nada a importância das disposições constitucionais e jurídicas que dizem respeito aos direitos do Homem. Protegemos os direitos do Homem não apenas listando as diferentes coisas que os governos poderiam não fazer, mas também colocando os governos em situações tais que seria improvável e difícil para eles, fazê-las. O constitucionalismo é, desde logo, apenas uma longa lista de aspirações; é igualmente o desejo de organizar as nossas vidas em conjunto e de promover o bem comum e estabele-
Os meios de proteger os direitos dos grupos religiosos Já indiquei anteriormente que o facto de se envolver abertamente em favor da liberdade religiosa necessita de uma reflexão quer sobre o que protege esta liberdade – isto é o que queremos preservar – quer sobre os meios e os mecanismos que deveremos utilizar. Até ao presente, tentei mostrar que “a liberdade religiosa” tem uma dimensão comunitária, coletiva e pública, assim como privada. Refere-se e salvaguarda os direitos das instituições assim como dos indivíduos. Como podemos preservar e promover de forma eficaz esta liberdade, é que acaba de ser definido. Há um meio evidente (especialmente para os advogados) para isso. Hoje, com efeito, a maior parte das comunidades políticas que funcionam bem, manifestam e põem em marcha o seu envolvimento com os direitos fundamentais do Homem, incluindo a liberdade religiosa, “encaixando” esses direitos na sua Constituição – colocando-os dessa forma, pelo menos em certa medida, 36
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade
cendo categorias, separando, estruturando e limitando o poder de forma concreta e aplicável. A Constituição americana dá-nos uma ilustração que nos pode ser útil. Como todo o estudante de Direito tem ocasião de aprender – pelo menos esperamos – e como Madison tão bem o explicou em The Federalist, aqueles que elaboraram e ratificaram a Constituição acreditam que as liberdades políticas eram melhor servidas através da competição e da cooperação entre as autoridades e jurisdições plurais, e, graças a estruturas e mecanismos, controlando, temperando e partilhando o poder. A Constituição americana é mais do que um catálogo de direitos. O nosso Direito Constitucional é, finalmente, “o Direito que governa a estrutura e a repartição do poder entre as diversas instituições do governo nacional”.23 A experiência constitucional da América mostra, entre outras coisas, que a estrutura do governo é importante e que contribui para o bem das pessoas. Ninguém tem necessidade de discutir um ponto tão fundamental como este: “o espírito da Constituição americana” – do constitucionalismo americano – “reside na sua utilização das ferramentas estruturais para preservar a liberdade individual”.24 Nas observações precedentes sobre “a autonomia das Igrejas”, disse que a liberdade religiosa – esse direito do Homem através do qual nos envolvemos e que procuramos proteger – compreende os direitos das instituições religiosas de se regerem a si próprias e de usarem a sua autoridade de forma apropriada sem
ingerência dos governos. Este direito, tal como a imunidade da consciência religiosa dos indivíduos perante todo o constrangimento, reflete e está enraizado na dignidade da pessoa humana, que é o fundamento da moral dos direitos do Homem em geral. A isso, podemos contudo acrescentar uma outra observação, a saber, que a autonomia das Igrejas é – como o federalismo, a separação de poderes, o equilíbrio dos poderes e dos contra-poderes – um princípio estrutural cuja aplicação permite aos grupos religiosos que beneficiem de autodeterminação desempenhar um papel estrutural. Esses grupos são protegidos, mas são, igualmente, protetores. Gozam dos direitos à liberdade religiosa e utilizam-nos para si mesmos, mas ao fazerem isso, contribuem, também, para que outros beneficiem e os exerçam por sua vez. Isto é verdade hoje, e é-o há mais de um milénio. Poucas pessoas hoje ouviram falar de Hildebrando, esse monge do século XI que se tornou papa sob o nome de Gregório VII. Contudo, os três dias de penitência que ele impôs, no fim do mês de janeiro de 1077, ao imperador germânico Henrique IV – depois de o ter excomungado – em Canossa, com os pés nus sobre a neve, diante do castelo da condessa Matilde da Toscânia, foram tão importantes para o desenvolvimento do constitucionalismo ocidental como os acontecimentos mais tardios de Runnymede ou de Filadélfia. Hildebrando levou a uma “revolução” que, como declarou o grande jurista Harold Berman, conduziu a nada menos de que uma “transfor37
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mação total” do Direito, do Estado e da sociedade.25 O grito de guerra desta revolução papal – e ideia que iria servir de catalisador para aquilo a que Berman considera como “a primeira reviravolta maior da história europeia” e fundamento a um milénio de teoria política – foi a libertas ecclesiae, a “liberdade da Igreja”.26 O presente artigo não tem como objetivo apresentar um relato detalhado da “querela das investiduras” desta revolução papal e das suas consequências. Bastará um breve resumo. É necessário começar por aquilo que foi, como sublinhou Robert Wilken, um “facto maior na vida eclesiástica do início da Idade Média […] [a saber] que os assuntos da Igreja eram geridos pelos reis e pelos príncipes”.27 Essas autoridades – que seria anacrónico qualificar como “laicas”, sendo dado o sentido que este adjetivo tem hoje – não consideraram ter transposto a fronteira entre a religião e a política. O imperador tinha como certo que o cuidado da alma dos cristãos e o bom funcionamento da Igreja de Cristo faziam grandemente parte da sua função por vontade de Deus. Contudo, foi este “facto maior” que visava a revolução, a ambiciosa revolução, de Hildebrando. Apoiando-se sobre um século de tentativas de reformas e de combates travados contra a corrupção, e indo bem para além disso, o papa Gregório VII, em 1075, pronunciou uma severa e retumbante condenação contra o controlo exercido pelo poder secular sobre a escolha e a investidura dos bispos. Indiferente – é o menos que pode ser dito – às exigências e aos argumentos jurídi-
cos do papa, o Imperador respondeu: “Eu, Henrique, rei pela graça de Deus, e todos os meus bispos, dizemos-te: Desce, desce e sê danado para a eternidade.”28 A confrontação dramática que se seguiu no castelo de Canossa, depois da excomunhão de Henrique IV, esteve longe de marcar o fim do conflito. A “guerra das investiduras” não tarda a rebentar e provocou desordens durante vários decénios. Finalmente, Henrique IV nomeou o seu próprio papa e Gregório VII morreu no exílio, citando o verso do salmista: “Amo a justiça e odeio a iniquidade; por isso morro no exílio.” A concordata de Worms, em 1122, acalmou a situação durante uns tempos. Ela representou uma forma de compromisso, contudo foi desse compromisso que emergiu a “ciência política ocidental – e mais precisamente as primeiras teorias ocidentais modernas sobre o Estado e o Direito secular”.29 Como disse George Weigel: “Se os imperadores tivessem conseguido fazer da Igreja uma subdivisão administrativa e espiritual do Império, teriam perdido muito mais ainda do que a libertas ecclesiae ou a possibilidade para a Igreja de reger a sua vida interna. A ocasião de desenvolver um pluralismo institucional a Ocidente teria talvez faltado ou, pelo menos, retardado.”30 Isso não retira nada ao caráter “revolucionário” das suas reivindicações e dos seus sucessos, de saber que Gregório VII não está na origem da noção de “liberdade da Igreja”, princípio motor da sua ação. Já em 494, com efeito, o papa Gelásio escreveu ao Imperador bizantino 38
Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade Marcha sobre Canossa: o rei Henrique IV pedindo à condessa Matilde da Toscânia e ao abade Hugues de Cluny para intercederem por ele junto do papa Gregório VII sobre a elevação de Henrique VII. A interdição papal sobre Henrique IV foi levantada a 27 de janeiro de 1077. Manuscrito de Donizo. Biblioteca Apostólica Vaticana de Roma. Foto: Wikipédia Commons
Anastácio I: “Dois poderes, augusto Imperador, regem o mundo: a autoridade sagrada do sacerdote e o poder real”.31 É necessário não pensar que este conceito diminuiu pelo facto de que menos de cem anos depois do diferendo entre o papa e Henrique IV na Inglaterra, o rei Henrique II e Thomas Becket se afrontaram quando o soberano reivindicou a supremacia real sobre a Igreja; ou que a posição de Hildebrando foi manifestamente posta em causa pela Reforma protestante, a Paz de Augsburgo, a Revolução Francesa e o anticlericalismo do século XIX. Então, podemos perguntar, a quem é que isto beneficia? Em que é que o relato destes conflitos medievais entre os imperadores e os papas nos pode servir hoje na nossa reflexão sobre a liberdade religiosa e
o nosso envolvimento em proteger os direitos do Homem, com a lei? Nisto: a “querela das investiduras” e a posição agressiva do papa Gregório VII sobre a “liberdade da Igreja” mostra bem os laços importantes que existem entre o pluralismo e o constitucionalismo, entre a autonomia das instituições religiosas e os direitos dos indivíduos. John Courtney Murray teve o cuidado de estudar estas relações sob todos os seus aspetos e de os colocar em evidência. A declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa é o resultado das suas reflexões. Depois dele, não estamos realmente livres, nenhum de nós, crentes ou não, o é verdadeiramente – se “tudo o que fundamentalmente faz de nós seres humanos não beneficia da imunidade sagrada perante toda a profanação pelo poder 39
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do Estado”. O problema – e ele põe-se desde há muito – está portanto em encontrar o princípio limite que permite “controlar o exercício do poder civil e de preservar esta imunidade”. Depois dele, “a civilização ocidental tem desde logo encontrado esta norma no importante princípio do sentido da liberdade da Igreja”. Por outras palavras, este princípio define aquilo que Murray chamou da “nova teoria cristã”, a saber, que a Igreja “se encontra entre o corpo social e o poder público, não apenas limitando o entendimento desse poder sobre o povo, mas também mobilizando o consenso moral do povo e levando a exercer pressão sobre o poder”. Para Murray, é a liberdade da Igreja que procurou uma “armadura social de ordem sagrada”, no seio da qual a pessoa humana pode “ser livre ao abrigo de todas as liberdades às quais o seu caráter sagrado aspira”.32 Ele crê que “a proteção dos […] aspetos da vida contra o poder por natureza ‘invasiva’ do Estado […] dependia historicamente da liberdade da Igreja como autoridade espiritual independente”.33
mente como uma prática privada ou mesmo um fenómeno social perante o qual as Constituições reconhecem a sua responsabilidade ou contra a qual reagem. Ao contrário, deveríamos considerar o constitucionalismo como uma tarefa para a qual a liberdade religiosa contribui. A proteção e o desenvolvimento dos direitos do Homem depende não só da pressão exercida sobre os governos, mas também da estrutura da ordem social. A autonomia dos grupos religiosos, no que respeita a sua administração, as suas doutrinas, os seus dirigentes e os seus membros, participa nesta estrutura mas também beneficia dela. Tudo isto permite mostrar de que forma a “separação da Igreja e do Estado” é um apoio para a liberdade religiosa, o que muitos creem, mas que muitos outros negam com veemência. Seguramente, nos atuais debates públicos, esta “separação” é muitas vezes considerada pelos seus adversários, e por muitos dos que se dizem seus defensores, como uma política exigindo que “o espaço público” seja liberto de qualquer expressão religiosa, de qualquer símbolo e de qualquer ativismo religioso. Pensa-se, frequentemente, ou receia-se, que a separação da Igreja e do Estado impõe aos crentes que considerem a sua fé como um assunto estritamente privado e que façam uma total distinção entre os seus compromissos religiosos e a sua vida pública, ou a sua opinião, sobre a forma como a sociedade deve ser organizada. Vista sob este ângulo, a separação da Igreja e do Estado permite, em tal circunstância, proteger os direitos do Homem e exercer
A separação da Igreja e do Estado Isto pode parecer estranho numa primeira abordagem, mas o sucesso do constitucionalismo depende da existência e das atividades das autoridades não estatais. O constitucionalismo deveria proteger os grupos religiosos independentes que funcionam e evoluem independentemente dos governos, mas também há necessidade deles. É, portanto, um erro considerar a “religião” simples40
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Conclusão
pressão sobre os crentes e os grupos religiosos e reduzir o risco de conflitos sociais e de perseguições. Mas há uma outra forma, bem melhor, de ver estas coisas. A “separação da Igreja e do Estado” quando bem compreendida, é um dispositivo estrutural no seio do qual as instituições religiosas são distintas, diferentes e, apesar disso, independentes das instituições governamentais. É um princípio de pluralismo, com autoridades múltiplas cujas áreas se intercetam, lealdades e reivindicações que estão em concorrência. É uma regra que limita o Estado, criando assim, e protegendo, um espaço social no seio do qual os indivíduos são formados e instruídos, e sem o qual a liberdade religiosa é vulnerável. Entendido desta forma, esta “separação” não é uma ideologia antirreligiosa, mas uma componente importante de toda a conceção válida da liberdade religiosa no meio e no quadro de um governo limitado pela Constituição. O papa Bento XVI reafirmou que a “distinção entre o que é de César e o que é de Deus […] a saber, entre o Estado e a Igreja, pertence à estrutura fundamental do cristianismo”.34 Na mesma ordem de ideias, sublinhou que foi o cristianismo que “introduziu a ideia da separação da Igreja e do Estado no mundo. Até então, a organização política e a religião estavam unidas. Em todas as culturas, o Estado era sagrado, em si mesmo, e o protetor supremo da sacralidade”. Contudo, o cristianismo “privou o Estado da sua natureza sagrada […]. E nisso, insistiu, a separação é antes de mais uma herança cristã primordial”.35
As Igrejas e outros grupos religiosos beneficiam, como deve ser, de uma vasta liberdade permitindo-lhes organizar-se, dirigir e gerir os seus próprios assuntos de acordo com os seus ensinos e doutrinas. Como disse anteriormente, não só esta liberdade beneficia as leis sobre os direitos do Homem, e mais genericamente do constitucionalismo, mas contribui igualmente para isso. Dito isto, é evidente que os princípios e as premissas da autonomia da Igreja são vulneráveis e são objeto de ataques em certos contextos. O Direito é uma realidade, mas o seu campo de aplicação e os seus fundamentos são cada vez mais contestados. Esta vulnerabilidade é sem qualquer dúvida devida ao laço que por vezes se estabelece – e de que muitos se apercebem – entre, de um lado, o princípio da autonomia da Igreja e, do outro, os abusos sexuais e a corrupção do clero, a venalidade e a má administração dos bispos ou as falhas das dioceses. Muitas vezes, as pessoas que criticam o direito à autodeterminação dos grupos religiosos não a compreendem bem, nem o princípio da autonomia da Igreja. Segundo eles – hipótese inverosímil e prejudicial – estes direitos colocam as Igrejas e o clero, de certa maneira, “para além das leis”: uns e outros, portanto, não têm contas a prestar a ninguém pelas faltas que cometem ou pelo mal que causam. Além disso, a liberdade das organizações, das instituições e dos grupos religiosos torna-se precária por causa da fraqueza da própria noção de “autoridade” religiosa no 41
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discurso contemporâneo. Na medida em que se considere que o princípio da autonomia das Igrejas privilegia as instituições em relação aos indivíduos, as estruturas em relação aos crentes, o seu alcance diminui, tendendo a que as pessoas tenham a tendência de pensar a fé – e, por extensão, a liberdade religiosa – mais em termos de espiritualidade pessoal de que de filiação institucional, de culto público e de tradições. Na medida
em que consideramos a fé religiosa como uma forma de expressão, de complemento de si mesmo, ou de uma terapia, temos a tendência de considerar as instituições religiosas, na melhor das hipóteses, como ferramentas, potencialmente úteis e, mais provavelmente, como pressões sufocantes e como obstáculos incómodos para a descoberta de si mesmo. Mas isso seria um erro.
* Professor de Direito e Vice-Deão, da Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame e professor agregado, do Centro de Estudos do Direito da Religião, da Universidade Emory. Uma primeira versão deste artigo foi publicada na obra de John Witte, Jr. e Frank S. Alexander, eds., Christianity and Human Rights: An Introduction, Cambridge, University Press, Cambridge, 2010. É aqui usada com a permissão do autor e do editor.
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Liberdade religiosa, autonomia das Igrejas e a estrutura da liberdade Notas: 1. Learned Hand, The Spirit of Liberty: Papers and Addresses of Learned Hand, Knopf, New York, 1952, pp. 189 e 190. 2. John Courtney Murray, We Hold These Truths: Catholic Reflections on the American Proposition, Rowan & Littlefield Publishers, Lanham, MD, 2005, pp. 186-190. Este texto pode ser consultado em http// Woodstock.georgetown.edu/library/murray/whtt_index.htm. 3. Idem, pág. 186. 4. Mary Ann Glendon, Rights Talk: The Impoverishment of Political Discourse, Free Press, Nova Iorque, 1991. 5. Frederick Schauer, in “Principles, Institutions, and the First Amendment,” in Harvard Law Review, vol. 112, 1998, pág. 84, 110. Pode ser consultado em http//law.harvard.edu/faculty/martin/art_law/schauer. htm. 6. Thomas L. Shaffer, “Human Nature and Moral Responsibility in Lawyer-Client Relationships,” in American Journal of Jurisprudence vol. 40, 1995, pp. 1 e 2. 7. C.S. Lewis, The Weight of Glory and Other Addresses, ed. rev., 1980, pág. 19. 8. J.C. Murray, We Hold These Truths, p. 80. (pág. 70 na versão disponível da Internet. Ver nota 3) 9. Kedroff c. St. Nicholas Cathedral, 344 U.S. 94, 119, 1952. 10. Brett Scharffs notou, contudo, que – pelo menos, no contexto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, – “as instituições religiosas continuam a não ter os direitos que lhe são próprios, mas beneficiam apenas de um conjunto de direitos dos seus membros”. Brett G. Scharffs, “The Autonomy of Church and State”, in Brigham Young University Law Review, 2004, pp. 1217-1348, mais precisamente pp. 1277 e 1278. 11. Ver, por exemplo a obra de Gerhard Robbers, Church Autonomy: A Comparative Survey Peter Lang, Frankfurt am Main, Nova Iorque, 2001. Como John Witte observou, o princípio dos “direitos dos grupos religiosos” é “desde há muito reconhecido como uma norma básica das leis internacionais […]” “Introduction: The Foundations and Frontiers of Religious Liberty,” in Emory International Law Review 21, 2007, pp. 1, 9. 12. Papa Paulo VI, Doutrina geral sobre a liberdade religiosa (Dignitatis humanae) § 2, 1965. http:// www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651207_dignitatis-humanae_fr.html. 13. Dignitatis humanae § 4. 14. Gerard V. Bradley, “Forum Juridicum: Church Autonomy in the Constitutional Order,” in Louisiana Law Review, vol. 49, 1989, pp. 1057-1087, mais precisamente pág. 1061. 15. Kedroff, 344 US pág. 116. 16. Lemon c. Kurtzman, 403 US 602, 613-14, 1971. 17. Laurence H. Tribe, American Constitutional Law, 2ª ed., Foundation Press, Mineola, Nova Iorque, 1988, § 14-12, em particular pág.1226. 18. Presbyterian Church c. Mary Elizabeth Blue Hull Mem’l Presbyterian Church, 393 US 440, 449, 1969. 19. EEOC c. Catholic Univ. of America, 83 F.3d 455, 462, DC Cir. 1996, (citando Kedroff, 344 US p. 116). 20. Bryce c. Episcopal Church da Diocese do Colorado, 289 F.3d 648, 655, 10ª Cir. 2002. 21. Corporation of Presiding Bishop c. Amos, 483 US 327, 341-42, 1987, (Brennan, J., opinião individual) que cita Douglas Laycock, “Towards a General Theory of the Religion Clauses: The Case of Church-Labor Relations and the Right to Church Autonomy,” in Columbia Law Review vol. 81, 1981, pp. 1373-1417, mais precisamente pág. 1389. 22. Michael J. Perry, Constitutional Rights, Moral Controversy, and the Supreme Court, Cambridge University Press, Cambridge/New York, 2009, pp. 23-30. 23. Gary Lawson, “Prolegomenon to Any Future Administrative Law Course: Separation of Powers and the Transcendental Deduction”, St. Louis University Law Journal vol. 49, 2005, pág. 885.
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Richard W. Garnett 24. Steven G. Calabresi e Kevin H. Rhodes, “The Structural Constitution: Unitary Executive, Plural Judiciary”, in Harvard Law Review vol. 105, 1992, pp. 1153, 1155. 25. Harold J. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1983, pág. 23. 26. Idem, pág. 87. 27. Robert Louis Wilken, “Gregory VII and the Politics of the Spirit,” in Richard J. Neuhaus, ed. The Second One Thousand Years: Ten People Who Defined a Millennium, Wm. B. Eerdmans, Grand Rapids, MI., 2001, pág. 6. 28. H.J. Berman, Law and Revolution, pág. 96. 29. Idem, pág. 111. 30. George Weigel, The Cube and the Cathedral: Europe, America, and Politics Without God, Basic Books, Nova Iorque, 2005, pág. 100. 31. O texto desta carta está disponível no site http://www.fordham.edu/halsall/source/gelasius1.html. John Witte diz desta passagem sobre os “dois poderes” que é um “texto clássico sobre o qual se apoiaram, mais tarde, numerosas teorias da separação entre o papa e o imperador, o clero e os leigos, regnum et sacerdotium”. Religion and the American Constitutional Experiment, 2ª ed., Westview Press, Boulder, Colorado, 2005, pág. 6. 32. Murray, We Hold These Truths, pp. 204 e 205. 33. Francis Canavan, S.J. “Religious Freedom: John Courtney Murray, S.J. and Vatican II”, in Faith and Reason vol. 8, verão de 1987, reimpresso na obra de Robert P. Hunt e Kenneth L. Grasso, eds., John Courtney Murray and the American Civil Conversation, Eerdmans, Grand Rapids, MI, 1992, pp.167-180. 34. Papa Bento XVI, Deus caritas est § 28(a) (2005). 35. Joseph Ratzinger, The Salt of the Earth: The Church at the End of the Millennium, Ignatius Press, São Francisco, 1997, pp. 238, 240.
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AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS E O ESTADO: O DIREITO DO REGIME ECLESIÁSTICO E OS TRIBUNAIS CIVIS William W. Bassett* Os leitores habituados à literatura e à cultura inglesa reconhecerão, imediatamente, neste título, uma alusão à obra elegante e conciliatória do grande homem de Igreja, Richard Hooker, publicada em 1593.1 O seu livro, Laws of Ecclesiastical Polity, é a exposição clássica da via do meio, a marca do anglicanismo mundial, e constitui hoje um ícone literário no domínio dos estudos religiosos cristãos. No seu título, o termo “regime” refere-se ao governo da Igreja, isto é, à sua administração e ao processo decisório dos seus órgãos. Abrange noções como a distinção entre os dirigentes e os membros, os respetivos deveres e competências no seio da Igreja e a forma como a Igreja gere o seu pessoal, os seus recursos e a sua missão. É um termo específico que engloba a identidade única, a vida quotidiana e a cultura distinta da Igreja como organização social única. Quando abordamos o assunto da inter-relação entre as organizações religiosas e o Estado, necessariamente fazemos referência às leis do Estado que interditam ou permitem, limitam ou alargam o poder do governo sobre as regras, a disciplina e a organiza-
ção das Igrejas e das suas instâncias. Neste artigo, concentrar-me-ei no Direito dos Estados Unidos, particularmente na forma como ele é interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos e aplicada às Igrejas cristãs como organizações religiosas entre outras. O Supremo utilizou a sua própria análise – que é particular e nem sempre coerente – do regime e da administração eclesiástica num número importante de processos implicando Igrejas e outras organizações religiosas. Como veremos, depois de ter tentado, por duas vezes, interpretar e explicar o Direito Canónico num espírito mais atual, o Supremo estabeleceu o regime eclesiástico como norma decisiva no caso dos cismas no seio das Igrejas e repensou a sua concetualização da administração das escolas religiosas. Ele julgou, por exemplo, que a necessidade para uma Igreja de aumentar as suas infraestruturas para a sua obra pastoral não é imperiosa e explicou que uma Igreja tinha o direito de exercer a discriminação religiosa em função dos postos a prover e das missões a preencher no seio das igrejas. Paralelamente, as jurisdições inferiores têm acrescen45
William W. Bassett
Papéis e missões no seio das Igrejas: uma questão de convicção religiosa
tado as suas próprias ideias no que respeita a administração, pela Igreja, dos sindicatos religiosos, das prestações sociais para os empregados, das convenções coletivas e das responsabilidades civis culposas. Não se trata de dossiers criminais, mas de questões civis implicando alegações de prejuízos privados e não públicos. E, bem entendido, em cada um dos 14 000 casos (e mais) em que a palavra “religião” ou “religioso” aparece nos textos da lei federal e do Estado, o governo autoriza, implicitamente, o tribunal civil a determinar aquilo que pode ser efetivamente definido como “religioso” para satisfazer as condições legais.2 Não há dúvida de que a separação estrita da Igreja e do Estado não intervém em parte alguma, nesta jurisprudência, não obstante o envolvimento jurisdicional dos “princípios da neutralidade do Direito” na arbitragem. É uma questão de ajustamento. Neste artigo, o postulado de base que eu coloco é o seguinte: As questões de regime e de disciplina da Igreja fazem parte da liberdade religiosa tal como está descrita no quadro da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. O livre exercício da religião implica não só o direito de crer, mas também o direito de adorar em grupo, de pregar, de ensinar, de se reunir, de organizar e de administrar os recursos comuns sem interferência do Governo. Um controlo do Estado sobre o governo interno da Igreja e das suas instâncias constitui uma ameaça de interpenetração com a religião e dá, ao juiz civil, competências injustificadas. A Primeira Emenda tinha como objetivo procurar evitar estes graves problemas políticos.
Richard Hooker explicou a estrutura episcopal, as cerimónias sacramentais e os rituais do culto e da piedade na Igreja que se criou na Inglaterra, no século XVI, com o retorno às Escrituras, à antiga tradição e a um estudo aprofundado das práticas do Direito. Depois dele, têm sido estas autoridades que a Igreja tem utilizado para estabelecer estes principais organismos de ministério e de ajuda mútua: as dioceses, os tribunais eclesiásticos, as paróquias, os presbitérios, as sacristias e os seus capelães, assim como as organizações caritativas e educativas. Hooker mostrou claramente que a Reforma protestante do século XVI se referiu não só à Igreja, mas também à doutrina. Estes dois assuntos, intimamente ligados, estiveram no centro de intensos afrontamentos e de debates no Continente e na Inglaterra. Ambos se têm regulado de uma forma prática no decurso da História, mas, fundamentalmente, criaram, no plano dos indivíduos, problemas de consciência religiosa muito profundos, em particular durante o doloroso período em que pendia a ameaça da intervenção pelo poder civil – monárquico na Europa do Norte ou inquisitorial no mundo latino. As transposições deste regime europeu na América foram a omnipresença da discriminação social e do descontentamento que reinou nas colónias onde as Igrejas eram, frequentemente, estabelecidas e mantidas financeiramente por fundos públicos. 46
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Os autores da Constituição americana do século XVIII decidiram não deixar a questão da liberdade religiosa nas mãos dos interesses rivais da pluralidade das Igrejas da época. Decidiram editar a Primeira Emenda: “O Congresso não fará nenhuma lei privilegiando uma religião em particular ou interditando o seu livre exercício.” O tema deste artigo – as organizações religiosas e o Estado – inclui duas afirmações da Primeira Emenda: a restrição jurisdicional sobre o Congresso que cria leis concedendo privilégios a uma religião e a proteção contra as leis que interditam o livre exercício de uma religião. O facto de organizar e de administrar comunidades de fé faz parte das práticas religiosas, tal como a adoração e a oração públicas. Além disso, o livre exercício de uma religião é irrisório e quase destituído de sentido sem a proteção das liberdades de expressão e de associação. Apenas o consentimento mútuo ou situações de extrema urgência no seio da sociedade podem autorizar o Estado a determinar os aspetos das organizações religiosas que os tribunais se arriscam a considerar como “profanas” – por oposição às funções puramente “religiosas” – isto é, as ações que não beneficiam da proteção concedida aos comportamentos motivados pela fé.
ortodoxas e, do outro, as hierarquias ascendentes evangélicas. Estas duas correntes apresentam diferenças ligadas às estruturas eclesiológicas congregacionalistas de inspiração calvinista como suporte auxiliar ligadas às Igrejas que estão representadas nas “Igrejas Unidas”. A isso, juntam-se imensas organizações missionárias e de serviços ligadas às regras fundamentais da Igreja, certamente criadas por razões de fé: faculdades, universidades, seminários, hospitais, centros de saúde, hospícios, clínicas, escolas, centros de pesquiza e casas editoras, organizações de proteção social, centros de acolhimento, lares de terceira idade, assim como agências de desenvolvimento e cooperação inter-Igrejas e no seio das Igrejas. Estas organizações e estes organismos religiosos auxiliares, que se conservam à parte dos locais de culto propriamente ditos, contam-se por dezenas de milhares no mundo inteiro. Ocupam um lugar preponderante na vida prática e no ministério de todas as Igrejas e têm o carisma, a cultura, o espírito e a filosofia que são particulares às suas respetivas tradições religiosas. Para poderem ser detentoras de títulos de propriedade e administrar eficazmente os seus bens, sob a proteção legal apropriada, as Igrejas usam diferentes formas legais de associação para a sua constituição em sociedade como para a criação dos seus organismos auxiliares. Nos Estados Unidos, as condições a preencher, e as suas incidências para as associações constituídas em sociedade, derivam do Direito do Estado e não do Direito federal. Hoje poucas
As numerosas facetas do regime eclesiástico Desde a Reforma até hoje, divisões radicais marcaram os regimes da cristandade. Esta é partilhada entre, de um lado, as hierarquias descendentes episcopais católicas e 47
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Igrejas ou organizações religiosas americanas são ainda associações não constituídas em sociedade. A maior parte adotou – segundo os textos das leis – o estatuto de sociedade sem fins lucrativos, organizações religiosas ou pessoa moral simples. Os organismos de interesse público, tais como as instituições prestadoras de cuidados e os centros de acolhimento, as escolas e outros, são, geralmente, criadas separadamente e submetidos às condições do nicho fiscal federal. As organizações religiosas aceitam, de forma implícita, conformar-se com os regulamentos e o controlo do Estado a partir do momento em que se envolvem com o serviço público, sem discriminação, e que se envolvem, com o governo, a propor programas de caráter social e caritativo utilizando fundos, autorizações, acreditações ou certificados do Estado. Além disso, as Igrejas recorrem às leis do Estado para os seus contratos, as suas aquisições, as suas vendas, as suas transações legais. Mas tudo o que se refere às suas tomadas de decisão e à delegação do seu poder de decisão é de ordem interna e depende do domínio da fé. Por exemplo, o papel do bispo perante os seus superiores, do pastor, perante o conselho paroquial, ou do pregador perante o conselho de administração de uma congregação – assenta numa tradição e uma prática muito antigas. Assim, a questão do saber quem, nas Igrejas, está habilitado para assinar contratos ligando toda a Igreja, pode tornar-se, perante o Tribunal, uma questão de Direito do Estado. Um problema semelhante, 48
de uma importância vital, refere-se a pessoas cujas ações ou a negligência podem tornar toda a Igreja responsável de erros específicos que colocariam em perigo, perante um tribunal civil e aos olhos de todos, os recursos materiais e a reputação das Igrejas.
Os direitos das organizações religiosas Para as Igrejas, assim como para os organismos de saúde, de educação e de apoio social que lhes pertencem, é vital que a integridade dos títulos imobiliários, o respeito pelos contratos, a conformidade com as regras de saúde e de segurança e a divulgação completa e honesta de todas as informações, estejam asseguradas, porque tudo isso é necessário para a tomada de decisões judiciosas e conformes com a lei na sua administração. Por outro lado, como todas as empresas em geral, as organizações religiosas têm o direito de beneficiar dos serviços da polícia e dos bombeiros, assim como das vantagens do estatuto associativo e das formalidades que daí derivam – no direito à “personalidade jurídica” (ou “personalidade moral”), segundo a expressão utilizada em vários sistemas legais. Assim, quando as organizações religiosas comparecem em justiça ou perante organismos civis, os juízes e os funcionários devem saber qual é a forma jurídica da sua empresa, para poderem pelo menos determinar a sua posição perante o tribunal – e a jurisdição que é competente na matéria – e assegurar-se da sua representação legal. Isto torna, bem entendido, inevitável um certo nível de controlo do regime da Igreja perante o Estado. A
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separação constitucional entre a religião e o governo nunca pretendeu ser absoluta, e não o pode ser. Para além da participação em projetos de interesse público e de partilha de responsabilidades que impliquem a vida em sociedade, a ligação das organizações religiosas com o Estado torna-se mais difícil de contornar. Os tribunais americanos têm também tecido uma rede de relações assimétricas para conseguir a ingerência dos regulamentos estatais no livre exercício da religião. Para ilustrar isso, evocarei, rapidamente quatro domínios nos quais os tribunais têm estudado com cuidado o regime das organizações religiosas – com graves consequências ao nível civil.
Igreja, a atribuição dos títulos de propriedade da paróquia local apresentava dificuldades. O Tribunal de circunscrição julgou que o objeto do litígio era de natureza puramente eclesiástica. Uma vez que a Igreja Presbiteriana estava submetida ao regime hierárquico, confirmou a jurisdição e a decisão da Assembleia Geral como a mais alta autoridade na Igreja. O Supremo homologou a decisão do tribunal, lembrando que um tribunal não pode violar o direito ao livre exercício que uma Igreja possui, de regulamentar, ela mesma, as questões de regime eclesiástico sem interferência civil. Concluiu que a Walnut Street Church pertencia de pleno direito aos membros fiéis designados pela Assembleia-Geral e não aos dissidentes. Se uma Igreja tem um governo do tipo hierárquico, existe uma confiança implícita sobre as questões de propriedade causadas pelas controvérsias teológicas, a disciplina da Igreja, o governo eclesiástico ou a conformidade dos membros da Igreja aos seus modelos de moralidade. O acórdão do caso Watson c. Jones comparou as Igrejas a conselhos de administração civis e, depois de ter reconhecido o regime hierárquico da Igreja, remeteu-se às decisões finais da Igreja sobre os títulos e a utilização das propriedades.4 Mais tarde, em plena Guerra Fria, o Estado de Nova Iorque tentou antecipar eventuais litígios sobre os direitos sobre as propriedades pertencentes à Igreja Ortodoxa Russa. Na Religious Corporation Law (lei sobre as sociedades religiosas) acrescentou uma cláusula reunindo todas
A lei sobre os monopólios. No caso Watson c. Jones de 1872,3 o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos usou a competência interestatal para arbitrar um cisma difícil, que surgiu no seio de uma igreja Presbiteriana do Kentucky a propósito da questão da escravatura e da abolição. A Walnut Street Church de Louisville decidiu, por voto, excluir-se da Assembleia-Geral da Igreja Presbiteriana e pediu para fazer parte da “Igreja Presbiteriana dos Estados Confederados” (a guerra civil dilacerou a Igreja Presbiteriana nacional, como muitas outras, aliás). Neste caso, a razão da separação era a seguinte: membros da igreja local recusaram-se a aprovar a resolução da Assembleia-Geral que declarava (de acordo com o Governo Federal) que a escravatura era imoral e exigia a sua abolição. Como consequência deste cisma entre os membros da 49
William W. Bassett Thomas Jefferson (1743-1826), 3º presidente dos Estados Unidos, foi o principal autor da Declaração da independência (1776). Defendeu a separação da Igreja e do Estado e foi igualmente autor do estatuto para a liberdade religiosa do Estado da Virgínia. Thomas Jefferson, pintura de Rembrandt Peale, 1805 Foto: New York Historical Society / Wikipedia Commons
as Igrejas submetidas ao Patriarca de Moscovo num distrito de metrópole administrada de forma autónoma e cobrindo toda a América do Norte. Este agrupamento de Igrejas foi denominado “Igreja Ortodoxa Russa de toda a América e Canadá”. O objetivo deste nome era impedir o titular do Sínodo de Moscovo – que se suponha sob a influência do partido bolchevique – de se servir das Igrejas para fazer política. Num caso datado de 1952, que colocava em causa a catedral de São Nicolau de Nova Iorque, o Supremo claramente declarou que o Estado de Nova Iorque estava em infração com a Cláusula do livre exercício da Primeira Emenda, por se ter, de forma inaceitável, imiscuído em questões de governo eclesiástico: a liberdade para uma Igreja de escolher o seu próprio clero.5 O Tribunal chegou à conclusão de que, numa Igreja de tipo hierárquico, os únicos administradores habilitados a proteger as propriedades são os dirigentes da Igreja e não os funcionários do Estado.
Esta série de litígios conheceu o seu apogeu em 1976 com o julgamento pelo Supremo do caso Diocese Ortodoxa da Sérvia Oriental para os Estados Unidos e o Canadá c. Milivojevich.6 Por ocasião deste processo, o Supremo Tribunal de Justiça do Illinois tinha-se permitido utilizar a sua interpretação do Direito Canónico da Igreja Ortodoxa da Sérvia contra as mais altas autoridades da própria Igreja. A Santa Assembleia dos Bispos da Sérvia, em Belgrado, tinha destituído o bispo Dionisjie Milivojevich, da diocese americano-canadiana, uma vez que tinha começado a reorganizar a Igreja em três dioceses. O Estado de Illinois tinha considerado que os procedimentos usados estavam em desacordo com o Direito Canónico da Igreja, e tinha, consequentemente, declarado que a decisão da Igreja era arbitrária e nula. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos alterou este julgamento estatuindo que as investigações realizadas pelo Supremo do Illinois em assuntos de competências e de regime eclesiástico, assim como as 50
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suas decisões ulteriores, eram uma violação dos direitos constitucionais da Igreja. Finalmente, no caso Jones c. Wolf (1979),7 o Supremo pôs fim à sua longa reflexão sobre as exigências da Primeira Emenda a propósito dos Tribunais que procuram resolver os litígios sobre propriedades da Igreja. O título de propriedade da Igreja Presbiteriana de Vineville de Macon, no estado da Geórgia, estava em nome dos administradores da Igreja. Em 1973, a maioria dos seus membros e o pastor tinham votado interromper a sua filiação ao presbitério de AugustaMacon da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos e juntar-se a uma outra denominação, a Igreja Presbiteriana da América. A minoria restante tinha então movido uma ação, como recurso coletivo, junto do Supremo Tribunal do Estado e procurado estabelecer o seu direito de possuir e utilizar a propriedade da Igreja. O Supremo da Geórgia pronunciou o seu julgamento a favor da maioria com base nos “princípios judiciais neutros”. Examinou os títulos de propriedade da Igreja, os textos da lei do Estado que tratam dos acordos tácitos e o Book of Church Order da denominação para determinar se havia algum texto sobre o qual se basear para autorizar um acordo em favor da Igreja em geral. Não encontrando nada que pudesse justificar a existência de um monopólio em nenhum dos documentos, o tribunal da Geórgia decidiu basear a sua decisão no título geral de propriedade estabelecido em nome da igreja local. Sem hesitar declarou que a congregação local era representada pelo grupo maioritário.
O Supremo Tribunal considerou que um tribunal civil podia examinar questões de propriedade, assim como a constituição e os documentos de uma Igreja e dos seus organismos, em termos puramente laicos, a fim de evitar qualquer interpenetração com a religião ou qualquer violação da neutralidade. Os princípios de neutralidade nas decisões judiciais permitem não ter de, ao mesmo tempo, interpretar a doutrina e analisar o regime eclesiástico no momento em que tenta definir onde reside a autoridade nas Igrejas. Jones c. Wolf foi o último caso no qual o Supremo teve de tratar de um litígio sobre uma propriedade de uma Igreja. A partir daí, pediu aos administradores das organizações religiosas para definirem, nos títulos de propriedade, os precisos direitos de propriedade para o caso em que diferentes pontos de vista viessem a causar cismas nas Igrejas.8 A obrigação imposta pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos aos Tribunais inferiores de aderirem aos princípios da neutralidade nas suas decisões e evitarem implicar-se nas controvérsias religiosas, continua a pôr graves dilemas quando os juízes se devem imiscuir nas transacções de propriedades, em contratos de trabalho ou em ofertas feitas para a promoção de uma religião. Em resumo, neste último exemplo, a premissa fundamental da lei sobre os acordos, a saber, que a lei fará respeitar a intenção do constituinte de fazer uma oferta duradoura a uma organização de caridade religiosa, é ameaçada. Se um acordo é feito com o objetivo de promover a religião em 51
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geral ou uma religião em particular, ou se deve ser administrado segundo as leis religiosas, sem que uma sociedade civil particular seja nomeada como administrador ou beneficiário, não poderá ser aplicada por causa da falta de princípios de neutralidade nas decisões judiciais. Os princípios da neutralidade nas decisões judiciais têm as convicções religiosas do constituinte como inadmissíveis.
das relações entre a lei e a religião no domínio do serviço público. A administração dos estabelecimentos de ensino superior e das universidades ligadas a Igrejas foi profundamente afetada pela existência de financiamentos governamentais; a das escolas secundárias e elementares paroquiais, igualmente, mesmo que em pouca medida. O custo da dependência para com o Estado tem tido, por vezes, como resultado, a perda da identidade religiosa de certas Igrejas. As condições requeridas para um financiamento, assim como o controlo ulterior das ações empreendidas com os fundos alocados são, com efeito, muitas vezes mais rigorosas do que os pedidos de autorização e de acreditação em si mesmos. Encontramos um bom exemplo disso no caso Tilton c. Richardson (1971), levado perante o Supremo Tribunal de Justiça.9 Para fazer face a um pedido nacional emanado das faculdades e das universidades que reclamavam a extensão das suas instalações a fim de acolherem cada vez mais estudantes desejosos de ter acesso a uma educação superior, o Congresso votou, em 1963, o primeiro programa maior de ajuda federal. Foram assim distribuídas subvenções com o objetivo de construir e modernizar os equipamentos nas faculdades e universidades públicas e privadas. Os estabelecimentos de ensino superior e as universidades que tinham anteriormente sido incluídos no Gl Bill sem que tenham sido levantadas questões legais, esperavam ser igualmente integradas neste programa federal regular. O primeiro artigo da Lei sobre o estabelecimen-
A ajuda pública às escolas religiosas. O Departamento da Educação dos Estados Unidos gere um enorme orçamento de mais de 500 programas e concede fundos aos administradores das escolas do Estado ou de escolas locais, às faculdades e universidades assim como, a título individual, a estudantes de todos os Estados Unidos. Por exemplo, em 2007, este Departamento prometeu conceder 62 milhões de dólares como empréstimos para os novos estudantes. Os financiamentos dos programas propostos pelo departamento, e nos quais organizações educativas filiadas a uma religião podem participar, são demasiado numerosas para serem aqui inumeradas. A esta colossal soma de dinheiro juntam-se milhões de dólares fornecidos pelos diferentes Estados e destinados não só à educação pública, mas também a programas de recuperação e de aquisição mais vastamente acessíveis. A jurisprudência do Supremo Tribunal sobre as questões da Primeira Emenda, no caso em que as organizações religiosas se inscrevam no financiamento do governo federal ou do Estado, é suficientemente complicado para ilustrar a complexidade 52
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to do ensino superior de 1963 previa subvenções para as construções e garantindo empréstimos a longo prazo e de juros baixos para edifícios e equipamentos utilizados exclusivamente em programas de educação laicos, e não para o ensino religioso, serviços de culto ou cursos ministrados em departamentos ou escolas de teologia. Quatro pequenos estabelecimentos de ensino superior católicos do Connecticut receberam fundos em virtude desta lei. Dois dentre eles utilizaram o dinheiro para construir bibliotecas – e um laboratório científico para um deles – um outro criou um centro de línguas, e o último construiu um edifício destinado à música e ao teatro. Um grupo de contribuintes uniu-se para intentar um processo junto do Tribunal Federal, para invalidar essas dotações, que consideravam como uma violação do Establishment Clause da Primeira Emenda. O Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos votou por cinco votos contra quatro, depois de um combate encarniçado, a constitucionalidade do programa de financiamento federal, mas apontando-lhe uma reserva essencial. Depois de ter estabelecido a intenção do Congresso de incluir na Lei de 1963 todos os estabelecimentos de ensino superior e todas as universidades sem ter em conta a sua filiação, ou não, a uma religião específica, confirmou que a utilização das instalações financiadas pelo Estado federal estava de acordo com as condições incluídas na dita lei. Não tinha havido serviços religiosos nem no interior nem no exterior dos edifícios, e estes últimos não tinham
sido utilizados senão para atividades não religiosas. Sem ter em conta este respeito das condições, os requerentes insistiram no facto que a própria lei era inconstitucional, na medida em que os fundos públicos tinham sido destinados, direta ou indiretamente, para instituições ligadas a uma religião. O Supremo emitiu uma opinião diferente. Ele fez valer a distinção que há entre o ensino superior e as escolas elementares ou secundárias, para as quais a interdição de receber um qualquer financiamento é absoluta.10 Também explicou que a religião não se infiltra na educação laica dispensada nos estabelecimentos de ensino superior e as universidades ligadas a uma Igreja, ao ponto em que as suas funções religiosas e profanas sejam inseparáveis: o que caracterizava essas escolas era a liberdade intelectual, mais do que a doutrinação religiosa. Por outro lado, as quatro instituições incriminadas subscreveram a “Declaração de Princípios sobre a Liberdade e a Titularização Académica”, aprovada pela Associação Americana dos Professores Universitários e a Associação dos Estabelecimentos de Ensino Superior Americanos. Nenhuma dentre elas impôs restrições de ordem religiosa para as inscrições, nenhuma exigiu a presença dos estudantes durante as atividades religiosas, nenhuma os forçava a obedecer às doutrinas ou aos dogmas da fé, e nenhuma lhes impunha estudar teologia e a doutrina nem se esforçava por propagar uma religião em particular. A única secção da lei que o Tribunal considerou inconstitucional foi a que dizia respeito ao limite de vinte anos inscrita nas condições e depois do 53
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O Centro Médico da Universidade de Loma Linda, na Califórnia, é uma das instituições mais notáveis de ensino médico, geridas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Foto: Karel Nowak
qual essas instalações poderiam ser usadas com objetivos religiosos. O tribunal, portanto, suprimiu esta limitação. O caso Tilton c. Richardson foi rapidamente difundido pelos média. As conclusões do Supremo Tribunal sobre os factos e sobre um plano geral foram apresentadas sob a forma de uma lista de condições às quais os estabelecimentos de ensino superior e as universidades com orientação religiosa se podiam conformar para terem direito a subvenções federais. Nas faculdades e universidades ligadas a uma religião, todos os símbolos religiosos foram então retirados dos edifícios subvencionados. A fé e a piedade perderam o seu lugar
preponderante para se encontrarem nas listas dos cursos facultativos de departamento dos “estudos religiosos”.11 Se bem que ocupado a partir de 1949 em eliminar todos os vestígios de símbolos religiosos das escolas públicas elementares e secundárias do país, o Supremo Tribunal de Justiça também encontrou tempo para assinalar e condenar todos os traços evidentes de ajuda pública nas escolas paroquiais.12 A este respeito, procedeu a um inquérito minucioso sobre os sistemas, os administradores, os ensinos e os livros usados nas escolas paroquiais. Este inquérito abrangeu os reembolsos das despesas 54
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com a educação, por parte do Estado, aos pais, alguns suplementos de salário concedidos aos professores, livros cedidos, serviços eventuais prestados ao estudante, ou ainda a utilização do material de ensino.13 Algumas das decisões do Supremo tiveram sérias consequências. O caso Aguilar c. Felton (1985)14 é um bom exemplo disso. Durante doze anos, o setor escolar de Nova Iorque tinha gerido, com sucesso, nos locais de algumas escolas paroquiais, programas de recuperação financiados pelo Estado federal, até ao dia em que foi interrompido no seu percurso por um processo movido por alguns contribuintes. O primeiro artigo da Lei de 1965 sobre as escolas elementares e secundárias permitia aos Secretários da Educação distribuir ajudas financeiras aos setores escolares locais, a fim de subvencionar as necessidades educativas das crianças provenientes de família de baixos rendimentos. As subvenções federais eram utilizadas para pagar a escolagem a fim de assegurar o bom funcionamento dos programas aprovados pelos organismos de educação locais e do Estado nas escolas públicas e privadas. Os estudos feitos em todos os cursos eram inteiramente laicos. Contudo, o Supremo defendeu que a Establishment Clause constituía uma “barreira intransponível”, uma vez que os fundos federais eram utilizados para pagar professores ou outros profissionais de educação pública, a trabalhar em escolas de orientação religiosa e ministrando uma instrução de recuperação, ou não. As instruções, cuidadosamente postas por escrito pelo Estado de Nova Iorque
a fim de assegurar a neutralidade, de separar o pessoal religioso do do Estado, e de retirar de todas as salas de aula todos os símbolos religiosos, não foi suficiente para salvar o programa. O Supremo baseou a sua decisão em duas considerações: (1) associar o conselho escolar com os administradores das escolas paroquiais para regulamentar as questões de logística e organizar o emprego do tempo necessitaria de uma vigilância, o que poderia entender-se por uma interpenetração excessiva entre o Estado e a religião; e (2) alunos influenciáveis arriscavam-se a confundir-se com a presença de empregados laicos nessas escolas, o que poderia, aos seus olhos, constituir uma validação da religião em questão. Ressalta do veredicto do Supremo Tribunal que a ajuda seria concedida num “quadro claramente sectário”. Assim, nada conseguiu libertar o programa desses medos excessivos e tenazes de colaboração, uma vez que tinham lugar em escolas paroquiais – e mesmo depois das horas letivas regulares. Aguilar deu origem a uma nova burocracia e uma indústria de vários milhões de dólares, concedendo aos setores escolares públicos o sistema de aluguer-venda de salas de aula móveis para permitir o bom desenvolvimento de programas fora das instalações das escolas. Dez anos mais tarde, no caso Agostini c. Felton (1997)15, o Supremo não deu razão a Aguilar e revogou a diretiva contida na instrução do primeiro artigo da lei, que se opunha a que os programas se realizassem “nesses lugares”. O Tribunal nada fez para modificar o programa 55
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em si mesmo; apenas mudou os locais em que os cursos se realizam. Também abandonou o pressuposto que toda a ajuda concedida a uma escola paroquial é uma ajuda concedida a uma religião, e deixou de lado a suspeição que lhe fazia crer que as escolas religiosas são a tal ponto “sectárias” que são incapazes de ensinar assuntos laicos numa perspetiva neutra. No que se refere à presença de funcionários nos locais de escolas paroquiais – uma das maiores preocupações nos casos precedentes – o Supremo recuou um pouco e acabou por aprová-los nos locais onde são necessários para o bem dos estudantes em dificuldade. No dossier Zobrest c. o Setor Escolar de Catalina Foothills (1993), o Tribunal confirmou a remuneração de um intérprete de língua gestual – por causa da lei federal sobre a invalidez – para acompanhar em estudante surdo num liceu católico.16 Ratificou a ajuda concedida e incluiu-a num texto de lei geral instaurando “alocações atribuídas de forma neutra” a estudantes frequentando escolas públicas, privadas ou religiosas e que permitia às famílias escolher a escola para onde enviar o seu filho. A presença de intérprete na escola era uma ocorrência justificada por uma decisão parental e não por uma subvenção direta do governo.17 O intérprete não era senão um canal pelo qual a mensagem religiosa era ensinada, e não o seu porta-voz. Na sequência do caso Agostini e apoiando-se na sua autoridade, o Supremo, no caso Mitchell c. Helms (2000),18 garantiu às escolas paroquiais um programa de apoio “de
material educativo e de instrução, de serviços de biblioteca, de mobiliário, de material de avaliação, de referências, de software, e de equipamentos informáticos, assim como de outro material escolar” financiado pelo Governo federal. No caso Zelman c. Simmons Harris (2002),19 foi até manter um sistema de bónus financiado pelo Estado destinado a permitir aos pais de crianças que frequentam uma escola pública, em dificuldade, enviar os seus filhos para outras escolas, públicas ou privadas – das quais muitas são cristãs. O Supremo calculou que o sistema de bónus não tinha como “objetivo” ou como “efeito” fazer valer ou travar uma religião, mas tratava-se de um programa de ajuda neutro, aplicado unicamente em função da escolha pessoal dos pais. O Tribunal não considerou os riscos da “divisão” e de “desacordos religiosos” como um fator distinto na análise da Establishment Clause.20
As regras do contrato das Igrejas e das organizações religiosas. De 1979 a 1986, o Supremo Tribunal de Justiça tomou decisões em quatro casos que implicavam especificamente organizações religiosas e funcionários religiosos. Os tribunais inferiores apoiaram-se em casos e juntaram-lhes regras provenientes de decisões tomadas por ocasião de diferendos internos da Igreja, e isso com o objetivo de salientar bem a ideia segundo a qual os direitos que as Igrejas têm de gerir, elas mesmas, os seus recrutamentos são “a alma” das suas missões. Nesses dossiers, as jurisdições civis organi56
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zaram o seu julgamento. Os estudos que faremos nas páginas seguintes são introduzidos por uma breve história dos casos sobre os quais o Supremo se debruçou e que têm relação com as recentes questões levantadas no domínio das leis sobre os contratos no seio das organizações religiosas. No caso National Labor Relations Board c. The Catholic Bishop of Chicago (1979),21 o National Labor Relations Board (sindicato acreditado para a defesa do pessoal laico das escolas confessionais) tinha obtido a competência de membros laicos do corpo de professores em diversas escolas paroquiais e tinha confirmado as eleições preparatórias para as negociações sindicais obrigatórias. Vários liceus tinham contestado a jurisdição da comissão, por causa da Primeira Emenda. Em virtude de papel particular dos professores – a saber: cumprir a missão religiosa das escolas – nas escolas paroquiais, mas também por causa de possível interpenetração – e inaceitável – do civil e do religioso no julgamento das “práticas de trabalho injustas” pela administração das escolas. O Tribunal afirmou que a comissão carecia de competência, na falta de uma clara declaração do Congresso afirmando o contrário. O litígio Estados Unidos c. Lee (1992) implicava um empregador que se recusava a reter e a entregar as cotizações para a Segurança Social para os seus empregados por objeção de consciência para com o programa nacional de ajuda social. O Supremo estatuiu que o interesse nacional em relação à integridade do sistema de Segurança Social, no qual um grande
número de trabalhadores estão registados e para o qual contribuem, prevalecia sobre as objeções religiosas do empregador.22 No dossier Fundation Tony e Susan Alamo c. a Secretaria do Trabalho (1985), uma fundação religiosa tinha sido acusada de infringir a “Lei sobre as normas do trabalho equitativo” no que respeita aos salários, as horas de trabalho e as instruções para o estabelecimento de relações de trabalho, na sua gestão dos pequenos assuntos que gozavam de serviços gratuitos dos seus membros. Mesmo se a Fundação procurou provar a missão e a natureza religiosa do conjunto do seu programa de reabilitação para os drogados e os alcoólicos, o Tribunal não concedeu isenção religiosa e, bem pelo contrário, concluiu que as atividades profanas eram, de facto, uma parte predominante do trabalho da fundação.23 No caso Corporação do Bispo à cabeça da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias c. Amos (1987),24 o Supremo, pelo contrário, fez respeitar uma anulação federal, permitindo que as organizações religiosas aplicassem a discriminação religiosa no contrato em todos os domínios das suas atividades (religiosas ou não). Neste caso particular, um operário especializado em serviços de manutenção de um centro de lazer ligado a uma Igreja foi despedido porque não respeitava as suas obrigações religiosas. O Tribunal argumentou que, sem a anulação permitindo aos empregadores de uma organização religiosa discriminar, com base na religião, seria uma “pesada tarefa exigir de uma 57
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organização religiosa, sob pena de graves consequências, que ela prevê corretamente quais das suas atividades um tribunal laico se arriscaria a considerar como profanas”. Baseando-se nos casos evocados acima e resolvidos pelo Supremo, o Tribunal de Apelo dos Estados Unidos para o quinto círculo implementou um sistema conhecido pelo nome de “derrogação ministerial” no quadro das leis contra a discriminação. No caso McClure c. o Exército da Salvação, (1972),25 um ministro de culto consagrado moveu um processo contra a sua Igreja por licenciamento abusivo de práticas de contratação discriminatórias baseadas no sexo. O quinto círculo declarou que, no que concerne os ministros de culto, os tribunais não têm nenhuma jurisdição e não podem apoiar-se em nenhum texto das leis que se reportem à discriminação.26 Hoje, os tribunais federais e a maioria dos tribunais do Estado estão de acordo em fazer respeitar a “derrogação ministerial”. Esta, com efeito, vai além da categoria dos ministros de culto consagrados, por estender o seu campo de aplicação aos professores de teologia, aos professores e aos diretores de coros. As decisões tomadas em todos estes casos têm forçosamente obrigado os tribunais a examinar os regimes de organização da Igreja e a fazer, no quadro destes regimes, a distinção entre os empregados que são, por natureza, religiosos e os que são laicos.
membro ou por agentes representativos, sem o conhecimento dos seus membros. A Primeira Emenda não contém nenhuma defesa contra as acusações criminais. Eis o significado da dicotomia convicção/comportamento na Cláusula sobre o livre exercício contido na Primeira Emenda declarada pelo Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos no célebre caso de Reynolds c. os Estados Unidos de 1879, ligado a um caso criminal sobre a poligamia.27 A responsabilidade de uma sociedade, quando não se trata de delito mas de indeminização de danos causados por atos intencionais ou devidos a uma negligência e que são reconhecidos pela lei e atribuídos a uma determinada entidade, é um problema complexo de um género completamente diferente. Os assuntos civis deste género invadem regularmente os registos dos tribunais. Respeitam aquilo que em Direito é conhecido sob o nome de “responsabilidade ascendente”. Cada caso é regulado na base, não somente da falta e/ou do nexo de causalidade, mas também do regime da instituição responsável pelo pagamento. Quem estava em falta? Qual era o papel ou a posição hierárquica desta pessoa na organização? Quais eram os comportamentos apropriados e regulamentares, e em que circunstâncias se deu a infração? Que indemnização se pode ter direito a reclamar, perante os recursos da organização? Quais são os termos do título ou as restrições enunciadas na cobertura do seguro? Para responder a este tipo de perguntas, os tribunais, os advogados, os contabilistas, os peritos judiciais, os seguradores e os queixosos devem conhecer a lei eclesiástica, assim como os estatutos
A responsabilidade civil. As Igrejas e as organizações religiosas podem ser sancionadas pelo Estado por delitos cometidos mesmo por um 58
As organizações religiosas e o Estado...
da sociedade, assegurando-se de que o pessoal administrativo da organização religiosa não seja tido como responsável, quer se trate perante o Tribunal, um local de culto, uma escola, um asilo, um centro de acolhimento, ou um local de trabalho. Nos casos de delitos, de falências, de reivindicações pelos credores, de indemnizações reclamadas por danos pessoais, o Estado examina escrupulosamente a estrutura da organização religiosa envolvida para resolver este tipo de problemas. Por exemplo, em que circunstâncias um ato, ou uma omissão, de um indivíduo pode tornar toda uma Igreja, ou uma escola ligada a uma organização religiosa, responsável por uma reparação ou da indemnização a pagar? Com efeito, a jurisprudência examina o papel da parte responsável, isto é, ela observa se o indivíduo é um responsável, um diretor, um empregado da Igreja ou um simples voluntário. A lei determina, igualmente, se o ato, ou a omissão, se deu no quadro de uma atividade própria ou em proveito da organização ou sob o seu controlo oficial. Finalmente, a jurisprudência verifica se há um aspeto legal naquilo que se espera das pessoas ou entidades ligadas com a Igreja e a instituição religiosa. Para apresentar o seu veredito final, os tribunais devem fazer comparações e analogias. Os juízes e os jurados entenderão as organizações e as atividades religiosas através do que os seus equivalentes laicos refletirão. Quanto mais eles se lhes assemelhem, mais os tribunais terão a segurança de que as decisões judiciais tomadas nos assuntos que lhes
são apresentados repousarão sobre bases neutras ou não religiosas. Dois casos ilustrarão o papel central do regime e do governo eclesiástico na resolução dos processos sobre responsabilidade civil intentados contra Igrejas e organizações religiosas. O primeiro caso, Barr c. a Igreja Metodista Unida (1979)28 é um exemplo de julgamento clássico. Deu-se na Califórnia e implica um centro para pessoas idosas em falência e 1900 requerentes que procuram recuperar o dinheiro que tinham investido em contratos de poupança reforma. O Lar estava constituído em sociedade e administrado separadamente da Igreja Metodista Unida, se bem que tivesse o seu nome e que nas suas brochuras tenha seguido a ordem de missão cuidando das necessidades físicas e espirituais dos seus pensionistas. Os requerentes iludidos insistiram junto do Tribunal da Califórnia no facto de que ele devia tomar em consideração o regime e o governo da Igreja Nacional, esta última não era uma sociedade separada mas, acima de tudo, segundo a lei californiana, uma associação organizada em sociedade. Ora, segundo a lei do Estado da Califórnia, uma associação empresarial organizada em sociedade podia ser tida como responsável dos deveres e das dívidas dos seus membros. O Tribunal do Estado considerou a regra aplicável, apesar da Igreja Metodista Unida nunca ter recebido um cêntimo dos requerentes. Além disso, ao fazer referência ao nome do estabelecimento e às brochuras, o Tribunal considerou que as pessoas que tinham investido nos contratos de poupança reforma 59
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“O Exército da Salvação”; pintura de Gustaf Cederström, 1886, Museu de Arte de Gotemburgo.
Foto: Wikipeda Commons
podiam exigir que os contratos fossem garantidos pela própria Igreja Metodista Unida. Em conclusão, o Tribunal ordenou à Igreja Metodista Unida nacional que reembolsasse 21 milhões de dólares aos detentores dos contratos. Apesar dos esforços despendidos pela administração do Lar para que lhe fosse aplicada a lei do Estado sobre as sociedades com fins não lucrativos para proteger a sua independência, o Tribunal utilizou o Livro de Disciplina da Igreja Metodista para impor, sobre a Igreja Nacional, as ideias de governo que aí se encontram. O Tribunal considerou a Igreja Metodista Unida como uma sociedade comercial. O segundo caso, John Does 1-9 c. Compcare, Inc. (1988),29 faz parte da multidão de processos relativos à
responsabilidade em casos de negligência de vigilância. Estes problemas têm sido uma dificuldade para as dioceses católicas a quem se pede uma indemnização para as vítimas de abusos perpetrados por eclesiásticos. Neste caso particular, o padre infrator tinha sido recrutado pela diocese católica de Lafayette, no Louisiana. O seu bispo, com toda a boa-fé, fez todo o possível para proteger as eventuais vítimas e ajudar, ao mesmo tempo, o padre de acordo com os termos do Direito Canónico. Tinha-o colocado de licença para fazer terapia, tinha-o enviado para Spokane (no Estado de Washington), tinha pago os custos da terapia e tinha-o confiado ao centro de cuidados habilitado da região. No fim do tratamento, o centro de cuidados 60
As organizações religiosas e o Estado...
informou o bispo de que o padre em questão não deveria ter nenhuma responsabilidade junto de rapazes jovens. Depois disto, o próprio padre obteve um lugar de conselheiro num centro de reabilitação para alcoólicos em Spokane. Alguns meses mais tarde, este centro despediu-o em virtude das queixas por abusos sexuais sobre pacientes idosos. No processo intentado pelas vítimas da diocese católica de Lafayette e as do centro de Spokane, o Tribunal de Recurso aplicou o Direito Canónico da Igreja Católica e concluiu que a diocese onde o padre tinha sido recrutado tinha a responsabilidade de o vigiar no decurso de todas as fases da sua vida, a despeito da sua suspensão e do facto de já não ser empregado pela diocese. Criticaram o bispo de Lafayette, que tinha conhecimento das tendências do padre, por ter negligenciado a sua supervisão. De facto, o Direito Canónico não inclui um tal controlo, e também não se encontra nas regras da Igreja uma qualquer base sobre a qual o julgamento se poderia apoiar para atribuir ao bispo a responsabilidade de eventuais deslizes. Adotaram, então, uma norma elevada para com a Igreja: ela teria sido inferior se o culpado tivesse sido um professor numa escola pública do Louisiana que se tivesse mudado para o Estado de Washington e mudado de trabalho.
da arte e da educação que inspiram e garantem – atividades que, de outra forma representariam uma pesada tarefa para o governo se estivessem apenas sobre ele – mas por causa da natureza da religião e da forma como ela tem sido compreendida pelos autores da Constituição dos Estados Unidos. A religião pode ser compreendida como estando ao serviço de Deus; nesse sentido, é um dever transcendente colocado sobre a consciência pessoal, superior à devida ao Governo e anterior à sua criação. O livre exercício de uma religião não é um direito criado pelo Estado que este pode recusar ou subdividir como se se tratasse de um bem que lhe pertencesse. É o direito humano inalienável das pessoas e das comunidades para a proteção do qual os cidadãos têm, desde o princípio, consentido em formar um governo. A Primeira Emenda protege a religião neste país porque ela, e apenas ela, desempenha um papel de um nível superior na vida da pessoa e da sociedade. As cláusulas concernentes à religião nas duas declarações constitucionais da Primeira Emenda não são consideradas como órgãos governamentais do Estado ou utilizadas para obter o respeito da ordem, para motivar importantes sacrifícios em tempos de dificuldade, ou ainda para encorajar as formas mais puras do patriotismo. A religião é um valor supremo em si mesma, não é híbrida. Não é por a religião ou a espiritualidade pessoal ser sem importância que está separada da autoridade do Congresso ou das legislações do Estado. É bem o contrário que é verdade: é porque a Constituição
Conclusão: As Igrejas e outras organizações religiosas são privilegiadas pela legislação do Estado, não por causa das obras de beneficência que realizam, da ajuda pública que prestam, 61
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reconhece a importância suprema da religião que o Estado está singularmente limitado na sua capacidade em apreender ou controlar a sua expressão. A Primeira Emenda protege a liberdade religiosa tanto dos indivíduos como dos grupos. Recusa ao Congresso qualquer autorização legislativa. Recusa-lhe, não só o poder de impor uma religião oficial, mas também de reprimir as rivalidades entre denominações ou mesmo desencorajar a concorrência e os discursos políticos. A Establishment Clause é utilizada para evitar que o Congresso apadrinhe, mantenha, financie ou promova uma Igreja ou várias Igrejas, ou ainda que participe ativamente em atividades religiosas em geral. A beleza e a grandeza da experiência americana no que concerne à liberdade religiosa impedem que a Constituição coloque a religião sob a autoridade legislativa separando-a, tanto quanto é humanamente possível, das batalhas políticas, ou do tumulto dos litígios. A proteção
da religião tem como objetivo, não o criar uma sociedade laica desprovida de vitalidade, mas, pelo contrário, criar uma sociedade fortalecida pela sua criatividade e o seu apelo à consciência individual. A religião – não pelo que faz, mas pelo que é – origina, motiva e mantém valores que o Estado não pode criar. Este artigo deu nota dos resultados, após esforços importantes que os juristas fizeram, para manter o equilíbrio entre as necessidades da religião organizada e as da sociedade no sistema legal americano. Durante quase duzentos anos, eles estudaram atentamente as funções, as missões, os papéis e as competências das Igrejas cristãs, que são frequentemente avaliadas comparando-as com os seus equivalentes civis. Deste passado jurídico nasceu um léxico jurídico particular no contexto de uma ambiguidade constitucional; a noção de “constituição em sociedade” e a sua relação com as noções tipicamente americanas de “federalismo” e de “liberdade”.
* Professor de Direito na Universidade de S. Francisco. Uma versão mais antiga deste artigo foi publicada em Christianity and Law: An Introduction, John Witte, Jr. E Frank S. Alexander, editores, Cambridge University Press, Cambridge, 2008. É utilizada aqui com a permissão do autor e do editor.
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As organizações religiosas e o Estado... Notas: 1. Richard Hooker, The Laws of Ecclesiastical Polity (1593), vol. 1 da série em dois volumes, The Complete Works of Richard Hooker, Georges Edelen and William S. Hill editores, Harvard University Press, Cambridge, (Massachusetts), 1977-1980. 2. A pesquisa realizada por LEXIS em todos os textos da lei (federal e do Estado) existentes (termo da pesquisa “religio!” (Codes library, AllCde file)) colocou em evidência mais de 14 000 textos nos quais o termo “religião” ou “religioso” aparece. As derrogações religiosas, de forma mais específica, aparecem em mais de 2000 textos (termos de pesquisa: “religio” w/20 “exempt!” ou “except!”). 3. 80 U.S. 679 (1872). 4. A recusa de conceder aos tribunais civis a competência e o direito de tratar das questões de doutrina ou do governo interno das Igrejas foi reafirmado em 1969 num caso sobre um cisma ocorrido no seio de uma Igreja, causado por dissensões sobre o assunto da consagração das mulheres numa congregação local: Presbyterian Church in the United States c. Mary Elizabeth Hull Memorial Presbyterian Church, 393 U.S. 440 (1969). Mas no ano seguinte o Supremo Tribunal, num julgamento per curiam, manteve a decisão do Tribunal de Maryland que julgou um litígio sobre uma propriedade da Igreja usando os princípios judiciais de neutralidade do Direito do Estado sobre os títulos de propriedade: os anciãos da Igrejas de Deus de Maryland e da Virgínia c. a Igreja de Deus de Sharpsburg, 396 U.S. 367 (1970). 5. Kedroff v. Catedral de S. Nicolau, 344 U.S. 94 (1952); confirmada, Kreshnik c. a Catedral de São Nicolau, 363 U.S. 190 (1960). 6. 426 U.S. 696 (1976). 7. 443 U.S. 595 (1979). 8. Jones c. Wolf é geralmente utilizado como exemplo no Direito do Estado. Ver, por exemplo, Igreja Episcopal Protestante c. Barker, 115 Cal. App. 3d 599 (1981), cert. den., 454 U.S. 864 (1981) (“A Califórnia rejeitou a teoria da hierarquia para regulamentar os litígios sobre as propriedades da Igreja e adotou, em seu lugar, princípios judiciais neutros.”). 9. 403 U.S. 672 (1971). 10. Tilton foi publicado ao mesmo tempo que Lemon c. Kurtzman, 403 U.S. 602 (1971) (interditando suplementos para os professores das escolas primárias e secundárias das paróquias). 11. No caso Hunt c. McNair, 413 U.S. 734 (1973), o Tribunal aprovou a criação para a Carolina do Sul de uma agência que fornecia bens, cujas receitas seriam utilizadas pelos estabelecimentos de ensino superior subvencionados. No caso Roemer c. a Comissão dos Trabalhos Públicos do Maryland, 426 U.S. 736 (1976), o Tribunal sancionou subvenções anuais sem nenhuma restrição aos estabelecimentos de ensino superior privados, incluindo os estabelecimentos religiosos, com a única condição de que nenhum fundo fosse utilizado para “necessidades sectárias” e que isso seria verificado anualmente por uma declaração com juramento. 12. Ver o caso Conselho Escolar c. Allen, 392 U.S. 256 (1968) (empréstimo para compra de livros escolares laicos: concedido); Lemon c. Kurtzman, 403 U.S. 602 (1971) (suplementos de salário do Estado para os professores das escolas paroquiais: não concedido); Comissão para a Educação Pública e a Liberdade Religiosa c. Nyquist, 413 U.S. 756 (1973) (reembolso de despesas ocasionais para os exames: não concedido); Meek c. Pittenger, 421 U.S. 349 (1975) (aluguer de livros escolares: confirmado; ajuda auxiliar: suprimida); Wolman c Walter, 433 U.S. 229 (1977) (listas de ajuda para a instrução: as que são autorizadas e as que não são; Comisão para a Educação Pública e a Liberdade Religiosa c. Regan, 444 U.S. 646 (1980) (custos para a correção de exames oficiais: não reembolsados). 13. Apenas a dedução fiscal das despesas educativas concedida aos pais que utilizam os serviços de escolas públicas ou privadas foi aceite; ver Mueller c. Allen, 463 U.S. 388 (1983). 14. 473 U.S. 402 (1985). 15. 521 U.S. 203 (1997). 16. 509 U.S. 1 (1993). 17. Em Witters c. o Departamento dos Serviços para os cegos de Washington, 474 U.S. 481 (1986), o Tribunal manteve uma subvenção concedida no quadro do programa de reabilitação vocacional para os cegos a um estudante cego prosseguir os estudos para pastor numa faculdade cristã, embora esta tenha
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William W. Bassett sido recusada alegando não ser uma ajuda a uma pessoa. O Supremo Tribunal confirmou que a subvenção era uma ajuda à pessoa e não uma ajuda direta à escola a despeito do programa de subvenções de que esta beneficiava. 18. 530 U.S. 793 (2000). 19. 536 U.S. 639 (2002). 20. Desde Zelman o Supremo Tribunal da Florida tem recusado reconhecer a constitucionalidade dos bonos escolares para pagar os gastos escolares nas escolas paroquiais: ver Bush c. Holmes, 919 So. 2d 392 (Fla. 2006). 21. 440 U.S. 490 (1979). Prestação de contas do julgamento, disponível, em inglês, no seguinte endereço: http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/gatcase.pl?court=us&vol=440&invol=490. 22. 455 U.S. 252 (1982). 23. 471 U.S. 290 (1985). Ver também o caso Ministérios Jimmy Swaggart c. A Comissão de Egualização da Califórnia, 493 U.S. 378 (1990), mantendo a ideia de que logo que um evangelista (um contribuinte) escolheu envolver-se em atividades comerciais (venda de livros e recordações) estas deveriam ser consideradas tributáveis. 24. 483 U.S. 327 (1987). 25. 460 F. 2d 553 (5ª Cir. 1972). 26. Ver também Rayburn c. A Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, 772 F. 2d 1164 (4ª Cir. 1985) (reivindicação no seguimento de uma discriminação baseada no sexo num caso de licenciamento ministerial). 27. Reynolds c. Estados Unidos, 98 U.S. 145, 164 (1879): “O Congresso foi privado de todo o poder legislativo baseado em simples opiniões mas era livre de se apegar a comportamentos que eram uma violação para com os deveres sociais ou que contrariavam a ordem estabelecida.” 28. 90 Cal. App. 3d 259 (1979), cert. den., 444 U.S. 973 (1979). 29. 763 P. 2d 1237 (Wash. 1988).
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O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DAS COMUNIDADES RELIGIOSAS Johan D. van der Vyver * Sunali Pillay era uma adolescente sul-africana de origem hindu. Conseguiu entrar na Escola secundária feminina de Durban – uma das mais prestigiadas escolas públicas na África do Sul – onde recebeu uma educação excelente. Quando atingiu um certo grau de maturidade foi colocado no seu nariz um piercing em ouro, o que é um costume entre a comunidade hindu, indicando que a jovem está elegível para o casamento. Isto causou-lhe problemas com as autoridades escolares. O código de conduta da escola, assinado pelos seus pais como condição para a admissão de Sunali, proibia o uso de quaisquer joias, exceto brincos e, mesmo assim, sob meticulosas condições especificadas no código de conduta. A mãe da Sunali explicou à direção da escola que a sua filha não usava aquele ornamento como um assessório de moda mas por respeito para com uma velha tradição da comunidade hindu. A administração da escola recusou conceder uma exceção a Sunali baseada nessa prática. O sr. Pillay moveu um processo contra a Escola alegando discriminação. O tribunal decidiu em favor da Escola1 e o assunto foi levado perante o Tribunal Constitucional da África do Sul. Este Tribunal decidiu que a recusa da Escola em fazer 65
uma exceção ao uso de joias no caso da Sunali, baseado no código de conduta da Escola, equivalia a uma discriminação irrazoável e era, assim, ilegal.2 Leyla Șahin era uma estudante muçulmana na Universidade de Istambul, na Turquia. Foi excluída das aulas porque usava o lenço islâmico – que era interdito em todas as universidades e nos edifícios do Governo por causa de uma lei baseada no facto da Turquia ser um Estado laico. Em 1988, Leyla apresentou uma queixa, baseada na Convenção Europeia da Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.3 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – que é a última instância no sistema europeu da proteção dos direitos do Homem – decidiu a favor da Turquia. O Tribunal decidiu que a interdição do uso do lenço se baseava nos princípios constitucionais de laicidade e de igualdade e consequentemente não constituía uma violação da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Nem a sua suspensão da Universidade por se recusar a retirar o lenço constituía uma violação da Convenção. A jovem Șahin posteriormente deixou a Turquia e agora vive em Viena.
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O julgamento do Tribunal Constitucional da África do Sul foi baseado nas cláusulas da não-discriminação na Lei 4 de 2000 sobre a Promoção da Igualdade e Prevenção das Injustiças,4 e mais precisamente na interdição na discriminação baseado na religião e na cultura.5 Isso poderá explicar-se pelo facto de o caso ter chegado ao Tribunal Constitucional via Tribunal de primeira instância. Se o litígio tivesse seguido uma outra via, o Tribunal Constitucional teria, provavelmente, sido obrigado a abordá-lo do ponto de vista religioso, a saber, sob o ângulo do direito de cada um à “liberdade de consciência, de religião, de pensamento, de crença e de opinião.6 Sublinhando que a proibição feita a Sunali de usar o piercing no nariz também atenta contra outros direitos constitucionais (além da dignidade humana), podemo-nos com efeito admirar que o Tribunal mencione apenas a liberdade de expressão, e não a liberdade de religião.7 Esta omissão foi talvez causada pelo facto de o Tribunal se recusar a decidir definitivamente se o uso do piercing nasal pelas mulheres hindus era uma matéria de religião ou simplesmente um costume hindu e, portanto uma questão de cultura. Ao referir-se à discriminação baseada na religião e na cultura, o Tribunal não fez esta escolha. Este caso parece ser um simples caso do direito à autodeterminação das comunidades culturais, religiosas e linguísticas, as quais, sob a Constituição da África do Sul, incluem o direito de tais comunidades “de gozarem da sua cultura, praticar a sua religião e a usar a sua língua”.8
O caso Sunali Pillay é um exemplo da interação entre os diferentes princípios que se referem, particularmente, à religião: a interdição da discriminação baseada na religião ou crença, a liberdade de religião e o direito à autodeterminação das comunidades religiosas. Embora estes direitos se sobreponham em grande parte, a sua aplicação faz intervir, em cada caso, elementos absolutamente únicos. Consequentemente é necessário dissociá-los claramente. O caso de Leyla Șahin ilustra, por sua vez, que vários países do mundo – e eles são muitos – que, como a Turquia, não são favoráveis ao direito à autodeterminação das comunidades étnicas que vivem dentro das suas fronteiras. O seu a priori negativo baseia-se numa negação completa da diversidade étnica, religiosa ou linguística que existe entre os seus respetivos cidadãos ou residentes. Outros países alinham com a Turquia a este respeito incluindo a Grécia e a França. A Grécia é particularmente desprovida desta concessão para com a distinta identidade do povo da Macedónia originário de Florina (no norte da Grécia), que reivindica o direito a ter a sua própria identidade. No que diz respeito à França, o presidente Jacques Chirac, em 15 de março de 2004, assinou uma emenda ao Código Francês de Educação aplicando o princípio da laicidade (separação da Igreja e do Estado), proibindo “o uso de símbolos ou objetos que mostrem a filiação religiosa nas escolas públicas primárias e secundárias”.9 E também não passou despercebido que quatro países com uma importante população 66
O direito à autodeterminação das comunidades religiosas
autóctone tenham votado contra a adoção da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2 de outubro de 2007, (ratificado por ocasião da 107ª sessão plenária): tendo sido esses países a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá e os Estados Unidos da América. Estes Estados basearam as suas objeções em parte sobre o (projetado) direito à autodeterminação concedida aos povos indígenas.10 O direito à autodeterminação tornou-se num princípio essencial da legislação internacional. É mencionado na Carta das Nações Unidas (arts. 1(2) ver também art. 73), e figura, em boa parte, no Pacto sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (art. 1), assim como no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 1). Está presente na Convenção dos Direitos da Criança (art. 30) e é posto em evidência na Declaração das Nações Unidas no Reconhecimento da Independência aos Países e Povos Coloniais de 1960 (art. 2), como na Declaração Relativa aos Princípios do Direito Internacional sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados de acordo com a Carta da Nações Unidas de 1970. No plano regional, está integrado – o que não é pouco – no Ato Final da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, assinado em Helsínquia em 1975 (§ VIII).
intitulado O Marxismo e a Questão Nacional, no qual mostra que a natureza das comunidades políticas no interior das estruturas económicas universais e globais do comunismo, deriva da “autodeterminação”. Em março de 1916, Vladimir Ilitch Lenin publicou uma exposição mais elaborada sobre o mesmo tema no seu trabalho A Revolução Socialista e o Direito das Nações disporem de si mesmas – descrito por um analista – Robert A. Friedlander – como “a primeira definição convincente do princípio da autodeterminação dos povos”.11 Mas a autodeterminação dos Estados Nação no seio de uma ordem económica mundial não negociável estava longe do lugar que ocupa hoje. É, principalmente, ao Presidente Americano Woodrow Wilson que se atribui o mérito de permitir ao direito à autodeterminação tomar um lugar eminente no Direito Internacional. O seu Programa de Catorze Pontos de 8 de janeiro de 1918 foi classificado por Friedlander da “transformação da autodeterminação em Direito Universal”12 – apesar do Presidente nunca usar realmente, a palavra “autodeterminação”. Um dos catorze pontos propunha “um arranjo livremente debatido, num espírito aberto e absolutamente imparcial de todas as reivindicações coloniais, baseado na estrita observância do princípio segundo o qual, na regulação de todas essas questões da soberania, os interesses das populações envolvidas devem pesar tanto como as reivindicações equitativas do governo cujo título está por definir”.13 Esta declaração é considerada como a base da política da Liga das Nações em rela-
Perspetiva Histórica O conceito de autodeterminação tem a sua origem no socialismo económico. Em 1913, Joseph Stalin escreveu um detalhado documento 67
Johan D. van der Vyver
ção à futura repartição das Nações-Estado que faziam parte dos impérios mundiais derrotadas e dissolvidas com a Primeira Guerra Mundial.14 Mas à autodeterminação não deviam ainda permanecer. Pondo de parte a conotação atribuída a este conceito no pensamento político socialista, o conceito da autodeterminação adquiriu, com o tempo, pelo menos quatro significados distintos, estando cada um ligado à natureza e ao temperamento das populações que reclamam esse direito.15 A primeira versão, herdada do pós guerra 14-18, designou o direito a uma eventual independência política – nos limites do sistema dos mandatos da Sociedade das Nações – para os Estados-Nação que faziam parte dos impérios otomano, germânico, russo e austro-húngaro. Neste contexto, a autodeterminação referia-se às “comunidades étnicas, nações ou nacionalidades essencialmente definidas pela linguagem ou a cultura”,16 e classificadas de “povos”, no sentido de nações (com território definido). A segunda versão, após a Segunda Guerra Mundial, insistiu mais na necessidade de pôr fim, rapidamente, às situações coloniais,17 e aí o direito à autodeterminação estendeu-se aos povos colonizados, implicando o seu conteúdo, igualmente, a independência política para eles.18 A Declaração do Milénio das Nações Unidas alargou este princípio para incluir “o direito à autodeterminação dos povos que permanecem sob domínio colonial e sob ocupação estrangeira”.19 A terceira versão, na década de 1960, reconheceu outra categoria de “povos” com direito à autodetermi-
nação: aqueles que viviam sob um regime racista. Desta vez, o conceito implicava, antes de mais, que os povos podiam participar nas estruturas do governo do seu país. O prefixo “auto” na autodeterminação já não designava as partes da população ligadas a um território, no seio de impérios multinacionais ou coloniais, mas o conjunto da população de um território ou sistema social, económico e constitucional assente na discriminação racial institucionalizada. Na quarta versão, por fim, a noção do direito à autodeterminação segundo o Direito Internacional atual, alargou-se às comunidades nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas que, no seio de uma sociedade política, gozem de direitos particulares que lhes permitam viver segundo as tradições e os costumes do seu próprio grupo. O direito à autodeterminação de tais “povos” tem sido definido em termos claros no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966: “Nos Estados em que existem minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas que pertençam a tais minorias não podem ser privadas do direito de ter, em conjunto com outros membros do seu grupo, a sua própria vida cultural, de professar e praticar a sua própria religião, ou de usar a sua própria língua.”20 A Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas, de 1992, estabelece, 68
O direito à autodeterminação das comunidades religiosas Woodrow Wilson (1856-1924), 28º presidente dos Estados Unidos. Após a Primeira Guerra Mundial, os seus esforços para o estabelecimento da paz valeram-lhe o Prémio Nobel da Paz, em 1919. Propôs e promoveu a Liga das Nações. Foto: US Congress Library / Wikipedia / Commons
de forma semelhante o direito para as minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, “de viverem a sua própria cultura, de professarem e praticarem a sua própria religião e de usarem a sua própria língua, em privado e em público, livremente e sem interferência ou qualquer forma de discriminação”.21 Foi este, então, o ponto a que chegou o direito à autodeterminação para as comunidades religiosas.
como a Igreja Episcopal, Batista, Católica ou Ortodoxa, constitui uma entidade de grupo com uma organização ou uma estrutura formal. Tem uma identidade distinta da dos seus membros e o estatuto de “pessoa moral” com as suas estruturas internas, a sua organização e as suas atividades. Como tal, pode possuir bens, processar e ser processada, e exercer outras competências, no domínio jurídico, em seu nome. No interior da sua esfera interna dispõe de poderes soberanos, em virtude dos quais pode tratar dos seus assuntos internos sem interferências exteriores indevidas (incluindo o Estado). Mas há, há algum tempo, uma questão muito especial que tem sido debatida: uma instituição religiosa também pode beneficiar dos direitos e liberdades protegidas por uma carta de direitos constitucionais? A Constituição da África do Sul estipula, expressamen-
Esfera da Soberania e Autodeterminação O direito à autodeterminação está intimamente ligado ao princípio da esfera da soberania, mas é necessário distingui-las uma da outra. Esta distinção está intimamente relacionada com a diferença entre a comunidade religiosa e a instituição religiosa.22 Uma instituição religiosa, tal 69
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te, que as pessoas morais, incluindo as Igrejas e outras instituições religiosas, gozam dos direitos protegidos pela sua Declaração dos Direitos (Bill of Rights) “de acordo com a natureza do direito e a natureza da pessoa moral”,23 e também torna a Bill of Rights obrigatória para pessoas jurídicas, incluindo Igrejas e outras instituições religiosas, “tendo em conta a natureza do direito e a natureza do dever imposto”. O poder de uma instituição religiosa para regular os seus próprios assuntos internos sem interferência externa – incluindo a interferência através de leis ou de medidas administrativas do Estado – é frequentemente chamado soberania da instituição religiosa na sua esfera doméstica. Isso também faz parte integrante das dispensações constitucionais sul-africanas, que incluem o princípio segundo o qual “em assuntos eclesiásticos é vantajoso que os conflitos, à medida que eles surgem, sejam resolvidos através de mecanismos internos”.24 Nos Estados Unidos, numa análise recente da jurisprudência da Primeira Emenda, Paul Horwitz foi para além da questão das leis que podem, ou não, ser promulgadas pelo Congresso em razão das restrições impostas pela Constituição por se interessar no papel das instituições que funcionam sob a proteção da Primeira Emenda: as universidades, a imprensa e as associações religiosas.25 Baseada na doutrina da “esfera de soberania” do filósofo e homem político holandês Abrahan Kuyper, demonstrou de forma convincente, que estas “instituições da Primeira
Emenda” deveriam ter o direito de funcionar em completa autorregulação e para além do controlo de regimes jurídicos externos. Nas Constituições de diversos países encontram-se disposições que definem a esfera de soberania das instituições religiosas. A Constituição de Singapura limita a soberania interna dos grupos religiosos à gestão dos seus assuntos internos (art. 15.3); a Constituição romena permite aos grupos religiosos organizarem-se segundo os seus próprios estatutos mas nos termos fixados pela lei (art. 29.3). A Constituição italiana estipula, no seu artigo 7, que “o Estado (apenas) e a Igreja Católica são, cada um no seu domínio, independentes e soberanos”. A Constituição irlandesa declara, mais generosamente, que cada “confissão religiosa” tem o direito de tratar dos seus próprios assuntos (…) (art. 44.5). Na Carta dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a República Checa afirma que “as Igrejas e sociedades religiosas gerem os seus próprios assuntos; escolhem as suas próprias autoridades, escolham o seu clero e fundam as suas ordens religiosas e outras instituições religiosas, independentes das autoridades estatais” (art. 16.2). A Polónia define a relação entre o Estado e as Igrejas, assim como outras organizações religiosas com base no “princípio do respeito pela sua autonomia e a independência mútua nos seus respetivos domínios, assim como o princípio da cooperação para o bem do Homem e para o bem comum” (art. 25.3). Nos Estados Unidos, o caso Kedroff c. St. Nicholas Cathedral 70
O direito à autodeterminação das comunidades religiosas Jonah Pafhausen, nascido em 1959, arcebispo de Washington, metropolita de toda a América e Canadá, é o primaz da Igreja Ortodoxa na América. Foi eleito a 12 de novembro de 2008 e instalou a sua sede a 28 de dezembro de 2008, em Washington D.C. Foto: Massalim / Creative Commons
(1952) torna claro o direito constitucional à liberdade de religião para as Igrejas.26 Convém colocar este julgamento no seu contexto histórico. Em 1925, o Estado de Nova Iorque adotou uma lei (Religious Corporation Law) com o objetivo de adquirir uma catedral para os ofícios da Igreja Ortodoxa Russa na América do Norte, “de acordo com a doutrina, disciplina e o culto da Santa Igreja Católica Apostólica da Confissão Oriental assim como o ensino das Santas Escrituras, a tradição, os sete concílios ecuménicos e os santos Pais da Igreja”. Em 1945, por causa dos fortes sentimentos antissoviéticos que, na época, prevaleciam no país, foi acrescentado um Artigo (5-C) à Religious Corporation Law (seguida de emendas explicativas em
1948). O objetivo era transferir o controlo que o Patriarca central de Moscovo exercia sobre as Igrejas Ortodoxas Russas de Nova Iorque, para as autoridades dessa Igreja residentes na América do Norte. Para esse efeito, o Arcebispo Ortodoxo de Nova Iorque foi em seguida eleito Metropolita da América e do Canadá por um sobor27 das Igrejas americanas. Mas levantou-se uma questão de saber se tinha, ou não, segundo o artigo 5-C, competência, para ocupar a propriedade da igreja de Nova Iorque. O julgamento decidiu a favor do patriarca de Moscovo, tendo o tribunal considerado que o artigo 5-C violava o direito constitucional do “livre exercício de um direito eclesiástico, o direito da Igreja escolher a sua hierarquia”.27 O Juiz Reed, falan71
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do pela maioria, disse que um “espírito de liberdade para as organizações religiosas” abrange “o poder de decidir por si mesmos, livres da toda a ingerência do Estado, nos assuntos de gestão da Igreja, assim como nas questões relativas à fé e à doutrina”, “liberdade que inclui o direito de escolher o clero da Igreja”.28 Um jurista americano, analisando o caso Kedroff, definiu a substância dos direitos do grupo institucional que reveste a Igreja como um assunto de soberania:
segue a “conceção tradicional geral” de uma comunidade, a que se chamaria hoje um “povo”: “A ‘comunidade’ aparece como uma coletividade de pessoas vivendo num país, ou numa determinada localidade, tendo uma raça, uma religião, uma língua e tradições comuns e unidas pela identidade dessa raça, dessa religião, e dessa língua e dessas tradições num sentimento de solidariedade, tendo em vista preservar as suas tradições, manter o seu culto, assegurar a instrução e educação dos seus filhos de acordo com o espírito e tradições da sua raça e prestando, entre si, mútua assistência.”30
“O essencial da tese pluralista baseia-se na convicção de que o governo deve reconhecer que não é o único detentor da soberania, e que os grupos privados existentes na comunidade têm o direito de orientar as suas próprias vidas livremente e exercer, na área da sua competência, uma autoridade tão real que possa ser qualificada de autoridade soberana.”29
O Direito Internacional qualifica como “povos” as comunidades com o direito à autodeterminação no sentido contemporâneo do termo. Mas, para Yoram Dinstein, a noção de povo compreende dois elementos: um elemento objetivo, a saber as circunstâncias factuais, de que depende a unidade do grupo, e um elemento subjetivo, que consiste num determinado estado de espírito – a consciência de pertença ao grupo e talvez a vontade de se lhe associar.31 O direito à autodeterminação de um povo, incluindo uma comunidade religiosa, é, portanto, um direito de um caráter particular: um direito do grupo coletivo a distinguir de um direito do grupo institucional. Um direito do grupo coletivo é concedido aos indivíduos que pertencem a uma certa categoria – as
Qual é então a diferença entre a soberania de uma instituição religiosa sobre a esfera institucional e o direito à autodeterminação de uma comunidade religiosa? Uma comunidade religiosa é composta por pessoas que partilham a mesma confissão de fé. O grupo não está estruturado de maneira formal, mas os seus membros estão ligados por um envolvimento religioso comum ou uma convicção religiosa comum. No caso das Comunidades grego-búlgaras de 1930, o Tribunal de Justiça Internacional definiu como 72
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Buggy, transporte tradicional amish no condado de Lancaster, na Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Foto: Creative Commons
crianças, as mulheres – ou a comunidades étnicas, religiosas culturais. O direito para “todas as pessoas que pertençam a uma minoria nacional (…) à liberdade de reunião pacífica, e à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”,32 pertencendo, portanto, a cada membro do grupo e pode ser exercido separadamente ou com um ou vários outros membros do grupo. O direito do grupo institucional, por outro lado, é conferido a uma instituição social como tal, e não pode ser exercido por essa entidade coletiva senão através da agência dos seus órgãos representativos autorizados. A comunidade religiosa tem o direito à autodeterminação. Os membros deste grupo podem professar
e praticar a sua religião sem que os poderes públicos imponham limites abusivos a esse direito. Um direito do grupo coletivo à autodeterminação para as comunidades religiosas tem sido reconhecido nos Estados Unidos em diversos casos. Tem permitido, por exemplo, justificar o pagamento dos subsídios de desemprego para os Adventistas do Sétimo Dia que recusam trabalhar no seu dia de descanso,33 ou a uma Testemunha de Jeová que recuse, por motivos religiosos, trabalhar numa fábrica de armamento34 e, igualmente, dispensar, por causa das suas convicções religiosas os membros da comunidade Amish da Velha Ordem e da Igreja dos Amish Menonitas Conservadores, da obrigação legal de enviar os seus 73
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filhos à escola até à idade de 16 anos.35 O direito à autodeterminação, como um direito de um grupo coletivo, envolve mais do que meramente mostrar-se conciliador para com as crenças e práticas particulares de um grupo. Em virtude do direito à autodeterminação, os governos são levados a garantir, através dos seus sistemas constitucionais e jurídicos respetivos, os interesses dos diversos setores da população que constituem um povo no sentido mais amplo. A Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas define, claramente, esta obrigação dos Estados: proteger a identidade coletiva de cada minoria relevante das suas jurisdições respetivas e favorecer “a instauração de condições próprias para promover esta identidade” (art. 1.1 e 4.2); em particular, fornecer às populações minoritárias os meios “de tomar uma parte efetiva (…) nas decisões que digam respeito à minoria a que pertencem (art. 2.3); não discriminar, de forma alguma, as pessoas com base no grupo com que se identificam (art. 3), e por fim, tomar “medidas para que as pessoas que pertençam a minorias” vejam garantidas “condições de plena igualdade perante a lei” e pela lei (art. 4.1). A Declaração prevê ainda que:
práticas específicas violam a lei nacional e contrariam as normas internacionais.”36 A Convenção-Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais ratificada pelo Conselho da Europa especifica os direitos das minorias no mesmo espírito: Ele garante “o direito à igualdade perante a lei e a uma igual proteção da lei (art. 4.1); os Estados signatários “prometem promover as condições necessárias para permitir às pessoas que pertençam a minorias nacionais conservar e desenvolver a sua cultura, assim como preservar os elementos essenciais da sua identidade que são a sua religião, a sua língua, as suas tradições e o seu património cultural” (art. 5.1); “a reconhecer o direito a toda a pessoa que pertença a uma minoria nacional o direito de manifestar a sua religião ou a sua convicção, assim como o direito de criar instituições religiosas, organizações e associações” (art. 8).
Os Limites do direito à autodeterminação Os indivíduos ligam-se uns aos outros por afinidades em todos os tipos de grupo, que repousam seja sobre características biológicas – o sexo, a raça e os laços familiares – seja sobre a história – uma base comum nacional, cultural, religiosa ou linguística. A filiação a um grupo envolve geralmente certas obrigações para com as convicções e práticas tradicionais entendidas pelos seus membros como condições sine qua non para manter a identidade e interesses desse grupo. Mas à
“Os Estados tomarão medidas para criar condições favoráveis para permitir às pessoas que pertençam a minorias, expressarem as suas características e desenvolver a sua cultura, língua, religião, tradições e costumes, exceto quando essas 74
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luz das noções contemporâneas dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, algumas destas crenças e destes costumes foram postos em causa. A Sociologia, o Direito e as ciências políticas têm assim sido levadas a questionar-se como melhor conciliar as identidades dos grupos presentes na comunidade política com as leis e/ou as estruturas do Estado. Onde se situa o limite entre as práticas – dos grupos religiosos, por exemplo – que devem ser protegidas pelo direito à autodeterminação e as que já não podem ser toleradas atualmente no momento da “governação humana”? O problema apresenta-se sob dois aspetos bem distintos: primeiro, em que medida se pode acolher a formação de grupos nas estruturas políticas do Estado; e segundo, como responder através de intervenções legais às práticas baseadas na religião mas consideradas hoje, como uma ameaça para os membros mais vulneráveis do grupo? Para começar, é necessário sublinhar que o direito à autodeterminação reconhece, de uma forma geral, a existência da diversidade étnica, cultural, religiosa e linguística numa sociedade política (aquilo a que se chama o pluralismo) como um facto essencial que deve ser tido em conta nas estruturas políticas e nos dispositivos jurídicos do Estado. Contudo, é igualmente importante que às alianças baseadas numa origem étnica comum, numa herança cultural, numa convicção religiosa ou numa identidade linguística não se deve atribuir, no seio do corpo político, um papel que ultrapasse os limites das suas características distintivas, que servem de
ligação entre os membros do grupo. Noutros termos, o elemento essencial do direito à autodeterminação é que a pertinência dos interesses do grupo deve ser determinada pela natureza deste último e limitada à sua dimensão. A proteção dos interesses de um grupo cultural deve ser confinada aos assuntos culturais, as de um grupo religioso aos assuntos religiosos, etc.. Conceder representação política nas estruturas do governo a um grupo cultural ou religioso equivaleria a atribuir às características que as definem como grupo – a cultura, ou a religião – uma dimensão que vai para além dos limites do seu verdadeiro objetivo (e utilidade) no conjunto heterogéneo que constitui a sociedade humana. Para responder à segunda questão mencionada acima, é importante notar que o direito à autodeterminação não é absoluto. Diz-se geralmente que não legitima as violações dos direitos humanos que podem estar inerentes a uma tradição étnica ou de um costume religioso. Mas é uma forma de ver um pouco superficial. O Direito Internacional parece, com efeito, tolerar a discriminação contra as mulheres como manifestação de uma tradição cultural ou um dogma religioso, mas é bastante claro quando se trata, por exemplo, de condenar a mutilação genital feminina – uma prática que, pelo menos em algumas comunidades, se baseia em considerações religiosas. As autoridades políticas parecem ter por princípio não utilizar a força da lei para proibir práticas religiosas que se limitam à discriminação sexual. Em contrapartida, não aceitam, sob o pretexto do 75
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direito à autodeterminação, práticas religiosas ou culturais que constituam um atentado ao direito à vida ou à integridade física. A este respeito, um problema muito particular se põe cada vez que pais, baseados em convicções religiosas, recusam que se administre ao seu filho um medicamento ou um tratamento terapêutico tendo em vista a manutenção da vida. Nos Estados Unidos, lidar com este problema tem tido uma história atribulada.37 Segundo os Estados existem leis que isentam os pais da obrigação legal de prestar cuidados médicos a um filho à sua guarda, se eles preferem recorrer a um tratamento espiritual ou a cura pela fé.38 No entanto, esta concessão à liberdade religiosa não dispensa os pais de responderem perante a lei com base em homicídio involuntário, se a criança vem a falecer, por não poder ter sido tratada pela medicina convencional.39 Serão, portanto, processados por terem aplicado, no lugar dos cuidados médicos tradicionais, um tratamento espiritual, mas apenas se tal tratamento se revelou ineficaz e resultou na morte da criança.40 Na África do Sul, o Supremo Tribunal de Justiça, como tutor supremo de todas as crianças, pode intervir, autorizando os procedimentos médicos possíveis enquanto a vida da criança pode ser salva. Pode, consequentemente, não aceitar a decisão dos pais que, por razões religiosas, não consentirem que o seu filho receba uma transfusão de sangue (ou um outro tratamento terapêutico) considerado por um pediatra, como necessário para a sobrevivência da criança.41 Na África do Sul, o Direito
Constitucional à vida de uma criança sobrepõe-se sempre sobre a reivindicação dos pais ao exercício da sua liberdade religiosa. Como foi dito nos parágrafos introdutórios deste artigo, o Tribunal Constitucional da África do Sul e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que respeitam, ambos, o princípio da igualdade de tratamento e da não-discriminação, chegaram a conclusões opostas quanto à legalidade dos regulamentos e das leis que proíbem o uso de símbolos ou roupas distintivas com base em considerações religiosas. Aplicando o princípio da igualdade, segundo a perspetiva do secularismo constitucional turco, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não pode aderir à falsa evidência segundo a qual a igualdade de tratamento dos grupos exige, de facto, que para as questões legais se faça distinção em função dos diferentes grupos nos casos em que estas diferenciações são realmente aplicáveis à característica que distingue um grupo particular de outro. Atento à composição plural da população sul-africana e preocupado, também, com o Direito Constitucional à autodeterminação das comunidades religiosas, o Tribunal Constitucional da África do Sul, pelo contrário, decidiu (no caso Pillay) que não fazer respeitar as práticas distintas da comunidade hindu equivaleria a discriminação chocante. O facto de os sistemas nacionais não oferecerem tal proteção aos interesses de uma parte da população relevante da sua área de jurisdição, ou simplesmente que esta se sente marginalizada, deve ser considerado 76
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como uma razão importante para que franjas da comunidade política com uma forte consciência de grupo aspirem incansavelmente à criação de novos Estados que seriam homogéneos: é o caso da comunidade muçulmana da Caxemira, os bascos no norte da Espanha, as fações hindus no Sri Lanka, da minoria católica da Irlanda do Norte, a comunidade cristã no Sul do Sudão, dos Curdos no Iraque e na Turquia, das pessoas de origem macedónica em Florina (norte da Grécia), e muitos outros.
Concessão da Independência dos Países e Povos Coloniais, e que proclamam o direito dos povos a “(determinar) livremente o seu estatuto político” e a “(determinar) livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural”, não devem, portanto, ser considerados como uma consagração geral de um direito à independência política. Devem ser limitados ao tema do documento de que ele provém e lidos no seu contexto: os povos submetidos a um regime colonial ou a um domínio estrangeiro têm direito à independência política, mas não é o caso para as comunidades nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas. Infelizmente, a essência do Direito como aplicado aos países e povos coloniais é muitas vezes citada nos instrumentos que tratam do direito à autodeterminação dos grupos nacionais, étnicos, religiosos ou linguísticos. Por exemplo, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, dispõe que estes povos, em virtude do seu direito à autodeterminação, “determinem livremente o seu estatuto político e assegurem livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural”.42 Mas para que esta disposição não seja interpretada como significando a independência política, o legislador estipula que nada desta Declaração pode ser considerado “como autorizando ou encorajando qualquer ação que possa destruir ou diminuir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de um Estado soberano e independente”.43 Foi exatamente o que, já em 1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos nas Nações
O direito à autodeterminação e à secessão O direito à autodeterminação conferido às comunidades étnicas, religiosas ou linguísticas não implica o direito de secessão nem de independência política – mesmo nos casos em que um governo, em violação do Direito Internacional, não defende o direito à autodeterminação de algumas franjas da sua população. O Direito Internacional é absolutamente explícito ao afirmar que a autodeterminação das comunidades étnicas, religiosas e linguísticas, deve coexistir com a “integridade territorial dos Estados” – expressão que sublinha o caráter sagrado das fronteiras nacionais existentes. Por outro lado, o direito à autodeterminação aplica-se a um povo, tanto quanto um novo Estado nascido de uma secessão é definido essencialmente pelo seu território (trata-se de um território definido que se destaca de um Estado existente e não de um povo). As definições gerais do direito à autodeterminação, tal como estão contidas na Declaração Sobre a 77
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Unidas afirmou, que o direito dos povos a determinarem “livremente o seu estatuto político” e a perseguirem “livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural” está expressamente subordinada à reserva segundo a qual:
população do Quebeque, unidos por uma origem étnica comum, um património cultural, uma filiação religiosa, ou uma preferência linguística poderiam, naturalmente, lamentar a negação do seu direito à autodeterminação, por não lhes ter sido dado acesso a um estilo de vida ditado pela sua identidade nacional, étnica, religiosa ou linguística. Mas esse não é o caso, na realidade – pelo menos não tanto quando ao que diz respeito aos habitantes da cidade de Quebeque. Existem muitas razões convincentes para evitar a todo custo a destruição de comunidades políticas que abrigam hoje uma sociedade pluralista. Primeiro, uma multiplicidade de Estados não viáveis economicamente continuará a contribuir para um declínio da qualidade de vida na comunidade mundial. Segundo, é claramente utópico acreditar que as pessoas que partilham uma língua, uma cultura ou uma religião se entenderiam forçosamente, no plano político, e a desilusão a que se arriscam após o evento poderia provocar um profundo ressentimento e mais conflitos. Em terceiro lugar, os movimentos da população no interior do próprio território das sociedades pluralistas têm minado profundamente a homogeneidade étnica, cultural ou religiosa em regiões onde esta possa ter existido no passado. É por isso que, na maior parte dos casos, seria totalmente impossível, para os secessionistas, definir fronteiras que respeitem a repartição demográfica dos grupos. Em quarto lugar, o facto de conferir uma legitimidade política à filiação étnica, cultural ou religiosa, comporta dentro de si o risco de uma repressão das minorias no seio
“O que precede não deverá ser interpretado como autorizando ou encorajando qualquer medida de natureza a desmembrar ou comprometer, total ou parcialmente, a integridade territorial ou unidade política de Estados soberanos e independentes que respeitem o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos e, portanto, dotados de um Governo que representa a totalidade da população pertencente ao território sem distinção de qualquer espécie.”44 Em 1996, o Supremo Tribunal do Canadá foi encarregado de examinar, entre outras coisas, se existe ou não, de acordo com o Direito Internacional, o direito de autodeterminação que autorizaria a Assembleia Nacional, o poder legislativo, ou o governo de Quebeque, a separar-se do Canadá de forma unilateral. Ele respondeu à questão pela negativa invocando diversas razões.45 Tornou-se evidente que os habitantes do Quebeque, não constituem um “povo”, no sentido do Direito Internacional, uma vez que são compostos por diversos grupos étnicos, culturais, religiosos ou linguísticos. Por esta simples razão, não podem reivindicar o direito à autodeterminação. Alguns setores da 78
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da Nação, e não oferece nenhum estatuto político às pessoas que, em virtude de mestiçagem ou de casamento misto, não se podem identificar com qualquer grupo específico nem aos que, por uma ou outra razão, não desejam fazer parte de nenhuma categoria étnica, religiosa ou cultural. E, em quinto lugar – em consequência do acima exposto – um Estado definido por uma etnia, uma cultura ou uma religião criará, na maior parte das vezes, os seus próprios “problemas de minorias”. Com efeito, a formação do Estado secessionista, estando baseada em motivações étnicas, culturais ou religiosas, faria com que aqueles que não aderissem a estes últimos seriam, quase invariavelmente, objeto de uma profunda discriminação ou, pior ainda, de uma estratégia de “limpeza étnica”.
atribui a um grupo particular – seja ele o Estado, ou uma comunidade racial, étnica, ou religiosa – uma importância exagerada e uma posição dominante sobre os indivíduos dentro e, muitas vezes, para além do seu círculo. Ele aspira seja a homogeneidade, seja, senão a subordinação, a repressão e/ou a perseguição do outro. Ele tem como objetivo quer a hegemonia, quer, pelo menos a subordinação, a repressão e/ou a perseguição do outro. Ele mantém o sentimento de uma superioridade ou de um domínio, que não pertenceria senão ao grupo, explora a propensão para a xenofobia dos seus membros e pode, no limite, chegar ao genocídio ou a formas extremas de “limpeza étnica”. O direito à autodeterminação, pelo contrário, é sensível às identidades dos diversos grupos da comunidade política e procura conciliá-las. Encoraja cada um a orgulhar-se da sua origem cultural e da sua filiação religiosa. Dá o seu apoio à organização política de uma “nação arco-íris”, segundo a célebre expressão do bispo Desmond Tutu. No fim de tudo, é também do interesse do Estado satisfazer e mesmo proteger o direito à autodeterminação das comunidades religiosas nas estruturas políticas. O Tribunal Constitucional da África do Sul tem, em diversas ocasiões enfatizado a importância vital da religião como uma componente da democracia constitucional sul-africana. No caso Christian Education South Africa c. Minister of Education, o juiz Albie Sachs declarou: “Não há nenhuma dúvida de que o direito à liberdade
Conclusão As pesquisas realizadas pelos especialistas para encontrar uma solução válida para o problema das alianças de grupos no seio da comunidade política geraram, até agora, uma grande variedade de teorias e de práticas sócio-políticas, que vão desde o individualismo rigoroso até todas as formas de totalitarismo. As expressões mais extremas do individualismo negam a pertinência – se não a própria existência como parte da realidade empírica – de entidades de grupo institucionais, visando desvalorizar os interesses da comunidade das pessoas que compõem uma comunidade distinta para reduzir estas últimas a uma parte insignificante e inferior do género humano. Por seu lado, o totalitarismo 79
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de religião, crença e opinião é importante numa sociedade aberta e democrática considerada no quadro da Constituição. O direito de crer, ou não crer, e de agir ou não agir em função das suas convicções ou da sua ausência de convicções constitui um dos elementos-chave da dignidade da pessoa humana. Contudo, a liberdade religiosa vai para além da proteção da inviolabilidade da consciência individual. Para muitos crentes, a sua relação com Deus ou a Criação é o centro de todas as suas atividades. Influencia a sua capacidade de se relacionar consigo mesmo e a interagir de forma aprofundada com a sua comunidade e o seu universo. Para milhões de pessoas, em todas as esferas da vida, a religião oferece um suporte e um quadro para a estabilidade e o desenvolvimento individual e social. A crença religiosa tem a capacidade de fazer nascer noções como a autoestima e a dignidade humana que formam a pedra angular dos direitos humanos. Ela influencia a visão do crente sobre a sociedade e permite distinguir entre o bem e o mal. Expressa-se através da afirmação e a persistência de tradições fortemente alicerçadas, que, muitas vezes, remontam tão longe que transcendem as épocas e as fronteiras nacionais.”46
o juiz Sachs, partilhando a decisão unânime do Tribunal, enfatizou a importância da religião para o Estado: “As organizações religiosas desempenham um papel fundamental e de uma grande importância na vida pública, quer seja através das escolas, das hospitais ou dos programas de luta contra a pobreza (sic). Elas exigem dos seus membros um comportamento ético (sic) e demonstram que o poder se pode exercer na colaboração entre o Estado e os organismos privados; encorajam a música, o teatro e as artes (sic); colocam salas à disposição da coletividade e dirigem uma grande variedade de atividades sociais para os seus membros e o conjunto da população. Elas integram-se bem na estrutura da vida pública e são elementos ativos da Nação diversificada e pluralista descrita pela Constituição. A religião não se limita a uma questão de crença ou de doutrina. Faz parte do caráter e da cultura e desempenha um papel significativo no modo de vida de muitos crentes. As organizações religiosas formam um setor importante da vida nacional e por consequência têm o direito de se exprimir perante o governo e os tribunais sobre as grandes questões que estão na ordem do dia. Eles participam ativamente na vida pública e têm
Num caso que estabeleceu a legalidade do casamento homossexual, 80
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o pleno direito de dar a sua opinião sobre a forma como o Direito é concebido e aplicado.”
profundamente estabelecidos” e não impor a uma parte da população as convicções religiosas de um outro. O Tribunal deve, em particular, proteger as minorias, contra a discriminação pelas opiniões da maioria.47 No fundo, não é isto o que significa fazer respeitar o direito à autodeterminação das comunidades religiosas no seio das estruturas social, política e jurídica de uma nação?
O Tribunal, acrescentou ele, deve reconhecer os diferentes domínios que ocupam o secular e o sagrado e não forçar um a invadir o outro; deve “conciliar e gerir de forma justa e razoável as diferenças entre visões do mundo e dos modos de vida
* Este texto de Johan D. Van der Vyver é um excerto tirado e adaptado de Leuven Lectures on Religious Institutions, Religious Communities and Rights,: Uitgeverij Peeters, Lovaina 2004, e é usado aqui com a permissão do autor e do editor. a. Nas Igrejas Ortodoxas, um sobor é um concílio composto por bispos e outros delegados ligados ao clero e da sociedade laica representando a Igreja no seu conjunto para tratar de assuntos importantes.
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Johan D. van der Vyver Notas: 1. Pillay c. MEC for Education, KwaZulu-Natal & Others, 2006 (6) SA 363 (EqC) (África do Sul). 2. MEC for Education: KwaZulu-Natal & Others c. Pillay, 2008 (1) SA 474 (CC) (África do Sul). 3. Leyla Șahin c. Turquia (Appl. No. 44774/98), CEDH, vol. 2005-XI 173, 11 de outubro de 2005. Interdição feita a uma estudante de usar o lenço islâmico na universidade: não-violação (Leyla Șahim c. Turquia). Ver também o julgamento: http://www.pusc.it/can/p_martinagar/Irgiurisprinternaz/HUDOC/Ley laSahim/20051110SahimGrCh44774-98fr.htm. 4. A Lei 4 de 2000 sobre a promoção da igualdade e a prevenção de discriminações injustas foi promulgada sob a secção 9 (4) da Constituição da República da África do Sul, Lei 108, de 1996, visando a interdição da discriminação injusta por pessoas ou instituições que não o Estado. 5. MEC for Education: KwaZulu-Natal & Others, ver acima nota 2, § 68, com referência à Lei sobre a promoção da igualdade e a prevenção de discriminações injustas, art. 6. 6. Constituição da África do Sul ver acima nota 5, § 15(1). 7. MEC for Education: KwaZulu-Natal & Others, ver acima nota 2, at § 93. 8. Constituição da África do Sul, ver acima nota 5, § 15(1). 9. Lei nº. 2004-228 de 15 de março de 2004 enquadrando, em aplicação do princípio de laicidade, o uso de sinais ou formas, manifestando uma filiação religiosa nas escolas, colégios e liceus públicos. Ver também, Artigo L 141-5 – 1 do Código da Educação: “Nas escolas, colégios e liceus públicos, o uso de sinais ou formas pelas quais os alunos manifestem ostensivamente uma filiação religiosa é interdita.” 10. Ver S. James, Anaya, International Human Rights and Indigenous Peoples, Wolters Kluwer, Lovaina 2009, pp. 71-75 (U.S.A.), pp. 83 e 84 (Austrália), pp. 84-86 (Canadá), pp. 86-87 (Nova Zelândia). 11. Antonio Cassese, Self-Determination of Peoples: A Legal Reappraisal, Cambridge University Press, Cambridge, 1995, pág. 15. 12. Robert Friedlander, “Self-Determination: A Legal-Political Inquiry”, Detroit College of Law Review, 1975, vol. 1, pp. 71, 73. 13. Discurso do Presidente Woodrow Wilson de 8 de janeiro de 1918 perante o Congresso dos Estados Unidos, ponto 5, in Public Papers of Woodrow Wilson: War and Peace, vol. 1, R.S. Baker & W.E. Dodd eds., Harper and Bros, Nova Iorque e Londres 1927, pp. 155-159. 14. Vernon van Dyke, Human Rights, the United States, and World Community, Oxford University Press Nova Iorque, 1970, pág. 86. 15. Ver Johan D. van der Vyver, “Sovereignty and Human Rights in Constitutional and International Law”, in Emory International Law Review, vol. 5, 1991, pp. 321, 395-416; Johan D. Van der Vyver, “Self-Determination and the Peoples of Quebec”, in J. Transnational Law & Policy, vol. 10, 2000, pp. 1, 14-19; Johan van der Vyver, “Self-Determination and the Right to Secession of Religious Minorities under International Law”, in Protecting the Human Rights of Religious Minorities in Eastern Europe, Peter G. Dachin & Elizabeth A. Cole eds., Columbia University Press, Nova Iorque 2002, pp. 251, 258-261; J.D. van der Vyver, “Cultural Identity as a Constitutional Right in South Africa”, Stellenbosch Law Review, vol. 14, 2003, pág. 51. 16. N. Berman, “Sovereignty in Abeyance: Self-Determination and International Law”, Wisconsin International Law Journal vol. 7, 1988, pp. 51, 53-56, 58, 86 e 87. 17. Tribunal Internacional de Justiça, Sahara Ocidental (Parecer Jurídico), vol. 1, 1975, pág. 31 (25 de maio de 1975); ver também: TIJ, Consequências jurídicas para os Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia (Sudoeste Africano) não obstante a resolução 276 (1970) do Conselho de Segurança (Parecer jurídico), vol. 1, 1971, pp. 16, 31 (21 de junho de 1971) (o Tribunal determina que o direito à autodeterminação é aplicável aos “territórios que se encontrem sob domínio colonial” e que “engloba todos os povos e os territórios que ainda não acederam à independência”). 18. N. Berman, ob cit., pág. 54; ver também: Cassese, ob. cit., pág. 76; van Dyke, ob. cit., pág. 87; R. Emerson, “Self-Determination”, in American Journal of International Law, vol. 66, 1971, pp. 459, 463; O. Schachter, “The United Nations and Internal Conflict”, in Law and Civil War in the Modern World, J.N. Moore ed., Johns Hopkins University Press, Baltimore, MD, 1974, pp. 401, 406 e 407; G. Tesfagiorgis, “Self-Determination: Its Evolution and Practice by the United Nations and its Application in the Case of
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O direito à autodeterminação das comunidades religiosas Eritrea”, Wisconsin International Law Journal, Vol. 6, 1987, pp. 75, 78-80. 19. Declaração do Milénio das Nações Unidas, Res 55/2 § 4, Assembleia-Geral 55ª sessão de 8 de setembro de 2000, UN Doc. A/RES/55/2,A/55/P.V. 8 (2000). 20. Pacto Internacional Relativo aos direitos civis e políticos, art. 27, A.G. Res. 2200 (XXI) de 16 de dezembro de 1966, http://hrea.org/erc/Library/hrdocs/un/iccpr/french.html; ver também Felix Ermacora, The Protection of Minorities Before the United Nations, in Recueil des Cours vol. 1983-IV, Academia do Direito Internacional de Haia, Martinus Nijhoff Publishers, 1983, pág. 246. 21. Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, art. 2.1, A.G. Res.47/136 de 18 de dezembro de 1992, UN Doc. A/RES/47/135, (1992): http://www2.ohchr.org/french/law/minorities.htm. 22. Ver van der Vyver, ob. cit., pp. 3-5. 23. Const. RSA, ver nota 5, § 8(4). 24. Methodist Church of Southern Africa c. Mtongana, 2008 (6) SA 69, § 10 (TkHC) (Afr.S). 25. Ver Paul Horwitz, “Universities as First Amendment Institutions: Some Easy Answers and Hard Questions”, in UCLA Law Review, vol., 54, 2007, pág. 1497; Paul Horwitz, “Churches as First Amendment Institutions: Of Sovereignty and Spheres”, in Harvard Civil. Rights and Civil Liberties Law Review, vol. 35, 2009, pág. 79. 26. Kedroff c. St. Nicholas Cathedral, 344 US 94, 1952; ver também John H. Garvey, “Churches and the Free Exercise of Religion”, Notre Dame Journal of Law, Ethics & Public Policy, vol. 4, 1990, pp. 567, 578-584 onde o autor conclui, fazendo referência ao caso Kedroff (pág. 584) que “as Igrejas como grupos podem igualmente reivindicar um direito ao livre exercício da religião”. 27. Idem, pág. 119. 28. Idem, pág. 116. 29. Mark DeWolfe Howe, “Foreword: Political Theory and the Nature of Liberty”, Harvard Law Review, vol. 67, nº 1, 1953, pág. 91. 30. Publicações do Tribunal Internacional de Justiça permanente, série B, nº 17 de 31 de julho de 1930, Recolha de Pareceres Jurídicos, “Questão das Comunidades Greco-Búlgaras”, Sociéte d’éditions A.W. Sijthoff, Haia, 1930. http://icj-cij.org/pcij/serie_B/B_17/01_Communautes_greco-bulgares_Avis_ consultatif.pdf, pág. 21. 31 . Yoram Dinstein, “Collective Human Rights of Peoples and Minorities”, in International and Comparative Law Quarterly, Cambridge University Press, vol. 25, nº 1, 1976, pp. 102 e 103. 32. Ver Conselho da Europa, Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais, Título II, art. 7, Estrasburgo, 1 de novembro de 1995. 33. Sherbert c. Verner, 373 US 398, 1963; ver também Hobbie c. Unemployment Appeals Commission of Florida, 480 US 136, 1987; Frazee c. Illinois Department of Employment Security, 489 US 829, 1989. 34. Thomas c. Review Board, Indiana Employment Security Division, 450 US 707, 1981. 35. Wisconsin c. Yoder, 406 US 205, 1972. 36. Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, art. 4.2. 37. Ver Edward Egan Smith, “The Criminalization of Belief: When Free Exercise Isn’t”, Hastings Law Journal, vol. 42, 1991, pág. 491. 38. Walker c. Superior Court, 763 P. 2d, 1988, pp. 852, 858 (referente ao § 270 do Californian Penal Code. 39. Idem, pág. 878. 40. Ver John Dwight Ingram, “State Interference with Religiously Motivated Decisions on Medical Treatment”, Dickinson Law Review, Vol. 93, Dickinson School of Law, 1988, pp. 41, 59. 41. Hay c. B, 2003 (3) SA 492 (W) (RSA). 42. Declaração dos Direitos dos Povos Autóctones, art. 3, A.G. Res. 6/295 de 2 de outubro de 2007, UN Doc. A/RES/61/295, 2007.
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Johan D. van der Vyver 43. Idem, pág. 46 (1). 44. Declaração e Programa de Ação de Viena, UN Doc. A/CONF.157/23, Parte I, § 2, de 12 de julho de 1993. 45. Resposta relativa à secessão do Quebeque, (1998) 2 R.C.S. 217, Supremo Tribunal de Justiça do Canadá, 1998. 46. Christian Education South Africa c. Minister of Education, 2000 (4) SA 757; 2000 (10) BCLR 1051 (CC), § 36 (RSA). 47. Minister of Home Affairs c. Fourie; Lesbian and Gay Equality c. Minister of Home Affairs, (1) SA 524, 2006 (3) BCLR 355, § 93-95 (CC) (RSA).
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DEMOCRACIAS OCIDENTAIS: UM DIREITO FAMILIAR BASEADO NA FÉ? John Witte, Jr. e Joel A. Nichols* A 2 de fevereiro de 2008, o arcebispo anglicano Rowan Williams desencadeou um clamor mundial ao declarar que a adoção de alguns aspetos do Direito Familiar muçulmano na Grã-Bretanha era “inevitável”.1 A sua proposta, se bem que prudentemente matizada, suscitou, nos meses seguintes, o aparecimento de mais de 250 artigos, na maioria hostis, na imprensa internacional. Segundo os críticos, a Inglaterra iria defrontar-se em breve com a “poligamia autorizada”, os procedimentos bárbaros e a violência extrema para com as mulheres encerradas nas burkas sufocantes. Os cidadãos muçulmanos de uma democracia ocidental iam ser submetidos aos tribunais muçulmanos legalmente “guetizados” ao abrigo dos procedimentos dos tribunais civis e o controlo da constitucionalidade das leis. Outros detratores aludiram à forma como a Nigéria, o Paquistão e outras antigas colónias britânicas tentaram encontrar um equilíbrio entre a sharia muçulmana e a common law. Os abusos terríveis e as repetidas violações dos direitos do homem cometidos nesses países pelos tribunais religiosos – como a lapidação, pelos fiéis, de vítimas inocentes de violação pela
desonra que causaram às suas famílias – provam que as leis religiosas e as leis do Estado sobre a família, simplesmente, não podem coexistir. Assunto arrumado. Mas este assunto não permaneceu arquivado por muito tempo, porque o arcebispo não apelava à instauração, em Inglaterra, de tribunais muçulmanos independentes, e ainda menos a fazer aplicar a sharia pelos tribunais ingleses. Ele levantava antes, toda uma série de questões, difíceis mas “inevitáveis”, sobre a identidade e a prática conjugal, a identidade cultural e religiosa nas sociedades democráticas ocidentais respeitando os direitos do homem. Que forma de casamento deveriam os cidadãos poder escolher e que formas do Direito religioso da família (e do casamento) os governos deveriam respeitar? Como os muçulmanos e as outras minorias religiosas, tendo normas familiares e práticas culturais distintas, podem ser integradas numa sociedade que promove a liberdade religiosa e a autodeterminação, assim como a igualdade religiosa e a não discriminação? Será o pluralismo jurídico, ou mesmo o “federalismo pessoal”, necessário para proteger os muçulmanos e os crentes 85
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das outras religiões que, em virtude dos imperativos da sua consciência, são opostos aos valores liberais que impregnam as leis do Estado sobre as relações sexuais, o casamento e a família? Será que qualquer arranjo constitucional com o Direito familiar muçulmano e os tribunais da sharia representam um avanço perigoso sobre a encosta escorregadia da autonomia concedida a uma confissão da qual alguns dos dirigentes contestam precisamente os valores dos direitos democráticos e dos direitos do homem que atualmente os protege? Estas difíceis questões, e muitas outras ainda, tornam-se efetivamente “inevitáveis”, hoje, para muitas democracias ocidentais, que veem as suas comunidades muçulmanas aumentar, diversificar-se e apresentar novas exigências, sempre mais pressionantes. Se a taxa de crescimento atual das comunidades muçulmanas no Ocidente se mantiver, numa geração, lembrar-nos-emos da famosa “crise” das caricaturas dinamarquesas como uma ninharia. Mesmo os países democráticos que têm em comum uma certa herança, em matéria de Direito e do seu envolvimento nos direitos do homem e a liberdade religiosa, adotaram abordagens muito diferentes em relação a estas questões. A Inglaterra, que conta com as minorias muçulmanas mais importantes, é o país que fez mais arranjos com as escolas, as obras de beneficência, os bancos muçulmanos, assim como os tribunais islâmicos de arbitragem regendo as questões familiares, financeiras e outros assuntos privados para os fiéis que escolhem voluntariamente recor-
rer a eles. Em particular, os tribunais ingleses têm, até aqui, regularmente, confirmado as arbitragens dos tribunais muçulmanos nos conflitos conjugais e familiares, desde que todas as partes estejam plenamente de acordo e que essas arbitragens tenham sido realizadas sem nenhuma coerção nem ameaça física. Da mesma forma, em matéria de Direito familiar, a justiça inglesa limita-se à arbitragem das autoridades cristãs, hindus ou outras autoridades religiosas pacíficas. O Canadá, país que tem a Constituição mais liberal entre as grandes nações, debateu, seriamente, a instauração, em Ontário, de tribunais familiares submetidos à sharia, mas acabou por rejeitar a arbitragem religiosa para adotar um Direito único e regional regendo o casamento de todos os cidadãos. Os muçulmanos canadianos gozam, contudo, de uma grande liberdade religiosa no que concerne o culto, o ensino, os bancos, os rituais e as vestes religiosas. A Austrália, onde as minorias muçulmanas são mais pequenas e mais dispersas, concede-lhes uma liberdade religiosa geral. Mas começa agora a ser confrontada com o problema das adaptações a fazer com as reivindicações dos muçulmanos que exigem que o Estado faça respeitar os seus contratos de casamento e aceite a competência da arbitragem religiosa islâmica no que respeita o Direito familiar e os diferendos familiares. Os Estados Unidos, apesar da importância considerável e da diversidade das suas populações muçulmanas, são os que menos concessões têm feito aos seus cidadãos muçulmanos. Estes últimos não têm tido mais sucesso que os seus homólogos em 86
Democracias ocidentais: um direito familiar baseado na fé?
França ou na Turquia quando contestaram, ultimamente, perante os tribunais, a rejeição, por parte do Estado, de certos regulamentos ou de certas exceções sobre as suas escolas, as suas obras de beneficência ou as suas mesquitas. Também não têm conseguido fazer levantar as interdições pronunciadas contra o uso de roupas tradicionais religiosas para ensinar nas escolas públicas, testemunhar perante os tribunais ou trabalhar no serviço público. Os Estados americanos têm tido também dificuldade em ter em conta o Direito familiar muçulmano, sem falar dos tribunais da sharia. A maior parte dos tribunais americanos não têm confirmado, senão ocasionalmente, os contratos de casamento muçulmanos privados. Quando se trata de casamentos mistos, têm estatuído em favor do cônjuge não muçulmano nos casos de divórcio e da guarda dos filhos. Também se têm oposto firmemente à poligamia muçulmana e raramente têm aceite as sentenças arbitrais ou os acordos de mediação dos tribunais matrimoniais ou dos chefes religiosos muçulmanos. Os muçulmanos americanos têm, no entanto, continuado a fazer campanha em favor de uma maior liberdade religiosa, de autonomia e de autodeterminação no que diz respeito ao casamento e outros assuntos.2
há muito tempo que é considerado como uma instituição simultaneamente jurídica e espiritual, isto é, regulada por leis do Direito dos contratos e do Direito patrimonial próprios de cada Estado, mas também por cânones particulares da religião e por certas cerimónias religiosas. Tem também sido considerada, durante séculos, como a instituição mais fundamental da sociedade e da cultura ocidental. Aristóteles e os estoicos romanos já qualificavam o lar conjugal de “fundamento da República” e de “fonte privada da virtude pública”. Os Pais da Igreja e os católicos da Idade Média chamavam-lhe “o viveiro das vilas e das cidades”,a “a força que solda a sociedade”. Os primeiros protestantes modernos designavam-no por expressões tais como “pequena Igreja”,b “pequeno Estado”, “pequeno seminário”, a primeira escola do amor e da justiça, da caridade e da cidadania. E para John Locke e os filósofos do século das Luzes, o casamento era “a primeira sociedade” que devia constituir-se à medida que o homem e a mulher passavam do estado natural para uma sociedade organizada dedicada ao Estado de Direito e à proteção dos direitos.3 Dada a sua importância cultural, o casamento tem sido, também, uma das primeiras instituições a ser objeto de reformas no decurso das batalhas decisivas entre a Igreja e o Estado que o Ocidente conheceu. No IV século, quando Constantino e os imperadores que lhe sucederam ganharam o Império Romano para o cristianismo, rapidamente promulgaram um conjunto de novas leis sobre
O Direito, o casamento e a religião Não é de admirar que o Direito da família e do casamento tenha provocado este novo conflito entre o Direito e a religião nas democracias ocidentais. Com efeito, o casamento 87
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o casamento e a família que eram diretamente inspirados nos ensinos cristãos. Mais tarde, nos séculos XI e XII, o papa Gregório VII, e os seus sucessores, libertaram-se das autoridades civis e estabeleceram a Igreja católica como autoridade jurídica independente. Esta apoderou-se, então, da jurisdição sobre o casamento, qualificando-o de sacramento submetido aos tribunais da Igreja e ao Direito Canónico. No século XVI, quando o rei Henrique VIII, Martinho Lutero e outros protestantes apelaram à reforma da Igreja, do Estado e da sociedade, um dos seus primeiros atos foi rejeitar o Direito Canónico católico do casamento e da teologia sacramental, sobre a qual se apoiava, e transferir o controlo principal do casamento para o magistério cristão. No fim do século XVIII, quando os revolucionários franceses deixaram irromper o seu furor contra as instituições tradicionais, não tardaram em atacar o complexo sistema de regras, de funções e de rituais instituídos pela Igreja Católica em torno do casamento, confiando este último ao poder das autoridades do Estado laico. No início do século XX, por fim, quando a revolução bolchevique despoletou na Rússia, uma das primeiras decisões de Lenine foi abolir a instituição legal do casamento, considerado como um obstáculo burguês à realização do verdadeiro comunismo. As atuais democracias ocidentais não aboliram o casamento como categoria jurídica, mas foi fortemente privatizado e foram reduzidos muitos dos seus elementos tradicionais. Há meio século, a maior parte
dos Estados Ocidentais consideram o casamento como uma instituição pública na qual a Igreja, o Estado e a sociedade estão muito profundamente implicados. Em geral, e apesar das grandes variações de uma jurisdição para outra, a maioria dos Estados ocidentais define ainda o casamento como uma união monogâmica supostamente permanente entre um homem capaz e uma mulher capaz, livres e tendo a capacidade para se casarem. O Direito tipo de um Estado exigia que houvesse noivado oficial e que o casamento fosse contratado com o consentimento dos pais, perante testemunhas e após um período de espera conveniente. Os futuros casados deveriam apresentar um certificado da publicação dos autos e fazer registar e celebrar o seu casamento perante as autoridades civis e/ ou religiosas. As relações sexuais e o casamento entre casais tendo laços biológicos ou familiares, tais como definidos pela lei de Moisés, eram interditos. O casamento era igualmente desaconselhado e por vezes mesmo interdito, se um dos noivos era impotente ou portador de uma doença contagiosa que impedisse a procriação ou colocasse em perigo o futuro cônjuge. Os casais que se queriam divorciar deviam tornar conhecidas publicamente as suas intensões, dirigir-se a um tribunal, apresentar um motivo válido ou provar que tinha havido falta, prover às necessidades do cônjuge a seu cargo e das crianças. O Direito Penal proscrevia a fornicação, o adultério, a sodomia, a poligamia, a contraceção, o aborto e outros comportamentos entendidos, na época, como infrações de caráter sexual. O Direito da responsabili88
Democracias ocidentais: um direito familiar baseado na fé? A arte com uma mensagem: “Uma mulher modestamente vestida é como uma pérola na sua concha.” Pintura mural em Susa, Irão. Foto: Wikipedia / Commons
dade civil considerava os terceiros responsáveis em caso de sedução, de desvio e de perda da comunidade ou da alienação dos sentimentos de um dos esposos. As Igrejas e outras comunidades religiosas tinham um papel a desempenhar na conclusão do casamento, na sua manutenção e na sua dissolução, assim como nos cuidados a prestar às crianças ao nível físico, moral e educativo. Hoje, o conceito dominante da vida familiar, do casamento e das relações sexuais, no Ocidente, é, pelo contrário, privado e contratual; o papel dos pais, dos parentes e das autoridades religiosas ou políticas é mínimo. O casamento é geralmente considerado como um contrato privado, bilateral a ser concluído, mantido ou dissolvido pelo casal como bem lhe parecer. Os contratos pré-nupciais, de casamento e de separação,
são cada vez mais aceites porque permitem, às partes, definir os seus direitos e deveres respetivos no seio do casamento e no futuro. Em certos Estados, fornece-se aos amantes, cuja ligação dura há longo tempo, contratos de casamento implícitos que podem servir para apoiar um pedido de pensão alimentar e de apoio familiar durante e depois da relação. Existem, também, contratos de maternidade de substituição de úteros de mães de aluguer e de contratos médicos para a transferência de embriões ou para abortos. Para a formação de todos estes tipos de contratos, exigências, como o consentimento dos pais e a presença de testemunhas, em grande parte desapareceram. O divórcio de comum acordo reduz o divórcio a uma formalidade dispendiosa e a suprimir, praticamente, as diferenças comple89
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xas de procedimento entre a anulação e o divórcio. O pagamento das pensões alimentares e as outras formas de assistência devidas à ex-esposa e aos filhos, devidas após o divórcio, cedem o lugar a troca de propriedades num pagamento fixo, o que constitui uma rutura clara entre as duas partes, permitindo-lhes voltar a casar. A partilha dos bens entre os esposos, sob vigilância judicial, numa instância de divórcio, é substituída por um acordo privado negociado ou arbitrado, confirmado posteriormente, sem exame minucioso, pelo tribunal. As diferenças funcionais entre os direitos dos parceiros casados ou não, ou dos pares heterossexuais, ou homossexuais, foram consideravelmente facilitadas graças a uma série de novas leis e à jurisprudência constitucional. O casamento, a união civil e as partilhas domésticas adquiriram uma verdadeira equivalência jurídica em muitos Estados. Os papéis que a Igreja, o Estado e a comunidade, em sentido lato, tinham, na conclusão, na manutenção e da dissolução do casamento, têm sido, pouco a pouco, reduzidos perante os princípios constitucionais da liberdade sexual, da laicidade ou da separação entre a Igreja e o Estado. Estas mutações jurídicas operaram-se de forma exponencial de decurso do último meio século. Elas traduzem, em parte, a vontade de atingir uma maior igualdade e uma maior equidade no seio do casamento e da sociedade, e de erradicar uma parte do patriarcado, do paternalismo ou simplesmente do excesso de pudor legados pelo passado. São também, em parte, o simples reflexo
das evoluções exponenciais que se deram no ambiente cultural e na vida das famílias ocidentais: os progressos extraordinários das técnicas de reprodução medicamente assistida, a descoberta de novas e diversas conceções da sexualidade e do parentesco consequência da mundialização, a explosão das normas internacionais e nacionais em matéria de direitos do Homem e a implosão da família nuclear tradicional, devido aos numerosos imperativos económicos e profissionais que pesam sobre as esposas, os maridos e os filhos. Mas, mais fundamentalmente, estas mutações jurídicas refletem progresso de uma nova “democracia dos desejos” e a emergência de uma nova teoria que enaltece o tratamento dos assuntos familiares através de contratos privados. Surgiu no decurso dos últimos quarenta anos um número incrível de publicações – jurisprudenciais, teológicos, éticos, políticos, económicos, sociológicos, antropológicos, psicológicos – para explicar, defender ou denunciar fortemente estas mudanças jurídicas.
As reações dos muçulmanos e os seus argumentos a favor da adaptação Muitos muçulmanos que vivem no Ocidente descreem destas mudanças consideráveis realizadas nas legislações dos Estados sobre as relações sexuais, o casamento e a família – eles não as querem. Alguns regressaram aos seus países de origem de maioria muçulmana, consternados por verem as consequências do liberalismo ocidental. Outros não se mudaram; simples e tranquila90
Democracias ocidentais: um direito familiar baseado na fé?
mente ignoraram essas legislações e protegeram-se por detrás das leis constitucionais que suportam a sua vida privada e a liberdade sexual para fazer, na realidade, como bem lhes apetece. Outros, ainda, salientaram os contratos pré-nupciais visando libertar os casais muçulmanos de uma grande parte das leis do Estado para lhes permitirem, desse modo, conformar-se com as práticas e as normas internas da sua comunidade religiosa. Outros, por fim, gerem as suas vidas de forma bicultural, dividindo o seu tempo entre a residência no Ocidente e os países de maioria muçulmana – incluindo aqueles que autorizam a poligamia, o patriarcado e a primogenitura – onde podem casar e fundar uma família. Todos estes procedimentos não convencionais, onde a lei e a cultura coexistem, apenas podem ser soluções temporárias. Com efeito, não só alguns dentre eles colocam em perigo um bom número de direitos e privilégios previstos pelo Estado para os esposos e os filhos em caso de casamento contratado dentro das regras, mas os arranjos e os compromissos em vigor na hora atual em vários países ocidentais estão tão vacilantes que facilmente podem ser reduzidos a nada. Um dia, um cidadão muçulmano acabará por apelar ao Estado para ser liberto de um contrato de casamento que não pode mais respeitar, de uma prática religiosa familiar que não pode mais aceitar ou de uma comunidade de culto que não pode mais suportar mas de que não se pode desfazer. Um dia, um íman ou um tribunal (clandestino) da sharia acabará por ultrapassar as
medidas recorrendo à força ou publicando uma fatwa que vai levantar a cólera dos média e despoletar uma investigação dos tribunais. Um dia, um procurador ou um investigador dos serviços sociais mandatado pelo Estado intervirá de forma brutal num lar muçulmano para lançar acusações de casamento forçado ou de poligamia. Um dia, uma escola ou uma instituição de caridade muçulmana será perseguida pelos tribunais por discriminação sexista ou maus-tratos para com menores por praticar castigos corporais ou porque não pratica o ensino misto. Um dia, ou outro, um acontecimento maior, como a interdição em 2005 dos tribunais da sharia, no Ontário, ou a declaração de Rowan Williams sobre “a adoção inevitável”, fará manchete nos jornais e colocará de novo as comunidades muçulmanas sob os holofotes. Se um caso ou uma polémica desta amplitude explode, e a imprensa internacional lhe pega, isso poderá muito bem pôr fim à maior parte dos arranjos informais e temporários – sobretudo se for tida em conta a rejeição cultural para com os muçulmanos provocada pelos atentados de 11 de setembro de 2001 e de 7 de julho de 2005, pelo massacre do Forte Hood ou as guerras sangrentas e impopulares contra os extremistas islâmicos no Iraque, no Afeganistão e noutros lugares. É precisamente esta vulnerabilidade que os partidários dos tribunais da sharia e do Direito familiar baseado na fé desejam prevenir. Eles querem estabelecer a sharia – e a sua aplicação voluntária, refletida, consentida pelos fiéis muçulmanos – sobre as 91
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Cerimónia do “Aghd” (casamento iraniano) nos tempos antigos...
bases culturais e constitucionais mais sólidas no Ocidente. Mas, mais do que denunciar o liberalismo ocidental – e a decadência sexual, moral e conjugal que dela deriva – hoje, os partidários da sharia, os mais hábeis, defendem a causa apoiando-se no próprio vocabulário do constitucionalismo e do liberalismo político e utilizando-o. Um dos seus argumentos em favor da aplicação da sharia é a liberdade religiosa. O Direito Constitucional ocidental, assim como as normas internacionais sobre os direitos do Homem, assegura aos indivíduos, e aos grupos, uma proteção sólida da sua liberdade religiosa. Então, por que razão pacíficos cidadãos muçulmanos não veriam conceder-lhes a liberdade de se desobrigarem, de rejeitarem as leis do Estado sobre
as relações sexuais, o casamento e a família que vão contra os imperativos da sua consciência e das regras fundamentais da sua fé? Porque não teriam eles a liberdade de escolher orientar a sua vida privada de acordo com os princípios da comunidade religiosa da qual escolheram ser membros? Porquê a liberdade religiosa não protege um muçulmano sincero numa demanda de divórcio unilateral ou de uma ordem da guarda do filho imposta por um tribunal que está em total contradição com as regras da sharia? Por que razão o exercício da sua liberdade religiosa não permite a um muçulmano piedoso ter ao seu cuidado quatro mulheres, ternamente e para sempre, à maneira do Profeta, enquanto que um laico pode relacionar-se com quatro mulheres ao mesmo tempo e deitar92
Democracias ocidentais: um direito familiar baseado na fé?
...e atualmente...
Fotos cedidas graciosamente pela: Iran Chamber Society
-se com elas, e depois as abandona impunemente? Por outro lado, porque é que as autoridades religiosas muçulmanas não gozariam, pelo seu lado, da autonomia e a liberdade de aplicar as suas próprias leis e os seus procedimentos internos a fim de orientar e reger os aspetos privados da vida familiar dos fiéis que o desejem? No Ocidente, os outros grupos religiosos beneficiam há muito tempo dos direitos do livre exercício aplicados às sociedades: o direito de ter personalidade jurídica, de ser proprietário, de praticar o culto em grupo, de organizar obras
de beneficência, de implementar o ensino privado, de ter liberdade de imprensa e ainda muitas outras. Por que razão os grupos religiosos muçulmanos não podem, portanto, obter, também eles, o direito de administrar o casamento e a vida de família dos seus fiéis que o desejem – sobretudo, quando esses aspetos do domínio familiar revestem uma dimensão religiosa e moral tão profunda na identidade e na vida dos muçulmanos? Visto que, na América, diversos Estados já oferecem a escolha entre o casamento com contrato e covenant marriage,c casamento heterossexual 93
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e casamento homossexual, casamento tradicional e união civil, ou ainda partilha doméstica, são, todos eles, modelos de casamento e uniões que o Estado põe à disposição dos casais, por que razão os muçulmanos e os outros grupos religiosos não podem escolher, igualmente, a sua própria forma de casamento religioso? O segundo argumento a favor da sharia apresentada pelos seus partidários é a igualdade e a não-discriminação em matéria de religião. No fim de tudo, numerosos cristãos do Ocidente têm tribunais religiosos que regem os seus assuntos internos, mas também algumas questões familiares dos seus fiéis. E mesmo se estes tribunais referentes a Roma ou a Cantuária, a Moscovo ou a Constantinopla, os tribunais do Estado estão prontos a respeitar os seus julgamentos. Ninguém fala em abolir os tribunais religiosos nem em limitar o seu poder, e isso apesar das recentes descobertas de abusos de bens sociais e de dissimulação de abusos sexuais sobre crianças por membros do clero de algumas Igrejas. Aparentemente, também ninguém deseja que esses tribunais cristãos sejam ilegítimos, embora alguns dentre eles façam discriminação para com as mulheres em decisões aplicadas sobre a ordenação e a direção das Igrejas. Da mesma forma, os judeus têm toda a latitude para utilizarem os seus próprios tribunais segundo o Direito judaico e arbitrar os conflitos conjugais, financeiros e outros, implicando os seus fiéis judeus ortodoxos. Assim, no Estado de Nova Iorque – como também em vários países europeus – a lei prevê que o tribunal civil não pode pronunciar
o divórcio de um casal judeu senão com a condição e depois de o beth din ter homologado o divórcio religioso, e isto mesmo se a lei judaica se declare sistematicamente contra o direito de divórcio para a esposa. Por fim, os amish, os menonitas, os huterianos e outras minorias religiosas ascéticas, têm sido autorizados a não se conformarem com certas leis gerais sobre o ensino, o trabalho infantil, as relações de trabalho e o local de trabalho, etc.. Além disso, as suas próprias leis de excomunhão e de condenação têm sido confirmadas pelos tribunais do Estado. Se, portanto, os cristãos podem ter o seu Direito Canónico e os seus tribunais eclesiásticos, se os judeus podem ter a sua Halakha e os seus beth din e se mesmo as populações indígenas podem ter as suas leis ancestrais e os seus chefes tribais, por que razão os muçulmanos não podem beneficiar de um tratamento igual quando querem recorrer à sharia e aos tribunais islâmicos? Por fim, o último argumento a favor da aplicação da sharia apoia-se no liberalismo político. Um dos ensinos mais fundamentais do liberalismo clássico ensina-nos que o casamento é uma instituição anterior à política anterior ao Direito. Ele precede o Estado e o seu Direito Positivo, tanto ao nível da cronologia histórica como da prioridade ontológica. No célebre “Tratado do Governo Civil” (1689), John Locke qualifica o contrato de casamento de “primeiro contrato” e de “primeira sociedade” a ser fundada pelo homem e a mulher para romper com o estado de natureza. O contrato social, que é um contrato mais vasto, 94
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foi instituído mais tarde, o que pressupõe contratos de casamento estáveis. Outros contratos surgiram ainda depois, para formar os governos dos Estados, as Igrejas e outras associações de pessoas envolvidas no seio desta sociedade alargada4. Na base desta simples lógica contratualista, por que razão o Estado deveria ter a exclusividade da jurisdição em matéria de casamento? No fim de tudo, foram os protestantes do século XVI e não os filósofos do século das Luzes do século XVIII, os primeiros que investiram o Estado da competência matrimonial. Então, porque é que a jurisdição do Estado sobre o casamento é obrigatória, ou mesmo necessária? Antes da Reforma protestante do século XVI – mas também em numerosos países católicos, bem perto deste – o casamento era regido pelo Direito Canónico e os tribunais eclesiásticos da Igreja Católica. Além disso, mesmo na Inglaterra, país protestante, o Estado delegava nos tribunais eclesiásticos o poder de regular numerosas questões matrimoniais ou familiares, e isso até ao século XIX. Não há, portanto, com toda a evidência, nenhuma razão inerente à estrutura do casamento – e do Direito familiar – ocidental que exija que este último seja regido pelo Estado. Nada de inelutável na lógica contratualista do liberalismo exige dos casais que escolham a Igreja mais do que as suas próprias famílias, ou as suas comunidades religiosas, para reger a sua vida doméstica – em particular logo que as regras liberais do Estado divirjam a esse ponto das suas crenças e das suas práticas. Acontece, além disso, que, sobre este último argumento, os
muçulmanos conservadores unem-se a alguns cristãos conservadores e liberais críticos que exigem que toda a legislação do Estado sobre o casamento seja abolida ou que se possa estar dela isento – os cristãos conservadores, porque o Estado traiu os ensinos cristãos tradicionais sobre o casamento, os liberais críticos porque o Estado invade a vida privada e a liberdade sexual do indivíduo.
Os limites e os ensinamentos da adaptação O problema é que o argumento de liberdade religiosa avançado pela aplicação da sharia está baseado num princípio errado, a saber, que os imperativos da consciência e o exercício da liberdade religiosa devem sempre prevalecer. Ora, raramente este é o caso nas democracias modernas, mesmo se estas são defensoras da liberdade religiosa. Os objetores de consciência, os mais sinceros, e os mais zelosos devem, também eles, pagar os seus impostos, declarar os seus bens imobiliários, responder a citações a comparecer e obedecer às ordens do tribunal, prestar juramento (ou então provar a veracidade das suas afirmações), responder ao recrutamento militar (mesmo para um serviço não armado), e a conformar-se com muitas outras leis gerais visando o bem comum, mas às quais provavelmente gostariam de não obedecer, por motivo de consciência. Se persistem em reivindicar um caso de consciência, acabarão por ter de escolher ou expatriar-se ou ir para a prisão por injúria. Além disso, mesmo o crente mais piedoso não pode pretender derrogações em 95
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relação às leis penais interditando atos como a poligamia, o casamento de crianças, as mutilações genitais ou o castigo corporal das esposas, quando a conceção particular da sharia o exige, ou a comunidade religiosa o aconselharia. A garantia da liberdade religiosa não autoriza o crime. Os muçulmanos que, na sua alma e consciência, se opõem às leis liberais do Ocidente sobre a sexualidade, o casamento e a família, são, bem entendido, livres de as ignorar. Podem ter uma vida privada cheia de castidade, de acordo com a sharia e não fazer com que o seu casamento religioso não seja reconhecido pelo Estado. As suas escolhas estão protegidas pelos direitos à vida privada e à liberdade sexual – que são Direitos constitucionais – uma vez que os dois esposos estejam verdadeiramente de acordo sobre esta linha de conduta. Mas essa escolha priva completamente a sua família das proteções, dos direitos e das vantagens que as leis e os regulamentos complexos do Estado oferecem no que respeita o casamento e a família, os bens matrimoniais e a herança, a proteção social, etc.. Por outro lado, se crianças menores são implicadas, o Estado intervirá para assegurar a sua proteção, tomá-las a seu cargo e a sua educação. O Estado não quererá ouvir falar de objeções invocadas pelos pais ou os dirigentes da comunidade por causa do livre exercício da religião. Os muçulmanos que vivem no Ocidente gozam da mesma liberdade religiosa de qualquer outro, mas alguns regulamentos do Direito sobre os quais os advogados muçulmanos insistem hoje, em nome da
liberdade religiosa, são simplesmente inaceitáveis para a maior parte das democracias ocidentais. A própria ideia de conceder a um grupo religioso a suprema autoridade sobre a vida sexual, conjugal e familiar dos fiéis, mesmo que eles consentissem, é ainda mais inadmissível. Permitir a responsáveis religiosos que celebrem casamentos, testemunhem em casos de divórcio, deem a sua ajuda em casos de adoção, ou que socorram um membro de uma família em dificuldade é uma coisa. A maior parte das democracias ocidentais concedem voluntariamente tais possibilidades aos muçulmanos e às outras comunidades pacíficas. Algumas dentre elas confirmam igualmente as sentenças arbitrais e as soluções encontradas pelas mediações religiosas nos assuntos domésticos dos indivíduos. Mas estamos longe de pedir ao Estado que delegue num grupo religioso plenos poderes jurídicos a fim de reger, de acordo com as suas próprias leis religiosas, os assuntos internos daqueles, de entre os fiéis, que o queiram. Nenhum Estado democrático está pronto a aceitar que um poder paralelo reja um assunto tão fundamental da vida dos seus cidadãos – tanto mais que o Direito Familiar está muito estreitamente ligado a outros direitos do Estado (o Direito Público, o Direito Privado, o Direito Penal etc..) e, sobretudo, que um bom número de outros direitos e deveres que incumbem a um cidadão dependem do seu estatuto matrimonial e familiar. Abstraindo-nos dos enormes obstáculos constitucionais que impedem uma tal delegação daquilo que cons96
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titui a base do poder do Estado a uma instituição religiosa, e é certo que o estatuto, os direitos e as prerrogativas de um cidadão pertencente a uma democracia não podem depender dos julgamentos de uma autoridade religiosa que não aplica nenhum dos procedimentos e não respeita nenhuma das restrições processuais dos tribunais do Estado. Por outro lado, o facto dos muçulmanos partidários da sharia pretenderem arrogantemente que esta oferece um quadro jurídico completo e que já deu as suas provas para reger todos os aspetos da vida sexual, conjugal e familiar dos fiéis muçulmanos, é, por certo, uma razão ainda mais séria para não a querer aceitar. Segundo os céticos, se um Estado põe o pé sobre este terreno escorregadio, teria muita dificuldade em impedir que o Direito concorrente sobre a sexualidade, o casamento e a vida de família ganhasse terreno, sobretudo se as comunidades muçulmanas continuam a crescer e a ganhar importância política. É por isso que alguns Estados ocidentais se opõem mesmo à arbitragem e à mediação religiosa dos diferendos conjugais pelos tribunais muçulmanos. O argumento que os defensores da aplicação da sharia extraem da lógica contratualista liberal é judicioso mas incompleto. Eles raciocinam assim: uma vez que os contratos conjugais são anteriores à política e aos contratos que formam a sociedade, o Estado e as associações religiosas, as partes (os casais) que contraem casamento deveriam ser livres de escolher quem lhes vai ditar as leis que os regessem. Mas eles não têm em conta um outro ensino elementar do liberalismo clás-
sico, a saber que apenas o Estado – e nenhuma outra entidade social ou privada – pode deter a força coerciva do gládio. Acontece que o contrato do governo transmite esse poder aos indivíduos, mas é apenas em troca de garantias estritas: a forma regular dos procedimentos, uma proteção igual pela lei, assim como o respeito pelos direitos fundamentais. Um dispositivo completo do Direito de casamento e da família – sem falar dos sistemas jurídicos correlativos sobre as sucessões, os fideicomissos, a propriedade familiar, os direitos das crianças, o ensino, a ajuda social, etc. – não pode funcionar muito tempo sem um poder coercivo, a necessidade da polícia, dos procuradores e das prisões, as intimações, as multas, as obrigações e as sanções materiais assim como físicas e corporais. É certo que a persuasão moral e o exemplo, a aprovação e a censura da comunidade podem desempenhar um papel. Mas para que o sistema jurídico do Direito de casamento e da família funcionem corretamente, todos estes instrumentos coercivos governamentais serão necessários. Ora, numa democracia moderna, apenas o Estado os pode utilizar de forma adequada – não uma organização religiosa. É mais difícil de contrariar o argumento dos partidários da sharia sobre a igualdade religiosa e a não-discriminação. Poderíamos servir-nos, como ponto de partida, da observação espirituosa lançada por um Juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Oliver Wendell Holmes Jr.: “A vida do Direito não é lógica; ela é experiência.”5 Este adágio tem uma relação com o nosso 97
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assunto. No Ocidente, os arranjos atuais com os sistemas jurídicos religiosos dos cristãos, dos judeus, dos povos indígenas, etc., não nasceram de um dia para o outro. Eles apareceram depois de décadas, até mesmo depois de séculos de história por vezes difícil e cruel, à força de adaptações e de ajustamentos graduais realizados por uma e outra parte. A adaptação mútua do Direito judaico e do Direito laico ocidental é, a este respeito, particularmente instrutivo.6 É essencial recordar, desde logo, mesmo que isso possa surpreender, que os judeus nunca deixaram, durante perto de dois mil anos, de ser os párias do Ocidente. Eles têm sido relegados, no melhor dos casos, para o papel de cidadãos de segunda classe e expostos, periodicamente, às vagas de brutalidade – quer se trate das depurações germânicas, de progroms na Idade Média, de massacres no início da Época Moderna, do Holocausto no século XX. Desde a destruição de Jerusalém, no ano 70 da nossa era, os judeus estão perpetuamente na diáspora e vivem no seio de culturas jurídicas muito variadas no Ocidente e um pouco por todo o mundo. Uma das técnicas jurídicas maiores de sobrevivência que puseram em prática depois do Século III é o conceito Dina Dé-malkhuta dina (“A lei do Reino é a lei”). Esta expressão quer dizer que eles aceitam como sua lei a lei do país soberano – laico, legítimo e pacífico – que os acolhe, tanto quanto esta não contradiga as leis judaicas fundamentais. Esta forma de proceder tem permitido às comunidades judaicas determinar, entre as leis religiosas,
as que eram incontornáveis e as que deixam uma certa latitude, e entre as leis e as práticas laicas, as que podem ser aceites e aquelas contra as quais é necessário lutar, mesmo com perigo da sua vida. Tudo isso tem, não apenas permitido aos judeus sobreviver e prosperar com toda a legalidade – mesmo em períodos de grandes perseguições – mas também de trazer ao Direito judaico, no decorrer do tempo e através de diferentes culturas, importantes alterações e uma diversidade notáveis. Por sua vez, as democracias ocidentais acabaram por ter em conta, progressivamente, práticas e direitos fundamentais dos judeus – particularmente após o Holocausto, e para compensar em parte os horrores que lhes foram infligidos. Mas foi apenas no decurso das duas últimas gerações, e após litígios sem fim e pressões contínuas perante as jurisdições e as assembleias legislativas dos Estados, que os judeus do Ocidente acabaram por ganhar terreno ao nível jurídico, apesar desse terreno ser ainda bastante frágil e se mostrar instável nas suas franjas. Hoje, os judeus do Ocidente, em geral, podem beneficiar livremente de arranjos para celebrar o Shabbat, e são livres de comprar a comida kosher, de usar o kippa, de se vestirem de forma típica ou de exibir outros sinais exteriores de pertença religiosa na maior parte dos locais públicos. São livres de adquirir terrenos, ocupar solos, para construir as suas sinagogas, as suas associações de caridade e as suas escolas da Tora – nas quais podem também apresentar um ensino misto e bilingue, etc.. Os tribunais judaicos obtiveram 98
Democracias ocidentais: um direito familiar baseado na fé?
O “Centro Islâmico da América” situado em Warrendale, uma cidade nos arredores de Detroit, é a maior mesquita dos Estados Unidos.
Foto: Dane Hillard / Wikipedia Commons
o direito de julgar alguns assuntos domésticos e financeiros dos fiéis que escolhem voluntariamente regular os seus conflitos perante eles em vez de perante um tribunal laico. Estes tribunais judaicos atraem aqueles que têm um litígio porque são compostos por juristas altamente qualificados, versados no Direito judaico tanto quanto no Direito laico, e sensíveis às questões biculturais em jogo. Diferentemente dos seus antecessores da Idade Média e dos inícios da época moderna, os tribunais judaicos atuais não pretendem julgar todas as questões relativas à vida sexual, conjugal e familiar dos judeus; deixam uma boa parte desses problemas para o Estado. Também renunciaram à sua autoridade tradicional que impunha, outrora, a obrigação ou sanções físi-
cas às partes em litígio; por exemplo, quando se trata, simplesmente, de impedir uma das partes de deixar o tribunal ou mesmo de abandonar a comunidade judaica, recorrem apenas à persuasão. Para os defensores da aplicação da sharia, há quatro ensinamentos a tirar hoje, desta história. Primeiro, é necessário tempo e paciência antes de um sistema jurídico laico se adaptar às realidades e às necessidades dos novos grupos religiosos e fazer os ajustamentos jurídicos necessários. Os arranjos de que beneficiam o Direito e a cultura judaica, hoje – e que estes últimos obtiveram através de uma luta árdua – não são produtos de consumo transferíveis que os muçulmanos e outros grupos possam reclamar invocando o simples princí99
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pio da igualdade. São ajustamentos individualizados e equitativos em relação às leis gerais; cada comunidade deve obtê-los em função das suas próprias necessidades e das que viveu. Os muçulmanos simplesmente não sofreram a mesma perseguição que os judeus do Ocidente, e também não tiveram uma longa experiência em matéria de litígio e de grupos de pressão. As concessões e as adaptações virão, mas apenas com o tempo, a tenacidade e a paciência. Em segundo lugar, a comunidade religiosa deve demonstrar flexibilidade e aceitar a mudança se quer obter adaptações por parte das sociedades e dos Direitos laicos. Nem todas as crenças religiosas podem ser qualificadas como fundamentais; nem todas as práticas merecem que se morra por elas. Com o tempo, e por necessidade, a diáspora judaica aprendeu a fazer distinção entre o que, por causa da identidade jurídica e cultural judaica, é fundamental e o que é mais opcional, o que é essencial e o que deixa uma certa margem de liberdade. Com o decorrer do tempo e com reticências, as democracias ocidentais aprenderam, por seu lado, a ter em conta as crenças e as práticas essenciais das comunidades judaicas. A diáspora muçulmana do Ocidente deve fazer o mesmo. As leis e as sociedades islâmicas têm evoluído enormemente do decurso das épocas e no contacto com outras culturas, e o Islão oferece, atualmente, uma variedade considerável de práticas jurídicas, religiosas e culturais. Esta diversidade deve incitar e encorajar a diáspora muçulmana a fazer as adaptações necessárias à vida ocidental e
a definir o que, na sua vida religiosa, é essencial ou mais sujeito a um arranjo possível. É esta adaptação cultural, e não a assimilação, que lhe permitirá beneficiar, por sua vez, de arranjos por parte do Estado. Em terceiro lugar, as comunidades religiosas devem também adaptar-se aos valores essenciais das nações laicas, ou pelo menos tolerá-las, se esperam obter concessões em relação aos seus tribunais religiosos e às suas práticas religiosas. Nenhuma nação ocidental poderá integrar, nem talvez mesmo tolerar, uma comunidade religiosa que não aceita os seus valores fundamentais de liberdade, igualdade, fraternidade, direitos do Homem, democracia e Estado de Direito. Aqueles que desejam beneficiar das liberdades e das vantagens da sociedade ocidental devem também ter em conta os seus valores constitucionais e culturais. Até ao presente, apenas um pequeno grupo de intelectuais e de juristas muçulmanos corajosos, na maior parte formados em países ocidentais, têm apelado a escolher, plenamente, a via da democracia e os direitos do Homem nas condições e em termos muçulmanos. Estes argumentos são extremamente prometedores. Mas têm dificuldade, por agora, em se fazer entender no meio do concerto de condenações que muitos outros muçulmanos tradicionais lançam contra eles no Ocidente e por todo o lado. Também mesmo os muçulmanos liberais têm dificuldade em encontrar exemplos atuais de sistema jurídico baseado na sharia que tenha conservado os principais valores da democracia e dos direitos do Homem. Até que se possa
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provar de maneira fiável que isso é possível, uma profunda suspeição permanecerá em rigor. Os muçulmanos vivendo no Ocidente têm aí uma ocasião ideal para demonstrar que a sharia e a democracia podem coexistir e completar-se. Por fim, os tribunais muçulmanos devem aperfeiçoar a sua jurisprudência e tornar-se mais equilibrados na sua aplicação dos procedimentos, quer para atrair os muçulmanos que querem regular os seus litígios, quer para se tornarem aceitáveis aos olhos dos tribunais laicos. Como o beth din judaico, que existe em Nova Iorque e em Londres, o tribunal de Direito islâmico deve compor-se de juristas convenientemente formados em Direito religioso e em Direito laico e que apliquem normas fundamentais de procedimento regular e de representação judicial análogas às dos tribunais laicos. Um tribunal ocidental não aceitará mais a competência de um iman que está sozinho a realizar um julgamento, no termo de um procedimento informal na mesquita do bairro, de que a competência que não reconhece a um padre ou um rabino realizando sozinhos julgamentos numa igreja ou numa sinagoga. E suportará mal ser acusado, por isso, de violar pretensamente a liberdade religiosa da mesquita, do iman ou dos seus membros. Pelo contrário, terá a tendência de suspeitar, quer que as partes que tenham comparecido perante o iman não tenham tido conhecimento de todas as opções jurídicas propostas no quadro de Direito do Estado, quer que tenham sido forçadas a passar pelos procedimentos religiosos internos. É muito
mais difícil para um tribunal emitir tais suspeições quando as partes são informadas e tenham escolhido, com todo o conhecimento de causa, um tribunal arbitral muçulmano juridicamente bem estruturado mais do que um tribunal laico que não partilha dos seus valores fundamentais, mas lhe oferece, mesmo assim, a alternativa – seriamente apoiada ao nível jurisprudencial – do Direito do Estado relativo ao casamento. Por temer que o exposto seja como um argumento um pouco paternalista, pede-se às minorias religiosas que permaneçam na expectativa e que esperem um futuro melhor; convém lembrar que os cristãos, que estão hoje em maioria, conheceram, também eles, no passado, as mesmas dificuldades no que respeita à religião e ao ensino. A história dos Estados Unidos mostra bem a sua evolução e como as normas tradicionais em matéria de ensino foram finalmente ultrapassadas e mantidas. No fim do Século XIX, um certo número de Estados americanos quis ter o monopólio de ensino nas escolas públicas, então geridas pelo Estado. Estes movimentos de protesto revestiram-se, para alguns, de uma forma de anticatolicismo e para outros de uma certa hostilidade antirreligiosa no sentido mais amplo. Durante cerca de meio século, as Igrejas, as escolas profissionais e os pais crentes lutaram com fervor para protegerem o seu direito a educar os seus filhos nos seus próprios estabelecimentos religiosos privados. No célebre caso Pierce c. Society of Sisters (1925),7 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos acabou
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por produzir um veredito em favos das Igrejas e ordenou aos Estados americanos que mantivessem as duas opções – o ensino público e o ensino privado – em paralelo, para os seus cidadãos. Contudo, em numerosos casos julgados depois, os tribunais também precisaram que os Estados podiam instaurar um certo número de exigências educativas mínimas para todas as escolas – para as matérias ensinadas, os textos e os controlos obrigatórios, a formação de base dos professores, o nível dos alunos, os equipamentos, as normas comuns requeridas para as infraestruturas, os laboratórios, as bibliotecas, os ginásios, etc.. As escolas religiosas tinham o direito de exceder estes requisitos mínimos, mas não de se subtraírem a eles. As que procuraram ficar isentas encontraram pouco apoio junto dos tribunais, que optavam muito mais por ordenar que respeitassem as normas instauradas sob pena de perderem a sua acreditação e o seu direito de ensinar. Os compromissos entre religião e ensino, elaborados durante mais de meio século de ardentes negociações, tiveram lugar desde um certo incidente sobre as questões relativas ao casamento e à religião. O casamento, como o ensino, não é monopólio do Estado, mesmo se o Direito do casamento deve ser uma das suas prerrogativas. Os crentes do Ocidente têm desde há muito o direito de se casar num local santo de acordo com a liturgia adotada pela sua comunidade, para os casamentos. Os membros do clero também têm, há muito tempo, o direito de desempenhar um papel no casamento
daqueles, de entre os seus membros, que o escolhem, assim como nas anulações de casamento, os divórcios e os procedimentos sobre a guarda dos filhos. Mas, há já também muito tempo, o Estado definiu as exigências mínimas sobre o que deve ser o casamento e quem deve oficiar. As autoridades religiosas podem acrescentar condições às que são previstas pelo Estado, mas não podem subtrair-se a estas. Um ministro de culto pode insistir na necessidade de uma preparação para o casamento, mesmo se o Estado pode unir um casal sem esta formalidade. Pelo contrário, se um ministro de culto usa de intimidação para constranger um menor a casar-se por razões religiosas, o Estado pode enviá-lo para a prisão. Um rabino pode encorajar um casal que está a lutar para se arrepender e reconciliar-se, mas não pode impedi-los de pedir o divórcio. Um iman pode exaltar as belezas da poligamia, mas, se preside, com conhecimento de causa, a uma união polígama, torna-se cúmplice de um delito. Se um dia os tribunais religiosos intervierem de mais no Direito da família e do casamento, os Estados poderão apoiar-se nos seus precedentes e instaurar condições mínimas requeridas sob a forma de uma licença ou de uma autorização – que enunciariam as regras dessa licença, definidas por um processo democrático no qual seriam implicadas todas as partes, de todas as crenças (crentes e não crentes). Entre estas regras, podemos notar que as mais importantes seriam: a interdição de casar crianças; a interdição da poligamia e de outras formas de união
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conjugal não reconhecidas pelo Estado; a interdição de casamentos forçados ou de conversões forçadas antes do casamento – porque elas violam liberdades elementares, como a liberdade contratual e a liberdade de consciência; nenhuma ameaça, nenhum atentado ao direito à vida e à integridade física nem nenhuma provocação colocam estes em perigo; nenhuma discriminação flagrante para com as mulheres e as crianças, nenhuma violação das regras fundamentais de equidade de procedimento, etc.. Os tribunais religiosos poderiam juntar outras exigências, mas sem a possibilidade de fugir às que figuram nesta lista. Aqueles que não estejam em conformidade perdem a sua licença e encontrariam pouco apoio quando fizessem valer as suas objeções de liberdade religiosa. Este tipo de arranjo tem funcionado bem para resolver algumas das questões mais complexas sobre a religião e o ensino com as quais o país se tem confrontado. Numerosas escolas religiosas têm sido assim, levadas a evoluir lentamente, passando da posição de isolacionistas sectários para o papel de chefes de fila no plano cultural. Os muçulmanos do ocidente já começaram a seguir o caminho, criando escolas primárias e secundárias, que atraem, por vezes, os não muçulmanos por causa da
disciplina que ali reina e do nível académico elevado. Esta tendência deveria prosseguir e traduzir-se, no final, pela criação de universidades e de estabelecimentos de ensino superior do nível das maiores universidades mundiais. Um tal arranjo oferece perspetivas comparáveis no que diz respeito às questões de casamento e de religião nas comunidades da diáspora muçulmana. Não só pode impedir que se resvale para a poligamia autorizada, os procedimentos bárbaros e a violência extrema que as críticas do arcebispo Rowan Williams temem, mas pode igualmente encorajar os tribunais religiosos atuais a reformarem-se e a reverem as suas leis sobre o casamento. Nos países democráticos, mesmo as comunidades locais, endurecidas e cheias de preconceitos, acabarão por deixar espaço para novas minorias muçulmanas preparadas para a “navegação cultural” e pedindo, com coerência e perseverança, pelo que lhes é mais caro ao coração: o seu direito a adaptar-se. Ajustando-se às realidades jurídicas e culturais dos seus novos países, essas minorias muçulmanas bem poderiam, por fim, tornar-se, para as futuras gerações, figuras de proa nos domínios da cultura e da justiça no Ocidente.
* John Witte, Jr., é professor da cadeira de Jonas Robitscher, professor de Direito da Universidade Emory, professor emérito do Direito da Família da cadeira de Alonzo L. McDonald da mesma universidade e diretor do Centro Emory de estudos do Direito e da Religião. Joel A. Nichols é Professor Associado de Direito da Faculdade de Direito na Universidade de S. Thomas e no Centro Emory. Este artigo foi tirado de posfácio da obra editada por Joel A. Nichols: Marriage and Divorce in a Multi-Cultural Society: MultiTiered Marriage and the Boundaries of Civil Law and Religion, a publicar pela Cambridge University Press.
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John Witte, Jr. e Joel A. Nichols Notas: 1. “Archbishop’s Lecture – Civil and Religious Law in England: A Religious Perspective”, 7 de fevereiro de 2008. Pode ser consultado em inglês em: http://www.archbishopofcanterbury.org/1575. 2. Ver Pascale Fournier, Muslim Marriage in Western Courts: Lost in Transplantation, Williston, WT: Ashgate, 2010; David Pearl e Werner F. Menski, Muslim Family Law, 3ª ed., Sweet & Maxwell, Londres, 1998, pp. 65-83; e os artigos in Nichols, ed., Marriage and Divorce in a Multicultural Society e Rex Ahdar and Nicholas Aroney, eds., Shari’a in the West, Oxford University Press, Oxford 2010. 3. Ver as citações de John Witte Jr., in From Sacrament to Contract: Marriage, Religion, and Law in the Western Tradition, 2ª ed., Westminster John Knox Press, Louisville, 2011. 4. John Locke, Two Treatises of Government 1689, Peter Laslett,: Cambridge University Press, Cambridge 1960, pp. 77-83. 5. The Common Law, Little Brown, Boston 1881, 1 e 2. 6. As adaptações dos Primeiros Povos do Canadá, Austrália, ou dos Estados Unidos não podem servir de jurisprudência senão aos membros desses primeiros povos. Com efeito, estes arranjos são fruto de antigos tratados e foram redigidos, em grande parte, a fim de compensar as atrocidades e as enormes perturbações de que as populações nativas ou os aborígenes foram vítimas durante a época colonial. Os tribunais desses três países estipularam, claramente, que estas adaptações e vantagens são sui generis (específicas para uma categoria) e não devem ser imitadas por e para outros. 7. 268 US 510, 1925. a Citação extraída da obra “A Cidade de Deus”, livro 15/22 de St. Agostinho de Hipona capítulo XVI. b São João Crisóstomo, “Sobre o casamento, Homilía XX sobre a epístola aos Efésios”. c Onde a noção de “aliança” ou de “envolvimento” indissolúvel domina largamente. “Concerto” é, com efeito, um termo teológico que descreve a aliança bíblica entre Deus e Israel, e um termo de filosofia política – uma espécie de contrato social, que enquadra um casamento tornando o divórcio mais difícil. Não existe senão em alguns Estados dos Estados Unidos e não é escolhido senão por 1 a 3% dos casais que estão a ponto de casar.
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