CONSCIÊNCIA E
LIBERDADE 2014
OS DIREITOS DO HOMEM E A LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO Um Novo Equilíbrio ou Novos Desafios
Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa
Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa
Consciência e Liberdade Edição Especial Volume I
OS DIREITOS DO HOMEM EA
LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO UM NOVO EQUILÍBRIO OU NOVOS DESAFIOS
Dois aniversários: 313-2013 – 1700 anos do Édito de Milão 1948-2013 – 65 anos da revista C & L
Berna, Suíça
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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
Publicação Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº 26 – Ano 2014 Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Sede da Redação: Rua da Serra, 1, Sabugo – 2715-398 Almargem do Bispo Tel.: 219 626 207, info@aidlr.org.pt
Edição em Português:
Direção: Artur MACHADO Edição: Paulo Sérgio MACEDO Conselho de Redação: Artur MACHADO Maria Augusta LOPES Mário BRITO Paulo Sérgio MACEDO Rúben de ABREU
Gabinete de Redação
Email: info@aidlr.org Editor: Liviu OLTEANU Editor Assistente: Laurence NAGY Revisão: Shelley KUEHL
Comité de Redação
Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito, Alemanha Liviu OLTEANU, advogado, especialista em Direitos do Homem e Liberdade Religiosa, doutorando em Direito, Suíça Ioan Gheorghe ROTARU, jurista, Doutor em Filosofia e Doutor em Teologia, Roménia Tiziano RIMOLDI, reitor universitário, Doutor em Direito, Itália
Conselho de Especialistas
Heiner BIELEFELDT, relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção, professor de Direitos do Homem na universidade de Erlangen Nuremberga, Alemanha – Michele BRUNELLI, professor na universidade de Bérgamo, cadeira UNESCO, Itália -Jaime CONTRERAS, vice-reitor da universidade de Alcala de Henares, Espanha – Ganoune DIOP, diretor adjunto de Public Affairs and Religious Liberty (PARL) e diretor das relações com as Nações Unidas em Nova Iorque e em Genebra, professor universitário, USA -Petru DUMITRIU, embaixador, delegado permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas em Genebra, Suíça – W. Cole DURHAM, diretor do Centro Internacional de Estudos do Direito e da religião na universidade Brigham Young, USA – Silvio FERRARI, professor de Direito e de religião na universidade de Milão, Itália – John GRAZ, Dou-
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tor em História das Religiões, secretário-geral da IRLA, USA – Sofia LEMMETYINEN, conselheira independente sobre a questão das religiões e das crenças no quadro da politica estrangeira a EU, Bruxelas, Bélgica – Dwayne O. LESLIE, advogado, USA – Joaquin MANTECÕN, professor na universidade Cantábrica, Espanha – Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Juan Antonio MARTINEZ MUNOS, professor de Direito na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Javier MARTINEZ TORRON, diretor da cadeira de Direito eclesiástico da universidade Complutense de Madrid, Espanha – Gabriel MAURER, vice-presidente da AIDLR, Suíça – Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito Hanover Alemanha – Liviu Olteanu, secretário-geral da AIDLR, advogado – Rafael Palomino, professor na Universidade Complutense, Madrid, Espanha – Tiziano RIMOLDI, Doutor em Direito, Itália – Ioan Gheorghe ROTARI, jurista, doutor em filosofia e doutor em Teologia – Roménia – Jaime ROSSEL GRANADOS, deão da faculdade de Direito na universidade da Estremadura, Espanha – Robert SEIPLE, antigo embaixador itinerante para a liberdade religiosa internacional no departamento de Estado americano, presidente da IRLA, USA – José-Miguel SERRANO RUIZ-CALDERON, professor de filosofia de Direito na universidade Complutense de Madrid, Espanha – Rik TORFS, reitor da universidade de Lovaina, Bélgica – Bruno VERTALLIER, doutor em ministério pastoral, presidente da AIDLR, Suíça.
Comité Consultivo Roberto BADENAS – Jean Paul BARQUON – Herbert BODENMANN – Dora BOGNANDI – Mario BRITO – Nelu BURCEA – Jesus CALVO – Corrado COZZI – Alberto GUAITA – Friedbert HARTMANN – David JENNAH – Tomas KABRT – Rafat KAMAL – Harri KUHALAMPI – Paulo Sérgio MACEDO – Reto MAYER – Tsanko MITEV – Carlos PUYOL – Pedro TORRES – Norbert ZENS Outras Edições: Gewissen und Freiheit (Alemanha e Suíça) Conscience et Liberté (França) Conscienza e libertà (Itália) Consciencia y libertad (Espanha) Savjest i sloboda (Croácia e Sérvia) © Novembro 2014 – Consciência e Liberdade
Tiragem: 750 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 286548/08 ISSN: 0874 – 2405
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Execução Gráfica: Rainho & Neves, Lda. São João de Ver
a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo Editor da Revista são submetidos à apreciação do Conselho de Redação.
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ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Uma organização não governamental detentora de estatuto consultivo junto das Nações Unidas, em Genebra, Nova Iorque e Viena, do Parlamento Europeu, em Estrasburgo e em Bruxelas, do Conselho da Europa, em Estrasburgo, e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
SEDE ADMINISTRATIVA
Schosshaldenstr. 17, CH 3006 Bern, Switzerland Tel. +41 (0) 31 359 15 31 - Fax +41 (0) 31 359 15 66 Email: info@aidlr.org Website: www.aidlr.org Presidente: Bruno VERTALLIER Secretário-Geral: Liviu OLTEANU
COMITÉ DE HONRA
Presidente: Mary ROBINSON, antiga Alta-Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas e aniga Presidente da República da Irlanda.
MEMBROS
Jean BAUBÉROT, professor universitário, Presidente Honorário da École Pratique des Hautes Etudes, Sorbonne, França Beverly Bert BEACH, antigo Secretário-Geral e Secretário-Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América Francois BELLANGER, professor universitário, Suíça Heiner BIELEFELDT, Relator Especial da Nações Unidas sobre Liberdade de Religião e Crença, professor de direitos humanos, Universidade de Erlangen, Nuremberga, Alemanha Reinder BRUINSMA, autor, professor universitário, Holanda Jaime CONTRERAS, professor universitário, Espanha Alberto DE LA HERA, antigo Diretor-Geral dos Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Petru DUMITRIU, Embaixador e Delegado Permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas, Suíça W. Cole DURHAM, Diretor do Centro Internacional para o Estudo da Lei e da Religião na J. Clark Law School, Universidade Bringham Young, Estados Unidos da América Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain Garay, advogado e investigador na Universidade Aix-Marseille, França John GRAZ, Secretário-Geral da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América
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Alberto F. GUAITA, Presidente da AIDLR, Espanha Pierre Hess, antigo Secretário da secção suíça da AIDLR, Suíça José ITURMENDI, Deão Honorário da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid, Espanha Joaquin MANTECON, professor universitário, antigo Diretor de Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Francesco MARGIOTTA BROGLIO, professor universitário, Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Representante da Itália na UNESCO, Itália Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Juan Antonio MARTINEZ MUÑOZ, professor universitário, Espanha Javier MARTINEZ Torron, professor universitário, Espanha Rafael PALOMINO, professor universitário, Espanha Émile POULAT, professor universitário, diretor de pesquisa no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, antigo membro do Conselho Constitucional, França John ROCHE, membro do Instituto , França Jaime ROSSELL GRANADOS, Deão da Faculdade de Direito, Universidade da Estremadura, Espanha Gianfranco ROSSI, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça Robert SEIPLE, antigo Embaixador da Internacional da Liberdade Religiosa, Departamento de Estado, Estados Unidos da América Jose Miguel Serrano RUIZ- CALDERON, professor universitário, Espanha Mohammed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, Reitor da Universidade de Leuven, Bélgica Maurice VERFAILLIE, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça
ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ DE HONRA
Franklin ROOSEVELT, 1946 to 1962 Albert SCHWEITZER, 1962 to 1995 Paul Henry SPAAK, 1966 to 1972 René CASSIN, 1972 to 1976 Edgar FAURE, 1976 to 1988 Leopold Sédar SENGHOR, 1988 to 2001
ANTIGOS SECRETÁRIOSGERAIS DA AIDLR
Jean Nussbaum Pierre Lanarès Gianfranco Rossi Maurice Verfaillie Karel Nowak
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DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro ato governamental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito à obediência respeitosa e voluntária de cada individuo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a ação contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.
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Número 27 – 2014
Edição Especial – 1ª parte Introdução Bruno Vertallier – Parabéns! ...................................................................................... 9 Editorial Liviu Olteanu – A Liberdade Religiosa dos nossos dias: equilíbrio ou novos desafios? ............................................................................................................................ 11 Capítulo I
História da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa traçada por presidentes do comité de honra, oficiais das Nações Unidas e antigos secretários-gerais da AIDLR. Jean Nussbaum – Carta de 1948 .............................................................................. 18 Eleanor Roosevelt – A luta pelos direitos do Homem (C&L 2/1949) ............... 20 Edgar Faure – Carta de 10 de janeiro de 1977........................................................23 René Cassin (Sra.) – René Cassin e o problema religioso (C&L 14/1977) ....... 24 René Cassin – Prefácio da Encíclica Pacem in Terris (C&L 14/1977) ................. 27 Leopold Sédar Senghor – Carta de 10 de novembro de 1988 ............................. 28 Mary Robinson – Carta de 1 de agosto de 2003 .................................................... 29 Representante da ONU – A AIDLR, Mensageira da paz (carta de 6 de julho de 1987) .. 30 Javier Perez de Cuellar – Declaração do Secretário-geral das Nações Unidas – 1987..................................................................................................................................31 Boutros Boutros Ghali – Carta de 6 de fevereiro de 1993.................................... 33 Jean Nussbaum – A tolerância, uma atitude de paz (Editorial C&L 2/1949) .... 34 Gianfranco Rossi – Declaração por ocasião da Conferência Mundial em Viena – 1993 ........................................................................................................................... 36 Maurice Verfaillie – Não responder à intolerância com a intolerância (extrato C&L 53/1997)............................................................................................................. 40 Karel Nowak – O extremismo religioso e a liberdade religiosa (extrato, C&L 70/2009) ....................................................................................................................... 43
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Capítulo II
Os direitos do Homem e a liberdade religiosa dos nossos dias no mundo: um novo equilíbrio? Respostas de personalidades das Nações Unidas, de embaixadores e de universitários. Ban Ki-moon – Será que o mundo entende?........................................................... 46 Navi Pillay – Iguais em dignidade e em direitos: será ainda um sonho para muitos? .... 50 Kofi Annan – Os crentes têm uma forte influência sobre a conduta dos grupos e dos indivíduos .............................................................................................................. 53 Heiner Bielefeldt – O ódio religioso: o maior desafio do século XXI ................. 55 Laura Dupuy-Lasserre – O Conselho dos Direitos do Homem da ONU e as suas resoluções sobre a liberdade de religião ou de convicção ......................... 67 Petru Dumitriu – Liberdade religiosa e minorias religiosas: notas sobre as contribuições do Conselho da Europa....................................................................... 78 Robert Seiple – Secularismo e liberdade religiosa .................................................. 90 Harald Mueller – O Édito de Tolerância de Milão e a evolução da relação entre o Estado e as comunidades religiosas............................................................................ 96 Jose-Miguel Serrano Ruiz Calderon – A dignidade humana ligada à liberdade religiosa ................................................................................................... 103 John Graz – A liberdade religiosa e a segurança no mundo ................................. 115 Capítulo III
Liberdade e liberdade religiosa: 1700 anos de História desde o Édito de Milão – Recordar a História para melhor promover a liberdade e a paz no mundo. O papel das religiões. Marta Sordi – As perseguições cristãs dos primeiros séculos (C&L 10/1975) ..... 126 Pierre Lanarés – Constantino (C&L 10/1975) .................................................. 136 Emilianos Timiadis – O sentido da liberdade no pensamento ortodoxo – O cristão, um ser livre (C&L 13/1977) .............................................................. 142 Mons. Pietro Pavan – A liberdade religiosa e a liberdade humana (C&L 11/1976) ....153 Ganoune Diop – A dignidade humana baseada na criação do homem à imagem de Deus: um argumento legítimo em favor da paz entre os homens – 1ª parte ..............162 Mohamed Talbi – Das relações antigas a um novo contexto (C&L 32/1986).. 173
Introdução Parabéns!
Bruno Vertallier1 65 anos! É um aniversário que se festeja, sobretudo quando se trata de celebrar a presença da revista “Conscience et Liberté” ao serviço de valores tão caros ao nosso património humano. “Conscience et Liberté”, ajudado pelos membros da AIDLR e dos autores da revista, quer permanecer fiel à sua vocação e à sua missão: defender aquilo que é fundamental para o ser humano, a saber, os direitos de pensar e de crer em plena liberdade. A liberdade de consciência e de religião, mantém-se num equilíbrio frágil. Contudo, quem dentre nós aprecia ser intolerante ao ponto de recusar, ao seu vizinho, a liberdade de pensar ou de crer como deseja? Parece absurdo negar este direito elementar, adquirido por um alto preço, durante a Revolução Francesa. Mas basta um símbolo religioso ou a referência a um texto considerado como sagrado para desencadear reações de uma violência inaudita entre aqueles que, contudo, consideram a liberdade de consciência como um direito inalienável. A História lembra-nos, periodicamente, de que a liberdade de consciência e, muito particularmente, a liberdade religiosa, não tem tido um caminho tranquilo desde o édito de Milão de 313. “Derrapagens” como a Inquisição, o massacre de São Bartolomeu ou a querela entre João Calvino e Miguel Servet mostram que a História humana está tinta de sangue daqueles que, por causa das suas opiniões divergentes, se viram confrontados com o poder. Isso ainda hoje existe e ultrapassa largamente a esfera dos países cristãos. As lições tiradas dos excessos da História lembram-nos que tais exações já não deviam existir. Infelizmente, em vários lugares do mundo em que, contudo, as Constituições nacionais afirmam os direitos do Homem e garantem as liberdades fundamentais, são reiteradas as mesmas injustiças. Um homem chamado Paulo, numa época da sua vida, privou da liberdade numerosos concidadãos. Depois de uma profunda evolução na sua experiên1 Bruno Vertallier, doutor em teologia, presidente da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa; é autor de artigos sobre religião, ética e liberdade religiosa e participa, por todo o mundo, em conferências internacionais sobre liderança, assim como sobre a liberdade religiosa. O seu escritório encontra-se em Berna, na Suíça.
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Bruno Vertallier
cia escreveu: “Porque há de a minha liberdade ser julgada pela consciência de outrem?” (I Cor. 10:29). Deixo esta questão para vossa reflexão. Caros leitores, continuemos juntos a participar de todo o coração nesta obra em favor da paz e da liberdade de consciência; façamo-la pelos nossos semelhantes como para nós mesmos, com receio de que esta liberdade nos seja retirada. Boa leitura!
EDITORIAL
A liberdade religiosa dos nossos dias: equilíbrio ou novos desafios? Liviu Olteanu1 A História da Liberdade Religiosa Internacional A história da liberdade religiosa no mundo apresenta um grande interesse para todos. “É a história da vitória do Direito Internacional sobre aqueles que recusam aderir às normas e aos critérios internacionais. É a história da tolerância laica oposta à violência religiosa” ou a história da “necessidade de convencer” algumas pessoas que deveriam “subscrever um modelo particular de liberdade religiosa servindo-lhes de exemplo para organizar e democratizar os seus modos de ação e da sua sociedade. É a história da alteração de condições de opressão religiosa com o fim de libertar os indivíduos dos seus procedimentos discriminatórios”.2 Seguramente, é a história dos altos e baixos da liberdade, uma história caracterizada pela intolerância, pela discriminação ou pela perseguição, assim como pelas suas esperanças e pelos seus desafios, pelas suas lutas e pelas suas vitórias. O Édito de Milão foi promulgado há 1700 anos iniciando uma nova era de pluralismo religioso, fundamento da liberdade religiosa para todos os povos. Em 313, em todo o Império, novos horizontes se abriam em matéria de liberdade. Em que medida a liberdade religiosa é particular e necessária na nossa sociedade atual? 1 Liviu Olteanu, advogado, é o Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa e observador, e representante permanente nas Nações Unidas em Genebra, Nova Iorque e Viena, no Parlamento Europeu em Bruxelas e Estrasburgo assim como representante junto do Conselho Europeu e da OSCE, onde intervém em nome dos direitos do Homem e da liberdade religiosa. Liviu Olteanu tem um profundo respeito pelos homens de todas as denominações, religiões e crenças, uma forte vontade de diálogo, de busca de equilíbrio e de honestidade na busca da dignidade humana. Liviu Olteanu insiste na necessidade da tolerância e na aceitação das diferenças, assim como na importância do respeito pela liberdade religiosa e de consciência no seio de todos os povos. 2 Elizabeth Shakman Hurd, The global securitization of religion, http://blogs.ssrc.org/tif/2010/03/23/ global-securitization/.
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Liviu Olteanu
• Novos desafios “É inegável que a liberdade religiosa faz face a desafios novos e sem precedentes devido a um secularismo crescente e agressivo, assim como a uma redefinição importante das instituições sociais mais importantes (…) Cerca de cinco milhões de pessoas no mundo, vivem em sociedades que permitem graves violações da liberdade”.3 • Tendências atuais “Os cristãos formam o grupo mais perseguido do mundo, sendo morto um cristão a cada cinco minutos em virtude da discriminação religiosa. (…) Entre o 1º e o 20º Séculos mais de setenta milhões de cristãos foram martirizados, e quarenta milhões, dentre eles, morreram no decurso do século passado”4. Hoje, há diversos discursos e diferentes alternativas em matéria de liberdade religiosa, como por exemplo: a. A liberdade religiosa, um princípio universal válido, baseado em critérios internacionais e leis internacionais. “A liberdade religiosa é garantida por leis internacionais estabelecidas por uma vasta coligação multinacional e plurirreligiosa, que foi subscrita por uma larga maioria dos países do mundo (mesmo se essas leis nem sempre são postas em prática)”.5 b. A liberdade religiosa um modelo social requerendo uma proteção particular. É a nossa conceção da religião que faz da liberdade religiosa um modelo social “requerendo uma proteção, instituições e intervenções particulares”.6 c. A liberdade religiosa, uma categoria interpretativa da segurança nacional ou internacional. Consideramos realmente a religião como uma abordagem da segurança nacional ou internacional? Podemos falar de “secularização da religião? d. A liberdade religiosa, uma abordagem da autoridade nacional e internacional. Frequentemente, o discurso político sobre a liberdade religiosa é um discurso armadilhado e “uma abordagem da autoridade regional, nacional e internacional cujo uso suscita problemas relevantes da realpolitik”. Infelizmente, a noção de liberdade religiosa não é entendida da mesma forma por todos, e toma sentidos diferentes em função dos grupos, dos países e dos regimes.7 3 Dra. Katrina Lantos Swett, CAN Daily News, 31 de maio de 2013. 4 Hilary White, em Massimo Introvigne, Christian are the most persecuted group in the world, according with the testimony at the annual meeting of the OSCE, May 22 in Tirana, Albânia, Life Site News. com, 31 de maio de 2013. 5 William Inboden, A valuation of religion freedom, http://blogs.ssrc.org/tif/2010/04/02/a-valuation-of-religious-freedom/. 6 Webb Keane, What is religion freedom supposed to free, http://blogs.ssrc.org/tif/2010/04/02/03/ What is religion freedom supposed to free/. 7 Talal Asad, on http://blogs.ssrc.org/tif/2009/01/13/talal-asad-on-religion-belief-and-politics/.
A liberdade religiosa dos nossos dias: equilíbrio ou novos desafios
e. A liberdade religiosa, uma necessidade para evitar a erosão da posição dos crentes. A proteção legal da liberdade religiosa já não deveria ser considerada “unicamente como uma opinião, mas mais como um meio de evitar a erosão da posição dos crentes”.8 f. A liberdade religiosa, uma fonte de paz e de estabilidade internacional. Sem dúvida, que a liberdade religiosa deve ser respeitada no quadro normativo dos direitos do Homem. “Por outras palavras, ela é estreitamente correlata a outros benefícios sociais e políticos. (…) Por exemplo, nos países que respeitam a liberdade religiosa, constata-se que que o nível de violência em matéria de religião é menos elevado do que nos países que impõem fortes restrições no domínio da religião, onde o nível de violência é elevado”.9 g. As minorias religiosas, os maiores beneficiários da liberdade religiosa. “Todos os membros de um Estado são, supõe-se, protegidos pelo direito à liberdade religiosa; no entanto, constata-se que as minorias religiosas são as maiores beneficiárias da proteção que lhes permite praticar as suas crenças livremente, sem receio da intervenção do Estado ou da discriminação social”.10 h. A liberdade religiosa para todos os seres humanos. Como Evans declarou: “as comunidades de fé devem rejeitar a tendência superficial que consiste em reivindicar ou em aceitar essas liberdades apenas para elas, e devem, sem hesitar, defender a liberdade de religião ou de crenças para todos. Se as comunidades religiosas não desejarem lutar para que todos beneficiem da liberdade que desejem ver os seus membros usufruírem, é pouco provável que a liberdade de religião ou de crença seja estendida a todos”.11
Memória e homenagens Como introdução à nossa história da liberdade religiosa, mencionamos no primeiro capítulo desta edição especial da revista Consciência e Liberdade os antigos secretários e presidentes do comité de honra da AIDLR e publicamos cartas, assim como extratos de alguns artigos. O doutor Jean Nussbaum defen8 E.S. Hurd, Believing in religious freedom on http://blogs.ssrc.org/tif/2012/03/01/believing-in-religious-freedom/. 9 William Inboden, A valuation of religious freedom on http://blogs.ssrc.org/tif/2010/04/02/a-valuation-of-religious-freedom/. 10 Saba Mahmood: Religious freedom, minorities’ rights and geopolitics, on http://blogs.ssrc.org/tif/2012/03/05/religious-freedom-minority-rights-and-geopolitics. 11 E. S. Hurt, Believing in religious freedom on http://blogs.ssrc.org/tif/2012/03/01/believing-in-religious-freedom/.
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dia os direitos do Homem e o princípio da liberdade religiosa, e iniciou a sua ação em 1946. Foi o fundador da AIDLR e, em 1948, lançou a publicação da revista Conscience ei Liberté. Pierre Lanarés, Gianfranco Rossi, Maurice Verfaillie assim como Karel Novak defenderam, igualmente, o princípio da liberdade religiosa. Durante este período a AIDR trabalhou com os presidentes do comité de honra: Srª Eleanor Roosevelt, Edgar Faure, o doutor Albert Schweitzer, René Cassin, Léoplod Sédar Senghor e Mary Robinson, personalidades tendo um caráter, um prestígio e uma experiência que lhes permitiam desempenhar um papel maior no domínio dos direitos do Homem e da liberdade religiosa. No segundo capítulo intitulado “Direitos do Homem e liberdade religiosa no mundo dos nossos dias: um novo equilíbrio ou um novo desafio?” encontram-se artigos notáveis do atual Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, do alto comissário para os direitos do Homem, a srª Navi Pillay, do antigo Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, assim como uma excelente e profunda entrevista com o professor Heiner Bielefeldt, relator especial sobre a liberdade de religião ou de convicção da Organização das Nações Unidas. Chamamos a vossa atenção para o artigo detalhado e ponderado da embaixadora do Uruguai junto da Organização das Nações Unidas em 2012, srª Laura Dupuy Lasserre; o artigo baseado na visão regional do Conselho da Europa sobre a liberdade religiosa do embaixador do Conselho da Europa junto da Organização das Nações Unidas em Genebra, Petru Dumitriu, assim como o artigo do antigo embaixador especial dos Estados Unidos para a liberdade de religião, Robert Steiple. Sobre o mesmo assunto que este capítulo, recomendamos os artigos do juiz Harald Mueller, de Hanover, na Alemanha, do professor Jose Miguel Serrano, da Universidade Complutense de Madrid, em Espanha e de John Graz, Secretário Geral da IRLA, em Washington D.C. No terceiro capítulo desta edição, propomos exemplos diferentes e particularmente interessantes da liberdade religiosa apresentados por importantes personalidades como Monsenhor Emiliano Tiamidis da Igreja Ortodoxa, Monsenhor Pietro Pavan da Igreja Católica Romana, o professor Ganoune Diop da Igreja Adventista do Sétimo Dia e o professor Mohamed Talbi, da comunidade muçulmana. Recomendamos-vos igualmente os artigos sobre a história de liberdade religiosa da historiadora Marta Sordi e do antigo Secretário Geral da AIDLR, Pierre Lanarès.
A liberdade religiosa dos nossos dias: equilíbrio ou novos desafios
Conclusão Hoje, quando olhamos à nossa volta, é fácil constatar que o nosso mundo é complexo e polarizado, incluindo diferentes tendências e atitudes contrastantes: pluralismo/uniformidade, capitalismo/comunismo, Norte/Sul, fundamentalismo/práticas moderadas, ricos/pobres, religião/laicidade, boa legislação/más práticas e aplicabilidade, direitos humanos/ditadura, igualdade/ discriminação, maiorias/minorias, liberdade/detenção, e assim por diante. Não podemos ser 100% livres se estivermos sem fazer nada enquanto o Outro é detido, condenado e perseguido por causa da sua consciência, da sua religião ou da sua convicção ou porque pertence a uma minoria religiosa. Ficar neutro tem consequências sérias e múltiplas para os membros das minorias religiosas, assim como para a segurança e a paz internacionais. Existem direitos, responsabilidades e liberdades que fazem parte do património da Humanidade. Certas épocas, circunstâncias, acontecimentos, algumas pessoas têm impacto sobre o pensamento, as escolhas e as perspetivas. Hoje, todo o mundo tem grande necessidade de modelos e referências. Por exemplos: Eleanor Roosevelt, o Dr. Jean Nussbaum, René Cassin, Dr. Albert Schewitzer,Martin Luther King, Richard Wurmrand, Vaclav Havel, Dr. Ben Carson, Kofi Anan, Nelson Mandela, Ban Ki-moon Heiner Bielefeldt, etc; ou o HCDH, o CDH, a ONU, a UNESCO, a UNICEF, a Amnistia Internacional, Human Rights Watch, USCIRF, Pew Forum, são também referências. Muitas pessoas sofrem ainda porque são diferentes da maioria. E muitos dentre eles são presos: Saeed Abedini no Irão, Sajjad Masih no Paquistão, Bruno Amah no Togo, etc. Antonio Monteiro foi libertado recentemente e estamos felizes com isso. O que se passa na Coreia do Norte, no Médio Oriente, na África do Norte? Há imensos países com grandes ou muito grandes restrições quanto à religião e à liberdade religiosa. Os cristãos são as pessoas mais perseguidas no mundo. Porque razão o ódio religioso, a intolerância e a discriminação, as restrições e as perseguições por razões religiosas persistem ainda no início do século XXI? Segundo o “Pew Forum on Religion and Public Life” (“aumento das restrições religiosas”, setembro 2012, p. 20, 21), as restrições religiosas têm aumentado em todas as regiões do mundo. Neste sentido, podemos falar de certos tipos de restrições governamentais: favoritismo governamental para uma religião; nenhuma intervenção dos governos nacionais em caso de discriminação religiosa; limites do governo à conversão religiosa; medidas generalizadas de intimidação por parte do governo para com grupos religiosos;
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governos nacionais que não respeitam a liberdade religiosa na prática; violência sobre grupos religiosos minoritários; governos interditando o culto ou algumas práticas religiosas. Também, quando falamos de hostilidades sociais vemos: atos de violência sectária entre grupos religiosos; manifestações de hostilidade relativamente a conversões de uma religião para outra; violência ou ameaças de violência para fazer respeitar as normas religiosas; violência ligada ao terrorismo religioso; grupos dominando a vida pública nacional com os seus pontos de vista sobre a religião; abuso das minorias religiosas através de atos entendidos como ofensivos aos olhos da maioria, e assim por diante. Trata-se de problemas inquietantes? Seguramente! A liberdade religiosa é uma pedra angular da liberdade. Não defendemos uma religião, uma Igreja ou uma convicção, mas um princípio: o princípio da liberdade religiosa para TODOS. Porque não observar a valiosa diversidade do Outro? Uma sociedade justa aceita as diferenças em matéria de religião, respeita o direito de uma pessoa se conformar com as suas crenças religiosas e trata todos os indivíduos de forma igual, sem comprometer a fé religiosa em favor de normas sociais12. “Direitos do Homem e liberdade religiosa no mundo de hoje: um novo equilíbrio e um novo desafio?” A resposta a esta questão deve ser dupla: a legislação é mais equilibrada, mas novos desafios se colocam quanto à sua aplicação. A boa nova é que qualquer indivíduo pode decidir defender e proteger a liberdade religiosa no mundo, na sua cidade, ao nível mundial, apoiando as instituições nacionais e internacionais em favor dos direitos do Homem e da liberdade religiosa, em favor da paz, dos direitos do Homem e da liberdade. Devemos exercer um novo paradigma de um diálogo multidisciplinar e multi-institucional. Chamaria “diálogo 5” às cinco categorias seguintes dos feitores da paz: os representantes “governamentais, diplomáticos, religiosos, da Sociedade Civil (ONG) e Eruditos”. Esta edição especial da Consciência e Liberdade quer ser uma voz proclamando que cada pessoa conta! Sejamos embaixadores da liberdade, da esperança e da paz!
12 Rabbi Meir Soloveichik, professor no Yeshiva College em New York, Religious Liberty does not require us to minimize our faith, on http://blog.acton.org/archives/55517-religious-liberty-does-not-requiere-us-to minimize-our faith.html.
CAPÍTULO
1 História da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa traçada por presidentes do comité de honra personalidades das Nações Unidas e antigos Secretários-Gerais da AIDLR
Carta de 1948 Jean Nussbaum1
1 O Doutor Jean Nussbaum assistiu, e, em abril de 1945, à Convenção das Nações Unidas em São Francisco cujo o fim era substituir a Sociedade das Nações. Nessa ocasião, Jean Nussbaum encontrou Eleanor Roosevelt, com quem partilhava pontos de vista idênticos. Quando ele fundou a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) em 1946, foi, portanto, naturalmente, que Eleanor Roosevelt aceitou ser presidente do comité de honra que compreendia personalidades eminentes: diplomatas, académicos, juristas e políticos. Jean Nussbaum explicou que o objetivo da AIDLR era espalhar pelo mundo os princípios desta liberdade fundamental (a liberdade religiosa) e defender, por todos os meios legítimos, o direito de todo o homem praticar o culto da sua escolha ou de não praticar nenhum. Dedicou-se à tarefa de reunir todas as forças espirituais para combater a intolerância e o fanatismo, em todas as suas manifestações.
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A luta pelos direitos do Homem Eleanor Roosevelt A Sra. F. D. Roosevelt2 pode alegrar-se por permanecer como herdeira de um nome universalmente venerado entre os homens livres. Ela sempre desejou continuar no mundo um verdadeiro apostolado em favor da dignidade humana. E o seu mérito pessoal justifica, nesse aspeto, o respeito e o reconhecimento de todos aqueles que pensam. Presidente de honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, coube-lhe iniciar as emissões “Conscience et Liberté” na Rádio Monte-Carlo. Os nossos leitores voltarão a ler, com emoção, a sua magnífica alocução que reproduzimos abaixo. “Venho esta noite falar convosco sobre uma das mais importantes questões da nossa época, a da liberdade humana. Sinto-me feliz por poder falar aqui, em França, porque o solo francês conhece bem a liberdade. Já há longos anos que as raízes da árvore da Liberdade se espalham através desta terra produtiva e aí encontra os elementos necessários para o seu desenvolvimento. Foi aqui que a declaração dos Direitos do Homem foi proclamada e que a nobre divisa da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – inflamou a imaginação dos homens. Decidi falar desta questão, na Europa, porque é na Europa que se têm travado as maiores batalhas entre a liberdade e a tirania. Decidi discuti-la agora que tem lugar a Assembleia Geral, porque a liberdade é uma questão decisiva para a regulamentação dos principais diferendos políticos que dividem os povos e os governos, hoje em dia, e consequentemente, é uma questão que terá influência sobre o futuro das Nações Unidas. A importância capital da questão foi plenamente reconhecida em S. Francisco pelos fundadores da Organização das Nações Unidas. O cuidado pela preservação e o progresso dos direitos do Homem e das suas liberdades 2 Eleanor Roosevelt recebeu, em 1968, a título póstumo, o Prémio dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Foi a primeira presidente da Comissão dos Direitos do Homem nas Nações Unidas e desempenhou um papel determinante na redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Este artigo foi publicado na Revista Conscience et Liberté nº 2, 1949.
A luta pelos direitos do Homem
fundamentais constitui o princípio dominante da Organização. A sua Carta distingue-se pela sua preocupação pelos direitos e o bem-estar do indivíduo. A Organização das Nações Unidas definiu claramente a sua intensão de apoiar os direitos do Homem e de proteger a dignidade da pessoa humana. O Preâmbulo da Carta estabelece a ideia mestra nestes termos: «Nós, povos das Nações Unidas, resolvemos … proclamar de novo a nossa fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas … favorecer o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa maior liberdade.» A Carta coloca, como princípio, que a paz e a segurança da Humanidade estão estreitamente ligadas ao respeito de cada um pelos direitos e liberdades de todos. Um dos objetivos das Nações Unidas está exposto no artigo primeiro nestas palavras: «Realizar a cooperação internacional resolvendo os problemas internacionais de ordem económica, social, intelectual ou humanitária, desenvolvendo e encorajando o respeito pelos direitos do Homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raças, de sexos, de línguas ou de religiões.» Desde logo, é necessário que compreendamos bem a liberdade essencial da democracia. Os direitos fundamentais do Homem são simples e fáceis de compreender: liberdade de palavra e liberdade de imprensa; liberdade de consciência e de culto; direito de reunião e de petição; direito de estar em segurança na sua casa e ao abrigo de investigações e de convulsões irracionais, de detenção e de sanções arbitrárias. A marcha da democracia é, por vezes, lenta, e sei que alguns dos nossos homens de Estado constataram, por vezes, o facto de que uma ditadura benevolente atingirá os resultados desejados em muito menos tempo do que o necessário para proceder às deliberações democráticas e ao lento desenvolvimento da opinião pública. Mas nada permite assegurar que uma ditadura permanecerá benevolente e que o poder, uma vez nas mãos de um pequeno número, será devolvido ao povo sem luta e sem revolução. Isto temos aprendido pela experiência, e aceitamos os lentos progressos democráticos porque sabemos que os atalhos comprometem os princípios perante os quais nenhum compromisso é possível. Nos Estados Unidos chegámos ao momento em que reconhecemos que ninguém é perfeito. Admitimos ser confrontados com certos problemas criados pela existência de atitudes discriminatórias em relação a alguns grupos dos nossos cidadãos, mas fazemos progressos na direção destes problemas. Graças aos procedimentos normais da democracia, começamos a conhecer as nossas neces-
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Eleanor Roosevelt
sidades e a compreender de que forma podemos fazer com que o nosso povo possa beneficiar de uma plena e inteira igualdade. O nosso Supremo Tribunal de Justiça tomou, recentemente, decisões que clarificam um certo número das nossas leis para assegurar a garantia dos direitos de cada um. O desenvolvimento do ideal de liberdade e a sua adaptação à vida diária das populações de uma grande parte do mundo são o produto dos esforços de numerosas pessoas. São o fruto de uma longa tradição de pensamentos vigorosos e de corajosas ações. Nem a nenhuma raça, nem a nenhum povo se deve atribuir todo o mérito de ter concedido ao Homem uma maior dignidade, e de lhe ter procurado proporcionar meios mais amplos de desenvolver a sua personalidade. Cada geração, em cada país, deve continuar a lutar e a fazer progressos, porque nesta luta, em particular, parar de avançar é recuar. O futuro deve conduzir a um crescimento dos direitos do Homem em todo o mundo. Os povos que entreviram a liberdade, não ficarão satisfeitos senão puderem, eles próprios, gozar dela. Interpretados no seu verdadeiro sentido, os direitos do Homem constituem um objetivo fundamental da lei e do governo de uma sociedade livre. Os direitos do Homem existem na natureza e são respeitados pelos povos nas suas relações mútuas e pelos governos nas suas relações com os outros governos e para com os seus próprios cidadãos. A Carta das Nações Unidas é um archote que ilumina o caminho que conduz à realização dos direitos e liberdades fundamentais do Homem num plano universal. O que importa, no entanto, não é apenas a medida na qual os direitos do Homem foram adquiridos, mas a direção para a qual o mundo se orienta. Será que os objetivos da Carta serão fielmente seguidos se alguns países continuam a restringir os direitos e a liberdade dos Homens, em vez de encorajarem o respeito universal e a aplicação geral como a Carta estipula? A liberdade individual é uma parte inseparável das tradições caras à França. Na minha qualidade de membro da delegação dos Estados Unidos, peço a Deus que nos ajude a obter aqui uma outra vitória para os direitos e a liberdade de todos os Homens.
Carta de 10 de janeiro de 1977 Edgar Faure3
3 Edgar Faure foi presidente do comité de honra da AIDLR. Advogado e presidente do Conselho de Estado, foi também Ministro da Educação Nacional em França.
René Cassin e o problema religioso4 Madame René Cassin Com dezanove anos, René Cassin5 tinha estado preocupado com a questão religiosa. Tinha conhecido em Aix en Provence, onde era estudante, o abade Vincelot com o qual tinha estabelecido amizade e que teve uma profunda influência no seu pensamento. Este abade, a quem ele escrevia regularmente durante o seu serviço militar, tinha-o levado a ler muitos livros de filosofia católica. Mais tarde, o abade Vincelot, gravemente doente, e que deveria morrer em 1909, legou-lhe a sua Bíblia que o meu marido conservou perto de si toda a sua vida. Em 1911, encontrou um pastor protestante cuja largueza de vistas e a fé religiosa o impressionaram fortemente. Mas é um dos seus velhos familiares, rabino alsaciano, que ele muito amava, que o introduziu na fé judaica, a fé dos seus pais. O que o surpreendeu foi a concordância de alguns grandes princípios positivos comuns a todas as religiões: a busca do Bem, o despojamento de si mesmo, o mandamento do amor aos outros e o regozijarem-se com o objetivo final. “Tudo o que eleva converge!”. Mas o que desde logo chocou o seu espírito, que amava o universalismo, foram as suas divergências, fontes de tantos conflitos e de desconfianças ao longo dos séculos. Ele foi tocado pela sua vontade de poder e pelos desvios das suas origens. Depois, o reconhecimento da História acabou de o afastar das práticas religiosas. As guerras que as religiões originaram e muitas vezes suscitaram, as perseguições cometidas em seu nome, a injusta discriminação contra os judeus, os vexames e os sofrimentos que estes sofreram durante milénios, levou-o a afastar-se completamente de qualquer dogma religioso. Sem dúvida, ele reconhecia a arte que inspira a fé religiosa, a santidade de personagens eminentes, respeitava a fé das pessoas sinceras que sabiam elevar-se acima do sectarismo e da idolatria. Mas ele reprovava vivamente os fanáticos tanto políticos como religiosos; não só os reprovava, como os temia pela sua falta de inteligência e de generosidade, animados que são pela sua loucura e cegueira que mói sem piedade. 4 Artigo publicado na revista Conscience et Liberté nº 14, 1977. 5 Antigo presidente do comité de honra da AIDLR foi jurista, juiz, presidente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Foi também uma das inspiradoras da Declaração Universal dos Direitos do Homem e participou noutros trabalhos relacionados com os direitos do Homem. Em 1968 recebeu o prémio Nobel da Paz assim como o prémio dos direitos do Homem das Nações Unidas.
René Cassin e o problema religioso
Vinte e quatro membros da família do meu marido pereceram nos campos da morte de Hitler. Isso não o impediu de afirmar que mesmo uma só vítima desconhecida teria bastado para o fazer condenar, sem apelo, o Estado totalitário, fruto envenenado pelo sectarismo e pela intolerância. Um dia, respondeu a um amigo que lhe falava da crença em Deus: “Não sei se Deus existe ou não, mas penso que se existe, trabalhar pela justiça, pelo respeito e pela dignidade da Pessoa humana, deve agradar-Lhe”. De facto, a sua razão de viver era trabalhar em favor de um mundo mais humano, para que o homem oprimido, esmagado durante milénios por todas as formas de pressão e de domínio, encontre os seus legítimos direitos, tomando consciência e libertando-se da sua resignação de animal. Quando ele escreveu o artigo 18 de Declaração Universal dos Direitos do Homem disse: “Ah! o abade Grégoire ficaria feliz por ter visto proclamar a liberdade de pensamento, de crença ou de religião e do culto pelo que ele expôs várias vezes a sua vida, e, no artigo 26, o direito de todo o ser humano à educação. Também teria tido uma satisfação essencial uma vez que nos princípios do Direito Constitucional francês, a noção dos deveres do Homem está incluída sob forma parcial e alusiva. Por esta libertação do Homem, René Cassin lutou toda a sua vida, como filósofo e jurista, porque ele era um cidadão solidário com todos. A consciência dos seus direitos deram a este último a força para assumir os deveres pela tolerância das diferenças e uma educação que fizesse dele um adulto do civismo, pelo bem comum. Ele desejava que esta libertação existisse no seio de todas as nações, a fim de que o Direito fosse a sua regra universal. Ele acolheu com entusiasmo os ensinos da “PACEM IN TERRIS” de João XXIII, e escreveu a seu respeito num artigo intitulado “O Vaticano II e a Proteção da Pessoa”: “Sinto-me feliz pelo facto do Concílio apoiar as instituições internacionais existentes que, no plano universal ou regional, trabalham para o progresso e para a paz. Ele considerava como crimes particularmente horríveis os crimes ditos de guerra, estas exterminações de povos, nações ou grupos, designadas como genocídios pela convenção de 9 de dezembro de 1948, e louva a coragem daqueles que lhe resistem abertamente”. Era por isso que ele pensava que, com o concurso dos homens de Estado, era necessário mobilizar as forças morais, laicas e religiosas sem excluir nenhuma confissão. Ele contava com numerosos amigos nos grupos mais diversos, procurava o diálogo dos representantes de todos os cultos, mesmo, e direi quase sobretudo,
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dos mais humildes, à procura de ouvir uma voz, um eco, para além das fórmulas de convenção. “Aquilo que sempre me animou, dizia ele, é o ódio pelo Ódio!” Para René Cassin, o melhor remédio contra o Ódio é a Justiça e é inspirado nisto que é necessário construir o Direito. Ele travou este combate até aos seus últimos dias. Autêntico “resistente” contra tudo o que oprime o Homem, foi um despertador de consciências, um defensor apaixonado da Paz e da fraternidade dos homens de boa vontade. Nisso, ele foi religioso. Foi na sua cama de hospital, pouco antes de morrer, que escreveu o seu último artigo: “O cura de Dompcevrin”. Esta recordação da guerra de 14, em que ele foi ferido gravemente e onde acreditou que ia morrer, veio-lhe então à memória. Nesse último momento, pensou no que lhe tinha dito o cura de Dompcevrin e sentiu a necessidade de redigir, ele mesmo, este texto que me confiou. E é este último pensamento que aqui vos deixo: “A batalha do Marne tinha feito do Nordeste da França um vasto cemitério. No fim de setembro de 1914 o Meuse era ainda um campo de batalha. Fui gravemente ferido por uma bala no ventre e ainda vejo o incêndio que queimava o posto de socorros da aldeia de Dompcevrin; o major ajudante, amigo da minha irmã mais nova, tinha reprimido com dificuldade o movimento de horror que sentiu ao ver a minhas chagas sangrentas. No dia seguinte, manhã cedo, eu jazia por terra como os meus companheiros de infortúnio. Os animais privados dos seus donos, conservavam um silêncio perturbador, mas as vacas não tratadas mugiam. De manhã bem cedo, vi a pesada silhueta do cura, deslocar-se pelo campo. Este homem frustrado, já idoso, debruçava-se sobre os feridos, a maior parte dos quais estava mortalmente ferida. As palavras de conforto tinham pouca influência sobre eles. Quando chegou a minha vez, estava perfeitamente consciente, agradecendo ao cura pela sua visita, disse-lhe francamente: “Eu sou estranho ao seu culto e não partilha das suas convicções”. Ao que ele me respondeu com a sua voz cansada: “Meu filho, se tiver de comparecer em breve diante do supremo Juiz, tenha a certeza que será um juízo de amor”. Esta cena deixou em mim traços indeléveis. Os “campos de França puderam voltar a verdejar, as vilas a mudar de Presidente e de cura, mas sempre, enquanto viver, verei a silhueta do cura de 1914, ouvirei as suas palavras!”
Prefácio da Encíclica Pacem in terris René Cassin É um dever profundamente honroso para quem participou na redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem que presta homenagem ao grande papa João XXIII. Com efeito, na encíclica Pacem in terris de caráter religioso, ele deu o apoio da sua alta autoridade ao documento humano vindo dos representantes dos Estados e formulou os votos que estes estabelecessem entre eles uma autoridade política comum e respeitada. Mas já em 1948, ao tornar-se núncio em Paris, ao sair do Sud-Este europeu onde tinha sido vítima de tantos sofrimentos, Monsenhor Roncalli deu-me muito encorajamento pessoal: ele tinha compreendido plenamente, antes de qualquer outro, a imensa importância da proteção dos direitos do Homem para a Paz social e internacional. A Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas estava em sessão, em Genebra, quando se abriu o Conclave no decurso do qual se deveria proceder à eleição do sucessor de Pio XII recentemente falecido. Recordo-me que nesse dia, declarei publicamente desejável que a escolha dos cardeias recaísse sobre o patriarca de Veneza do qual poucos então, pronunciavam o nome como papável. E eu ia mais longe. Dava-o desde logo como eleito. Raramente um conclave foi tão rápido. Os povos não se enganaram testemunhando a João XXIII uma unânime veneração.
René Cassin, 1987 Prémio Nobel da Paz
Carta de 10 novembro de 1988 Leopold Sédar Senghor6
6 Leopold Sédar Senghor foi presidente do comité de honra da AIDLR. Poeta, escritor, membro da Academia Francesa, mas também homem político, foi o primeiro presidente da República do Senegal. Defendeu a diversidade cultural e as liberdades individuais.
Carta de 1 de agosto de 2003 Mary Robinson7
7 Mary Robinson é a presidente do comité do Honra da AIDLR. É a antiga alto-comissário das Nações Unidas para os direitos do Homem e antiga Presidente da República irlandesa. Recebeu a Medalha presidencial da liberdade em 2009.
A AIDLR, Mensageira da paz Representante da ONU
Declaração do Secretário-Geral das Nações Unidas – 19878 Javier Perez de Cuellar9 A proteção da integridade espiritual da pessoa humana é um dos mais nobres objetivos das Nações Unidas. Os documentos de base, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, proclamam e garantem o direito de cada um de nós à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. A própria Carta levanta-se contra a discriminação baseada na crença, inscrevendo, entre os objetivos da Organização, o encorajamento do respeito “pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, de sexo, de língua ou de religião”. A Assembleia Geral, desde a primeira sessão, ligou-se à tarefa da Organização, que é concretizar os princípios proclamados pela Carta, declarando “que é do superior interesse da Humanidade pôr um fim imediato às perseguições e às discriminações religiosas ou raciais” e convidando os governos e as autoridades “a tomarem, com esse fim, as mais prontas e as mais enérgicas medidas”. A liberdade de consciência vai para além da liberdade de pensamento. É, com efeito, um direito ativo que, segundo os termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, implica “a liberdade de mudar de religião ou de convicção assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, sozinho ou em grupo, tanto em público como em privado, pelo ensino, as práticas, o culto e o cumprimento de ritos”. Se a liberdade de consciência tem sido a base de algumas das mais nobres realizações da Humanidade, a sua violação, tem causado, no decurso dos séculos, indescritíveis sofrimentos humanos; na nossa época, o exercício deste direito é uma luta constante. Os progressos não têm sido fáceis. Depois de numerosos anos de trabalho, a Assembleia Geral adotou em 1981 a Declaração sobre a Eliminação de 8 Declaração redigida sobre a revista Consciência e Liberdade nº 34, 1987. 9 Antigo Secretário-Geral das Nações Unidas (1982-1991), tendo recebido a Medalha presidencial da liberdade no fim do seu mandato. É também embaixador do Perú, na Suíça e na UNESCO (2001-2004).
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Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. Esta Declaração reafirma os princípios fundamentais na matéria, afina o conteúdo deste direito e prevê medidas que os Estados deveriam tomar para assegurar a sua fruição. Os órgãos da Organização das Nações Unidas seguem bem de perto a aplicação da Declaração. Em dezembro de 1984, a Organização das Nações Unidas organizaram, em Genebra, um seminário internacional sobre o encorajamento da compreensão, da tolerância e do respeito no que concerne a liberdade de religião ou de convicção. Esse seminário estudou a natureza e amplitude das manifestações contemporâneas de intolerância para com as religiões ou de convicções e refletiu sobre as atividades de natureza a permitir a aplicação da Declaração de 1981. A Comissão dos Direitos do Homem e a Subcomissão para a prevenção da discriminação e a proteção das minorias encarregaram especialistas independentes de estudar os problemas da intolerância e da discriminação fundadas na religião ou na convicção. Estes estudos deveriam fornecer matéria para reflexão no momento em que a Organização redobra esforços para fazer passar a realidade da liberdade de pensamento, de consciência e de religião. A Organização das Nações Unidas continua envolvida em fazer desta liberdade uma realidade concreta para qualquer pessoa em todo o mundo. Com efeito, o exercício deste direito está intimamente ligado ao desenvolvimento da pessoa humana na sua própria natureza e ao sentimento de fraternidade que une a Humanidade. Como a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclama no seu artigo primeiro: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade.”
Carta de 6 de fevereiro de 1993 Boutros Boutros Ghali10
10 Boutros Boutros-Ghali foi Secretário-Geral das Nações Unidas (1992-1996). Homem de Estado e diplomata egípcio, jurista, universitário, foi professor de Direito Internacional e de relações internacionais na Universidade do Cairo.
A tolerância, uma atitude de paz11 Jean Nussbaum12 “Conscience et Liberté” apresenta-vos mais uma vez uma série de testemunhos a favor da tolerância de personalidades as mais diversas e as mais eminentes do nosso tempo. Encontrarão também, como no número precedente da nossa revista, artigos históricos tratando de problemas que se colocaram no passado próximo, ou distante, a respeito da liberdade religiosa. Talvez sintam alguma deceção ao constatar que as questões da atualidade imediata não parecem figurar senão numa parte muito reduzida nas preocupações dos nossos colaboradores, tanto mais que a liberdade de consciência aparece cada dia mais ameaçada e mais precária. Em toda a nossa Europa, dilacerada, ainda, pelas consequências da guerra, e na Ásia, onde as guerras nacionais e civis têm todas, mais ou menos, um aspeto religioso, a tolerância está em perigo. Não é a nossa razão de ser defendê-la, elevar alto, bem alto, a voz cada vez que ela é atacada? Como poderemos nós pretender combater o fanatismo se assistimos passivos; portanto, vagamente consentindo no seu triunfo universal? Estas questões, caros leitores, nós as colocamos e com a mesma ansiedade que vós. Nem a sua gravidade, nem a sua urgência nos têm escapado. Apenas, as únicas armas de que dispomos para os resolver são armas espirituais. Estas não são, graças a Deus, as menos eficazes, mas não são as mais aparentes. O nosso primeiro objetivo é incitar à tolerância. Não somos fariseus que se felicitam pela sua perfeição. Sabemos que a tolerância é difícil de praticar e que se desvia muito rapidamente quando dá lugar à paixão. Não é organizando uma cruzada, os Tolerantes contra os Intolerantes, que cumpriremos a nossa missão. Não é fácil abordar sem paixão os problemas atuais. Eles emocionam-nos muito profundamente, desde logo para que nos seja possível considera-los com a serenidade e o distanciamento que nos permitam julgá-los com equidade. Não estamos tão completamente informados a ponto de estarmos na posse de 11 Este documento é o editorial da revista Conscience et Liberté nº 2 em 1949. 12 Ver nota da página 18.
A tolerância, uma atitude de paz
todos os aspetos. Os documentos de que dispomos são fragmentários, parciais, difíceis de controlar, muito frequentemente contraditórios. O fanatismo existe, é um facto, mas é raro que se ouse pronunciar este nome. A consciência humana adquiriu, pelo menos, o reflexo de se recusar a confessá-lo. Ele parece a todos, mesmo àqueles que o praticam, como um regresso à barbárie. Apresentam-se os mais variados pretextos: patriotismo, luta pelo progresso, necessidade de unidade, reação contra a ingerência estrangeira. Como distinguir o verdadeiro do falso? A tarefa é tanto mais difícil quanto os países em que a liberdade religiosa está ameaçada são aqueles que também não admitem a liberdade de imprensa e as relações postais com o estrangeiro, e que fecham as suas fronteiras. As informações que nos chegam encontram-se, assim, fortemente deformadas, seja pela ideologia oficial do país considerado, seja pelas ideologias adversas daqueles que as transmitem. Acrescentemos, por fim, que os defensores da liberdade religiosa, onde ela parece ameaçada, nem sempre sabem fazer uma distinção clara entre o espiritual e o temporal. São ministros ou fiéis de um culto que lhes está profundamente enraizado no coração, mas ao mesmo tempo são humanos: têm uma pátria, uma cidade. Têm um ideal político que desejam implantar. Podem assim dar lugar a perseguições das quais é difícil dizer se elas se dirigem ao crente ou ao cidadão. Podemos deplorar, certamente, que o progresso da democracia no mundo não tenha levado ao desaparecimento dos delitos de opinião, mas pertence a cada nação ter a lei que lhe convém. Nós cumpriremos um dever – de tolerância também – de conservar uma estrita neutralidade política e de nunca pronunciar julgamentos prematuros e inconsiderados sobre os assuntos interiores do Estado. A causa da liberdade religiosa não tem nada a ganhar com uma intervenção inoportuna. Aqueles que têm de lutar para conservar a sua fé – mas que no entanto ainda a podem guardar e transmiti-la aos seus filhos – correriam o risco de ver obstinar-se um governo que já tem a tendência de os tratar como suspeitos, desde o momento em que as críticas e os protestos da nossa parte lhes fossem transmitidos. Não será preferível abandonar toda a agressividade, tentar compreender, desarmar as desconfianças com um verdadeiro espírito de caridade? Nós não somos combatentes. Sabemos que toda a ação de tolerância é, desde logo, ação de paz e de fraternidade e faremos tudo o que está ao nosso alcance para nunca faltar a este dever sagrado.
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Declaração por ocasião da Conferência Mundial em Viena – 199313 Gianfranco Rossi14 A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade religiosa deseja exprimir o seu mais sincero reconhecimento a todos os Estados Membros da ONU, que tornaram possível a organização desta Conferência Mundial sobre os direitos do Homem. Faz-se sentir uma necessidade imensa de agir para a promoção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais. Com efeito, centenas de milhões de homens, de mulheres e de crianças sofrem, cada dia, no nosso planeta, e perdem mesmo, por vezes, a vida, porque os direitos fundamentais têm sido espezinhados. Cada povo, é verdade, tem o direito inalienável de dispor de si mesmo, de escolher e de desenvolver livremente os seus sistemas político, social, económico e cultural. Mas nenhum povo, nenhum grupo se pode arrogar o direito de estabelecer ou de manter um regime político que não respeite os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, isto é, que recuse respeitar a dignidade inerente a cada membro da família humana. É necessário trabalhar, sem cessar, para construir uma sociedade que coloque sempre, no centro das suas preocupações, o Homem, a sua liberdade, o 13 O texto desta declaração teve uma tiragem de 370 exemplares e foi distribuído pelo Secretário da Conferência aos delegados presentes. O Secretário da AIDLR, Gianfranco Rossi apresentou-a em parte, oralmente, por ocasião da sessão plenária da Conferência, a 24 de Junho de 1993. 14 O professor Gianfranco Rossi, na qualidade de antigo Secretário-Geral da AIDLR (1983-1995), contribui, largamente, para a redação da “Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou na Convicção”, em particular do artigo 6, parágrafo h. Alguns princípios guiaram Gianfranco Rossi nas suas atividades em favor da liberdade religiosa. Primeiramente, o princípio da igualdade: nenhum indivíduo ou grupo, pode reivindicar o direito de estabelecer ou de manter um regime político que não respeite os direitos e as liberdades de todos os seres humanos. Em segundo lugar, o princípio da diferença: a sociedade pluralista de hoje deve respeitar não apenas as similitudes, mas também as diferenças entre os seres humanos. Em terceiro lugar, Gianfranco Rossi concluiu com um apelo a todas as religiões para se purificarem de toda a forma de intolerância e de extremismo, notando que é impossível construir uma sociedade pluralista sem respeito e cooperação.
Declaração por ocasião da Conferência Mundial em Viena – 1993
seu bem-estar e o seu desenvolvimento total. Sem o Homem, não haveria sociedade; é, portanto, para ele que devemos conjugar os nossos esforços. Nesta perspetiva, o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião e de convicção é de uma importância fundamental. Com efeito, garantir este direito a cada indivíduo significa reconhecer-lhe o direito de ser ele mesmo e de viver em harmonia com as suas convicções mais íntimas e a sua própria visão do mundo, de se desenvolver plenamente numa perspetiva que pode ir além da sua vida terrestre para chegar à certeza de um destino eterno. Não podemos senão apoiar as propostas de René Cassin, prémio Nobel da Paz e um dos pais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando declarou: “O direito à liberdade de pensamento é fundamental e é o ponto de partida para todos os outros direitos. É o direito à liberdade de consciência que dá à pessoa humana o seu valor e a sua dignidade”. É necessário não esquecer que milhões de homens e de mulheres têm sacrificado a sua vida na luta contra o fascismo e o nazismo, a fim de garantir à Humanidade, especialmente, a liberdade de religião, uma das quatro liberdades fundamentais precisadas por Franklin Roosevelt e Winston Churchill na Carta Atlântica, de 14 de Agosto de 1941. Os homens, na sua busca sincera pela verdade, na sua procura de respostas às questões fundamentais tais como: Donde viemos nós? Para onde vamos? Qual é o sentido da vida? Podem encontrar uma solução satisfatória numa determinada religião. Alguns encontram-na na dos seus pais, outros numa religião diferente. O indivíduo deve poder escolher livremente a sua religião, porque o seu destino terrestre e eterno está-lhe diretamente ligado. O Estado que respeite, realmente, a liberdade religiosa deve garantir a todo o indivíduo a liberdade de percorrer o caminho espiritual que lhe dita a consciência, conforme os ensinos que acredita terem sido dados por Deus, a autoridade suprema. Não é competência do Estado ingerir-se neste domínio e, menos ainda, impor aos seus cidadãos uma determinada visão do mundo, seja ela religiosa ou não. O Estado deve ser a casa comum de todos os cidadãos. Isso significa que, em cada país, o pluralismo ideológico deveria não somente ser aceite como um facto, mas ser reconhecido pela lei. As diferentes “visões do mundo” – religiosas ou não – deveriam ter o direito de existir, de se exprimir e de se fazer valer, num respeito mútuo. Nenhuma delas se deveria servir do poder do Estado para suprimir os outros ou impedi-los de se exprimirem e de agir livremente.
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As religiões, que têm uma visão global da família humana e que pregam a justiça, a paz e o amor entre os homens, deveriam desempenhar um papel importante na construção de uma sociedade pluralista respeitadora dos direitos do Homem. Mas é necessário que as religiões e as organizações religiosas sejam os fiéis intérpretes da Revelação divina da qual elas afirmam ser os depositários e os apóstolos. Porque se, em lugar de ensinar escrupulosamente a mensagem recebida do Alto, a religião degenerar; se se torna um instrumento que permita exercer um poder espiritual sobre as consciências e visa fazer aplicar a lei do Estado, as suas regras particulares, torna-se uma maldição para a sociedade. Ninguém ignora os períodos sombrios da História dominados pela intolerância e pelo dogmatismo religioso. Forçoso é constatar, na nossa época, preocupantes manifestações de um extremismo religioso que vai em contraciclo com a construção de uma sociedade pluralista. Assiste-se, com efeito, ao crescimento, cada vez mais ameaçador, de movimentos plenos de totalitarismo religioso. Em muitos países, estes movimentos visam impor, por via da lei do Estado, as regras de uma religião única. Toda a sociedade se vê assim regida pelos preceitos dessa religião. Aqueles que não aceitam conformar-se com essa nova ordem são considerados como infiéis, descrentes, e não se hesita em fazer uso da força contra eles. De facto, a instauração de regimes teocráticos totalitários é já uma realidade, ou quase, em certos países onde são registadas violações massivas dos direitos do Homem e onde o código penal prevê a pena de morte para aqueles que abandonam a religião oficial. No dealbar de século XXI e na era dos direitos do Homem, a Comunidade Internacional não pode aceitar que os Estados membros da Nações Unidas condenem à pena de morte cidadãos que, em plena consciência, decidem mudar de religião. O direito à liberdade religiosa implica a liberdade de mudar de religião, como é afirmado no Artigo 18 de Declaração Universal dos Direitos do Homem e noutros instrumentos internacionais. Desejamos, vivamente, que a Conferência Mundial de Viena tome claramente posição contra as manifestações de extremismo religioso, que são uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas e ameaçam desestabilizar o equilíbrio internacional. A reunião regional para a África, que teve lugar em Tunes de 2 a 6 de Novembro de 1992 e que tinha como objetivo contribuir para a preparação desta Conferência, debruçou-se atentamente sobre este problema. Ela adotou uma
Declaração por ocasião da Conferência Mundial em Viena – 1993
resolução intitulada “Cooperação Internacional com vista a lutar contra todas as formas de intolerância e de extremismo religioso”. Pensamos que esta assembleia mundial deveria exprimir-se sobre este tema e adotar medidas concretas. Poderia, especialmente, pedir à Comissão dos direitos do Homem que preparasse um projeto de Convenção Internacional sobre a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esta Convenção deveria, naturalmente, ser dotada de um Comité de controlo especializado. É necessário combater, energicamente, e com toda a urgência, o extremismo religioso e dar o nosso melhor para que, em cada país, o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de convicção seja reconhecido e garantido pela lei, não apenas em princípio, mas também nas suas diferentes manifestações. Na hora atual, quase todos os Estados o reconhecem, em princípio, mas um grande número entre eles limita-o fortemente, através de medidas legais que constituem verdadeiras formas de intolerância e de discriminação, reduzindo quase a zero o exercício desse direito. Donde, a necessidade de um instrumento internacional, que não apenas precise esse direito em todas as suas implicações essenciais, mas que, ao mesmo tempo, tenha força executória, obrigando assim os Estados que o assinarem e o ratificarem a respeitá-lo plena e concretamente. Este instrumento serviria, também, para os países que não o tenham assinado, porque exerceria sobre eles uma pressão moral infinitamente superior à produzida pela Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção. Será prestar um enorme serviço à Humanidade chegar a garantir a cada ser humano o respeito efetivo desta liberdade, que é de uma importância fundamental, não só para os indivíduos, mas também para a sociedade no seu todo. Com efeito, reconhecer e respeitar a liberdade de religião e de convicção significa aceitar o pluralismo ideológico e político, e colocar solidamente as bases do Estado de direito e da verdadeira democracia, permitindo a todos os homens gozar da igualdade em dignidade e em direitos no respeito pelas diversidades.
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Não responder à intolerância com a intolerância15! Maurice Verfaillie16 Em São Francisco, ao sair da Segunda Guerra mundial, homens e mulheres de boa vontade criaram a Organização das Nações Unidas e, alguns anos mais tarde, em 1949, outros deram origem ao Conselho da Europa, todos com os mesmos objetivos: evitar às novas gerações os sofrimentos devidos à guerra, promover a proteção dos direitos do Homem e as liberdades fundamentais, praticar a tolerância para viverem em paz uns com os outros. Podemos constatar, hoje, que a prática destas liberdades fundamentais e, mais particularmente, no que concerne à nossa Associação, os direitos individuais e coletivos sobre a liberdade de religião, de convicção e de culto, é globalmente adequada nos diversos países onde a democracia é realmente posta em prática. Há ainda hoje numerosos países no mundo onde estes direitos são sistematicamente violados, seja porque a religião não corresponde à ideologia dominante, seja porque as leis em vigor não são adequadas para proteger este direito, ou pelo facto de que a educação para a tolerância e a diversidade das comunidades religiosas não se integram nas conceções da religião maioritária, ou ainda porque o direito de mudar de religião não é admitido. É forçoso constatar atualmente, também, o aparecimento de um outro problema que toca as nossas sociedades mais profundamente do que geralmente se pensa. Trata-se da reação emocional face à pluralidade do facto religioso antigo e moderno, emoção cuja amplitude crescente contribui para criar um clima de desconfiança e de suspeição, porque algumas pessoas exploram a alavanca do medo. Estas novas tensões criam-se hoje, tanto no seio das democracias ocidentais, como em qualquer outro lado, noutros sistemas políticos. Com o tempo, elas poderiam contribuir para impedir a obra realizada, até agora, pelos órgãos defensores do direito à liberdade de religião e de convicção. Sem dúvida, não se pode esquecer que os discursos que se opõem aos direitos do Homem são 15 Extrato do editorial publicado na revista Consciência e Liberdade nº 53, de 1997. 16 Antigo Secretário-Geral da AIDLR (1995-2005), é doutorado em Ciências da Religião e especializado em História das Religiões. Em 1998 recebeu a Cruz de Comendador da Ordem de Mérito Nacional de Espanha.
Não responder à intolerância com a intolerância
cada vez mais numerosos a fazerem-se ouvir. Cada vez mais se fazem notar. Em alguns meios chegam mesmo a negar esses direitos. É igualmente verdade que a atualidade religiosa é pontuada por dramas incompreensíveis, provocados, por vezes, pela desordem, e, mais frequentemente, pelo extremismo, o fanatismo, pela fraude ou pela ação de desequilibrados. Mas a nova face do problema é de qualquer forma preocupante. Ela parece, por vezes, tomar a forma de cruzadas contra o que se chama hoje o fenómeno das “seitas” e dos novos movimentos religiosos. O que impressiona, então, aqueles que defendem a liberdade religiosa, são todas as generalizações prematuras, as amálgamas irresponsáveis, a estigmatização do que não está inteiramente conforme a estrutura mental forjada por um pensamento dominante. A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa não tem por princípio defender uma liberdade religiosa sem limites. É evidente que a sociedade deve organizar as diferentes liberdades para o bem do conjunto. Muitos comportamentos são condenáveis. Aqueles que contém um atentado à livre escolha em matéria de religião, como aqueles que violam a dignidade humana, que põem em perigo a segurança de homens e de mulheres, a sua saúde e a sua vida, ou que ultrapassam os limites dos bons costumes são igualmente de sancionar. Mas é igualmente indispensável, para o bom funcionamento de uma verdadeira democracia, que a sanção repouse sobre as mesmas bases legais que são igualmente aplicadas a todos, indivíduos ou coletividades, Igrejas tradicionais, antigas ou novas, comunidades espirituais antigas ou novas, maioritárias ou minoritárias.
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Maurice Verfaillie
A CRUZ DE COMENDADOR DA ORDEM NACIONAL DE MÉRITO CIVIL ESPANHOL ATRIBUÍDA A MAURICE VERFAILLIE, SECRETÁRIOGERAL DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA O rei de Espanha, João Carlos I, atribuiu a Cruz de Comendador da Ordem Nacional de Mérito Civil Espanhol a Maurice Verfaillie, Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR). A 27 de abril, pelas 12 horas, o Rei entregou a condecoração por intermédio do Secretário de Estado do Ministério da Justiça, José Luís González Montes. Foi a primeira vez, na História de Espanha, que uma tal distinção foi atribuída à defesa da liberdade religiosa. “Como o Homem está sempre em construção, a liberdade está e estará sempre em construção”, declarou Maurice Verfaillie durante o seu discurso de receção. Secretário-Geral da AIDLR desde 1995, está envolvido nesta causa desde 1960 e confessa dever muito a Pierre Lanarés, anterior Secretário-Geral da Associação. Através de Maurice Verfaillie, foi a AIDLR que foi honrada. Fundada em 1946, em Paris pelo dr. Jean Nussbaum, o seu prestígio internacional, valeu-lhe o estatuto de Organização não- Governamental.
O extremismo religioso e a liberdade religiosa17 Karel Nowak18 Aparentemente, o fanatismo religioso e a liberdade religiosa são dois fenómenos que criam tensões e que, numa certa medida, são antinómicos. O extremismo, e mais particularmente o extremismo religioso, tem a tendência a ser um entrave para a liberdade religiosa. Com muita frequência dá origem a restrições legais e, em certos casos, fornece às autoridades um pretexto para limitar a liberdade religiosa. Que entendemos nós por “extremismo religioso”? Numerosos autores e oradores utilizam muitas vezes estas palavras como sinónimos intermutáveis. Falta-nos a todos uma definição clara e aceite. Além disso, o sentido de certas palavras evolui com o decorrer do tempo. Por exemplo, o termo “fundamentalismo” que na origem tinha um sentido positivo, tem hoje uma conotação pejorativa. Uma vez que estes termos não são claramente definidos, suscitam sentimentos negativos, que tornam a sua compreensão ainda mais subjetiva. O que é um extremista? O que é um fundamentalista? “O extremismo” e o “fundamentalismo” são em geral definidos como um desvio, em relação a uma norma comportamental aceite por todos, que varia segundo a época, o lugar ou a cultura. O filósofo George Santayana, por exemplo, dizia que “ser fanático é prosseguir nos seus esforços quando se esquece qual o objetivo para o qual tende”. Para Winston Churchill, “um fanático é alguém que não pode mudar de opinião e que não quer mudar de assunto”. Qualquer que seja a definição, ressalta que o fanático fixa normas muito estritas e demonstra pouco tolerância para com as ideias ou as opiniões contrárias às suas. Instituições internacionais, tais como as Nações Unidas, afirmam que o extremismo religioso e a intolerância religiosa estão claramente a aumentar em todo o mundo. Abdelfattah Amor, o relator especial das Nações Unidas, 17 Extrato do Editorial publicado na revista Consciência e Liberdade nº 22, 2009. 18 Karel Novak, antigo Secretário-Geral da AIDLR, era um apaixonado pela liberdade religiosa. “Três palavras caracterizam Karel Novak muito bem” disse J. Graz: “eficácia, sabedoria e bondade”. Karel Novak estava convencido, como Jean Nussbaum, o fundador da AIDLR, de que “Se princípios forem respeitados, os nossos interesses estão incluídos. Mas se nos concentrarmos apenas nos nossos interesses, não somos credíveis e perdemos, muito facilmente, terreno no nosso trabalho”. Karel Novak aplicou este ponto de vista no seu trabalho.
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Karel Nowak
declarou no seu relatório à Assembleia Geral em 1999, que “nenhuma religião está isenta de extremismo”. O seu relatório mencionava, por outro lado, que era importante fazer a diferença entre os extremismos que se servem da religião para objetivos políticos – e que, de facto, são uma minoria – e os que praticam a sua religião de acordo com os princípios da tolerância e da não-discriminação, e que pertencem à maioria. A História prova-nos que o extremismo religioso e o fanatismo de qualquer natureza são hostis à liberdade religiosa e causam-lhe dano. Os grupos religiosos que têm tendências extremistas demonstram, geralmente, pouca tolerância para com as outras religiões ou outras formas de piedade. Em certas regiões do mundo, observamos tendências de “limpeza religiosa”, quando as minorias religiosas são sistematicamente expulsas de um determinado território. Por outro lado, há governos que, para tentar lutar contra o extremismo religioso, limitam a liberdade religiosa a todos. A fim de ilustrar o nosso propósito, citaremos um comentário pessoal de Narinam Gasimoglu, um erudito originário do Azerbeijão, tradutor do Corão, diretor do Centro para a Religião e a Democracia em Bacu e antigo investigador associado à Universidade de Georgetown (Estados Unidos): “Os grupos islamitas extremistas (…) que ainda não beneficiam de um grande apoio, foram reforçados pela repressão, tal como sofreram os muçulmanos moderados, os protestantes e as Testemunhas de Jeová. O melhor – porventura o único – meio de conter o extremismo religioso, é abrir a sociedade à liberdade religiosa para todos, à democracia e ao debate livre – incluindo os grupos islamitas. É a única forma de privar o extremismo islâmico de apoio, deixando ver a realidade do que o extremismo no poder pode significar. A liberdade religiosa favorecerá a democracia, e a democracia favorecerá a liberdade religiosa. Quanto mais se deixem as pessoas livres de praticar a sua religião, mais se libertará a sociedade dos problemas do extremismo religioso. A liberdade é como que um remédio para os problemas sociais tais como o extremismo.” Publicado pelo Forum 18, News Service. Uma maior liberdade religiosa – uma maior liberdade de manifestar e ensinar as diversas convicções religiosas – constitui um poderoso antídoto contra o extremismo religioso. A promoção do direito à liberdade de religião ou de convicção é não só um imperativo moral mas, igualmente, uma obrigação pragmática. É o melhor remédio contra o extremismo e o fanatismo, e um meio essencial para garantir a segurança do mundo.
CAPÍTULO
2 Os direitos do Homem e a liberdade religiosa dos nossos dias no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios? Respostas de personalidades nas Nações Unidas, embaixadores e universitários.
Será que o mundo entende?1 Ban Ki-moon 2 Os fundadores das Nações Unidas compreenderam que a soberania confere uma responsabilidade, e esta última assegura a proteção do ser humano contra a privação, a guerra e a repressão. Eu nasci no fim da Segunda Guerra mundial. Ainda criança, fui testemunha das devastações da guerra da Coreia e da promessa de paz. Aprendi na rude escola – isto é à minha custa – o que era a fome, a pobreza e a deslocação. Enquanto havia crianças que frequentavam a escola, eu tinha que estudar na rua, debaixo de uma árvore. Quando chovia devíamos esperar pelo regresso do Sol para continuarmos os estudos. (…) Hoje, questiono-me, muitas vezes, quantas crianças, em circunstâncias similares, se colocam as mesmas questões que eu punha há sessenta anos: Será que o mundo entende? A ajuda chegará a tempo? Quem me vai socorrer a mim e à minha família?
Tentar fazer com que as coisas mudem – uma responsabilidade Eis aquilo a que me dedico profundamente como Secretário-Geral das Nações Unidas. A tarefa de proteger o ser humano não é, nem simples, nem fácil. Nem sempre conseguimos isso. No entanto, jamais devemos parar de tentar fazer com que as coisas mudem. Esta é a nossa responsabilidade, individual e coletivamente. Os responsáveis, como eu na qualidade de Secretário-Geral, e os dirigentes do mundo têm a obrigação moral e política de proteger as populações. O mundo e os conflitos que o afetam são consideravelmente diferentes desde a fundação das Nações Unidas. As suas instituições devem, portanto, tam1 Extratos da mensagem do Secretário-Geral das Nações Unidas, Selected Speeches: Cyril Foster Lecture at Oxford University: Human Protection and the 21st Century United Nations, apresentado a 2 de fevereiro de 2011. http://www.un.org./sg/selected/speeches/statement_full.asp?starID=1064; o título e os subtítulos não fazem parte da mensagem. 2 Ban Ki-moon é o atual e oitavo Secretário-Geral das Nações Unidas desde 1 de janeiro de 2007. O seu mandato foi renovado a 21 de junho de 2011 por um período que vai a té dezembro de 2016. Foram-lhe atribuídos os títulos honoríficos de Doutor honoris causa da Universidade de Malta (2009) e o título honorífico de Doutor em Direito pela Universidade de Washington (2009).
Será que o mundo entende?
bém elas mudar. Os mais sólidos ajustam-se mas não quebram Adaptam-se às circunstâncias, aproveitam as oportunidades, regulam as suas velas em função do vento, sabem que o caminho mais rápido para chegar a um destino raramente é um caminho direito. A sua velocidade de progressão é variável, mas os seus princípios diretores não mudam. Os desafios a que fazemos face são diferentes, mas a nossa responsabilidade primeira é manter a paz e a segurança no mundo.
A melhor proteção: a prevenção Esforçamo-nos por intensificar os esforços de proteção: quando se é vulnerável, o esforço é duplo. A melhor das proteções é a prevenção. A prevenção salva vidas; salva também recursos. A prevenção não é uma empresa insuperável. Os direitos do Homem são um elemento essencial da proteção dos seres humanos. Talvez já tenham ouvido falar da iniciativa “R2P” – responsabilidade de proteger – que visa proteger as populações através de prevenção dos genocídios, dos crimes de guerra, dos crimes contra a Humanidade e das limpezas étnicas. A minha doutrina, quanto a ela, prevê basear os nossos esforços em prevenir estes crimes terríveis sobre três pilares: em primeiro lugar, a responsabilidade do Estado; em segundo lugar, a responsabilidade da comunidade internacional, que consiste em assistir os Estados nas suas tarefas; e em terceiro lugar, reações eficazes no momento oportuno no caso em que as autoridades nacionais falham manifestamente no seu papel de proteção, especialmente de acordo com o capítulo VII, se o Conselho de Segurança considera essas medidas necessárias. Além disso, penso que a sociedade civil pode desempenhar um papel de observador, de sentinela, para assegurar, em permanência, que os Governos fazem respeitar todos estes princípios de justiça e de responsabilidade. A comissão preparatória da conferência de São Francisco sublinhou o facto de que, se as liberdades e os direitos fundamentais são “gravemente violados ao ponto de criar condições que ameaçam a paz ou impedem a aplicação das cláusulas da Carta, então deixam de ser a única preocupação do Estado”. A partir daí, como proceder? Devemos pôr a nós mesmos a questão. Numa tal situação como iremos nós reagir? Na luta contra os conflitos potenciais, encorajamos, igualmente, um diálogo intercultural através da Aliança das civilizações das Nações Unidas e colocar-nos-emos em guarda contra a intolerância e polarização política. As Nações Unidas foram criadas para ser um agente de mudança e não, simplesmente, um objeto de mudança. O que é necessário é que a responsabilidade seja partilhada. Nada se pode realizar sozinho, sem a ajuda dos governos, sem a
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Ban Ki-moon
ajuda do mundo dos negócios, sem a ajuda dos generosos filantropos, sem a ajuda das Organizações não Governamentais e dos estudantes (…) Eis o que é uma responsabilidade partilhada. Porque é em conjunto que podemos responder aos gritos da criança sepultada sob os escombros da sua casa depois de um tremor de terra, aos gritos destas pessoas que se encontram presas num conflito, em resumo, aos gritos de todos aqueles que dizem: Será que o mundo ouve o meu pedido de ajuda? Quem é que me vai ajudar a mim e à minha família? Os objetivos, bem como os princípios das Nações Unidas, estão ancorados sobre a proteção do ser humano. Os termos da Carta das Nações Unidas são verdadeiros ainda hoje. “O Secretário Geral, mais do que qualquer outro, representará as Nações Unidas no seu conjunto. Aos olhos do mundo, ele deve encarnar os princípios e os ideais da Carta”. Eis porque a proteção do ser humano permanecerá a característica principal da minha administração e procurarei, continuamente, agir de forma que as nossas ações sejam o reflexo das nossas palavras. “Nós, os povos”: Eles não esperam, nem merecem menos do que isso.
Tradições religiosas diferentes, mas uma fé comum: a fé no nosso futuro comum31 Nas comunidades onde os símbolos das minorias religiosas suscitam a oposição ou o medo, devemos fazer prova de um envolvimento contínuo. Onde as pessoas são descriminadas por causa da sua raça, da sua fé ou mesmo por causa do seu nome, temos ainda um trabalho a fazer. Hoje, no mundo, três quartos dos grandes conflitos têm uma dimensão cultural (…). Precisamos de procurar desarmadilhar estas tensões encontrando respostas para alguns dos problemas atuais mais urgentes: como criar uma sociedade sobre a integração? Como fazer calar o canto das sirenes que arrastam os jovens para o extremismo? Em resumo, como edificar comunidades enraizadas na convivência – o viver em conjunto na paz, a confiança no respeito mútuo? O processo de construção de sociedades acolhedoras deve, ele mesmo, favorecer a integração. Todo o mundo deve participar nisso. No fim de tudo, a paz e a reconciliação não são valores que se possam impor. São sementes que os homens plantam e que as comunidades mantêm. No dia-a-dia, a Aliança das civilizações desempenha um papel graças à ajuda social, a compreensão e a educação. E nós es3 Selecte Speeches. Extratos de: Remarks to the Forum of the Alliance of Civilizations by UN Secretary-General Ban Ki-moon. http://www.un.org./sg/selected/speeches/statement_full.asp?starID=834.
Será que o mundo entende?
tamos bem conscientes de que a educação vai mais longe do que a aprendizagem: por vezes, é mesmo desaprender. As sementes da paz e da reconciliação devem ser plantadas pelos homens e conservadas pelas comunidades. Devemos defender-nos de estereótipos que vêm o “outro” como um monólito. Devemos parar de colocar etiquetas que dividem mais do definem. É um desafio, e eu sou realista. No nosso mundo reina uma doença. Há tensões enraizadas no medo, e no medo alimentado pela ignorância. Vivemos num mundo onde, muito frequentemente a divisão se vende bem. Ela ganha votos. Ganha pontos. É muito mais fácil criticar os outros do que envolver-se numa reflexão pessoal. Contudo, onde quer que vá, descubro uma crescente compreensão de que este combate é de nós todos. Uma consciência mais sensível para o facto de que o futuro do meu filho depende daquilo que for o futuro do seu filho. Uma melhor compreensão do facto de que somos uma grande família constituída por muitos membros, mas de nenhum monólito. A partida não está ganha. Resta ainda muito a fazer.
Juntos, é melhor Vejo desenhar-se no horizonte um mundo que compreende que juntos somos mais fortes. Ouço os gritos de protesto substituídos pela escuta. Sinto uma determinação para realizar este sonho. Os governos, a sociedade civil, o setor privado, a comunidade dos crentes, a juventude. Vós – e todos os que esta Aliança representa. Um movimento social global. Uma Aliança da Humanidade. Independentemente das nossas tradições religiosas, temos uma fé comum: a fé no nosso futuro comum. Exploremos a nossa humanidade comum e, em conjunto, construamos um mundo melhor.
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Iguais em dignidade e em direitos: será ainda um sonho para muitos?4 Navi Pillay 5 (Em junho de 1993), mais de 7000 pessoas participaram na Conferência Mundial sobre os direitos do Homem em Viena. Os países ocidentais privilegiam os direitos civis e políticos; o bloco de Leste, assim como numerosas nações em vias de desenvolvimento, afirmavam que os direitos económicos, sociais, culturais e o direito ao desenvolvimento tinham prioridade. Além disso, um número assaz importante sustentava vigorosamente que a Declaração Universal dos Direitos do Homem era o produto de uma cultura tipicamente ocidental e que, na realidade, os direitos do Homem deveriam ser examinados segundo as características e as tradições das diferentes culturas. Além disso, o mundo encontra-se envolvido com uma série de desordens dramáticas. Algumas delas – como a queda do muro de Berlim – eram muito positivas, outras – a vaga súbita de conflitos internos particularmente destruidores – profundamente negativos. O fim da guerra fria parecia ser o momento favorável para este novo mundo rever a sua agenda sobre os direitos do Homem.
O consenso de Viena No momento em que as discussões avançam rapidamente, surgiu um consenso. A chave? As noções da universalidade, da indivisibilidade e da inter-relação de todos os direitos do Homem. Um certo número de países tinham durante muito tempo resistido ao conceito de direitos económicos e sociais porque os veem como aspirações mais do que como direitos intrínsecos à dignidade humana e à liberdade. A visão de uma constelação de direitos do Homem ligados entre si e 4 Mensagem do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem, por ocasião da conferência de Viena em junho de 2013. http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews. aspx?NewsID=13488&LamgID=E. 5 Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem, e, em Genebra, desde setembro de 2008. O seu mandato foi renovado até setembro de 2014. É advogado (doutor em Ciências Jurídicas, pela Universidade de Harvard). Antes da sua nomeação para a ONU, teve entre outras responsabilidades. Foi mestre de conferências na Universidade Kwa-Zulu-Natal (África do Sul) e juiz no Tribunal Penal Internacional em Haia (2003-2008).
Iguais em dignidade e em direitos: será ainda um sonho para muitos?
interdependentes tem permitido aos direitos económicos e sociais e ao direito ao desenvolvimento estar na ordem do dia. O debate sobre as especificidades culturais dos direitos do Homem foi sendo resolvido através de uma abordagem simultaneamente hábil e inclusiva. Bem entendido, todos os países são diferentes. E é necessário, evidentemente, que todas as vozes sejam ouvidas. No entanto, as especificidades culturais não corroem, de forma alguma, a universalidade dos direitos do Homem. A fórmula que, no fim de contas, criou o consenso sobre este ponto específico foi a seguinte: cada um escolhe o caminho que deseja seguir, mas o destino final deve ser comum a todos. A especificidade de cada um influenciará a forma como irá progredir, mas o objetivo final – a dignidade e a liberdade do ser humano estabelecidas graças à aplicação dos direitos do Homem, tais como são descritas na Declaração Internacional dos Direitos – é algo que todos partilhamos. Assim, os delegados reunidos conseguiram reduzir importantes divergências sobre questões litigiosas tais como a universalidade, a soberania, a impunidade e a forma de permitir às vítimas fazerem-se ouvir. Seguiu-se a adoção de um documento capital: a Declaração e o programa de ação de Viena (DPAV). Esta Declaração é o mais importante documento, em matéria de direitos do Homem, do último quarto de século e um dos mais poderosos dos últimos cem anos. Ele cristalizou o princípio segundo o qual os direitos do Homem são universais, indivisíveis, interdependentes e ligados entre si, e alicerçou firmemente a noção da universalidade envolvendo os Estados, “seja qual for o sistema político, económico e cultural”, promovendo e protegendo todos os direitos do Homem de todas as pessoas. A conferência de Viena conduziu a avanços históricos em numerosos domínios cruciais, entre os quais se encontram os direitos da mulher, a luta contra a impunidade, os direitos das minorias e dos migrantes assim como os direitos das crianças. Numerosos progressos foram realizados graças ao caminho traçado em Viena. Podemos regozijar-nos, com razão, com um bom número de acordos importantes e históricos, especialmente aquele que se refere à criação do primeiro Tribunal criminal internacional, mundial e permanente – que recebeu um considerável impulso em Viena – assim como novos mecanismos para promover e proteger os direitos das mulheres, das minorias, dos trabalhadores migrantes e as suas famílias, entre ainda outros grupos. A conferência de Viena abriu a porta a mecanismos mais poderosos na ONU de defesa dos direitos do Homem, incluindo uma expansão – que prossegue ainda hoje – do número dos “procedimentos especiais”. No entanto, devemos admitir que em numerosos domínios falhámos em continuar a construir sobre as bases estabelecidas pela DPAV. A promessa e fonte de inspiração que introduziu a Declaração Universal – isto é que os seres humanos nascem iguais em
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dignidade e direitos e que estes serão respeitados como tal – não passa ainda de um sonho para numerosas pessoas.
Falhanço na proteção Várias vezes a comunidade internacional prometeu proteger os civis de massacres e de violações massivas dos direitos do Homem. No entanto, no exato momento em que vos falo, mulheres são abusadas e violadas, hospitais são usados como alvo enquanto bombardeamentos indiscriminados e massacres deliberados mancham a terra com sangue de inocentes. Tudo isto é intolerável, contudo continua a acontecer. Algumas promessas são apenas muito ténues e outras nem isso. Nós não estamos aqui (em Viena) para fazer o elogio da História; estamos aqui para nos debruçarmos sobre os planos de um edifício magnífico que só está edificado até meio. É essencial que vejamos a DPAV como um documento sempre atual que pode e deve continuar a guiar as nossas ações e os nossos objetivos. Os direitos do Homem nem sempre são universalmente reconhecidos, ou considerados, como sendo indivisíveis e ligados entre si, apesar da nossa promessa que esse seria o caso. Alguns Estados continuam a argumentar sobre a relatividade cultural. Mulheres, minorias e migrantes são sempre vítimas de discriminação e de abusos. O direito ao desenvolvimento nem sempre é aceite por todos. O poder continua a corromper e para o conservar, alguns dirigentes estão sempre prontos a sacrificar o seu povo.
O caminho diante de nós Foi em Viena que ONGs deram o impulso que esteve na origem da criação do lugar de Alto-Comissário para os Direitos do Homem. Trata-se de assegurar que uma voz independente, e com autoridade, se possa levantar contra as violações dos direitos do Homem, onde quer que elas ocorram, possa coordenar e apoiar o trabalho de um diferente conjunto de diferentes organismos e recorrer à influência das Nações Unidas para encorajar o respeito dos direitos do Homem para todos. É, para mim, uma honra ocupar esse lugar hoje. A nossa tarefa (promover e proteger os direitos do Homem para todos e em todo o lugar) é imensa e os nossos recursos para a realizar são claramente insuficientes. Devemos fazer todo o nosso possível para reanimar o espírito da Declaração de Viena e reaprender os seus ensinamentos. Devemos novamente recentrarmo-nos nesse objetivo, que é extremamente claro, mas que não ousamos esperar conseguir. Ela reafirmou a dignidade e os direitos de todos e nos mostrou como conseguir esse objetivo. Ela cristalizou os conceitos de universalidade e de imparcialidade em matéria de justiça. Ela colocou-nos no caminho certo, e em certa medida, temo-lo seguido. Infelizmente, e de forma repreensível, continuamos muita vezes a nos desviarmos dele.
Os crentes têm uma forte influência sobre a conduta dos grupos e dos indivíduos6 Kofi Annan7 “Conheceis um período de forte crescimento da intolerância, de extremismo e de violência. Os recentes desenvolvimentos no Médio-Oriente não fazem mais do que confirmar esta tendência. As relações entre os membros das principais religiões do mundo têm sido particularmente afetadas. Se esta situação for ignorada, poderá ameaçar a estabilidade de algumas partes do mundo (…). O facto de haver uma tendência para aumentar a definição das diferenças em termos de identidade – seja ela religiosa, étnica, racial ou outra qualquer – mais do que em termos de opinião ou de convivência, tem dado origem a desenvolvimentos perturbadores. Com efeito, assim como opiniões e interesses podem ser abertos à reavaliação e à negociação, as identidades raramente o são. Eis porque a atenção se centra hoje sobre as diferenças baseadas na identidade, o que tem causado soluções acima de tudo ilusórias. (…) Os crentes têm uma forte influência na conduta dos grupos e dos indivíduos. Como mestres e guias podeis ser poderosos instrumentos de mudança. Podeis inspirar os povos a querer atingir novos níveis de envolvimento e de serviço ao público. Podeis ajudar a construir pontes sobre os abismos da ignorância, do medo e da incompreensão. Podeis ser um exemplo de diálogo e de cooperação inter-religiosa. Em conjunto, podeis ajudar a traçar um caminho de moderação para os crentes mostrando-lhes que podem permanecer fiéis às suas convicções e às suas crenças envolvendo-se completamente no mundo em mudança que os envolve. 6 Extrato da mensagem do antigo Secretário-Geral das Nações Unidas Koffi Annan, por ocasião do segundo Congresso das Religiões Mundiais e tradicionais em Astana no Cazaquistão e apresentado por Sergei Ordzhonikidze, antigo Diretor-Geral das Nações Unidas em Genebra, a 12 de setembro de 2006. Ref.: Secretary General SG/SM/10632. Department of Public Information, News and Media Division, New York. Texto em inglês: http://www.un.org/News/Press/docs/2006/sgsm10632.doc.htm. 7 Antigo Secretário-Geral das Nações Unidas. Recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2001 e numerosos títulos, entre eles, doutor honoris causa em Direito (09/03/2004, Carleton University) e Doutor honoris causa (01/11/2008 pela Universidade de Neuchatel). Está atualmente envolvido num grande número de organizações com vocação mundial.
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Kofi Annan
As vossas deliberações deveriam também, tornar-vos capazes de trazer uma contribuição importante para a “Aliança das Civilizações” que criei sob a iniciativa dos primeiros-ministros da Espanha e da Turquia. Esta iniciativa pretende responder à necessidade de um esforço devotado por parte da comunidade internacional – quer se trate de governos, quer da sociedade civil – a criar pontes entre aquilo que divide e a vencer preconceitos, falsas ideias e as polarizações que, potencialmente, ameaçam a paz mundial. Tais encontros, como o vosso, são essenciais para atingir esses objetivos. Com efeito, este fim, tem-se tornado ainda mais urgente perante os recentes inquietantes acontecimentos. É neste espírito que (…) vos encorajo a difundir uma mensagem de diálogo e de coexistência pacífica nas vossas comunidades.”
O ódio religioso: o maior desafio do século XXI Heiner Bielefeldt Entrevista com Heiner Bielefeld, relator especial das Nações Unidas para a Liberdade de Religião e de Convicção, realizada por Liviu Olteanu, Secretário-Geral da AIDLR, a 9 de julho de 2013.
Introdução A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) coopera com organizações internacionais ou regionais. Como representante permanente, participa nas Nações Unidas em Genebra, Nova Iorque e Viena. Está igualmente representada no Conselho da Europa, no Parlamento Europeu e na OSCE. O objetivo da Associação é defender os direitos do Homem, bem como a liberdade religiosa e de consciência para todos, em colaboração com os governos, os parlamentos, os diplomatas e os políticos, as ONG e a sociedade civil, o mundo universitário, as religiões e as Igrejas, as minorias religiosas e quem quer que o deseje. Consideramos que participar em encontros inter-religiosos e interconfessionais constitui um dos principais instrumentos em favor do respeito pela dignidade, a não-discriminação, a compreensão e a proteção da liberdade religiosa, seja qual for a opinião, a religião ou a convicção de cada um. A AIDLR está convencida da importância da educação e da formação contínua em matéria de direitos do Homem e da liberdade religiosa a todos os níveis: na política, nas instituições públicas, no mundo religioso, universitário e no seio da sociedade civil. A nossa Associação organiza conferências, simpósios e debates, aos quais assistem os governos, os parlamentos e as universidades. Pronuncia discursos ou apresenta declarações escritas perante as instituições internacionais e nacionais, entre outras. Organiza mesas redondas, concertos e festivais em torno da liberdade religiosa. Vigia a legislação e a sua aplicação e as tendências relativas às questões da liberdade religiosa. Graças às suas publicações, tais como a revista “Consciência e Liberdade”, e às suas atividades apresentadas acima, entre muitas outras, visa contribuir para a compreensão, o respeito, a tolerância e a paz entre os seres humanos a despeito das suas diferenças.
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A AIDLR dá uma maior importância à dignidade de cada pessoa e defende o princípio da liberdade religiosa para todos. Este ano, publicamos uma edição especial da revista“Consciência e Liberdade”, revista consagrada à liberdade religiosa desde a sua primeira edição, datada de 1948 e que celebra igualmente os 1700 anos do édito de Milão (313-2013). O professor Heiner Bielefeldt é o convidado da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. De origem alemã, sucedeu em agosto de 2010 à srª Asma Jahagir (Paquistão) como relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção.8 Eminente especialista em direitos internacionais do Homem, ensina esta especialidade, assim como Política dos direitos do Homem na Universidade de Erlangen-Nuremberg desde 2009. Depois de estudos de filosofia e de teologia católica na Universidade de Bona e na Universidade de Tübingen – e paralelamente a outros estudos (como filosofia) – ele ocupou diversos postos nas universidades de Toronto, Heidelberg, Mannheim, Tübingen, Bona e Erlangen; também dirigiu o Instituto Alemão dos Direitos Humanos de 2003 a 2009. Heiner Bielefeldt é igualmente autor de numerosas obras fundamentais sobre os direitos do Homem e a liberdade religiosa. A AIDLR aprecia muito particularmente os excelentes relatórios que Heiner Bielefeldt apresenta regularmente às Nações Unidas.
Entrevista Liviu Olteanu: Este ano, o tema da edição especial da revista “Consciência e Liberdade” é “Direitos do Homem e liberdade religiosa no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios”. Professor Bielefeldt, pensa que haja hoje no mundo um melhor equilíbrio ou, pelo contrário, existem mais tensões (e dificuldades) no que concerne a liberdade religiosa?
Professor Heiner Bielefeldt (HB): As tensões são evidentes. Dezenas de milhões de pessoas – judeus, bahá’is, cristãos, muçulmanos, hindus, budistas, mórmons, testemunhas de Jeová, agnósticos, ateus, membros de religiões indígenas, etc. – sofrem atentados à sua liberdade de religião ou convicção. Estas violações têm causas profundas e extremamente variadas. Podem ser perpetradas em nome de reivindicações a favor de uma verdade religiosa ou ideológica ou tendo em vista reforçar a coesão nacional, ou sob o pretexto de fazer respeitar a lei e a ordem, ou ainda no quadro de medidas antiterroristas. Frequentemente, trata-se de uma combinação de todas as razões. Todos os alvos designados de 8 http://www2.ohchr.org/english/issues/religion/.
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abusos são os membros das comunidades religiosas (ou de crentes) que têm – ou é dito que têm – tendência a fugir ao controlo do Estado e que, ao mesmo tempo, são entendidos como não fazendo verdadeiramente parte da paisagem histórica e cultural do país. Entre os autores das violações encontram-se atores não pertencentes ao Estado, que atuam frequentemente num clima político de impunidade, o que denota uma implicação direta ou indireta do Estado ou mesmo uma lacuna na proteção dos direitos do Homem. Pessoas consideradas como “heréticas”, ou não-crentes, tornam-se assim vítimas da violência coletiva e podem encontrar numerosos obstáculos quando procuram trabalho. A lista destas violações é interminável. Como já sabe, aqueles que trabalham pela liberdade de religião ou de convicção têm muito que fazer. LO: A religião e a liberdade religiosa em particular constituem uma solução ou um problema para a segurança e a paz no mundo? Pensa que as reuniões inter-religiosas “de caráter diplomático” e os encontros entre a comunidade diplomática e a sociedade civil e/ou as ONG têm alguma influência positiva sobre os problemas da liberdade religiosa? Porquê? HB: Em geral, a minha resposta à sua segunda pergunta é “sim”. Mas isso depende do que se entende por “diplomacia”. As pessoas, por vezes, desconfiam da linguagem civilizada dos diplomatas porque receiam que ela nem sempre reflita um verdadeiro envolvimento por parte destes últimos. Acontece-me partilhar as suas dúvidas. Participei recentemente numa conferência da Aliança das Civilizações onde ouvi diplomatas exigir que nós “nos respeitássemos uns aos outros”. Soa bem, naturalmente, mas perguntei-me se este “nós” incluía também os bahá’is, os ahmadis ou as testemunhas de Jeová. Eu não estava bem certo disso. Seguramente, não é questão de deixar de realizar esforços diplomáticos inter-religiosos nem de negar o fundamento de tais esforços. Pelo contrário, o diálogo inter-religioso deveria tornar-se mais concreto, mais realista, mais direto, mais aprofundado, mais constante, mais inclusivo e mais pressionante. Em resumo, o que nos falta é mais iniciativas deste género. Aproveito para saudar o trabalho das organizações locais. Muitas delas trabalham em condições muito difíceis. Cheguei ontem da Serra Leoa, onde teve lugar o Conselho Inter-religioso, composto, principalmente, de anglicanos, metodistas, batistas, sunitas, shiitas e alguns outros. Este Conselho desempenhou um enorme papel no processo de reconciliação ainda em curso, depois da pavorosa guerra civil que dilacerou o país. É por isso que eu considero, de uma forma geral, que uma cultura de comunicação inter-religiosa é essencial para a instauração de
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um clima social propício ao exercício da liberdade de religião ou de convicção. Para responder à sua primeira pergunta, bem entendido, trabalhar pela liberdade religiosa quer dizer também trabalhar pela paz no seu sentido mais amplo. LO : Na sua opinião, quais são os maiores desafios a que a liberdade religiosa deve fazer face no século XXI, e o que é que os diplomatas e os políticos podem fazer para resolver os problemas ligados à liberdade de religião? HB: Na minha opinião, é o ódio religioso que representa o maior desafio. Ser confrontado com manifestações extremas de ódio coletivo é uma das piores experiências a que se deve fazer face quando se trabalha neste domínio. E presumo que ninguém conhece a fórmula mágica para atacar este gigantesco problema. Mas o “Plano de ação de Rabat sobre a interdição do apelo ao ódio racial e religioso” adotado a 5 de outubro de 2012, contém, em todo o caso, conselhos muito preciosos; estes são o fruto de uma série de ateliers organizados em todas as regiões do mundo pelo Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem (HCDH, baseado em Genebra) e nos quais têm participado largamente especialistas de diversas disciplinas. O Plano de Ação de Rabat insiste, entre outras, na necessidade de denunciar publicamente a propaganda incitando ao ódio religioso e, ao mesmo tempo, colocar em evidência a importância de que se reveste a liberdade de expressão, se queremos favorecer o disseminar de uma cultura de tolerância. As personalidades políticas e os diplomatas têm responsabilidades particulares a este respeito, mas o Plano põe também a ênfase no papel importante desempenhado pela sociedade civil, que deve apoiar moralmente as minorias visadas. Lutar contra o ódio implica, bem entendido, que é necessário atacar as causas profundas no seio da sociedade, especialmente a utilização da religião para fins políticos, como as interpretações estreitas daquilo a que se chama a “política identitária” nacional. Quando se pratica uma estratégia de controlo estrito das minorias, combinado com uma política identitária que as exclui, cria-se um terreno propício às formas de ódio e de violência mais extremas. Pense na Nigéria, no Mianmar, no Paquistão e em muitos outros países através do mundo. Dar-se-á assim conta de que trabalhando pela liberdade de religião ou de convicção resvala-se inevitavelmente para um terreno altamente político. Permita-me, também, evocar, brevemente, um outro tipo de problema, de natureza mais concetual. A Liberdade de religião ou de convicção, mais talvez de qualquer outro direito do Homem, torna-se com frequência, objeto de inumeráveis mal-entendidos. Isso pode tornar-se perigoso sobretudo quando põe em questão ou mesmo quando se nega o facto de que ela é por natureza um direito do Homem. Por exemplo,
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tem-se misturado injustamente preocupações mais restritivas, especialmente nas questões de luta contra a blasfémia que, em países como o Paquistão, têm um efeito devastador sobre as minorias. Alguns parecem esquecer que o direito de que falamos é um direito à liberdade fundamental e universal. Como tal, está incontestavelmente ligado aos outros direitos: a liberdade de associação, de reunião, de expressão, etc. Contudo, aos olhos de alguns observadores, a liberdade de religião ou de convicção adquiriu uma reputação assaz duvidosa de direito pretensamente “menos liberal”. É claro que isto é absurdo. Também acontece frequentemente que seja encarado como um entrave às políticas de luta contra a discriminação ligada ao género, o que, na minha opinião, constitui, igualmente, um terrível mal-entendido. É, portanto, verdadeiramente necessário insistir no facto de que a liberdade de religião ou de convicção faz parte integrante dos direitos do Homem. Antes de chegar a esta responsabilidade, não sabia até que ponto é necessário um trabalho de clarificação neste domínio. LO : Porque razão o título do seu mandato passou de “relator especial sobre a intolerância religiosa”(de acordo com os termos da resolução 1968/20 da Comissão dos Direitos do Homem) para “relator especial sobre a liberdade de religião e de convicção” (segundo a decisão da Comissão dos Direitos do Homem, a decisão 2000/261 da ECOSOC e a resolução 55/97 da Assembleia Geral da ONU)? Quais eram os limites do mandato precedente? Quais as vantagens desta mudança de título? HB: O novo título baseia-se mais explicitamente nos direitos do Homem. É por isso que o prefiro claramente ao anterior. A liberdade de religião ou de convicção vai muito para além da noção de tolerância e pelo facto de que ela tem a sua origem no respeito devido à dignidade, à liberdade e à igualdade de todos os seres humanos. Por outro lado, constitui uma parte essencial dos objetivos mais gerais dos direitos do Homem. LO : No seu artigo 18, a Declaração Universal dos Direitos do Homem dá uma importância particular à liberdade religiosa e ao direito de cada um adotar uma religião e de mudar de religião. Mas perante o contexto geopolítico mundializado, e com a ameaça do fundamentalismo, do extremismo e do terrorismo, pensa que hoje será possível obter a adesão por parte dos signatários no que concerne ao direito de mudar de religião? E porquê? HB: Não gosto muito de especular sobre esse assunto. Contudo, como sabe, o termo “mudança” provocou vivos debates por ocasião do processo prepa-
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ratório do artigo 18 de Declaração Universal de 1948. Nas negociações sobre a formulação do artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (IDCP), voltou a surgir a mesma controvérsia. Os Estados acabaram por se porem de acordo sobre a escolha das seguintes palavras: toda a pessoa tem direito à (…) liberdade “de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha”, o que equivale, evidentemente, ao direito de mudar de religião. Contudo, quando analisamos os factos, numerosos Estados impõem limites a esta parte indispensável da liberdade de religião ou de convicção, chegando mesmo a negá-la completamente. Foi por isso que, no ano passado, consagrei um dos nossos relatórios temáticos a este assunto. Para numerosos Estados e numerosas comunidades religiosas, o direito de mudar de religião é sem dúvida um dos aspetos mais problemáticos da liberdade de religião ou de convicção. Contudo, é justamente esse elemento que indica também a mudança de paradigma incarnado pelos direitos do Homem em geral. Mais do que proteger valores, práticas, pretensas verdades ou doutrinas religiosas particulares, a liberdade de religião ou de convicção dá aos seres humanos os meios para encontrar o seu próprio caminho no vasto campo das religiões e das convicções. Sem o direito de mudar, a liberdade de religião ou de convicção perderia o seu caráter de direito fundamental, cujo objetivo é responsabilizar os seres humanos. Mesmo o direito de conservar a fé que se herdou – a qual, bem entendido, goza, igualmente, da proteção da liberdade de religião ou de convicção – não pode ter o estatuto de direito autêntico à liberdade, salvo se cada ser humano for respeitado na sua liberdade de pôr em causa a sua religião ou a sua convicção, de exprimir dúvidas pessoais e, em função da sua própria decisão, mudar, abandonar ou renegar a sua crença precedente para adotar uma outra religião ou convicção. Eis porque devemos permanecer firmes e continuar a defende este aspeto essencial da liberdade de religião ou de convicção. LO : O Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos – adotado em 1966 e que entrou em vigor em 1976 – é um texto maior da legislação internacional. Como tal, tem autoridade sobre os governantes que o assinaram e ratificaram. Na sua opinião, porque razão, apesar desta ratificação, a aplicação dos artigos18,19 e 27 são causa de tensões em numerosos Estados membros da ONU? HB: Muitos Estados servem-se da religião para reforçar a identidade nacional – muitas vezes excluindo as minorias. Inumeráveis relatórios o mencionam. Em geral, seguem-se consequências negativas para as minorias. Os seus membros chocam, frequentemente com medidas de restrição adminis-
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trativas que são abusivas; em certos países, têm dificuldades para concluir um contrato de casamento válido e regular de forma legal as questões familiares; são muitas vezes objeto de discriminação direta ou indireta na questão do trabalho, no seio do sistema educativo ou do sistema de saúde; pode acontecer também que os seus filhos sejam vítimas de incómodos espontâneos ou mesmo organizados, na escola. Uma vez que se apresentam como uma ameaça à coesão nacional, cultural ou religiosa, essas pessoas podem, no seu dia-a-dia, ser vítimas de estigmatização e de atos hostis. Além disso, os preconceitos e estereótipos existentes podem ser veículos para os média, por vezes ao ponto de diabolizar as minorias como forças inimigas, agindo ao serviço de potências estrangeiras. O resultado é que pessoas que pertençam a grupos minoritários, mas igualmente os dissidentes, “heréticos”, apóstatas, céticos, etc., tornam-se vítimas de agressões físicas perpetradas por agentes do Estado, atores não ligados ao Estado ou uma amálgama dos dois. Em resumo, há múltiplas causas na origem destas violações. Para as erradicar, é necessário estabelecer a confiança e usar a persuasão, o que, em muitos países, representa uma tarefa de longa duração, mesmo se os governos estão prontos a fazer o seu melhor. Infelizmente, alguns preferem fechar os olhos a estes problemas ou mesmo jogar com o ressentimento de uns e de outros para obterem benefícios políticos a curto prazo. LO : A Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção, proclamada em1981, é considerada como uma “pedra angular”, um texto fundamental, importante e especial, mesmo se não tem o mesmo valor legislativo que o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. No quadro do seu excelente relatório sobre as minorias religiosas apresentado ao Conselho dos direitos do Homem, que importância devem os Estados dar ao apoio e à aplicação de todos os artigos desta Declaração? Qual é o seu papel neste domínio? HB: Li a Declaração de 1981 em paralelo com os artigos 18 da DUDH e do PIDCP. Ela enuncia – especialmente no seu artigo 6 – os diversos elementos requeridos para coerentemente pôr em prática a liberdade de religião ou de convicção. Ela mostra os aspetos tanto públicos como privados, quer individuais quer comunitários, inerentes a este direito do Homem. Os Estados poderiam, portanto, utilizá-lo como uma lista de pontos a não negligenciar ao elaborarem políticas para porem em ação a liberdade de religião ou de convicção.
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LO: Robert Seiple, embaixador itinerante dos Estados Unidos para a liberdade religiosa, declarou que “os governos que não respeitam a liberdade religiosa das minorias, ou que exercem uma discriminação para com eles, não podem garantir a segurança da maioria”. Pensa que isto ainda é verdade da hora atual? HB: Sem qualquer dúvida. A discriminação sistemática para com as minorias é, na maior parte das vezes, sintomática de uma falta de respeito para com os direitos do Homem em geral, que, mais cedo ou mais tarde, negará também aos membros da maioria. Em termos mais positivos, o facto de se proteger os direitos fundamentais das minorias contribui de forma essencial para o bem comum da sociedade e favorece o desenvolvimento equilibrado da democracia. A minha colega Rita Izháq, perita independente sobre as questões relativas às minorias, fez um dia uma comparação com os militantes pelos direitos das mulheres, que, evidentemente, deveriam procurar agregar os homens à sua causa e persuadi-los de que, no futuro, toda a sociedade beneficiará com isso. Isso aplica-se também aos direitos das minorias, que não deviam ser entendidos como uma forma de favorecer certos grupos em detrimento da maioria mas deveriam ser entendidos como um projeto que, no final, beneficiará toda a sociedade. LO : Quando teremos um Pacto Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou na Convicção similar ao Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos? Ou isso ainda hoje, não passa de um sonho? HB: Creio que ainda teremos de esperar por isso uma boa dezena de anos. Além disso, também devemos ser prudentes sobre esse assunto, uma vez que no clima que reina atualmente no seio da comunidade internacional, um Pacto sobre esse assunto poderia bem ser utilizado por numerosos Estados para suavizar as normas em vigor sobre a liberdade de religião ou de convicção. O meu conselho, para os próximos anos, seria defender e promover ainda mais as normas que já temos, em particular o artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, assim como o trabalho de interpretação realizado pelo Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas (o organismo de especialistas encarregados de fiscalizar a aplicação do PIDCP pelos Estados). LO : Desde o 11 de setembro de 2001 tem havido imensas resoluções sobre a liberdade de religião ou de convicção, propostas por países ocidentais e também, nestes últimos anos, por países islâmicos (Organizações de Cooperação Is-
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lâmica). De igual modo, o número de diretivas, reuniões, conferências e congressos aumentam em todo o mundo, seja ao nível dos governos, das Nações Unidas, da OSCE, do Conselho da Europa ou da União Europeia. Na sua opinião qual a razão de tal coisa? Qual é a mensagem transmitida, dessa forma, à sociedade? Como poderiam as Nações Unidas obter mais poder político para implementar estas resoluções? HB: O facto de haver numerosas resoluções mostra que isso permanece um assunto politicamente aceso. Embora há 20 anos numerosos especialistas ainda estavam persuadidos que a religião ia progressivamente tornar-se um assunto de ordem meramente privado, constatamos recentemente que, em muitas sociedades, as comunidades religiosas e os chefes religiosos exercem uma forte influência sobre a opinião pública – e isso para o melhor e para o pior. Proteger a liberdade e a igualdade dos seres humanos – e digo bem de “todos” os seres humanos – nesse domínio por vezes litigioso e extremamente sensível, requer enorme investimento. Ao mesmo tempo, é necessário ter presente que todas as mudanças importantes devem, em definitivo, vir do coração da própria sociedade; não se podem, simplesmente, impor. Organizações internacionais como a ONU podem desempenhar um papel de apoio envolvendo-se no desenvolvimento e no reforço das competências e dos recursos no terreno (por exemplo, pela criação de instituições nacionais dos direitos do Homem), insistindo na aplicação de normas obrigatórias, efetuando um seguimento regular, facilitando a comunicação entre as comunidades para além das suas barreiras políticas e religiosas, etc.. LO : Qual é a importância das recentes diretivas europeias sobre a liberdade de religião ou de convicção para a política externa da União Europeia e a quem influenciam? HB: A União Europeia comprometeu-se num documento público, a utilizar todos os seus mecanismos diplomáticos de forma coordenada para vigiar a situação da liberdade de religião ou de convicção em todo o mundo. Isso pode implicar enviar observadores aos tribunais por ocasião dos processos, convidar os membros das minorias importunadas para conferências, apoiar iniciativas de diálogo inter-religioso e mesmo, em situações de crise, fazer com que a concessão de vistos seja acelerada. Com efeito, os esforços coordenados dos 28 Estados membros podem promover uma mudança considerável e poderiam exercer pressão sobre os Estados que continuam a violar o direito à liberdade religiosa. Há algum tempo atrás (em março ou abril de 2013), o ministro dos negócios estrangeiros norueguês publicou um documento similar baseado mais particularmente
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nas minorias religiosas. Se, desde logo, os Estados decidiram seguir este exemplo, poder-se-ia, quem sabe, assistir a um concurso de diplomacia para saber quem é o melhor promotor da liberdade religiosa! Seria uma competição interessante. LO : Como se pode assinalar e ultrapassar os obstáculos atuais e emergentes que entravam o exercício do direito à liberdade de religião e de convicção para todos? HB: É importante estabelecer boas relações com as pessoas que trabalham sobre estas questões no seio dos diversos países. As normas regulamentares são vinculativas para todos, mas os processos de aprendizagem pelos quais os países devem passar para pôr em prática, plenamente, a liberdade de religião ou de convicção permanecem, apesar de tudo, muito diferentes. Por exemplo, na maior parte dos países árabes, um muçulmano não tem o direito de casar com uma mulher cristã. Pelo contrário na Serra Leoa, país de maioria muçulmana, todas as formas de casamento inter-religioso recebem, facilmente, a bênção das famílias, das comunidades e dos chefes religiosos. Em França ou na Alemanha, os debates sobre o uso do véu diferem muito dos que têm lugar no Reino Unido ou no Canadá. A objeção de consciência ao serviço militar permanece um grande problema político em Estados como a Coreia do Sul, onde alguns objetores são presos, enquanto que este assunto não tem, bem entendido, nenhuma importância nos países que acabaram com o serviço militar obrigatório. Em resumo, as recomendações que formulei a respeito de diversos países são sempre muito específicas se bem que, ao mesmo tempo, se baseiam em normas universais. Em todo o caso, é necessário que nos familiarizemos com cada contexto no qual se trabalhe. É um processo de aprendizagem demorado. LO: Que podem fazer as Nações Unidas quando os Estados recusam receber a visita do relator especial ou aceitar as suas recomendações? HB: O exame periódico universal (EPU), tal como é praticado pelo Conselho dos direitos do Homem desde 2008, desencadeou um aumento impressionante do número dos “convites permanentes” aos titulares do mandato. Contudo, na prática, encontramos ainda muitas dificuldades quando pedimos para visitar um país. É necessário não esquecer que os relatores especiais trabalham pro bono – benevolamente – o que significa que todos exercem, também, uma profissão. Pela minha parte, ensino a tempo inteiro na Universidade de Erlangen-Nuremberga; e esta é a razão pela qual não posso efetuar visitas oficiais aos países, no decurso dos semestres de aulas. Um dos pontos fracos evidentes
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do atual sistema de procedimentos especiais é que as recomendações não são objeto de atividades de acompanhamento sistemático. Em setembro, participarei numa conferência inter-religiosa em Chipre, o que me dará a possibilidade de fazer o ponto da situação sobre as recomendações formuladas no ano passado por ocasião da minha visita ao país. LO : Hoje, que papel desempenham a sociedade civil e as ONG em relação às Nações Unidas no que diz respeito à paz, a compreensão e a estabilidade dos povos, as culturas e as religiões no mundo? HB: Para responder brevemente: sem as organizações com origem na sociedade civil, todo o sistema permaneceria em grande parte ineficaz. Os direitos do Homem e todos os outros objetivos mencionados na sua questão não podem avançar senão graças a interação crucial dos poderes públicos e das organizações não-governamentais. Assim como os governos têm responsabilidades oficiais no quadro do Direito Internacional, os diversos sistemas de vigilância, sejam eles organizados ou espontâneos, devem complementar-se uns aos outros. Quando vou a Genebra ou a Nova Iorque participar nas reuniões da ONU, encontro, também, sempre as ONG e é com elas que me sinto como em minha casa. É uma boa coisa que as diversas ONG tenham perfis diferentes. Temos necessidade daquelas que trabalham, de uma maneira geral, pelos direitos do Homem – todo o leque dos direitos do Homem – como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch, mas as contribuições de organizações muito especializadas tais como a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) que possuem um conhecimento particular no que respeita à promoção da liberdade de religião ou de convicção, são igualmente importantes. Por isso, peço-vos, perseverem no vosso envolvimento e na vossa colaboração com outras organizações para criar sinergias de ordem prática. LO: Agradeço-lhe pelo seu encorajamento. A fim de criar “sinergias de ordem prática” e de promover os direitos do Homem e a liberdade religiosa para todos, a AIDLR – através da sua rede internacional e das suas secções nacionais – envolve-se em sustentar e defender os princípios da liberdade religiosa esforçando-se por salientar o aspeto do respeito pelas diferenças como ferramenta indispensável para a PAZ e a COMPREENSÃO entre as pessoas. Uma última questão, Professor Bielefeldt: No que se relaciona com a liberdade religiosa e as questões ligadas à consciência, quais são as suas expectativas e as suas recomendações para favorecer a paz e a compreensão entre as pessoas?
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HB: Oh, meu Deus, haveria tanto a dizer! Uma vez que acabo de regressar da Serra Leoa, queria aproveitar esta ocasião para falar do espírito de cooperação inter-religiosa que já mencionei anteriormente; este é verdadeiramente um bom exemplo de boa prática. Os esforços conjugados das comunidades religiosas – cristãs e muçulmanas de diferentes denominações – para reconstruir o país depois de guerra civil que ele conheceu, são assombrosos. E isso passa-se num dos países mais pobres do Planeta! Permita-me concluir com esta mensagem de esperança baseada na minha experiência: os seres humanos podem mudar as coisas e envolver-se em favor da paz para colher os seus frutos. LO: Muito obrigado, Professor Bielifeldt, por me ter concedido esta entrevista. Desejamos-lhe muito sucesso no seu trabalho em favor das populações e dos indivíduos – minorias religiosas, imigrantes, crianças, estudantes, mulheres e outros – que no mundo inteiro, são objeto de perseguição ou de discriminação relativamente à sua liberdade de consciência e de religião. Como Associação, desejamos igualmente disponibilizar a nossa ajuda e cooperar com o Alto-Comissariado para os direitos do Homem para defender a dignidade de pessoa e os direitos do Homem para todos.
O Conselho dos Direitos do Homem da ONU e as suas resoluções sobre a liberdade de religião ou de convicção Laura Dupuy-Lasserre9 O exercício da liberdade de religião ou de convicção para todas as pessoas é ainda um desafio, tal como a realização de muitos outros direitos humanos, infelizmente. Baseados no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que estipula que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos e liberdades fundamentais do Homem foram claramente enunciados na Declaração de Viena e no Programa de Ação da Conferência Mundial da ONU sobre os Direitos do Homem, que foram adotados em Viena em 1993. Estes últimos foram estabelecidos no parágrafo 5, que diz: “A comunidade internacional deve tratar os Direitos do Homem globalmente, de maneira igual e equilibrada, no pé de igualdade e atribuindo-lhes a mesma importância. Se convém não perder de vista a importância das particularidades nacionais ou regionais e a diversidade histórica, cultural e religiosa, é dever dos Estados, seja qual for o seu sistema político, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do Homem e todas as liberdades fundamentais.”1a Isto define muito bem o quadro no qual se pode regulamentar, seja qual for o problema relativo aos Direitos do Homem, lembrando os deveres dos indivíduos e a responsabilidade dos Estados, conforme o artigo 29 da Declaração Universal: “Toda a pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade é possível. No exercício dos seus direitos e liberdades, toda a pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.”2b Consequentemente, os direitos de outrem imporão sempre limites, tal como o fazem as leis visando preservar o interesse da ordem pública numa sociedade democrática e que se referem a uma legislação não abusiva e não discriminatória. 9 Embaixadora, representante permanente do Uruguai desde 2008 e antiga presidente do Conselho dos Direitos do Homem (2011-2012) nas Nações Unidas em Genebra e outras organizações internacionais.
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No que concerne mais precisamente à liberdade de religião ou de convicção, é necessário ter o espírito dos artigos 18 e 19 da Declaração Universal,10 1 como os artigos 18,19 e 20 do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos (PIDCP),11 2 sendo dado que este direito fundamental está ligado, de perto, ao exercício da liberdade de opinião e de expressão. Estes instrumentos fornecem uma orientação clara sobre a forma de implementar ambos e o ICCPR vai ainda mais longe nalgumas restrições. Mas a prática mostra que há certos abusos na aplicação das limitações a esses direitos e, portanto, os corpos relevantes do tratado dos direitos humanos, como o Comité dos Direitos do Homem ou o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial, têm procurado ajudar os Estados envolvidos, através das suas observações finais específicas, bem como através de comentários gerais sobre questões de especial interesse.12 3 10 1 DUDH, 1948, Art.18: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. Art. 19: Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. 11 2 EDUDH, 1966, Art. 18: 1. Toda a pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença da sua escolha e a liberdade de professar a sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir a sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais – e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Art 19: 1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda a pessoa terá o direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer meio da sua escolha. 3. O exercício de direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas. Art. 20. 1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei qualquer apologia ao ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência. 12 3 Observações gerais emitidas pelos órgãos dos direitos do Homem;
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Da mesma forma, os titulares dos mandatos temáticos de procedimentos especiais do Comité dos Direitos do Homem, como o Relator especial sobre a liberdade de expressão e de opinião13 4 e o Relator especial sobre a liberdade de religião ou de convicção,14 5 ou ainda o especialista independente sobre as questões relativas às minorias e o Relator especial sobre as formas contemporâneas de racismo, de discriminação racial, de xenofobia e de intolerância a ela associada, apresentam sugestões nos seus relatórios ao Conselho ou à Assembleia Geral das Nações Unidas e nos comunicados públicos, segundo as necessidades. Desde há alguns anos, através de diferentes comunicados conjuntos, os relatores das Nações Unidas e os relatores regionais sobre a liberdade de opinião e de expressão lembram a necessidade de salientar os direitos do Homem e as suas violações (como, por exemplo, os ataques ou a discriminação contra certas pessoas em virtude da sua adesão a uma religião ou a uma convicção ou porque são não crentes), mais do que a proteção das religiões, como tal. Eles apelam a deixar de lado conceitos controversos tais como a difamação das religiões. Isto pode, com efeito, aplicar-se de forma discriminatória protegendo uma religião ou uma convicção particular relativamente a outras. Utiliza-se também para impedir a crítica legítima aos chefes religiosos influentes ou ainda, de forma mais geral, para silenciar os membros das minorias religiosas ou os não crentes intimidando-os e reduzindo a sua participação na vida da sociedade, e mesmo, por vezes, condenando-os à pena de morte ou à reclusão perpétua por delitos que não são graves ou acusando-os de faltas cuja natureza é definida – PIDCP, Observação geral nº 22 do Comité dos direitos do Homem das Nações Unidas sobre O direito à liberdade de pensamento, de consciência ou de religião (art.18), 30/07/1993. Texto em inglês: http:// www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/9a30112c27d1167cc12563ed004d8f15?Opendocument. – PIDCP, Observação geral nº 34 (CCPR/C/GC/34) sobre a Liberdade de opinião e a liberdade de expressão (Art.19) e a relação entre os artigos 19 e 20 do PIDCP, Genebra, 11-29 de julho de 2011. Texto em inglês: http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrc/docs/gc34.pdf. – Recomendação geral nº 15 emitida pelo CERD sobre o art. 4 da Convenção. Texto em inglês: http:// www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/e51277010496eb2cc12563ee004b9768?Opendocument. 13 4 UN Doc. A/67/357,7 setembro 2012, Promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, relatório de Frank La Rue sobre a dificuldade, por um lado, de lutar contra a discriminação e o incitamento ao ódio, por outro”, com recomendações para “combater eficazmente o discurso de ódio sem contudo restringir indevidamente o direito à liberdade de opinião e de expressão.” http://www.un.org/ ga/search/view_doc.asp?symbol=A/67/357&Lang=F. 14 5 UN Doc. A/HRC/22/51, de 24 de dezembro de 2012, Proteção da liberdade de religião ou de convicção, das pessoas pertencentes a minorias religiosas, e UN Doc. A/HRC/19/60, de 22 de dezembro de 2011, sobre o papel do Estado em matéria de liberdade de religião ou de convicção, relatórios de M.H. Bielefeld.
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muito vagamente (ver as diferentes leis sobre a apostasia, a blasfémia, a incitação às perturbações religiosas, o desprezo pelas religiões reveladas, o ultraje aos sentimentos religiosos, etc.) A ideia que está por detrás de uma abordagem baseada nos direitos do Homem é proteger cada indivíduo em particular, “sem qualquer distinção, especialmente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. Ela reconhece que todos os seres humanos têm “direitos iguais e inalienáveis”, que esta proteção não é um privilégio concedido por um Estado mas que está baseado na “dignidade inerente a todos” e sobre a necessidade de promover a sua expansão, ao abrigo “do terror e da miséria”.3c A liberdade de pensamento, de consciência e de religião é uma liberdade “neutra”: não está ligada a uma ideia ou a um objeto. Em consequência, nenhuma ideologia dominante ou “superior” nem nenhuma “verdade” sobre as religiões ou as crenças devia ser imposta a quem quer que seja, pois a História já demonstrou as consequências do totalitarismo. Por outro lado, uma certa proteção e uma adaptação razoável destinada a facilitar o desenvolvimento de cada identidade individual e comunitária em toda a liberdade e sem discriminação são, por vezes, necessárias, no respeito pelos direitos de outrem e reconhecendo que todas as sociedades – mesmo as que têm uma identidade nacional clara – são mais ou menos multiculturais. A igualdade e a não discriminação são, portanto, princípios essenciais. Mas há problemas por todo o lado, como foi estabelecido por especialistas de renome internacional assim como pelos representantes dos Estados por ocasião dos diálogos intergovernamentais, como a Revisão Periódica Universal (EPU) do Conselho dos Direitos do Homem. Eles podem colocar-se em países em que existe uma religião oficial do Estado, ou onde não há uma separação clara entre o político e o espiritual, e onde as leis ou as jurisprudências repressivas ou arbitrárias são suscetíveis de se aplicar. Mas põem-se também, por vezes, nos países laicos, quando diferentes expressões religiosas ou diversos sinais religiosos se arriscam a ser objeto de limitações sem que estas últimas sejam claramente justificadas pelo interesse público e quando isso acaba por prejudicar igualmente o exercício dos outros direitos. Para ser clara, encontram-se por todo o lado preconceitos negativos. Eles são essencialmente – mas não unicamente – baseados em razões históricas e intensificam-se cada vez que são confrontados com as migrações e a diversidade social e cultural inerentes ao nosso mundo globalizado. A crise pode, igualmente, exacerbar a xenofobia e até mesmo ser utilizada para fins políticos. Nas nossas sociedades, os bodes expiatórios estão em vias de mudar.
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Na luta contra os preconceitos negativos e contra a discriminação, o ódio e a violência que delas podem resultar, a educação, as campanhas de sensibilização do grande público, as tomadas de posição dos responsáveis aos níveis político, social ou religioso, e a formação de profissionais desempenham um papel chave porque favorecem a compreensão das diferentes culturas e religiões, a tolerância, o respeito e o diálogo, assim como os direitos do Homem. A liberdade de opinião e de expressão é igualmente essencial numa sociedade democrática para combater os estereótipos, e não deveria ser limitada senão por infrações penais e de acordo com os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade15 7. Para determinar o limiar da gravidade do discurso do ódio, especialistas dos direitos do Homem, reconhecidos internacionalmente, propuseram recentemente uma grelha de análise comportando seis critérios: a) o contexto das propostas de ódio, b) a posição do locutor, c) a sua intenção, d) o conteúdo ou a forma do discurso, e) a sua difusão, f ) os seus potenciais efeitos e a sua iminência.16 7 15 7 18 do Plano de ação de Rabat: “O artigo 20 do PIDCP requer um limiar elevado porque, o direito à liberdade de expressão sendo um princípio fundamental, a limitação do discurso deve permanecer como uma exceção. Este limiar deve ser interpretado de acordo com o artigo 19 do Pacto. Com efeito, o teste tem três vias (legalidade, proporcionalidade e necessidade) aplicando-se às restrições sobre o discurso envolvendo também os casos de incitamento ao ódio. Isso significa que estas restrições devem ser previstas pela lei, expressamente definidas para servir um interesse legítimo, e necessárias, numa sociedade democrática, à proteção deste interesse. O que implica, entre outras, que as limitações sejam claramente e estritamente definidas e que correspondam a uma necessidade social imperiosa, que constituam as medidas menos intrusivas, que não sejam demasiado gerais – no sentido em que elas não devem restringir a palavra de forma alargada e não específica – e que sejam proporcionais, no sentido em que o benefício do interesse protegido não prejudique a liberdade de expressão, incluindo o que diz respeito às sanções que elas autorizam”. 16 22 do Plano de ação de Rabat: “É sugerido que se fixe um limite elevado para delimitar as restrições à liberdade de expressão, definir o incitamento ao ódio e para a aplicação do artigo 20 do PIDCP. Com o objetivo de estabelecer a gravidade do incitamento ao ódio, como elemento determinante dos limites, este deve fazer referência à forma de opróbrio mais profundamente sentido. A fim de avaliar a gravidade do incitamento ao ódio, entre os parâmetros suscetíveis de ser tidos em conta, podem figurar a crueldade do propósito ou do prejuízo causado no discurso assim como a frequência, a quantidade e a consequência das difusões deste discurso. Perante isto foi proposto, para as expressões que são consideradas como infrações penais, uma grelha de análise dos limites da gravidade baseada em seis critérios: a) o contexto: o contexto é de uma grande importância para determinar se certas declarações são de natureza a incitar à discriminação, à hostilidade, ou à violência contra o grupo visado, e que pode ter uma influência direta sobre a sua intensão ou/e a sua causalidade. A análise do contexto deveria recolocar o discurso como ato verbal, no contexto social e político prevalecente na época em que foi pronunciado e difundido. b) o locutor: deverá ter-se em conta as funções ou o estatuto do locutor na sociedade especialmente a autoridade que a pessoa ou organização em questão desempenham junto do público ao qual o discurso se dirige. c) a intenção: o artigo 20 do PIDCP prevê que há intenção. A negligência e a imprudência não são suficientes para que um ato constitua uma infração em virtude do artigo 20, na medida em que este
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No que concerne os discursos que não atinjam o limiar da gravidade, não é previsível suprimir ou fazer cair os seus propósitos sob o golpe da lei, mas sim assegurar que a sociedade ou os dirigentes reprovem forte e publicamente as práticas que se arriscam a ser entendidas como discriminatórias ou ofensivas e que não contribuem para uma melhor compreensão entre as diferentes comunidades, ou que as sanções civis ou administrativas sejam aplicadas, se necessário, como reparações para as vítimas da discriminação ou da violência. A este respeito, é necessário saudar o papel desempenhado pela HCDH na organização de uma série de ateliers de especialistas que se reuniram a nível regional, em 2011 e 2012, para continuar o Seminário de especialistas de 2008 sobre as ligações entre os artigos 19 e 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) sobre a liberdade de expressão e o incitamento ao ódio. Estes encontros – consagrados, entre outros, à delimitação do discurso do ódio, especialmente em relação às questões religiosas, a fim de ajudar os Estados a pôr em ação as obrigações internacionais – encontraram o seu objetivo no “Plano de Ação de Rabat sobre a interdição do apelo ao ódio nacional, racial, ou religioso, que constitui um incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”17 8, adotado a 5 de outubro de 2012 e lançado pelo Gabinete do Alto-Comissário para os direitos do Homem (HCDH) por ocasião de uma manifestação no Palácio das Nações em Genebra, a 21 de fevereiro de 2013. último estipula que há “apelo” e “incitamento” mais do que simples distribuição ou circulação de documentos. Perante isso, visa a ativação de uma relação triangular entre o objeto e o sujeito do discurso assim como o seu auditório. d) o conteúdo ou a forma: o conteúdo do discurso é um dos pontos principais que está no coração dos debates do tribunal e constitui um elemento essencial do incitamento ao ódio. A análise do conteúdo pode incidir sobre a avaliação do caráter provocatório e direto do discurso em questão, assim como sobre a forma, o estilo e a natureza dos argumentos desenvolvidos, ou o equilíbrio estabelecido entre os argumentos, etc. e) o impacto do propósito: inclui elementos como o seu conteúdo geográfico, o seu caráter público, a sua importância e a espécie do seu auditório. Outros parâmetros são depois tidos em consideração, a saber, se o discurso foi pronunciado em público, quais foram os meios da sua difusão – apenas por um só e único prospeto ou pelos média tradicionais ou a Internet – qual foi a frequência o número e a importância das difusões, se o público tinha os meios para agir sob incitamento e se a declaração (ou o trabalho) incriminado circulou num quadro restrito ou se ficou largamente acessível ao grande público. f ) a probabilidade incluindo a iminência do risco: o incitamento é, por definição, uma infração não realizada. A ação pregada pelo discurso de incitamento não necessita de ser cometida para que o discurso constitua um delito. Contudo, é necessário determinar em que medida o incitamento corre o risco de ter possíveis efeitos nefastos. Isso significa que os tribunais deverão decidir se havia uma possibilidade razoável de que o discurso pretendesse incitar à ação efetiva contra o grupo visado, tendo em consideração que o nexo de causalidade deve ser assaz direto”. Texto em inglês: http://ohchr.org/ Documents/Issues/Opinion/Seminar-Rabat/Rabat_draft_outcome.pdf. 17 8 Plano de Ação de Rabat relativo ao incitamento ao ódio nacional, racial ou religioso que constitui um incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência. Texto em inglês: idem.
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Por esta ocasião, o alto representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, o presidente Jorge Sampaio, invocou a necessidade de desaprender a intolerância e apoiar-se na educação, na sensibilização do público, no papel dos media e do diálogo intercultural. Estes últimos podem, com efeito, permitir atacar as raízes do extremismo – que se traduz por estereótipos e falsas ideias sobre os migrantes ou as minorias – e prevenir as crises (ligadas, por vezes, ao sectarismo, que polariza e divide os países) ou aprender a geri-las. Ele insistiu, igualmente, no reforço do tecido democrático das sociedades (pelo respeito do conjunto dos direitos do Homem e das liberdades) e no Plano de ação de Rabat como quadro de cooperação. O Conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a prevenção de genocídio, Adama Dieng saudou o Plano de ação de Rabat como um documento que chega no momento exato. Ele recorda (fazendo referência ao genocídio do Ruanda) como as propostas que veiculam implicitamente estereótipos podem, por vezes, matar incitando ao ódio e a crimes odiosos. Mais do que concentrar-se na interdição dos discursos ou sobre as medidas de exceção segundo o artigo 20 do PIDCP, ele convida a salientar a prevenção, procurando as suas causas profundas, como a discriminação e o racismo, e promovendo os direitos do Homem e a tolerância para lutar contra o discurso do ódio. O relator especial sobre a liberdade de opinião e de expressão, Frank Larrue e o relator especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, Heiner Bielefeldt, quanto a eles, têm apelado para a leitura do artigo 20 do PIDCP à luz do artigo 19, isto é, interditar ou pôr fim aos discursos de ódio, mas também contrariá-los mais com discursos visando favorecer uma melhor compreensão através da livre circulação das ideias e da informação. Eles falaram de critérios de análise muito precisos ou do limiar para criminalizar o discurso proposto pelo Plano de Ação de Rabat – mesmo de forma excecional – e apelaram a não criminalizar o discurso de forma arbitrária, tendo em conta ideias ou opiniões divergentes ou manifestações de desacordo que possam existir. Eles reclamaram a aplicação de medidas preventivas ao nível dos média (códigos éticos voluntários sobre o tratamento da informação em razão das reações que estas podem suscitar no país, ou noutros lugares), e das autoridades, e da sociedade civil (discursos positivos reafirmando a igualdade em termos de direitos humanos e de dignidade – incluso para aqueles que são mais vulneráveis – recordando que há discursos que, se bem que lícitos, não são corretos ou úteis à promoção de uma melhor compreensão da diversidade e às relações entre as comunidades; o estabelecimento de um clima de confiança, eliminando as causas profundas da violência, a saber, os estereótipos e os preconceitos negativos; atos simbólicos de
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solidariedade; acesso aos média para as minorias; importância de uma cultura do debate público plena de vitalidade). O representante da Organização da Conferência Islâmica (OCI) felicitou estas conclusões e lembrou a Resolução 16/18 do Conselho dos Direitos do Homem que visam uma ação coletiva de prevenção e que pede aos Estados que partilhem as suas informações e iniciativas nacionais com a HCDH, lembrando, igualmente, a importância do mecanismo regional dos direitos do Homem na sua relação com o sistema das Nações Unidas.18 9 Apelou a despolitizar o debate e a preservar o consenso em torno do que foi a Resolução 16/18 do CDH. A União Europeia saudou, igualmente, o Plano de Ação de Rabat como um documento de referência que pode guiar os Estados nos seus esforços para se conformarem com as normas internacionais dos direitos do Homem. Ela insistiu numa abordagem holística, que inclui a educação – incluindo sobre os Direitos do Homem – e o diálogo para promover a tolerância e o pluralismo. Também colocou em evidência o papel dos mecanismos de igualdade. Mais tarde, na sua Resolução sobre a Luta contra a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando algumas pessoas por causa da sua religião ou da sua convicção, adotado por consenso por ocasião da 22ª sessão de 21 de março de 2013, o CHD tomou boa nota das conclusões e das recomendações do Plano de Ação de Rabat. Uma declaração conjunta de caráter trans-regional feita pelos Estados também foi apresentada (por Marrocos) para salientar este instrumento essencial. Esperamos que ele guie as iniciativas nacionais e locais, e, sobretudo, as autoridades públicas no seio dos poderes executivo, legislativo e judicial. Mas talvez seja necessário que especialistas assegurem o acompanhamento prático, e que haja uma cooperação técnica com os Estados. Esta última resolução do CDH, A/HRC/22/L.40, repousa na histórica Resolução 16/18 de 24 de março de 2011, que trouxe o debate no seio do Conselho de volta à sua perspetiva dos Direitos do Homem e que propôs um plano de ação para promover à escala nacional, abandonando completamente as resoluções votadas sobre a controversa noção de “difamação das religiões” e promovidas desde 1999. 18 9 A título de exemplo de normas regionais, podemos reportar-nos à Convenção americana dos direitos do Homem, art. 13, sobre a liberdade de pensamento e de expressão e à filosofia da Comissão Internacional dos Direitos do Homem (ICHR) que vai no mesmo sentido, e ao relator especial regional sobre a liberdade de expressão, como a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão (Preâmbulo) assim como a jurisprudência do Tribunal Interamericano dos Direitos do Homem. http://www. cidh.oas.org/Basicos/French/s.expression.htm.
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Ela faz igualmente referência às violentas reações que tiveram lugar em 2012: por exemplo, a resposta de alguns crentes que se sentiram ofendidos e que tiveram, infelizmente, vítimas nas suas fileiras. Estes factos mostram que as questões da religião ou da convicção são assuntos delicados e que é importante fazer-lhes face de uma forma adequada, no respeito pelas obrigações internacionais relativas aos direitos do Homem. A Resolução L.40 reafirma que “a violência jamais pode constituir uma reação aceitável face aos atos de intolerância baseados na religião ou na convicção”, sublinhando “a importância que reveste o respeito pela diversidade religiosa e cultural, assim como o diálogo interconfessional e intercultural destinado a cultivar um espírito de tolerância e de respeito entre os indivíduos, as sociedades e as nações”.4d É necessário reconhecer e saudar o papel desempenhado nestes últimos anos pelo Secretário-Geral da Organização de Conferência Islâmica (OCI), Ekmeleddin Ihsanoglu, na descoberta desta abordagem construtiva dos problemas que são cruciais para os muçulmanos (a saber, a luta contra a islamofobia) mas que outros igualmente partilham (considerando a perseguição religiosa também como uma nova forma de racismo). Isto foi posto em evidência desde 2010 no CDH e levou, em março de 2011, em Genebra, a um importante exercício diplomático de escuta dos diferentes pontos de vista sobre a questão da intolerância religiosa em geral, dirigido pelo coordenador do OCI, o Paquistão, e coroado por uma resolução consensual referente a pessoas de todas as religiões e de todas as confissões.5e Esta resolução sobre a Luta contra a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando algumas pessoas por causa da sua religião ou da sua convicção abriu caminho a iniciativas diplomáticas à escala internacional, como o “Processo de Istambul”. Este, lançado em julho de 2011 e envolvendo países ocidentais, visa apoiar os esforços nacionais necessários, orientados pelo plano em 8 pontos que se encontra na Resolução 16/18 de CHD. Este apoio político foi posto em ação e deveria ser encorajado se se quer obter resultados concretos no terreno. Assim, devemos apelar para deixar de lado as vias que conduzem ao afrontamento e à divisão. As antigas tentativas de voltar a lutar contra a difamação das religiões, mesmo através de instrumentos internacionais juridicamente coercivos, ainda não desapareceram, talvez motivadas por identidades religiosas fortes, às quais se misturam interesses políticos. Contudo, a comunidade internacional tem-se unido para reagir a todos os problemas existentes, quer se trate da islamofobia ou da
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repressão das minorias religiosas, etc., com uma perspetiva claramente inspirada nos Direitos do Homem. Para não citar senão dois exemplos entre outros, a 127ª Assembleia da União Interparlamentar, que teve lugar no Quebeque de 21 a 26 de outubro de 2012, adotou uma Declaração de Cidadania, identidade e diversidade linguística e cultural na era da mundialização.19 10 No mesmo sentido, o Grupo de Trabalho Intergovernamental (GTI) sobre a aplicação efetiva da Declaração e do Programa de Ação de Durban (DPAD), em outubro de 2012, debruçou-se sobre o papel dos políticos e dos partidos políticos na luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância que lhe está associada, e recordou a necessidade de reforçar a democracia, a solidariedade, a tolerância e o respeito da diversidade e dos Direitos do Homem. Exortou, igualmente, “os partidos e os responsáveis políticos a tomarem, no quadro das suas atividades, medidas para lutar contra as manifestações persistentes de intolerância e de violência racial ou religiosa que se traduzem, especialmente, pelos estereótipos que levam ao desprezo e à estigmatização de certas pessoas por causa da sua religião ou da sua crença. O grupo de trabalho encoraja também vivamente todos os partidos políticos e os políticos a tomarem uma posição firme e proativa na luta contra os discursos do ódio, o incitamento ao racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância que lhe está associada, incluindo os seus aderentes e os seus candidatos”. O CHD também adotou – sem voto – resoluções sobre a liberdade de religião ou de convicção, a última datada de março de 2013 (A/HRC/22/L.9), renovando o mandato do relator especial encarregado destas questões. A União Europeia que, tradicionalmente, dirige esta iniciativa, declarou uma vez mais, entre outras coisas, que não há nenhuma hierarquia entre as religiões nem entre as vítimas da violação desta liberdade fundamental. O Secretário-Geral das Nações Unidas publicou um relatório intitulado “A luta conta a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando pessoas por causa da sua religião ou da sua convicção”, e um grupo de discussão sobre a tolerância religiosa foi organizado nas Nações Unidas, em Nova Iorque, a 2 de outubro de 2012. Entre outros problemas invocados nessa ocasião, notamos este: o facto de que a repressão da liberdade de religião ou de convicção conduz à “instabilidade social, a perturbações, que chegam, por vezes, a violentos 19 10 Declaração de Quebeque adotada por unanimidade por ocasião da 127ª Assembleia da União Interparlamentar, no Quebeque, a 26 de outubro de 2012. http://www.ipu.org/conf-f/127/res-quebec.htm.
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afrontamentos e a perdas de vidas humanas. Quando os governos reprimem ativamente ou suprimem estas liberdades, marginalizam as comunidades religiosas, exacerbam as incompreensões, favorecem a propagação de estereótipos de ódio que causam prejuízo”. “Nenhuma sociedade é perfeita, mas as liberdades que se gozam nas sociedades pluralistas, onde a diversidade de religião ou de convicção é protegida e onde prima o Direito, permitem uma base mais estável para as relações pacíficas entre os membros das diferentes religiões e para uma dinâmica positiva no conjunto da sociedade”. O conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a prevenção do genocídio, Adama Dieng, sublinhou a necessidade de desarmar os conflitos “identitários”: “Num mundo em que as sociedades são cada vez mais diversificadas,” declarou ele, “a tolerância é mais suscetível de prosperar quando os direitos fundamentais de todos os grupos religiosos são respeitados e, também, os Direitos do Homem não podem prosperar a não ser que os diferentes grupos são tratados da mesma forma.”6f Para assegurar a via da prevenção e da construção, devemos envolver-nos, todos, na luta contra o problema do incitamento ao ódio, assim como contra qualquer forma de discriminação e de violência que atente contra a liberdade de religião ou de convicção, apoiando-nos nos instrumentos dos direitos do Homem existentes. A Resolução 16/18 do Conselho dos Direitos do Homem (agora reafirmada e reforçada pela Resolução A/HRC/22/L.40) fornece uma plataforma integral para uma ação internacional e nacional, incluindo as propostas concretas contidas no Plano de Ação de Rabat. Mas é necessário que o seu acompanhamento seja assegurado por especialistas – incluindo os membros dos Procedimentos Especiais e os dos órgãos convencionais do CHD – no que respeita a questões tais como as opções políticas a tomar no caso de violência iminente para estar pronto a fazer face aos incidentes é necessária a cooperação técnica do gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem para apoiar a implementação prática desta resolução aos níveis nacional e local, segundo as necessidades. (Notas finais)
1 http://dacess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G93/142/34/PDF/G9314234.pd?OpenElement. 2 b DUDH, art. 29 § 2, http://un.un.org/fr/documents/udhr/. 3 c DUDH, art. 2 § 1; Preâmbulo § 1 e 2, sítio da internet Idem. 4 d CDH, 22ª Sessão, Resolução (A/HRC/22/L.40). 5 e CDH, 29ª Sessão, Resolução (A/RES/66/16), http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol-=A/RES/66/167&Lang=F. 6 f Texto em inglês: http://www.bic.org/news/panel-un-discusses-religious-tolerance.
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Liberdade religiosa e minorias religiosas: notas sobre as contribuições do Conselho da Europa20 Petru Dumitriu21 Contexto jurídico O artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem garante o direito à liberdade religiosa assim como o direito à liberdade de pensamento e de consciência. 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.22 O primeiro parágrafo do artigo 9 é a transposição do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Convém lembrar que este artigo 18 foi objeto de um compromisso entre, por um lado, os países que desejam proteger explicitamente a liberdade religiosa e, por outro, os países que querem proteger a liberdade de escolher uma alternativa, isto é, não ter nenhuma religião. O artigo 1 do protocolo nº 12 da Convenção da Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, proíbe formalmente a discriminação baseada na religião. 20 Artigo escrito em 22 de abril de 2013. 21 Embaixador, representante permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas em Genebra e outras organizações internacionais. Foi também encarregado do curso (diplomacia multilateral) sob a plataforma e-learning de Diplo-Foundation. 22 Conselho da Europa, Série dos Tratados Europeus (STE) nº 5. Convenção de salvaguarda dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais tal como uma emenda para os protocolos 11 e 14.
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1. O gozo de qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente, do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação. 2. Ninguém pode ser objeto de discriminação por parte de qualquer autoridade pública com base nomeadamente nas razões enunciadas no número 1 do presente artigo.
A visão política do Conselho de Ministros Recentemente, o Conselho da Europa apresentou a sua posição política na Declaração do Conselho de Ministros sobre a liberdade religiosa:23 “Nós, os 47 Estados membros do Conselho da Europa, condenamos firmemente estes atos e qualquer forma de incitamento ao ódio religioso e à violência. A liberdade de pensamento, de consciência e de religião é um direito inalienável, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas e garantido pelo artigo 18 do Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos de 1966, assim como pelo artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem da qual o Conselho da Europa é o garante. Não pode haver nenhuma sociedade democrática baseada na compreensão e na tolerância sem respeito pela liberdade de pensamento, de consciência e de religião. O gozo desta liberdade é uma condição necessária para a vida em comum”. O Conselho da Europa considera a questão da liberdade religiosa na perspetiva de uma coesão social de acordo com a necessidade da diversidade cultural na sociedade. Numa outra declaração, o Conselho de Ministros sublinhou que, para conciliar o respeito pelas diferentes identidades com a manutenção da coesão social e evitar o isolamento e a segregação de certos grupos, é indispensável considerar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais como um fundamento comum para todos: nenhuma prática nem tradição cultural, religiosa ou outra, pode ser invocada para impedir os indivíduos de exercerem os seus direitos fundamentais ou de serem atores ativos da sociedade, e os direitos de qualquer pessoa não devem ser indevidamente restringidos com base nas suas práticas culturais e religiosas.24 23 Adotado pelo Conselho de Ministros de 20 de janeiro de 2011, por ocasião da 1103ª reunião dos Delegados dos Ministros. 24 Conselho da Europa, Declaração do Conselho de Ministros sobre os direitos do Homem em sociedades culturalmente diferentes, 1 de julho de 2009.
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Os instrumentos institucionais Diversos órgãos do Conselho da Europa interessaram-se consideravelmente na situação de certos grupos representando minorias religiosas. No entanto, a organização não procurou estabelecer uma lista de direitos específicos aos membros das minorias religiosas. A abordagem do Conselho difere da das Nações Unidas que adotaram uma Declaração dos direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas ou linguísticas. Contudo o Conselho da Europa adotou a Convenção-quadro para a proteção das minorias nacionais, que, no seu artigo 8, inclui disposições relativas ao direito para toda a pessoa que pertença a uma minoria nacional de manifestar a sua religião ou convicção, assim como o direito de criar instituições religiosas, organizações e associações.25 A religião e as convicções fazem parte dos temas da Convenção-quadro, sobretudo as que constituem elementos identitários particulares das pessoas sob proteção. A Comissão Europeia contra o racismo trata de discriminação e da intolerância para com os membros de diferentes grupos religiosos nos seus relatórios sobre os países, e publicou Recomendações de política geral sobre problemas específicos ligados às minorias e à prática da sua religião. Por exemplo, a Recomendação de política geral nº5 recomenda aos governos dos Estados membros, quando as comunidades muçulmanas estão instaladas e vivem numa situação minoritária no seu país, especialmente: • assegurar que as comunidades muçulmanas não sejam descriminadas pela forma como elas organizam e praticam a sua religião; • sancionar de forma apropriada, em função do contexto nacional, as descriminações baseadas na religião; • tomar as medidas necessárias para que seja plenamente garantida a liberdade da prática religiosa; • tomar as medidas necessárias para suprimir qualquer manifestação de discriminação no acesso à educação baseada nos motivos de crença religiosa; • vigiar para que os programas nas escolas e no ensino superior – especialmente no domínio do ensino da História – não apresentem uma interpretação deformada da história das religiões e das culturas e não baseiem a sua visão do Islão em perceções de hostilidade e de ameaça.26 21 Conselho da Europa, Convenção-Quadro para a proteção das minorias nacionais. STE nº 157. 26 Recomendação de política geral nº 5: A luta contra a intolerância e as descriminações para com os
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A Recomendação de política geral nº 9 recomenda aos governos dos Estados membros: • dar uma alta prioridade à luta contra o antissemitismo e tomar todas as medidas necessárias para combater todas as suas manifestações seja qualquer for a sua origem; • vigiar para que as medidas que visem lutar contra o antissemitismo tenha sempre o seu lugar entre as medidas de luta contra o racismo; • vigiar para que a legislação preveja que, para todas as infrações relevando do Direito Penal, a motivação racista constitua uma circunstância agravante e que a motivação antissemita seja incluída. • incluir e educar contra o racismo em todos os níveis do programa escolar e de maneira transversal, incluindo um conteúdo que sensibilize para o antissemitismo; • promover a aprendizagem da história do povo judeu, assim como o conhecimento positivo trazido pelas pessoas, as comunidades e a cultura judaica às sociedades europeias; • encorajar os debates entre os profissionais dos média sobre o seu papel na luta contra o antissemitismo.27 Diferentes comissários dos Direitos do Homem (chamados daqui em diante comissários) têm abordado alguns pontos do artigo 9 nas suas discussões com alguns países membros e nos seus comentários sobre os Direitos do Homem. Num dos seus comentários relativos aos Direitos do Homem, Nils Muiznieks convidou os governos a renunciar às leis e medidas visando especialmente os muçulmanos e a interditar a discriminação baseada na religião ou nas convicções em todos os domínios. Os Estados também deveriam permitir aos Promotores de Justiça e a organismos de promoção da igualdade independentes que examinem as queixas, deem conselhos jurídicos às vítimas e as representem perante a justiça, participem na elaboração de políticas e façam pesquisas sobre a discriminação contra os muçulmanos e outros grupos religiosos.28 muçulmanos. Estrasburgo, 27 de abril de 2000 – doc. CRI (2000)21. www.coe.int/t/dghl/monitoring/ ecri/activities/GRP/EN/Recommendation_N5/Rec05fr.pdf. 27 Recomendação de política geral nº 9 do ECRI (comissão Europeia contra o racismo e a intolerância): A luta contra o antissemitismo, adotada pelo ECRI a 25 de junho de 2004, Ref. Doc. ECRI (2004)37. www.coe.int/t/dghl/monitoring/ecri/activities/gpr/en/recommendation_N9/Rec09fr.pdf. 28 Os preconceitos antimuçulmanos dificultam a integração, Conselho da Europa, Comunicado de
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Em diversas ocasiões, os comissários se têm sentido preocupados com a situação das minorias religiosas num contexto mais alargado. A liberdade religiosa ligada ao direito à propriedade situa-se num tal contexto. Num dos seus relatórios, Thomas Hammarberg exprimiu a sua inquietação quanto ao mal-estar e à insegurança ainda sentidas pelas minorias religiosas em certos países da Europa. Ele aconselhou a pôr em prática atividades que permitam ao grande público dar-se conta das vantagens de uma sociedade multicultural, e organizar regularmente debates de fundo, de livre acesso, a fim de que as autoridades e as minorias religiosas dialoguem e procurem resolver os problemas relativos aos direitos das minorias religiosas.29 Numa outra ocasião, o comissário debruçou-se sobre a questão dos muftis e da aplicação da sharia. Observou, por exemplo, que a prática da nomeação dos muftis pelo Estado que exclui a sua nomeação direta pelos membros da minoria muçulmana, continua a causar entre estes últimos uma profunda deceção assim como vivas reações. Salientou, igualmente, as graves questões de compatibilidade entre as práticas herdadas da sharia, baseada sobretudo nos tratados do início do século XX, e os compromissos de um membro do Conselho da Europa que ratificou os principais tratados europeus e internacionais relativos aos direitos do Homem posteriores a 1948. Estes tratados deveriam, em qualquer caso, ser aplicados. 30 A Comissão Europeia para a democracia pelo Direito (Comissão de Veneza) aconselha os Estados a que se preparem para legislar sobre questões relativas ao artigo 9, baseando-se nos Princípios diretores para o reexame da legislação em matéria de religião ou de convicção adotados em 2004 pela Comissão de Veneza e pelo Bureau das instituições democráticas e os direitos do Homem (BIDDH)10 da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Estes princípios constituem um instrumento excecional para o legislador, uma vez que definem não só os valores fundamentais por detrás das normas internacionais em matéria de liberdade de religião ou de convicção, mas estabelecem uma lista completa de questões que se podem pôr, indo da educação ao direito à propriedade. Imprensa do Comissário para os Direitos do Homem – CommDH034(2012) 24 de julho de 2012. 29 Relatório de T. Hammarberg, Comissário para os direitos do Homem apresentado ao Conselho da Europa, sobre a sua visita à Turquia de 28 de junho a 3 de julho de 2009, CommDH(2009)301, outubro de 2009. 30 Relatório de T. Hammarberg sobre a visita à Grécia de 8 a 10 de dezembro de 2008, CommDH(2009)9, 19 de fevereiro de 2009.
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Contribuições do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem31 O trabalho do “Conselho da Europa no domínio da liberdade de pensamento, de consciência e de religião apoia-se numa vasta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (o Tribunal) e em princípios que foram surgindo com o decorrer do tempo. (…) “Uma das principais obrigações que incumbem aos Estados relativamente ao artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é a da neutralidade e de imparcialidade, perante as comunidades de crentes.32 Esta obrigação não põe automaticamente em causa a existência de religiões de Estado ou de arranjos similares que são o fruto da História. No entanto, os Estados são obrigados a aplicar a todas a comunidades de crentes, numa situação comparável, as medidas que tomam para proteger uma comunidade particular. (…) “Segundo a jurisprudência do Tribunal, os Estados que desejam tratar certas comunidades de forma diferente devem poder apresentar ‘uma justificação objetiva e razoável’. Devem poder demonstrar que a diferença de tratamento ‘tem um objetivo legítimo’ e que existe ‘uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios usados e o objetivo visado’. “Os Estados devem abster-se de tomar partido nos conflitos religiosos. O seu sistema educativo não deve compreender o ensino obrigatório de convicções particulares protegidas pelo artigo 9º às pessoas que não partilham essas convicções. Sobretudo, as autoridades não podem invocar as convicções de uma pessoa relevando do artigo 9 para lhe recusar direitos ou possibilidades de que toda a pessoa deve poder beneficiar. (…) “A obrigação de neutralidade e de imparcialidade nem sempre exclui a presença de símbolos religiosos em certos locais abertos ao público; esta presença pode, com efeito, ser tolerada em certas condições. Também não é interdito às autoridades dar informações objetivas sobre os perigos ligados às atividades de algumas comunidades de crentes, sob reserva de respeitar certos limites”. Contudo, os Estados não devem “restringir o exercício de atividades que relevam do artigo 9 salvo se isso for necessário numa sociedade democrática para visar o bem público legítimo de acordo com a lei. 31 Esta secção e a seguinte (A recolhe de dados) são tirados, em parte, do relatório de Conselho da Europa – Debate temático do Conselho de Ministros: “A Liberdade de religião e a situação das minorias religiosas”, 13 de dezembro de 2012. Referência SG/Inf(2012)31, www.coe.int/t/dghl/standardsetting/ cddh/CDDH-DOCUMENTS/CDDH(2013)009_FR.pdf. 32 Esta expressão engloba também os não crentes na medida em que também beneficiam de uma proteção conforme o art. 9 da CEDH.
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“A obrigação do Estado de deixar desenrolar as atividades contempladas pelo artigo 9 vai além da neutralidade e da imparcialidade”. Por exemplo, o procedimento que permita às organizações religiosas obter personalidade jurídica – incluindo o registo – não deve ser de uma lentidão injustificada (seja na conceção, seja na prática) e não deve compreender um exame da ‘legitimidade’ das convicções próprias da comunidade. Mesmo num “contexto histórico particular (por exemplo, o facto de que certas comunidades tenham funcionado no território de um Estado antes deste ter sido criado), os Estados devem fazer esforços para antecipar e regular os problemas ligados à personalidade jurídica. (…) Por vezes surgem questões delicadas de restituição e de sucessão. Excetuando as questões de propriedades é claro que as autoridades não devem utilizar o procedimento de reconhecimento da personalidade jurídica para contestar o direito da comunidade de crentes se identificar de uma forma ou de outra. “Quer uma comunidade tenha decidido, ou não, adquirir a personalidade jurídica, o Estado deve autorizar a educação dos crentes, a livre disponibilização de publicações que tenham interesse para eles, a reunião de crentes (incluindo a forma de organizar e regular) e a exposição de símbolos. “Os Estados têm igualmente a obrigação de proteger os crentes contra terceiros. A interdição da discriminação religiosa estende-se ao setor privado. Os Estados devem proteger as vítimas. Uma legislação completa contra a discriminação deveria ser adotada e órgãos especializados deveriam ser criados. Uma ajuda jurídica deveria ser prevista para aqueles que desejam apelar para a justiça.
A recolha de dados Uma outra obrigação dos Estados está ligada ao “direito de não revelar as convicções protegidas pelo artigo 9. Se bem que o Estado não possa impor nenhuma obrigação de revelar as suas convicções, fazendo-as, por exemplo, aparecer nos documentos de identidade, não é raro que as pessoas devam fazer declarações que poderiam indiretamente dar uma indicação das suas convicções. (…) No plano nacional, todas as convicções – ou a ausência delas – devem ser tratadas da mesma forma e ninguém deveria ser obrigado a justificar as suas escolhas”. Além disso, “a recolha de dados sobre a igualdade é uma questão sensível. Por um lado, as estatísticas exatas sobre as contribuições dos grupos vulneráveis (incluindo numerosas minorias religiosas) nos domínios sociais essenciais são necessárias para conceber políticas eficazes contra a discriminação e, naturalmente, avaliar os seus efeitos. Por outro lado, numerosos Estados afirmam que
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a sua ordem jurídica não permite, de forma alguma, reunir tais dados. (…) As informações reunidas deveriam permanecer confidenciais e deveriam ser comunicadas apenas na base do consentimento explícito e da identificação voluntária como membros de uma comunidade de crentes”.
Novos desafios Parece que o fosso se aprofunde entre os valores laicos e religiosos nos debates intelectuais e políticos. Declarações recentes de políticos europeus mostram que a religião e a identidade ocupam cada vez mais, o terreno na política. Se bem que não tenha sido dito abertamente, alguns fatores vão no sentido de uma oposição crescente entre os valores laicos e os valores religiosos na Europa. Os partidos nacionalistas e xenófobos encontram um vivo apoio popular, e mesmo políticos moderados têm começado a condenar as práticas de minorias religiosas e étnicas (quer sejam antigas ou recentes) em nome dos valores laicos da Europa. O recente julgamento de um tribunal alemão sobre a legalidade das circuncisões rituais e os comentários de Marine Le Pen sobre o seu desejo de interditar o uso do kippa israelita e do véu islâmico nas ruas de França relançaram o debate: pode a Europa, ou deve, tolerar os valores religiosos e culturais das minorias? Diversos estudos mostram um baixo nível de confiança nas instituições religiosas em toda a Europa e uma secularização crescente mesmo nos países membros do Conselho da Europa que ainda têm convicções religiosas bem alicerçadas. Isso pode explicar porque é que algumas comunidades religiosas se lançaram numa contra-ofensiva anti secularização nalguns países. Instituições religiosas e grupos de ativistas religiosos começam a utilizar o conceito do Direito Natural para defenderem as suas opiniões em matéria de igualdade entre os sexos e o Direito da família. Esses grupos criticam abertamente as teorias psicológicas e evolucionistas. Eles militam em favor da liberdade de expressão ou de reunião, pelo direito de usar símbolos religiosos, pela autonomia jurídica das instituições religiosas, ou lutam contra as investigações sobre as células base e contra o aborto. A confusão entre convicção e religião institucional é fonte de problemas. As Igrejas e os grupos religiosos batem-se para adquirir influência e poder. Quando um indivíduo adere a uma religião, isso liga-se, cada vez mais, a fatores exteriores e isso não se reflete, necessariamente, no seu comportamento diário. Muitas questões relativas à identidade religiosa, como o uso do véu, estão mais ligadas à cultura do que à convicção.
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Um outro domínio essencial é a relação entre prioridades morais e direitos do Homem. Deveriam considerações morais ter primazia sobre direitos do Homem? A questão está em debate. As interpretações jurídicas e religiosas opõem-se. Definir que conceção do Direito se sobrepõe à outra vai em breve tornar-se o ponto central do debate. Se as repostas não são claramente definidas, alguns grupos religiosos (tanto cristãos como muçulmanos) poderiam achar conveniente reinterpretar os valores da Convenção Europeia dos Diretos do Homem em função dos seus próprios interesses.
A identidade cultural Em período de crise, as pessoas procuram uma identidade. Reforçar este sentimento de pertença em termos religiosos é, por vezes, mais importante de que encontrar soluções concretas. As pessoas que se veem privadas de convicções, excluídas ou isoladas, têm a tendência de reivindicar os seus valores e de insistir nas suas convicções religiosas para definir a sua identidade. É igualmente preciso conservar bem presente que as opiniões laicas e religiosas nem sempre se excluem mutuamente. Com efeito, numerosos europeus têm uma abordagem da vida, simultaneamente científica e espiritual; eles combinam-nas e fazem apelo a uma ou a outra, em diferentes estágios da vida; na realidade, a opinião antirreligiosa vai, por vezes, demasiado longe neste sentido. Em certos países, o Conselho da Europa é considerado como um agente liberal que põe em prática políticas laicisantes e “impõe” uma interpretação liberal dos direitos do Homem. Atualmente, muitos assuntos apresentados ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem têm sido sobre a liberdade religiosa e a identidade cultural, por exemplo, o uso de símbolos religiosos. Apresentar um assunto perante uma jurisdição nacional releva, por vezes, de um estratagema bem montado, uma etapa importante antes de pedir ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para tomar uma decisão final. Uma vez que os europeus, por razões históricas, sentem fortes reações em caso de conflito religioso, o Conselho da Europa deveria criar novas formas de resolver o conflito entre a liberdade de expressão e liberdade religiosa. As decisões tomadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem constituem uma ferramenta fundamental para resolver as tensões ligadas à identidade e à religião. O Conselho da Europa pode contribuir para definir um “ponto de vista europeu” sobre as religiões e as convicções nas nossas sociedades nos anos futuros, e isto, graças às decisões tomadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
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O Conselho da Europa pode desempenhar um papel crucial na Europa e no seio das sociedades europeias contrariando as tentativas de dissociar a proteção dos direitos do Homem da religião, e permanecendo vigilante perante as forças que procuram manipular os seres humanos em busca de uma identidade ou de uma convicção religiosa.
A sharia e os Direitos do Homem O assunto mais sensível depois da primavera árabe é a relação entre a tradição jurídica islâmica e as normas estabelecidas pelos direitos do Homem. Infelizmente, os média ocidentais têm a tendência de salientar os seus aspetos mais chocantes a fim de atrair um público alargado. Eles não dão informação suficiente para haver uma boa compreensão dos factos. Na Europa, os muçulmanos formam uma maioria em alguns países, e uma minoria (imigrantes, em geral) noutros. A sharia, conceito religioso fundamental do Islão, a saber, a sua lei, foi metodicamente compilada no decurso dos séculos II e III da era muçulmana. O dogma fundamental do Islão é a submissão completa e absoluta à vontade de Alá: a lei muçulmana incarna, portanto, a vontade de Alá para a sociedade muçulmana e, na prática, consiste num sistema de deveres que incumbem ao muçulmano em razão da sua convicção religiosa. O termo sharia pode evocar a sua origem divina num sentido mais abstrato, mas, em geral, utiliza-se quando se fala de jurisprudência islâmica, ou da sua prática, histórica ou moderna. O Direito islâmico contradiz as normas dos direitos do Homem, principalmente no domínio do Direito Penal e das sanções a aplicar (por exemplo: a lapidação, a amputação, a crucificação), mas não só. Por conseguinte, alguns países muçulmanos pedem para serem excecionalmente isentados de aplicar certas convenções internacionais relativas aos direitos do Homem. Contudo, numerosos aspetos do Direito islâmico não contradizem a tradição jurídica ocidental (disposições económicas, rituais religiosos). A solução estratégica residiria, provavelmente, na adoção de uma legislação que alargaria a compatibilidade entre a sharia e os direitos do Homem universais. Tem havido tentativas de ligar as normas dos direitos do Homem e a sharia. Um princípio fundamental, tal como o que é enunciado no artigo 1(a) da Declaração da Organização da Conferência Islâmica,33 é prometedor: 33 A Declaração dos direitos do Homem no Islão, adotada no Cairo, pela OCI, a 5 de agosto de 1990.
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“Todos os seres humanos formam uma família cujos membros estão unidos pela sua submissão a Alá, e pelo facto de descenderem de Adão. Todos os homens são iguais na dignidade humana, no cumprimento dos deveres e das responsabilidades, sem nenhuma discriminação de raça, de cor, de língua, de sexo, de religião, de filiação política, de estatuto social ou de qualquer outra consideração.” Alguns avançam que os dois sistemas jurídicos não são contraditórios. As Nações Unidas têm procurado aplanar o fosso entre os dois sistemas. Isso demonstra-se possível sob certos aspetos do Direito Civil. Tentativas de arbitragem e de mediação têm permitido adaptar a legislação europeia relativa à luta contra as descriminações a fim de ter em conta algumas obrigações impostas pela sharia. No domínio do Direito do Trabalho, grande tem sido o progresso conseguido na luta contra a discriminação religiosa. Se um empregado é despedido por motivo religioso, na Europa, o assunto pode ser julgado perante um tribunal. Outros observam que o Direito Penal segundo a sharia – sobretudo o sistema de sanções – não é compatível com os direitos do Homem universais reconhecidos pela comunidade internacional. Esse aspeto situa-se para além da linha vermelha considerada não negociável. No caso da discriminação para com as mulheres e para com os não muçulmanos, esta linha vermelha seria, igualmente, ultrapassada se a sharia fosse aplicada. Estes exemplos mostram os limites da flexibilidade da legislação ocidental. Depois do aparecimento do que se chama o Islão político, introduzir uma legislação islâmica ou uma versão mais estrita da sharia tornou-se um assunto político extremamente sensível. No entanto, as violações dos direitos do Homem, estão mais ligados aos problemas políticos do que às questões jurídicas. Os políticos populistas da Europa e da sua envolvência têm muitas vezes recorrido a este argumento. A universalidade dos direitos do Homem é posta em causa. Contudo, as coisas não cessam de evoluir. Certos castigos aplicados pelo Direito Penal islâmico ou os tratamentos infligidos às mulheres eram ainda a norma, não há muito tempo, na Europa. Hoje, as coisas mudaram. Estabelecer normas e atividades ligadas à islamofobia poderia, igualmente, proporcionar uma resposta antecipada aos problemas muito suscetíveis de aumentar no decurso do próximo decénio. No que respeita aos direitos do Homem, poder-se-ia considerar a hipótese de estudar como é que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aborda as questões ligadas à sharia. Um bom meio de promover o diálogo sobre as contradições entre o Direito Internacional e os direitos do Homem e a sharia seria encorajar os países árabes e muçulmanos a tornarem-se membros da Comissão de Veneza.
Liberdade religiosa e minorias religiosas: notas sobre as contribuições do Conselho da Europa
O Conselho da Europa, na vanguarda das normas em matéria de direitos do Homem, seria o melhor ator para uma análise minuciosa entre liberdade de expressão e liberdade religiosa: pode procurar otimizar a influência da democracia entre os muçulmanos e sensibilizá-los para os direitos do Homem, minimizando as incompatibilidades entre a sharia, direitos do Homem e liberdades fundamentais classificados de universais pelas Nações Unidas. Boas práticas e boas soluções jurídicas, mas sobretudo uma política sensata e a eliminação dos excessos ao nível europeu contribuirão, certamente, para resolver o problema no plano internacional. O Conselho da Europa é um poder brando em termos políticos mas um poder forte em termos de norma e de controlo.
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Secularismo e liberdade religiosa LAICIDADE: CONFRONTAÇÃO COM UM INIMIGO QUE CONHECEMOS BEM
Robert Seiple34 Para o 10º aniversário do 11 de setembro, o Presidente da Câmara de Nova Iorque decidiu, de forma unilateral, que nenhum responsável religioso participaria nas manifestações comemorativas. O sr. Bloomberg aparentemente esqueceu que, por ocasião da tragédia, não foi para as bases militares que as pessoas se precipitaram no edifício da Câmara Municipal. Não. A gravidade dos acontecimentos levou a população para os lugares de culto. Durante semanas, as igrejas, as sinagogas, as mesquitas acolheram multidões de fiéis que pediam ajuda, procurando a cura ou a segurança de que o Céu ainda venceria o mal perverso que feria o nosso mundo. Mas, no espírito do Presidente da Câmara, as sensibilidades religiosas trariam consigo o risco de uma polémica inútil. Assim, ironia da sorte, a religião não iria ter nenhum papel no facto de que ela tinha sido, contudo, o assunto central. Passa-se hoje qualquer coisa de metafórico na China. Este país incluiu na sua legislação o direito à liberdade de religião.35 Mas os direitos conferidos pelo governo não são, por definição “inalienáveis”. Uma vez que são concedidos, os governos podem, igualmente, impor a forma de serem exercidos. Na China, há o direito de crer, mas não a de praticar a sua fé. A ausência de direitos autorizando a sua aplicação, com efeito, reduz a nada os visados por esse direito fundamental. A China tem medo daquilo que não conhece, daquilo que não pode controlar. Por outro lado, como deixam entender as medidas tomadas pelo Presidente da Câmara de Nova Iorque, a laicidade, é, na verdade, uma questão de liberdade de religião. Não se trata de um fenómeno novo. Há dois mil anos, um carpinteiro de Nazaré entrava em Jerusalém montado num pequeno burro. 34 Embaixador itinerante dos Estados Unidos para a liberdade religiosa internacional (1998-2000). É atualmente o presidente da IRLA (Estados Unidos). É também fundador do Institute Global Engagement e foi seu presidente durante 11 anos. Tem sido presidente e diretor geral do Council of America’s First Freedom. 35 Ver a Constituição de 1982 e as suas emendas até 2004, cap. II, art. 36.
Secularismo e liberdade religiosa
O acontecimento atraiu multidões. Houve cânticos, palmas agitadas: um verdadeiro cortejo! Os fariseus, os responsáveis religiosos da época, começaram, então, a inquietar-se. Informou-se, portanto, Jesus de que deveria acalmar a multidão se não queria que lhe retirassem a permissão para desfilar. Ele respondeu-lhes que se reduzisse a multidão ao silêncio, ela seria substituída pelas pedras dos campos judaicos unidas para cantar a plenos pulmões. E a entrada triunfal na cidade santa prosseguiu. (A Bíblia, Lucas 19:28-40). O incómodo que a laicidade experimenta perante as coisas da religião existe desde há muito! Os fariseus também, infelizmente. Mas aquilo que mais me incomoda, hoje em dia, são os fariseus, as instituições religiosas tradicionais, os pretensos “garantes” da espiritualidade. Para ser claro, penso que a Igreja tem a sua parte de responsabilidade na secularização do Ocidente. Não se trata, para mim, de preparar uma queixa geral contra todas as denominações ou todas as ordens eclesiásticas, mas cada lugar de culto está de um lado ou de outro desta fratura secular. A Igreja tem considerado mal o que significa estar “no mundo” mas não “do mundo” (Lucas 17:11,16). Infelizmente, muitos pensam que ela não pode ter peso senão integrando a cultura ambiente. Tomemos o exemplo do consumismo, aquilo a que o antigo dirigente checo Vaclav Havel, dirigindo-se ao Congresso americano reunido em sessão conjunta, chamou “culto egoísta do sucesso material”.36 Uma fração da Igreja, usando de um vocabulário muito menos lírico qualifica este fenómeno de “Evangelho da saúde e da prosperidade”, do qual, eis um exemplo: “Quando oram par ter esta Winnebago (autocaravana de marca americana), não se esqueçam de dizer a Deus de que cor a querem”. Absurdo? Sim, mas vulgar, o que é o cúmulo da banalização do Evangelho. O nosso país tem-se tornado numa sociedade de redes de segurança, de garantias em todos os géneros e de investimentos de longa duração, à medida que revestimos a nossa razão de ser com o manto da nossa riqueza, bem longe de refletir a imagem de Cristo que despiu a Sua túnica para lavar os pés aos discípulos. As nossas mais fortes convicções, as nossas crenças mais antigas têm sido adocicadas pelos chefes religiosos que parecem aspirar fortemente ao reconhecimento desta cultura. A “certeza” moral foi substituída pelo “ecumenismo fácil”, uma tolerância que preserve um mais pequeno denominador comum espiritual à medida que as diferenças são varridas. Já não temos bases claras para “firmar os nossos pés” (Salmo 40:2). O pecado foi convertido em doença, pois não é mais do que uma infeção cultural sem gravidade. Modernizou-se e domesticou-se Jesus, sem mesmo so36 Discurso de 21 /02/1990: http//old.hrad.cz/presidente/Havel/speeches/1990/2012.html.
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nhar nas armadilhas que isso comporta. O inferno já não é a separação definitiva de Deus, mas mais um mito destinado a suscitar o medo e, portanto, algo de que nos devemos desembaraçar. A Ressurreição é entendida por muitos como o triunfalismo e por outros como uma simples elevação do nível de consciência. A autoridade das Santas Escrituras é varrida; são consideradas como especulações sem interesse, uma pobre muleta para os mais fracos dentre nós. A palavra profética cedeu o seu lugar a uma “chilreada psíquica” insípida ou – quando os direitos de propriedade estão envolvidos – um jargão jurídico. Os responsáveis da Igreja estabeleceram o programa e a “diversidade” figura à cabeça da lista das “coisas a fazer”. Com efeito, para muitos, ela substituiu a ortodoxia sobre o altar do culto. Ora esta diversidade constitui a pior forma de reducionismo. Por exemplo, o texto bíblico proclama que há um Deus e um mundo que Ele “tanto amou” que “quem quer” que crer pode receber a bênção suprema da vida eterna ( João 3:16). Aqui, o termo “quem quer” é uma noção chave. Todos podem ter parte nessa bênção: a inscrição está aberta a todos, sem distinção, não está baseada sobre nenhum a priori e não comporta nenhuma forma de pressão suscetível de entravar a sua livre escolha. É a diversidade em toda a sua plenitude, a liberdade para todos, de crer ou de não crer, graças à qual, para usar os termos do apóstolo Paulo, “não há judeu, nem grego, homem, ou mulher, rico ou pobre” (Gálatas 3:28). Infelizmente, numerosas Igrejas reduziram a noção de diversidade a uma questão de modo de vida, que veem apenas através do prisma da orientação sexual. E é sobre esta questão que se está a ponto de gastar as últimas energias que restam a uma instituição fragilizada. É a propósito desta questão que a adesão incondicional da Igreja à cultura ambiente tem questionado as fronteiras teológicas. John Seel, teólogo e empreendedor da renovação cultural, resume assim a transformação laica da nossa religião: “A convicção religiosa tornou-se numa escolha consumista marcada por um individualismo manifesto e que se apresenta como uma terapia pela autoassistência – a Igreja de Oprah.”37 Em resumo, nós somos os nossos próprios inimigos!38 Hoje, a liberdade de religião foi eclipsada pelo pluralismo religioso, um pluralismo definido, em grande parte, pela nossa cultura. Ironia da sorte, a Igreja, a única instituição 37 “The Church or Oprah” é o título de um artigo publicado em 2000 para a revista Christianity Today e consagrado a Oprah Winfrey, animadora e produtora americana de televisão conhecida pelo seu talkshow, The Oprah Winfrey Show. Isto faz dela uma das mulheres mais influentes da América, um símbolo de espiritualidade e filantropia. 38 “Encontrámos o inimigo e o inimigo somos nós”. Título de uma banda desenhada do americano Walter KELLY, We have Met the Enemy and He Is Us, Paperback, 1987.
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concebida para influenciar a cultura, foi anexada e feita refém por isso. O poeta William Wordsworth antevia isso ao escrever o seu soneto “The World is too much with us”. Em numerosas ocasiões, a Igreja deu a aparência de piedade mas negava a sua eficácia (II Timóteo 3:1-5), e, como Salomão, influenciada pelas suas esposas estrangeiras (I Reis 11:2,3), temos deixado os nossos corações desviar-se das coisas espirituais para se voltar para os sinais exteriores mais profanos da cultura. Dai que tenhamos perdido a nossa voz profética e não possamos pretender ser credíveis. Admiramo-nos que a frequência às igrejas tenha baixado, que as sedes nacionais das denominações tenham falta de dinheiro e que certos grupos etários tenham quase desertado dos bancos das igrejas. O desafio de uma vida centrada em Cristo e o caminho da Cruz não são pregados com a mesma paixão do que Aquele que caraterizava “a obediência que aprendeu pelo que padeceu” no Getsémani (Heb 5:8). De facto, isso está ausente. Então que vamos fazer? Como iremos nós cumprir a nossa missão de “limpar o templo”? O intelectual americano Noam Chomsky, comentando o discurso de Vaclav Havel mencionado acima, qualificou esta declaração de “sermão da Escola Dominical, vergonhosamente ridícula e moralmente revoltante”.39 Como se vê, não podemos contar com os partidários da laicidade nem com uma sociedade laica para encontrar ajuda. A Igreja deve retornar ao alto do caminho, e talvez baste, para isso, começar por reformar o nosso vocabulário. Por exemplo, durante uma dezena de anos, os meus colegas tiveram de me suportar a indignar-me contra a utilização, nos nossos pactos internacionais relativos à liberdade religiosa, o maltratado termo “tolerância”. Para mim, com efeito, a tolerância é um passaporte para o “ecumenismo fácil”, uma espécie de desprezo para com as crenças, que nos arrasta cada vez mais para um nivelamento por baixo. Tolerar é suportar; não é a igualdade mas uma forma de graça barata concedida àqueles de quem não se gosta particularmente. Pelo meu lado, prego mais o “respeito”, um respeito baseado no conhecimento, que eleva, quer o nosso discurso, quer os nossos atos. Aprender a conhecer a sua própria fé naquilo que ela tem de mais rico e mais profundo e estar suficientemente informado sobre a do seu vizinho, para a respeitar. O respeito deve ser construído sobre uma compreensão aprofundada, do “outro”. É a superficialidade que faz com que isso não seja relevante neste mundo cada vez mais caótico e perigoso, como o nosso é. Mas creio que podemos ainda fazer mais para tirar dos nossos lugares de 39 “On Vaklav Havel speech”, extraído de A. Cockburn, The golden Age Is In Us, Verso, 1995, p. 149151. www.Chomski.info/letters/199003.htm.
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culto este caráter artificial. O apóstolo Paulo, na sua carta à igreja de Éfeso, lembra-nos que o nosso respeito deriva do “respeito que têm por Cristo”40 (Efésios 5:21). Servir os outros, submeter-se aos outros, sacrificar-se se necessário, são os atos que refletem o nosso “temor de Deus”. Devemos amar-nos uns aos outros, um mandamento antigo com uma visão nova: “como Eu vos amei” ( João 13:34). Servindo-nos uns aos outros testemunhamos da forma como fomos servidos por Ele. E segue-se, imediatamente, que os nossos direitos fundamentais estão indissociavelmente ligados aos valores, à grandeza, à dignidade e à ação não pressionante de Deus. Uma lógica incontornável emerge, então, no que respeita os direitos do Homem. Já não há reticência ou impossibilidade de encontrar um lugar para a razão no seio dos nossos acordos internacionais. Respondeu-se à questão do “porquê”. É este “respeito que têm por Cristo”, incarnação de Deus no mundo, que nos incita a mostrar o exemplo através do nosso serviço, a nossa submissão e, quando necessário, o nosso sacrifício. Assim, como escreveu Paulo, tornamo-nos “imitadores de Deus” transportando uma oferta de “cheiro suave” (Efésios 5:1,2) que acaba por ser tão atrativa que até mesmo o presidente da Câmara Municipal de Nova Iorque é obrigado a pôr de lado o seu partido tornado laico e reconhecer a realidade transcendente da fé. Há exemplos em que a Igreja provou que era capaz de desempenhar esse papel único? Muito felizmente existem muitos. Mas vou demorar-me sobre um deles que me parece significativo. Há alguns anos, fui aos altos planaltos do Centro do Vietname para visitar uma igreja. Esta celebrava 65 anos de serviço. Tendo em vista o que têm sido os últimos 65 anos da história do Vietname, esse era, certamente, um acontecimento importante. A guerra com a França e um conflito interminável com os americanos deixaram uma igreja muito vulnerável, lutando para resistir à mais laica ideologia que um regime comunista impôs. Nos altos planaltos do Norte, mais de 400 igrejas foram arrasadas e condenadas ao esquecimento. As comunidades foram dispersas, os seus dirigentes perseguidos e mortos. E, embora esta guerra contra a religião tivesse cessado antes da nossa chegada, ninguém duvida da vulnerabilidade da igreja onde tínhamos previsto ir. Esta visita esteve para ser cancelada. As estradas, já de si más, tinham-se deteriorado ainda mais sob o efeito da chuva vinda das montanhas, que transformou as vias de comunicação lamacentas em caminhos escorregadios e perigosos. Com certeza, não haveria ninguém na igreja! 40 Segundo a tradução interconfessional, Sociedade Bíblica, Lisboa, 2009.
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Mas, ao chegar, ficamos sem fala, ao ver que éramos os últimos: a igreja e duas tendas suplementares estavam completamente cheias. Havia mais de 20 000 fiéis já no lugar para festejar este dia! Estavam lá para celebrar uma fé que não tinha sido anexada pela cultura e não se tinha deixado amedrontar pela pressão do ateísmo. Os mais extremistas partidários da laicidade não tiveram a última palavra: esta igreja, com o seu testemunho, assegurou que isso não acontecesse. Escoltados pelos nossos “anjos da guarda” governamentais, fomos acompanhados até à frente da igreja. Ali, testemunhámos o que significa “ter respeito por Cristo”. O programa foi o de uma cerimónia normal com leituras da Bíblia, discursos e testemunhos. Mas o momento mais alto chegou quando, no fim do serviço religioso, 450 jovens de minorias étnicas formaram um coro perante a congregação. Tratava-se de crianças cujos pais e avós tinham combatido ao lado da América durante a guerra do Vietnam. Alguns diriam que eles se colocaram, talvez, do lado errado da História: cristãos oprimidos, marginalizados, extremamente vulneráveis – e, contudo, colocados diante de nós, prontos para proclamar as suas convicções através do canto. Cantaram o “Aleluia” de Haendel. Cantaram como só os vietnamitas sabem cantar: a plenos pulmões. Cantaram com lágrimas nos olhos e sorrisos nos seus rostos. Nós colocámo-nos de pé. Todos sentíamos que estávamos em terreno sagrado. As nossas lágrimas começaram a correr. Cada um de nós sabia que algo de muito belo se estava a passar nesse dia: as “pedras”, bem longe de Jerusalém, elevavam as suas vozes em sinal de triunfo. A fé, inquebrantável e cheia de reverência estava viva e proclamava a verdade. A laicidade não era a solução. A luz da liberdade de religião não podia ser extinguida. Tenho-me questionado muitas vezes do que é que os nossos “anjos da guarda” governamentais terão falado nessa noite, ao jantar. O coro da juventude cantou o “Aleluia” duas vezes seguidas: “porque o Senhor, Deus Onipotente reina!” (Apocalipse 20:6) Não o partido comunista, não as realidades geopolíticas, não o pluralismo fabricado. Mas o “Rei dos reis, o Senhor dos Senhores” (Apocalipse 17:14). Não os falsos deuses do ecumenismo, não o poder político ou universalista. Era o momento do “Aleluia”: um entusiasmo intensamente sentido. E também um “respeito por Cristo”. A igreja testemunhou, bem alto, as suas convicções da sua obediência aprendida na escola da perseverança, e da sua presença tangível num território difícil. Esta igreja que tinha passado “pelo vale da sombra da morte” (Salmo 23:4), durante 65 anos. Ela estava bem viva e “as portas da morte não prevaleceram contra ela” (Mateus 16:8). Nem o secularismo.
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O Édito de Tolerância de Milão e a evolução da relação entre o Estado e as comunidades religiosas41 Harald Mueller42 Foi em fevereiro de 313, em Milão, que o imperador romano do Ocidente, Constantino, e o imperador romano do Oriente, Licínio, seu futuro adversário, promulgaram um acordo conhecido sob o nome de “Édito de Tolerância”. Esse acordo incidia sobre as relações entre o Estado e a religião, especialmente o cristianismo. O facto de este acontecimento remontar há 1700 anos, dá ocasião de refletir sobre algumas das suas incidências. Numa perspetiva cristã – ele surge num contexto de perseguições terríveis iniciadas em 303 sob Diocleciano e perseguições com uma brutalidade ainda maior pelo seu sucessor Galério na parte oriental do Império – o Édito de Milão constitui uma evolução positiva se considerarmos este extrato: “Eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio Augusto, venturosamente reunidos em Milão para discutir sobre todos os problemas (…) cremos dever regulamentar, primeiramente, entre outras disposições (…) a, que se refere ao respeito pela divindade, ou seja, garantir aos cristãos, bem como a todos, a liberdade e a possibilidade de seguir a religião de sua escolha, a fim de que tudo o que existe de divino na morada celeste possa ser benevolente e favorável a nós mesmos e a todos (…) Este é o motivo pelo qual cremos (…) dever tomar a decisão de não recusar essa possibilidade a quem quer que seja, tenha essa pessoa ligado a sua alma à religião dos cristãos ou a qualquer outra (…).”43 O Édito de Milão colocaria dessa forma o cristianismo no mesmo plano que os outros cultos praticados no Império Romano. Ele tinha sido precedido a 30 de abril de 311 por um édito do imperador Galério que tinha permitido aos cristãos reconstruírem as suas igrejas e reunir-se desde que não perturbassem 41 Artigo escrito em 11 de abril de 2013. 42 Harald Mueller é juiz no Tribunal da Relação de Hanôver, membro honorário da Associação alemã para a liberdade religiosa e diretor do Instituto para a liberdade religiosa na Faculdade de Teologia de Friedensau (Alemanha). 43 http://www.universocatolico.com.br/index.php?/o-edito-de-milao.html.
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a ordem pública44. Pouco antes da sua morte, Galério tinha terminado com as perseguições que tinha ordenado contra os cristãos depois de ter compreendido que elas não faziam qualquer sentido. O cristianismo tornou-se então uma religião tolerada – religio licita – e, portanto, de alguma forma, legalmente reconhecido. O decreto de Galério, contudo, não previa favorecer os cristãos. O Édito de Milão, vindo mais tarde, desenvolveu as instruções dadas por Galério e alargou-as às duas partes do Império. Até este momento, o cristianismo não tinha obtido nenhum estatuto privilegiado entre os cultos, mas a liberdade de praticar a sua religião foi – pelo menos segundo o texto do Édito – garantida a todos da mesma maneira. Porém as coisas mudaram, uma vez que duas gerações mais tarde, sob Teodósio I, o Édito de 28 de fevereiro de 380 proclamou o cristianismo como religião do Estado. Todos os outros cultos foram interditos e, após um certo período de tolerância, os seus adeptos foram perseguidos.45 Como é que isso pôde chegar a esse ponto em tão pouco tempo? Não se pode explicar a passagem de uma Igreja perseguida para uma religião de Estado sem recordarmos que o Império Romano aderia ao princípio de uma unidade entre a religião e o Império, segundo a conceção própria da Antiguidade pagã. O Direito Religioso (jus sacrum) era considerado como fazendo parte do Direito Público (jus publicum).46 Desde a Antiguidade, os imperadores romanos viam ser-lhes atribuído, após a sua morte, o título de Divus; foi também esse o caso de Constantino. Em vida, foram-lhe concedidos os mesmos direitos, perante a Igreja, do que anteriormente perante os cultos pagãos. Em 321, instituiu o domingo como dia de repouso;47 em 325, convocou o Concílio de Niceia e imiscuiu-se nos debates sobre a natureza de Jesus, enquanto que, oficialmente, não pertencia ainda à Igreja. Não se fez batizar senão em 337, sobre o seu leito de morte. Antes de Constantino, considerava-se como uma violação da Constituição o facto de o cristianismo, então em plena expansão, recusar qualquer culto do Imperador; como o cristianismo não podia ser erradicado, o problema encontrou uma resolução dando ao cristianismo uma posição predominante entre os cultos e colocando o Imperador à sua cabeça. Um Estado teologicamente neutro não era concebível nessa época. 44 http:/de.wikipedia.org/wiki/toleranzedikt_des_galerius. 45 Karl Heussi, Kompendium der Kirchengeschichte, 3ª Ed. Tübingen 1913, p. 97; v. Campenhausen/ de Walle, Staatskirchenrecht 4ª Ed. Munique 2006, p. 5; Lucio de Giovanni, L’Éddito di Milano: testo, contesto e peso storico, Chiesa e Potere, Turim, 2013, p. 22. 46 v. Campenhausen/de Walle, op. cit. 47 Heussi, p. 94.
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O erro do Édito de Milão não se encontrava na sua formulação, que advogava uma coexistência das diferentes religiões, mas numa conceção do Estado que concedia ao soberano uma enorme influência sobre as questões religiosas. Foi dessa forma que se desenvolveu na parte oriental do Império o “cesaropapismo”,48 que caracterizava a relação entre a Igreja e o Estado no Império Bizantino até ao fim do século XV. O Império Romano do Ocidente caiu a partir de 395 sob a pressão das invasões bárbaras. Um vazio do poder de que os bispos de Roma souberam tirar proveito e que, finalmente, levou ao primado pontifical. Os afrontamentos políticos entre a Igreja e o Estado sob o Sacro Império romano germânico (962-1806) multiplicaram-se ao longo da Idade Média até ao início da Era Moderna. Assim que os soberanos temporais se esforçaram por instrumentalizar a Igreja para os seus objetivos políticos, a Igreja, por seu lado, serviu-se deste braço político para se livrar dos adversários reais ou imaginários. A Reforma constituiu uma reviravolta decisiva que não podia ficar sem consequências para o equilíbrio entre o poder da Igreja e o do Estado. Com efeito, já não havia no seio do Império uma só Igreja, mas duas confissões que faziam concorrência. Com toda a evidência, a unidade procurada desde a Antiguidade entre o Império e a religião já não existia. O protestantismo tinha ganho força de tal forma, que não podia ser erradicado como havia sido feito com as minorias. A paz de Ausburg, concluída em 1555 perante a ameaça de uma implosão política, representava um avanço notável: ela não permitia, como na Antiguidade, superar o sentimento de violação da Constituição mas tornava-o suportável. A aplicação do princípio cujos regio – eius religio concedia a cada um a liberdade religiosa na medida em que a recusa em adotar a confissão do seu soberano dava o direito de emigrar (jus emigrandi). Os territórios puderam conservar, portanto, num primeiro momento, uma homogeneidade religiosa. Nos Estados protestantes, o desaparecimento da jurisdição eclesiástica deixou um vazio preenchido pelo soberano que oficiava na qualidade de “Notbischof ”, isto é, como uma espécie de bispo alternativo. Este episcopado do soberano49 levou a uma associação do trono e do altar que lembrava, até certo ponto, o modelo de Constantino. Em 1799, no seu ensaio “Discurso sobre a religião”, Friedrich Schleiermacher qualificava já de infeliz 48 v. Campenhausen/de Walle, op. cit. 49 Martin Heckel, Kirch und Staat nach evangelischen Verständnis, in Handbuch des Sttatskirchenrechts der Bundersrepublik Deutschland, vol. 1, 2ª ed. Berlim, 1994, pág. 186,188.
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o “casamento” entre a Igreja e o Estado.50 Ele tinha desenvolvido a conceção de uma Igreja protestante que seria “uma unidade governando-se a si mesma” em vez de estar intimamente ligada à organização do Estado.51 A Igreja protestante não se conseguiu libertar senão depois da Primeira Guerra Mundial, com a queda do sistema ainda em vigor da Igreja e do Estado. A situação da Igreja Católica era diferente, na medida em que ela estava ligada à jurisdição de Roma e não tinha necessidade de um soberano oficiante como bispo.52 Mas na sua relação com o Estado, ela chegou a resultados similares, se bem que, como uma outra justificação jurídica diferente da das igrejas protestantes. O processo de separação foi provavelmente, favorecido na Alemanha pelo facto de que na segunda metade do século XIX, a Igreja Católica foi submetida a fortes pressões políticas. Em resumo, podemos constatar que a ligação estreita entre o Estado e a Igreja, instaurada pela política de Constantino, marcou, até ao coração do século XX, a conceção de que as grandes Igrejas tinham o seu papel. Em 1965,53 Joseph Ratzinger tinha caracterizado a posição do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa e a relação entre a Igreja e o Estado como um verdadeiro ponto final na era constantiniana da Igreja Católica. Ele explicou que a supremacia da Igreja sobre o Estado, desde Constantino, que conheceu o seu apogeu na Idade Média e na Espanha absolutista desde o início da Era Moderna, aparece como um dos maiores embaraços da Igreja no mundo atual. Segundo ele, a amálgama que se operou entre a fé e uma verdade absoluta incarnada em Cristo, e uma instituição convencida do seu direito absoluto tornando-se juiz temporal, marcou profundamente os espíritos e por isso mesmo a doutrina eclesiástica sobre o assunto da relação entre a Igreja e o Estado. Ratzinger deplorou a incapacidade para compreender, para além da sua própria fé, a situação do outro que não pode ser julgado por critérios que lhe são estranhos.54 Ele aludia à posição da sua Igreja perante os heterodoxos e as minorias que – contrariamente às Igrejas protestantes estabelecidas que foram submetidas à aplicação dos tratados de paz de Augsburg (1555) e, cerca de um século mais tarde, de Münster/Osnebrück 50 Friedrich Schleiermacher, Über die Religion, editado por Christian Albrecht, Francoforte/Maine e Leipzig, 2008, p. 143. 51 Citado de Gregor Erzelmüller, www.ekd.de/kirchenrechtliches_institut/download_etzelmueller02_08. pdf. 52 v. Campenhausen/de Walle, op. cit. p. 20,28; Dietrich Pirson, Die geschichtlichen Wurzeln des deutschen Staatskirchenrechts. p. 14 in Handbuch das Staatskirchenrechts, vol. 1, 2ª Ed., Berlim, 1994. 53 Joseph Ratzinger, Ergebnisse und Probleme des dritten Konzilsperiode, Colónia, 1965. 54 Ratzinger, ob. Cit. pp. 31 e 32.
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(1648) – estavam com efeito sem proteção perante as ligações da Igreja e do Estado. Os processos intentados contra os heréticos na Idade Média constituíram um triste apogeu. A Igreja protestante, por outro lado, também se opôs às minorias religiosas até ao século XIX.55 Na Alemanha, procurou-se reprimir o aparecimento de Igrejas livres, como, por exemplo, os batistas e os metodistas, e impuseram-se autorizações legais. A recusa de certas normas, entre outras, o batismo das crianças, pôde assim ser denunciada pelo pastor local ao consistório da Igreja com, logo à partida, represálias por parte das instâncias públicas. Estas podiam traduzir-se por uma interdição de permanência dos pregadores ou de medidas decididas pelo tribunal da tutela contra os pais, como o batismo forçado dos bebés. Note-se, igualmente, que na época prevalecia o conceito de categoria corporativa. O que era importante não era a decisão do indivíduo, segundo a sua consciência mas a sua integração total na comunidade à qual pertencia, com a obrigação de cumprir todas as exigências ligadas a esta pertença. Não se dobrar era considerado como um atentado contra a ordem estabelecida, um fenómeno que remontava à época do antigo império. Quando esta forma de pensar foi, cada vez mais, posta em questão na Europa em meados do século XIX, a Igreja Católica reagiu a isso. O papa Pio IX mencionou no seu “Syllabus Errorum” a ideia da liberdade religiosa e a de uma possível separação da Igreja e do Estado entre os erros do pensamento modernista e liberal (art. 55 e 57 do Syllabus). E foi necessário ainda um século para que a resistência caísse. Segundo a declaração “Dignitatis Humanae”, adotada a 7 de dezembro de 1965 e portanto no último dia do Concílio Vaticano II, a liberdade religiosa deriva do Direito Natural da dignidade do Homem (art. 2): o Homem não pode responder a Deus, na fé, senão em toda a liberdade. Ela concede, prudentemente, que a Igreja Católica nem sempre, no seu percurso, respeitou este princípio (art. 12). Na constituição pastoral “Gaudium et Spes”, também adotada a 7 de dezembro de 1965, é afirmado que a comunidade política e a Igreja são, no seu domínio, independentes e autónomas (art. 76): “Aquele que se dedica ao ministério da palavra divina utiliza as vias e os meios próprios do Evangelho que, em muitos aspetos, são diferentes dos da cidade terrestre. Mas ela não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente 55 Harald Mueller, Zur rechtlichen Lage von Freikirchen im Deutschland des 19. Jahrhunderts p. 34 (ss) in Spes Christiana, Friedensau, 2006 e www.thh-friedsau.de/de/forschung/020_SpesChristiana/020_Ausgaben/05_Mueller_2006.pdf.
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adquiridos, quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu testemunho”. Este último ponto está em contraste com a Doação de Constantino que foi referida, durante séculos, para justificar as exigências de ordem material, mesmo que fosse sabido, desde o século XV, que se tratava de uma falsidade. Depois do Concílio Vaticano II, os diferentes papas sublinharam sempre o princípio da liberdade religiosa. Numa das suas primeiras declarações públicas, o papa Francisco afirmou, claramente, que o papel da Igreja não era de ordem política (“la chiesa non ha natura politica, ma spirituale.” 16-03-2013). Veremos se a evolução da Igreja corresponde à visão desenvolvida pelo papa através de um simbolismo que é tão impressivo como inédito. Nos países ocidentais, o antigo princípio da unidade entre a religião e o Estado, contudo, já passou. Existem, quase por todo o lado, sistemas de separação que obrigam, mais ou menos explicitamente, o Estado a mostrar-se neutro nos assuntos religiosos e limitam, também, a influência política das Igrejas. Existe, certamente, uma relação de causa e efeito entre a liberdade religiosa e a separação sistemática da Igreja e do Estado. Mas nem sempre se pode afirmar que a liberdade religiosa é tão grande que as Igrejas e o Estado estão absolutamente separados. Acima de tudo, a liberdade religiosa pode também estar ameaçada por uma laicidade e um secularismo anticlerical que recuse às Igrejas e comunidades religiosas qualquer missão de ordem pública e quer acantoná-las na melhor das hipóteses num estatuto de associação privada56. Mesmo se, nas sociedades orientais secularizadas aumenta o número de pessoas indiferentes a qualquer religião e o número dos que são membros de uma Igreja estabiliza, ou mesmo de uma Igreja livre pareça baixar, não se pode falar de um recuo global da importância da religião. A aceleração da mundialização pode dar a muitos a impressão de que as fronteiras nacionais perdem o seu significado, mas a religião parece, de qualquer forma, poder compensar o que se tem perdido em termos de identidade.57 Isso aplica-se particularmente àqueles que têm estado a sofrer com os novos desenvolvimentos da mundialização. É, portanto, tanto mais importante quando a liberdade religiosa seja globalmente garantida e que um equilíbrio adequado continua a existir entre o Estado e as comunidades religiosas. A evolução no decurso dos 1700 anos após o Édito de Milão tem mostrado que a antiga conceção de uma unidade entre a religião e o Estado 56 Burkhard Josef Berkmann, Vom Pluralismus zum Laizismus? Österreichisches Archiv für Rechr und Religion 2012, 112 e seg. 57 Silvio Ferrari, “Religião, nacionalismo, direitos do Homem e mundialização” Consciência e Liberdade, nº 73, 2012.
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apenas pode levar à ingerência tanto das Igrejas como das instituições políticas nos seus domínios de competência recíprocos, e a uma exclusão e perseguição das minorias religiosas. Enquanto, na zona de influência ocidental, num contexto da moderna conceção dos direitos do Homem, este princípio parece adquirido, um certo ceticismo continua a existir, no que diz respeito aos países em que o Islão predomina. Com efeito, o princípio da unidade entre a religião e o Estado procurar impor-se nesses países, em parte sob a sua forma extrema e com todas as consequências negativas que isso implica de um ponto de vista ocidental, assim como para a liberdade religiosa individual e para a das diferentes comunidades. Não resta mais do que esperar que a evolução desta conceção dos direitos do Homem possa fazer o seu caminho. Tendo em conta o caráter explosivo da situação política, o mundo está longe de ter perante si um período tão longo como aquele que decorreu desde o Édito de Milão, para chegar a esse objetivo.
A dignidade humana ligada à liberdade religiosa Jose-Miguel Serrano Ruiz-Calderon58 1 A Dignidade e tradição comum Como vimos dizendo, a dignidade é o tópico fundamental no debate bioético. A “Convenção de Estrasburgo para a tutela dos direitos do homem e a dignidade do ser humano”59 faz uma referência especial à dignidade humana. Através desta referência, o Direito reconhece a sacralidade da vida humana. Este conceito parte de uma intuição básica e de uma tradição, sem a qual elementos fundamentais da nossa organização social ficam sem apoio que os sustente. Quer dizer, entendemos que o conceito de dignidade é complexo e tem a sua história particular. Este reconhecimento da dignidade humana floresce no contexto da civilização ocidental, embora consideremos que pode introduzir-se noutros âmbitos e, nesse sentido, daria lugar a conceitos universais. Naquilo que podemos denominar como nossa tradição comum tem-se dado a confluência do pensamento clássico greco-romano, cristianismo e desenvolvimento democrático que têm iluminado o discernimento da dignidade do homem. Paradoxalmente, podemos afirmar que é a sociedade ocidental que tem produzido os principais sistemas políticos que mais duramente têm pisado a dignidade humana, como é o caso dos totalitarismos, que têm a sua origem no Ocidente embora certamente alguma das suas realizações mais duradouras no Oriente. Igualmente parece claro que o próprio conceito de dignidade está em risco por causa de evoluções próprias da tradição ocidental. Se no passado esta ameaça foi o Totalitarismo, fenómeno tipicamente ocidental, no presente tem sido o cientismo. 58 Professor da filosofia do Direito e investigador do Instituto dos Direitos do Homem na Universidade Complutense de Madrid. É também membro do Conselho espanhol de Bioética e membro da Comissão de garantias para a dádiva e utilização de células e tecidos humanos. 59 A Convenção para a proteção dos direitos do Homem e da dignidade do ser humano perante as aplicações da biologia e da medicina ou Convenção sobre os direitos do Homem e a biomedicina foi adotado a 19 de novembro de 1996, pelo Conselho de Ministros do Conselho da Europa e aberto à assinatura a 4 de abril de 1997.
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Podemos pois afirmar que um dos nossos problemas fundamentais é explicar como é que um conceito que encontra a sua explicação numa tradição bem determinada e que, em virtude desta, tem tido tradução legislativa nas Declarações dos Direitos Humanos e em algumas das principais Constituições do Pós-guerra, pode ser utilizado em dois sentidos, tanto para afirmar a sacralidade da vida humana como para justificar a eutanásia. 1.1 Génese da dignidade na tradição comum É notório que nem toda a civilização coloca a dignidade da pessoa no centro do sistema de valores. Assim, o conceito de dignidade que aparece nas Declarações dos Direitos Humanos, nas Constituições do Pós-guerra, têm tido uma árdua génese até produzir o conceito que se vincula o que ao filósofo do Direito John Finnis denominou a “tradição comum”.60 Trata-se da ideia da” igual dignidade do sujeito humano”. A igual dignidade supõe a igualdade de direitos e a proteção igual dos direitos fundamentais. A tese que defendemos é que a consideração da dignidade que aparece nas definições radicais difere totalmente da postura central que temos definido até à caricatura. Desta forma, a evolução do conceito de dignidade é paradoxal em relação ao seu ponto de partida. Com efeito, um momento afortunado da história serve para justificar a igual dignidade; contudo, o seu início é claramente anti-igualitário, pois o que “digno” é o que se destaca do conjunto, o que nem todos possuem. 1.2 Circunstâncias exteriores Este paradoxo analisado pelo autor norte-americano Leon Kass61 não é a única. No conceito, por exemplo, de dignidade, parecem incluir-se duas aceções diametralmente opostas. Uma, a respeito das circunstâncias exteriores ou o comportamento dos outros; outra a respeito da resposta do sujeito a esse grande repto da sua vida. Em certo sentido, o martírio é radicalmente “indigno” e, contudo, o discurso sobre a dignidade dos homens tem-se referido sistematicamente à forma de afrontar esse repto final. Na sua origem, o adjetivo “digno” aparece vinculado com aquilo que tem uma especial nobreza, derivado normalmente da sua força ou superioridade. Há animais dignos e indignos, tanto em determinadas tradições religiosas, como na cultura em geral. Nesse sentido, certas proibições de consumir alguns alimentos 60 Finnis, John, “Um frágil argumento a favor da eutanasia” em John Keown, (comp) La eutanasia examinada, FCE, México, 2004, p 79. 61 Leon Kass, L, Life, Liberty and the Defense of Human Dignity, Encounter Books, São Francisco, p 206.
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estão vinculadas ao caráter indigno dos mesmos, reinterpretá-las do ponto de vista sanitário, se se quer do ponto de vista da religião da saúde, é um peculiar anacronismo. No homem, a dignidade esteve vinculada a certas funções, como são as guerreiras ou as sacerdotais, mas não a outras. Na sua evolução teórica, Cícero, por exemplo, considerava que e adjetivo “digno” se refere ao especial valor do homem em relação com os animais.62 No Direito, a principal função da dignidade vinculava-se ao comportamento exigido a uma pessoa ou cargo. Em determinadas sociedades, o comportamento indigno que não correspondia a esta função tinha a sua sanção. Para maior complicação, em determinadas sociedades, certos comportamentos, conforme o Direito, consideravam-se indignos. Pense-se, por exemplo, na sociedade aristocrática, incluindo em algumas sociedades burguesas, no ato juridicamente irrepreensível, ou melhor, juridicamente obrigado, de se negar a um duelo. Devemos concluir, portanto, que o passo mais relevante do ponto de vista da modificação do conceito de dignidade é a forma de aplicação do valor do ser humano. É indiscutível que isto se produz no cristianismo. Por exemplo, Tomás de Aquino, ao questionar-se teoricamente sobre a razão pela qual se utiliza o termo “pessoa”, para referir o homem, indica que esta é a especial dignidade do termo “pessoa”.63 A referência à dignidade não é exclusiva do pensamento religioso. De facto, a igual dignidade dos seres humanos encontra-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem, sobre a qual, com certo otimismo, se quis estabelecer a ordem do pós-guerra. Na sua dupla referência contemporânea tanto a que se refere ao valor sagrado da vida humana, como na aceção de base kantiana do homem como legislador, a dignidade refere-se ao que não tem preço. O homem é “digno” porque não tem preço. Como indica Kant, no “reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade … aquele que é superior a todo o preço é digno, é o que não admite equivalente”.64 “Ser digno é um fim em si mesmo.” A inovação jurídica da modernidade consiste em definir uma dignidade não quantitativa, absoluta, que se expressa na igualdade essencial perante a lei, e que não se pode traduzir numa menor presença de determinados sujeitos pe62 Andorno, Roberto, “La distinction juridique entre les personnes et les choses: a l’epreuve des procréations artificielles”, LGDJ, Paris, 1996, p 72. 63 Ver Tomás de Aquino, Summa Teológica, Prim. par: A moral geral, Deus, A criação. 64 E. Kant, Fundamentos da metafísica das boas maneiras.
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rante o Direito, de forma que uns não podem ter menor direito à vida do que outros. Este caráter absoluto tem sido denominado, também, sacralidade da vida humana e está presente no denominado argumento religioso, tal como o define o filósofo alemão Spaemann. Aqui, religioso não consiste numa religião concreta, mas “Porquê religioso? Porque o argumento se entende unicamente quando os homens descobrem algo sagrado. O sagrado é o incomensurável, o que não se pode fundar nem derivar funcionalmente, ou melhor entendido como predicado absoluto”.65 Na sua exposição perante a Comissão do Senado espanhol para o estudo da eutanásia (de setembro de1998 a novembro de 1999), o catedrático de Metafísica Eudaldo Forment assinalou a diferença que existe entre dignidade da vida e dignidade pessoal e o perigo que é fazer depender a última da primeira. Com efeito, esta dependência impossibilita a dignidade igual de todas as pessoas e mina o fundamento dos direitos fundamentais. A postura metafísica explica que “sempre se é pessoa em ato, nunca em potência, sempre se é pessoa atual e além disso sempre se é pessoa no mesmo grau”.66 Esta interpretação metafísica da pessoa permite evitar o risco contemporâneo da escala das pessoas que é o que ocorre, pelo contrário, quando colocamos o constitutivo formal da pessoa numa qualificação. Se seguimos o exemplo da saúde, ser-se-ia mais pessoa ao ter mais saúde, menos ao ter menos saúde e até mesmo, em alguns casos, baixar-se-ia o patamar da pessoalidade, por exemplo, quando nos referimos ao caso dos moribundos. A condição pessoal fundamenta, por sua vez, o direito à vida que se mantém intacto, mesmo nos momentos em que esse direito é mais posto em questão. O conceito de dignidade ontológica fundamenta, por sua vez, o de dignidade ética e remete para o problema da liberdade e da volição. A discrepância dá-se entre quem sustém a dignidade de toda pessoa humana e entre suster, por exemplo, que se alguém pede a morte deve-se-lhe proporcionar essa possibilidade. Observamos em consequência os possíveis efeitos de uma definição de dignidade que se pode voltar contra aqueles que não chegam a cumprir plenamente determinados parâmetros. Ocorrer-nos-ia o que se passou com determinadas definições de “boa vida” no passado. É o caso de Aristóteles, tão acertado 65 Spaemann, R. Felicidad e benevolencia, Rialp, Madrid, 1991, p 150. 66 Eudaldo Forment Girald, Comparência ante la Comision del Senado sobre Eutanasia, Senado Comissão, 26 de outubro de 1999, nº 502, p 2-3.
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noutros domínios. Com efeito, ele excluiu a definição da sua definição de “boa vida” a mulheres e escravos, e provavelmente isto era certo na perspetiva das condições sociais que alguns grupos suportaram em quase todos os tempos. Esta descrição pode ser utilizada de duas formas: seja de uma forma crítica para mostrar a incongruência da escravatura e opor-se-lhe, ou impedir a discriminação contra as mulheres, ou, pelo contrário, de forma acrítica precisamente por causar estes preconceitos. Isto mesmo pode ocorrer com a desconstrução do conceito de dignidade. Por exemplo, o bioético italiano Singer, como também – noutros aspetos – autores como Alberto Gubilini e Francesca Minerva, vinculam a dignidade (ou se se prefere o direito subjetivo) à posse da autonomia racional e à capacidade para perceber sensações desagradáveis.67 Com efeito, um novo exemplo dessa utilização do “debate científico” para a reversão cultural, que nos levaria à época da ampla extensão do infanticídio, deu-se no Journal of Medical Ethics, com o artigo de Alberto Giubilini e Francesca Minerva, “After birth abortion: Why should the baby live?”,68 onde se defende que as razões para abortar, não somente eugénicas, devem estender-se ao infanticídio, por um período que variaria nas razões puramente eugénicas até à imediata deteção do “defeito do neonato” ou a concessão de um prazo aos progenitores para apreciar as outras causas – geralmente de conveniência dos próprios progenitores – que são consideradas. Os autores não se consideram a si mesmos como radicais; rapidamente nos esclarecem que prefeririam o aborto mais cedo, mas que estavam a fazer uma proposta, para a ética médica, referente a outros casos mais ocasionais. O artigo reúne as características da bioética complacente que denunciava Kass, começando pelo jogo dos eufemismos. Eles preferem chamar ao infanticídio “aborto pós-natal”, mas não esclarecem o que é uma evidência visto de qualquer instância crítica da ética. A razão principal do eufemismo é o encobrimento do ato. O editor da revista, Julian Savulescu, tentou converter o caso de proposta do infanticídio num caso de reação imoderada perante a “discussão académica”. Temo que seja muito difícil crer neste argumento. Não é certo que revistas como a citada admitam qualquer tipo de argumento apresentado numa forma académica. De facto, se se examinam as posi67 Sobre este assunto ver o artigo de Adriano Pessina, “Se questa e una persona” no Osservatore Romano de 22 de março de 2012. 68 After-birth abortion: why should the baby live? Journal of medical ethics, http://jme.bmj.com/content/early/2012/03/01/medethics-2011-100411.full.
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ções sobre o aborto ou a eutanásia das grandes revistas do establishment bioético, prova-se que a sua posição é enviesada. Não se encontra, por exemplo, um número relevante de artigos discrepantes da posição maioritária de favorecer a morte por desidratação de pessoas em situação de estado vegetativo persistente. Isto é, a revista considera plausível argumentar a favor do infanticídio, na ética médica, como um passo mais da argumentação já aceite. A argumentação já aceite é que o aborto – seja qual for a causa (mas com algumas exceções de ordem moral na que respeita a escolha do sexo) – e a eutanásia neonatal são aceitáveis do ponto de vista da ética médica. A proposta do artigo, de que são responsáveis os autores, mas também certamente a revista que os avalia e propõe, é que se deve admitir o infanticídio também nos casos em que se admite o aborto, isto é, em todos. À margem do sistema de sofismas para nos convencer de que a proteção de um ser humano vivo só interessa quando este está incluído na arbitrária proposta dos autores, o artigo é muito revelador das consequências do aborto como meio do controlo absoluto de uma vontade forte sobre um ser humano em situação de debilidade. Isto leva à conclusão de que, por exemplo, os homens em grave situação de deterioração não se diferenciam muito dos recém-nascidos incapacitados (a respeito dos quais preconizam a eutanásia neonatal). Estes dois grupos humanos não têm nenhuma consciência própria nem são racionais ou autónomos, e não deveriam ser aplicadas as considerações sobre o direito à vida ou o respeito à autonomia. Nas palavras do mesmo Singer, embora estejam biologicamente vivos, não o estão biograficamente.69 Como já assinalámos, o problema fundamental está em introduzir um critério quantitativo que se pode definir como qualitativo na definição de dignidade. Certamente, na História, o critério quantitativo tem sido o mais utilizado. Este critério permite definir sujeitos com mais dignidade e com menos dignidade, procedendo a uma escala de homens segundo as suas qualidades, escala que se tem realizado segundo os critérios vigentes em cada época. De facto, este processo é o que tem permitido historicamente a descrição do sujeito de ordem social que carecia totalmente de dignidade junto a outros que tinham uma menor dignidade. Este critério não se tem utilizado, precisamente, em benefício dos definidos como indignos e não há razão para pensar que essa constante histórica não se venha a reproduzir no futuro. 69 Singer, Peter, Ética prática, 2 ed, Cambridge University Press, 1995, p. 237.
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Nesta mesma ordem de ideias, poder-se-ia considerar que a dignidade é um dado cultural, entendido como relativo, e não essencial à pessoa humana – mesmo sendo necessário aclarar em que sentido se diz que não é inerente. Aqueles que assim pensam explicam que a concessão de dignidade é uma atribuição arbitrária. A base dessa consideração é um pensamento biológico. Assim, o anterior membro do comité de ética de Espanha afirmava “que a dignidade não é um dado essencial ao ser humano mas um atributo cultural que temos dado a nós próprios”.70
2. Dignidade e direito 2.1 O reconhecimento da dignidade A dignidade humana como conceito jurídico teve a sua receção mais importante nas constituições que se promulgaram posteriormente à Segunda Guerra Mundial, especialmente nas potências derrotadas. Também aparece especialmente na Constituição Espanhola de 1978, que se pode considerar uma constituição do pós-guerra. Em boa medida, constitui a realização definitiva de um conceito que está fundamentado na nossa tradição jurídica. Assim, tem-se defendido que a tradição jurídica espanhola tem como centro o reconhecimento da dignidade da pessoa e a centralidade da mesma na vida social. Ambos os conceitos derivariam da filosofia escolástica. As Leis das Índias, quinta-essência prática da Segunda Escolástica, seriam um claro exemplo da preocupação pela dignidade da pessoa, herdando uma tradição que remontaria aos foros medievais, base para muitas das liberdades individuais.71 Na legislação vigente, a dignidade da pessoa é o eixo do ordenamento, com base na Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Europeia, e, bem entendido, sobre as normas requeridas pela própria UE incluindo a OTAN.
70 “Pessoalmente não creio que a dignidade seja essencial ao ser humano, mas que é um atributo cultural que damos a nós mesmos, posto que temos capacidade racional para elaborar esta serie de juízos, porque se a dignidade fosse intrínseca teria que ser genética, e se fosse genética teria que trazer a carga – não diria o lastro – de todos os seres que nos antecederam, incluídos os répteis.” Palacios, Marcelo, Comparência perante a Comissão do Senado sobre Eutanásia, Senado-comissão, 8 de abril de 1999, p 23. 71 Veja-se por exemplo Alfonso García Valdecasas, El hidalgo e el honor, Biblioteca Contemporânea, Madrid, 1958.
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2.2 A dignidade nas declarações dos direitos do homem Sem dúvida a pluralidade de conceções que aceitam as Declarações levam-nos a afirmar que tinha razão John Foster Dulles, Secretário de Estado norte-americano, quando se redigiu a Declaração Universal, quando considerava que a Carta era um decisivo logro das democracias a respeito dos Estados Totalitários ou os que se dirigiam a marchas forçadas em direção ao totalitarismo. Mas, passados mais de sessenta anos desde a Declaração Universal, é preciso preguntar se conseguimos cumprir o seu objetivo fundamental, que do meu ponto de vista se encontrava em evitar a tentação estatal de estabelecer filtros para a condição pessoal e o reconhecimento dos direitos fundamentais. Deve dizer-se que se queria evitar o uso arbitrário dessa capacidade, creio, mas que a chave estaria na afirmação de uma realidade reconhecida por todos os Estados que converte toda a discriminação em arbitrária. 2.3 Parcelamento da vida humana É indubitável que, após a descolonização, o novo impulso contra a escravatura, o reconhecimento da igualdade feminina e a superação dos regimes totalitários na Europa central e oriental, temos avançado no processo de extensão da defesa da dignidade. Contudo, a discriminação entre seres humanos regressou, pela via do parcelamento temporal da vida pré-natal. Nesse caminho, junto com a questão do aborto, destaca a redução possibilitada pela combinação da reprodução assistida e a medicina regenerativa. É este processo que, segundo José Luis Requero,72 produz o efeito de parcelamento jurídico da vida humana. No início do processo, como indica o autor, dá-se na sentença do Tribunal Constitucional 53/85 e afirma-se definitivamente, na sentença 14/2006, donde com a aceitação do termo pré-embrião o parcelamento radicaliza-se. Como disse Requero: “Se o nasciturus não é titular do direito à vida, mas a vida que se concretiza no seu estádio de evolução situa-o num escalão inferior – é um bem jurídico constitucionalmente protegido – a respeito do feto, a sorte do embrião é mais problemática. O nível de proteção descende ainda mais ao introduzir-se na cena o “pré-embrião”: entende o Tribunal Constitucional que, do embrião e da sua sorte, não pode deduzir-se atos contrários à dignidade da pessoa humana.”73 72 “A realidade é dura e se plasma na afirmação seguinte: bem pode dizer-se que o valor jurídico da vida do nasciturus está, entre nós, nos mínimos. Desde há vinte anos despenalizou-se em três pressupostos o delito do aborto mediante o sistema de indicações.” Requero, J. L.. “Derecho a la vida e vida embrionaria”, Pessoa e Derecho, 54, I (2006) p. 217. 73 Idem, p. 219.
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Na sua análise da jurisprudência constitucional, Andrés Ollero esteve singularmente agudo ao analisar o processo de manipulação que o embrião sofre in vitro. Tal como afirma fazendo referência à decisão 212/1996 do Tribunal Constitucional espanhol, “No seguimento da sua anterior constatação, como um processo contínuo a vida começa a ser cortada aos pedaços … o continuum desapareceu. Não estamos perante um bem jurídico – um ser humano vivo ou um sujeito vital – destinado a converter-se em pessoa – titular de direitos – não capaz de agir… o que agora se submete à votação é se é lícito fabricar seres humanos ou se é lícito fabricar pessoas”.74 A questão encontra-se aparentemente na diferenciação entre pessoa e indivíduo humano que compreende parte do pensamento contemporâneo para desarticular os efeitos mais contundentes da proposta de 1948. Sobre esta diferenciação já nos advertia o filósofo italiano Sergio Cotta, quando afirma que “Pode concluir-se sobre a questão debatida: para além das diferenças de orientação filosófica, a mais séria e constante especulação teórica concorda em afirmar a identidade real de pessoa e indivíduo humano. A verdadeira questão nesta tradição comum estabelece-se entre os pensadores que veem a pessoa participando da transcendência divina, ou aberta à transcendência, ou em relação com o ser e aqueles que, pelo contrário, a consideram resolvida na imanência. Se bem que em nenhuma destas correntes se encontre facilmente a difundida oposição moderna entre pessoa e indivíduo. A pessoa é o individuo humano. Este preciso significado é usado aqui ao empregar o termo”.75 A distinção entre pessoa e individuo humano tinha-se produzido no que respeita à vida pré-natal a partir da total aceitação do conceito de pré-embrião na informação Warnock,76 embora posteriormente se tenha vindo a abandonar por causa da intenção desvalorizadora. A ameaça para o conceito filosófico e jurídico de pessoa é então a aplicação de um modo restritivo de pessoa que se relaciona com a pessoa plenamente desenvolvida ou com a pessoa que vive em “condições plenamente dignas”. Isto permite, por exemplo, a destruição de embriões sobrantes da técnica de repro74 Ollero A, Bioderecho: entre la vida e la muerte, Thomson Aranzadi, Cizur Menor, Navarra 2006. 75 Sergio Cotta, “Pessoa”, in Anuario de Derechos Humanos, Vol I, 2000, p 31. Universidade Complutense, Madrid. Texto em espanhol http://revistas.ucm.es/index.php/ANDH/article/view/ANDH0000110013A/21043, p.29,30. 76 Fécondation et embryologie humaines, relatório da Comissão de Inquérito britânica, que impôs oficialmente o termo “pre-embrião”. (M. Warnock, Report of Inquiry into Human Fertilization and Embryology, Londres, 1984.)
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dução assistida ou a sua utilização para experiências ou a obtenção de células e tecidos utilizáveis presumivelmente para a cura de algumas enfermidades. Este caminho é preocupante, pois cada vez se alarga mais a categoria dos membros da espécie humana cuja vida não se protege e, também, porque os benefícios que se ponderam com o valor da vida “semidigna”, são cada vez mais banalizadas. 2.4 A dignidade na Constituição Espanhola Sobre o conceito de dignidade na Constituição Espanhola, Jesús González Pérez manteve uma conceção jus naturalista. Para este autor, o artigo 10.1 do texto a que nos referimos constitui a consagração da pessoa e da sua dignidade como princípio base do ordenamento jurídico.77 Como indicou no seu tempo Hernández Gil, não se trata apenas de um preceito jurídico concreto, salienta a forma como o legislador compreende o fundamento da ordem jurídica e da paz social. Isto evidentemente vincularia o legislador espanhol – como previamente ao alemão ou ao italiano –, com uma conceção jus naturalista que é a que fundamenta a dignidade e reconhece o seu sentido autêntico. Isto evidentemente não supõe que a Constituição acolha uma determinada escola ou suporte o que poderíamos chamar uma conceção acabada. Podemos concluir que como a maior parte das posições fundamentadoras dos direitos fundamentais, tal como ocorre, por exemplo, nos pais fundadores dos Estados Unidos, a base da legislação é o reconhecimento de direitos preexistentes, não no sentido de direitos anteriores à comunidade política mas direitos que a comunidade reconhece na sua Constituição. Trata-se de algo dado, não construído. Como indicou em sentido contrario Nicolás Gómez D’ávila: “A primeira revolução estalou quando ocorreu a algum imbecil que o direito podia ser inventado.”78 Esta leitura tem sido qualificada como ingénua e submetida a revisionismo por parte das escolas positivistas que têm dominado nos últimos anos. Caberia assinalar que, seja o que for que se entenda por dignidade, uma vez formalizada, não é coerente atribuir-lhe um significado que satisfaça principalmente os reconstrutores deste conceito. Isto é o que ocorre com a maioria dos defensores de ideias radicais. Quando são verdadeiramente coerentes, insistem em que o conceito de igual dignidade, e ideias radicais inscritas na sua legislação não faz sentido. Ao mesmo tempo, reinterpretam o conceito privando-o de um sentido concreto. Digno não pode ser o que ocorre ao legislador, ao intérprete 77 Jesús González Pérez, La dignidade de la pessoa, Civitas, Madrid, 1986, p 80. Ibidem, p 84. 78 Nicolás Gómez D’ávila, Escolios a un Texto Implícito: Selección, Villegas Editores, Bogota, 2004.
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constitucional, ou à doutrina, dependendo da agenda concreta do momento. A ser assim, não teria sentido tê-lo colocado nos textos constitucionais com tanta insistência nem com tanta relevância. Assistiríamos então a uma revisão constitucional feita de qualquer forma, realizada por aqueles que não têm poder para a abordar. Isto torna-se mais escandaloso em sistemas rígidos como pretende ser o espanhol. Jesús González Pérez insiste em que, independentemente da ambiguidade dos termos que usa o constituinte – “valor”, umas vezes, “princípios”, outras –, encontra-se perante um princípio geral do Direito que não perde a sua condição por ter sido acolhido pelo Direito Positivo. Dos três tipos de princípios generais – os de Direito Natural, os tradicionais e os políticos –, estamos perante algo que se inclui nos três. Se há algo permanente no Direito, este seria a dignidade da pessoa. Para muitos, a dignidade seria igualmente um princípio claramente inscrito na nossa tradição jurídica. Finalmente, tal como reconhece a Constituição, é um princípio básico de ordem política. À margem da sua natureza, muito discutida nos nossos dias, as funções dos princípios gerais têm sido especialmente analisadas pela doutrina espanhola. A dignidade seria um princípio diretamente aplicável, não necessitando de mediação. Seria igualmente fundamento do sistema jurídico, isto é, uma orientação para a interpretação do próprio ordenamento, o que se traduz numa norma de conduta e um limite do exercício dos direitos, impondo dois tipos de obrigações ao comportamento do homem em relação com os demais: uma positiva, pela qual o homem deve procurar o máximo respeito pela dignidade das pessoas que com ele se relacionam, e outra, negativa, no que respeita a dignidade dos outros, que operará como um limite ao exercício dos seus direitos. Finalmente o princípio que analisámos tem a função de integração do sistema jurídico, como indica o artigo 1.4 do Código Civil espanhol.79 2.5 Dignidade na Constituição Alemã Em virtude da importante posição que a dignidade tem na Lei Fundamental de Bona, a doutrina alemã realizou um grande esforço sistematizador. A posição mais clássica ficou definida por G. Dürig,80 que se remeteu ao princípio 79 “4. Os princípios gerais do Direito aplicam-se na ausência da lei ou de costume, sem prejuízo de facto que eles contribuem para formar o sistema jurídico.” Código Civil, Título preliminar, cap. 1, art. 1,4, texto em espanhol: http://civil.udg.es/normacivil/estatal/cc/tprel.htm. 80 Günter Dirug, “Der Grundrechtssatz von der Menschewurde”. In Archiv des Öffentlichen Rechts, 1956.
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da não instrumentalização de base kantiana. O conceito, contudo, foi reconstruído até o tornar irreconhecível, tanto no que afeta o princípio da vida como no relacionado com o seu final, tal como veremos oportunamente. Como consequência desta reconstrução até mesmo autores que eram críticos sobre o conceito acima mencionado se escandalizaram perante os efeitos que se vinham a produzir e que provavelmente não previam. Assim, E. W. Böckenförde, diante dos efeitos da reconstrução, pôde assinalar, alarmado, no Frankfurter Allgemeine Zeitung do dia 3 de setembro de 2003, que “a dignidade humana era tangível”. Tudo isso num contexto em que se discutia se se podia interpretar se a própria tortura não era contrária à dignidade humana. É por tudo isto que podemos entender que a dignidade é um elemento fundamental da luta pelo Direito na descrição de Jhering.81 Dizia Ignacio Gutierrez que “nele consiste a luta pelo Direito com maiúscula. Não a luta pelos direitos limitados e limitáveis, a luta por impor os minúsculos direitos consagrados pela Lei ou até pela Constituição, sujeito a um regime jurídico que necessariamente os constrange, mas também a luta pelo Direito entendido como regra de comportamento coletivo fundada no reconhecimento recíproco da dignidade de cada indivíduo”.82
81 Ver Rudolf Von Jhering, La lutte pour le droit, Dalloz, Paris, 2006. 82 Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, Dignidade de la pessoa e direitos fundamentales, Marcial Pons, Madrid, 2005, p. 36.
A liberdade religiosa e a segurança no mundo83 John Graz84 Condenada por alguns a desaparecer como um fruto maduro caído da árvore, a religião voltou em força à ribalta dos media. Atribui-se a André Malraux esta declaração: “O século XXI será espiritual ou não existirá.” Profético! O século XX, que assistiu à escalada dos totalitarismos e a uma quase vitória do comunismo, terminou com aquilo que se poderia chamar “o fim das ideologias”. Foi o século dos grandes sonhos banhados de sangue e de aspirações frustradas. A religião, muito naturalmente, ocupou os vazios deixados pelas ideologias. Quase que se tinham esquecido os seus excessos, as suas investidas de intolerância, para reter apenas os seus lados bons – o amor, a alegria, a paz e, sobretudo, a esperança. Não foram necessários mais que alguns anos para se aprender uma nova expressão: “terrorismo religioso”. Alguns anos bastaram para redescobrir que as Igrejas oprimidas podem ser tentadas, por sua vez, a oprimir. Apenas alguns anos foram suficientes para que se percebesse que o fanatismo e a intolerância não são um exclusivo das minorias ou dos novos movimentos religiosos. Eles encontram-se também nas grandes religiões tradicionais. Nesta evolução, em que é que a liberdade religiosa se tornou? Assistiu-se ao seu florir após a queda do comunismo, e, depois, debate-se para conservar as suas conquistas. Irá ela sobreviver aos desafios do terrorismo e da segurança nacional? Dividirei este artigo em três partes: I - O estado da liberdade religiosa no mundo e o papel dos governos II - A liberdade religiosa após o 11 de Setembro III - Algumas recomendações 83 Artigo publicado na Revista Consciência e Liberdade nº 16, 2004. 84 Secretário da International Religious Liberty Association, (Estados Unidos) desde 1995. Doutor em História das Religiões e especialista na área do diálogo inter-religioso. Organizou numerosas congressos mundiais reunindo especialistas da liberdade religiosa, assim como, diversos festivais da liberdade religiosa por todo o mundo. Recebeu numerosas distinções o Prémio da Liberdade Religiosa 2013, da J. Reuben Clark Law Society e do Centre International du Droit a 10 de Outubro de 2013. E além de ser autor de numerosos textos é o produtor executivo da emissão de televisão Global Faith and Freedom. E é igualmente o secretário-geral de “Communions do monde Chrétien”.
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I – O estado da liberdade religiosa no mundo e o papel dos governos A. A liberdade religiosa no mundo O Relator Especial das Nações Unidas para a Liberdade Religiosa e de Convicção declarou, no decurso do Congresso Mundial da Liberdade Religiosa, em Manila, nas Filipinas, a 10 de Junho de 2002: “Os progressos efetuados no domínio da liberdade religiosa e de convicção estão ameaçados (…) Corremos o perigo de descer a estrada que conduz ao desastre.”85 Cada ano, a International Religious Liberty Association (IRLA) publica um Relatório Mundial sobre a Liberdade Religiosa. Os países do nosso planeta são divididos em cinco categorias, segundo os seus graus de liberdade. As categorias 1 e 2 agrupam os que praticam e protegem esta liberdade; as categorias 4 e 5, os que a negam totalmente.86 Em 2001, dez países ocupavam a categoria 5 e vinte e três a categoria 4. Em 2002, oito países estavam classificados na categoria 5 e 25 na categoria 4. Aparentemente poucas coisas tinham mudado. O 11 de Setembro não tinha, ao que parece, modificado a paisagem das liberdades. As zonas de grande liberdade eram as Américas, a Oceânia, a Europa Ocidental e a África subsaariana; as zonas de intolerância concentravam-se no Médio Oriente e na Ásia. Quanto à Ásia Central e ao Leste da Europa, conheciam uma difícil aprendizagem da liberdade religiosa, com sinais positivos e a tentação de voltar à intolerância.87 B. O papel dos governos Hoje, destacam-se nos países do mundo quatro tipos de políticas seguidas pelos governos, que afetam a vida dos crentes: 1. Os governos que praticam uma política de intolerância As razões são de ordem ideológica, como a Coreia do Norte, o Vietname e a China, ou religiosa, como a Arábia Saudita, o Irão, o Sudão e o Paquistão. A Lei contra a blasfémia No seu Relatório à Comissão dos Direitos do Homem, o Relator Especial sobre a Liberdade de Religião e de Convicção citou o caso de um cida85 Abdelfattah Amor, “Religious Freedom: A Basis for Peace and Justice”, in Fides et Libertas, 2002, p. 20. 86 Religious Freedom World Report 2001, General Conference of the Seventh-day Adventist Church, Department of Public Affairs and Religious Liberty, Silver Spring, Maryland, USA. 87 Religious Freedom World Report 2002, Op. cit., pp. 3-7.
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dão cristão paquistanês acusado de blasfémia e condenado à morte. Segundo o Código Penal 295c, a blasfémia contra o Corão ou o Profeta é um crime. Eis a resposta oficial do governo paquistanês ao Relator Especial das Nações Unidas. O caso é resumido em seis pontos: “1. Ayub Masih disse (aos seus interlocutores) que a sua religião estava certa enquanto a deles era falsa. Declarou, além disso, que a religião pregada por Maomé (“Que a paz seja com ele”) era absolutamente falsa. Aconselhou-os vivamente a lerem o livro de “Salman Rushdie” [...] (isto foi em 4 de outubro de 1996 às 15 horas). 2. A 16 de outubro de 1996, o acusado compareceu perante um tribunal após inquérito. 3. A 27 de abril de 1998, Ayub Masih foi condenado à pena capital pelo juiz do “District and Session” de Sahiwal. O condenado recorreu para o Supremo Tribunal de Lahore. 4. A 25 de julho de 2001, o Supremo Tribunal de Lahore recusou o recurso e manteve a sentença de morte pronunciada pelo tribunal de Sahiwal. 5. A decisão foi contestada pelo acusado. 6. Ayub Masih está atualmente detido na nova penitenciária de Multan”.88 Mais de seis anos se passaram. Ayub Masih arrisca-se a passar a sua vida na prisão, ou a ser executado por ter dito algo controverso. A Arábia Saudita, a intolerância institucional A Arábia Saudita é, sem dúvida, o caso mais extremo de intolerância religiosa institucional. Sete milhões de estrangeiros vivem e trabalham no seu território. Entre trezentos e quatrocentos mil são cristãos, cem mil são budistas e hindus. Uma polícia religiosa controla as práticas dos habitantes. A conversão de um muçulmano a outra religião é passível da condenação à morte. As atividades religiosas e a presença de um sacerdote para os não muçulmanos são interditas.89 2. Os governos que sofrem pressões de uma Igreja ou de uma religião maioritária Encontram-se neste caso os países do ex-bloco soviético. Projetos de lei são propostos a fim de proporcionar privilégios à Igreja ou à religião maioritária, em contradição com uma política de não discriminação. 88 Idem. 89 Idem, [sic] pp. 88-89. Ver também ARIRF, 2001, pp. 478-482. Sete países têm uma lei que condena à morte os que abandonem o islão por uma outra religião: o Afeganistão, os Estados do Golfo, a Arábia Saudita, a Somália, o Sudão e o Iémen.
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No Camboja, o governo acaba de informar os grupos religiosos não budistas dos novos regulamentos. Eles dizem respeito aos cristãos e aos muçulmanos em primeiro lugar. Segundo o nosso correspondente, quatro medidas são enunciadas: – Dois quilómetros devem separar as igrejas ou centros religiosos uns dos outros. – A evangelização pública está interdita. – A distribuição de folhetos é interdita. – O porta a porta é interdito.90 O governo da Bielorrússia também adotou uma lei muito restritiva. No Afeganistão, quando está em elaboração o texto de uma nova Constituição, a Comissão americana para a liberdade religiosa internacional dirigiu uma carta ao presidente George W. Bush, denunciando os abusos contínuos em matéria de Direitos do Homem e a aplicação da Sharia pelo governo, os abusos contra as mulheres e as jovens, assim como a utilização da Lei contra a blasfémia por se opor aos reformadores.91 3. Os governos que perderam o controlo dos extremistas religiosos Os governos indonésio, egípcio, nigeriano e indiano mostraram-se impotentes para proteger as suas minorias religiosas da violência dos extremistas. Uma impotência que não cessa de crescer. Mas encontram-se também populações hostis às religiões minoritárias que protegem, e por vezes favorecem, o terrorismo religioso. A Índia torna-se integrista Entre os governos que têm dificuldade em controlar os extremistas religiosos, é necessário citar a Indonésia, o Egito e a Índia. A Índia é uma democracia e uma república laica, pelo menos na sua Constituição. Mas o governo atual sofre a pressão de fundamentalistas hindus.92 O artigo 25.° da Constituição protege a liberdade religiosa, mas uma comissão foi consultada para rever a Constituição. Em diversos Estados, as conversões são interditas ou extremamente dificultadas. Em Novembro de 1999, o Estado de Orissa votou uma lei 90 Courriel de 25 de fevereiro de 2003, Camera, vol. 2, n° 2. 91 United States Commission on International Religious Freedom, “Afghanistan, Back to the Past?”, 26 de fevereiro de 2003. 92 Ver o artigo de Maria Missa, “Religious Bigotry is Poisoning Indian Democracy”, in Financial Times, 4 de Março de 2003, p. 15.
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que interditava qualquer conversão sem a permissão prévia da polícia local ou do magistrado do distrito onde isso se passa. Uma lei “anti-conversão” foi votada pela Assembleia Legislativa do Estado de Tamil Nadu, em Outubro de 2002. No Estado de Uttar Pradesh, o mais populoso dos Estados da Índia, foi votada uma lei que limita a construção dos locais de culto. Na sequência de protestos o projeto foi retirado. Citarei o correspondente local da nossa Associação: “Durante estes quatro últimos anos, uma vaga de terror visava os missionários nos Estados de Uttar Pradesh, de Haryana, Pendjab e de Andhner Pradesh.”93 O incitamento ao ódio fica impune Os extremistas religiosos incitam ao ódio e o governo não reage. O nosso correspondente na Índia escreve: “Os grupos fundamentalistas nos Estados de Gujurat e de Andhra Pradesh imprimem e distribuem livremente uma literatura de ódio contra os cristãos, o que tem por efeito encorajar a violência.”94 A 9 de agosto de 2002, em Taxila, perto de Islamabad, no Paquistão, três enfermeiras foram mortas e vinte pessoas feridas num hospital cristão num ataque à granada. Na sequência desse drama, os cristãos “exprimiram o seu receio de que os ataques tenham sido o resultado dos apelos ao ódio formulados contra [eles] os cristãos, por religiosos locais”.95 O ódio religioso provocou o incêndio de diversas igrejas protestantes na Rússia. Na Geórgia, um padre vestido à civil, Basil Mkalavishvili, é responsável por uma série de atos de violência contra crentes não ortodoxos. “Os membros de diversas denominações cristãs foram perseguidos, agredidos, ameaçados durante um culto ecuménico realizado na Igreja Baptista de Tbilisi, na sexta-feira 24 de janeiro de 2003.”96 Eis o comentário do European Baptist Press Services: “Apesar do horrível ataque do último ano contra um depósito de Bíblias, Mkalavishvili e o seu grupo nunca foram importunados e punidos pelo seu comportamento.”97 4. Os governos que aplicam uma política de segurança face ao terrorismo Paradoxalmente, a luta contra o terrorismo produziu toda uma série de novas legislações que justificam ou legalizam os atentados à liberdade religiosa. 93 Correspondente da IRLA, carta de 5 de fevereiro de 2003, p. 2. 94 Idem. 95 ENI, 22 de janeiro de 2003. 96 EBPS, 27 de janeiro de 2003. 97 Idem.
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Em nome da segurança, certos países justificam uma situação de discriminação. Seria necessário citar as leis antiterroristas na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, em França, na Índia, em Hong Kong,98 no Japão e na Grã-Bretanha.99 No seu relatório sobre a China, a Human Rights Watch sublinha que o presidente Jiang Zemin declarou, no final do ano 2001, que “as atuais condições internacionais e internas levaram a um reforço do controlo do governo sobre a religião”.100 O que, no caso da China, não é dizer pouco.
II. A liberdade religiosa após o 11 de setembro O atentado de 11 de setembro não melhorou o grau de liberdade religiosa no mundo. Longe disso! No seu relatório à Comissão dos Direitos do Homem, o Relator Especial das Nações Unidas para a liberdade de religião e de convicção traçava um quadro dos vinte últimos anos. Escrevia ele: “[…] a situação da liberdade de religião ou de convicção no mundo parece ser das mais inquietantes.” Ele citou a resolução 42/2001 da Comissão dos Direitos do Homem que, no seu preâmbulo, constata: “[…] com inquietação que graves manifestações de intolerância e de discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, incluindo atos de violência, de intimidação e de coerção motivada pela intolerância religiosa, ocorrem em numerosas regiões do mundo e ameaçam a fruição dos Direitos do Homem e as liberdades fundamentais.”101 Depois da queda do comunismo, podia notar-se um declínio progressivo das políticas de controlo do religioso em nome de uma ideologia política.102 No pós 11 de setembro assistiu-se a um retorno do controlo do Estado em nome da segurança e da luta antiterrorista. A 12 de abril de 2002, perante a Comissão dos Direitos do Homem, em Genebra, Kofi Annan, o Secretário-Geral dos Direitos do Homem, declarava: “A segurança contra o terrorismo não pode ser assegurada sacrificando os Direitos do Homem. Tentar fazer isso daria aos terroristas uma vitória para além das suas esperanças.”103 98 Keith Brasher, “Hong Kong Puts Forward Bill on Stringent Security Laws”, NY Times.com, 13 de fevereiro de 2003. 99 Silvio Ferrari, Religion Security in Europe after September 11. 100 In APD, 11 de janeiro de 2003 e APIC, Friburgo, Suíça e Agência ENI, Genebra. 101 14 de março de 2002. In E-CN, 4-2002-73, p. 36. 102 Idem. 103 United Nations Press Release, Commission on Human Rights, 58a sessão, 12 de abril de 2002, p. 1.
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O Relator Especial retomaria esse tema em Manila precisando o perigo que nos ameaça a todos: “Desde o 11 de setembro, a luta contra o terrorismo parece ter justificado os mais sérios ataques aos Direitos do Homem vindo de países tradicionalmente conhecidos pela sua proteção a esses mesmos direitos e pelas lições que eles se esforçam por dar nesse domínio.”104 No que concerne às consequências do retorno do imperativo de segurança, o Relator Especial declarou: “O perigo imediato é que a liberdade religiosa seja relativizada. Voltamos à situação em que as grandes religiões se afirmam à custa das pequenas.”105 Liberdade religiosa relativizada Perante a necessidade de proteger a população, cada um deve sacrificar alguma coisa. Segundo Ferrari, o espaço da liberdade religiosa vai encontrar-se diminuído: – de um modo geral: as leis de segurança reduzem certos direitos fundamentais, por exemplo, as atividades dos missionários nos países estrangeiros. Os governos recusam dar ou renovar vistos; – de modo indireto, pelo controle do Estado sobre a vida interna e a organização das comunidades religiosas; – de modo direto, pela dissolução de grupos religiosos antes que um crime seja cometido. A lei francesa anti seita de Junho de 2001 era uma espécie de preâmbulo. As minorias religiosas são condenadas a tornarem-se os bodes expiatórios da sociedade.106 Nesta nova ordem de ideias, deveria ser dado um lugar especial à reação americana e, em particular, ao USA Patriotic Act. USA Patriot Act107 Promulgado pelo Presidente George W. Bush, a 26 de Outubro de 2001, o USA Patriotic Act é um bom exemplo do retorno à política de segurança. O seu objetivo era prevenir futuros ataques terroristas contra os Estados Unidos. A Lei faz menção da liberdade religiosa por duas vezes e de modo positivo. O parágrafo 102 menciona que os muçulmanos americanos “têm os mesmos direitos que cada cidadão Americano” e que os direitos e liberdades civis devem ser respeitados por todos, incluindo pelos muçulmanos 104 Idem. 105 Idem. 106 Silvio Ferrari, op. cit.. 107 H.R. 3162.
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americanos. No parágrafo 1002, o Act estabelece que “os atos de violência ou de discriminação contra cidadãos americanos, incluindo os Sikhs americanos” são condenados pelo Congresso.108 Não se tratou apenas de uma boa intenção, mas pessoas foram condenadas. Apesar disso, a nova lei tem efeitos negativos sobre os Direitos do Homem, aumentando o poder do Estado no domínio da vigilância das pessoas. A Lei define o termo terrorista de maneira demasiado vaga, o que pode prejudicar inocentes. O facto, por exemplo, de poder deter os não cidadãos durante sete dias, sem nenhuma prova, é um atentado aos Direitos do Homem. O Act II, que deveria ser votado, levanta ainda mais reservas, em particular, quando exige que os cidadãos de países muçulmanos vivendo nos Estados Unidos se façam registar. Tratar um grupo religioso de modo especial pode abrir a porta a outros excessos que afetem outros grupos religiosos. A objeção das associações dos Direitos do Homem e numerosos juristas é que o USA Patriotic Act II aumenta, de modo unilateral, o poder do governo e retira às pessoas proteções da justiça e colocando-as num sistema legal alternativo. Segundo o Washington Post, “o projeto contém numerosos aspetos preocupantes. Aumenta o poder dos serviços secretos à custa da justiça tradicional. Autoriza a vigilância dos estrangeiros suspeitos de terrorismo e faz deles objetivos, mais que sujeitos da aplicação da lei”.109 Quais serão as consequências da luta antiterrorista sobre as relações entre a Igreja e o Estado? A curto prazo, uma limitação da liberdade religiosa. A longo prazo, o perigo é ainda mais real. Ferrari sublinha duas consequências maiores: 1. O enfraquecimento do muro de separação e o aumento do controle do Estado sobre os grupos religiosos, 2. O reforço da distinção entre Igrejas e religiões tradicionais e não tradicionais. O que é uma tendência bem europeia, inscrita nas Constituições da Lituânia (artigo 43) e da Grécia (artigo 3) e em numerosos projetos de lei. O modelo anti seita francês pode servir contra todas as minorias. Uma tendência que pode aumentar as tensões entre a Europa e os Estados Unidos. A segurança e a liberdade religiosa são irreconciliáveis? A luta contra a insegurança e o terrorismo já serviu de alibi para suprimir ou limitar a liberdade religiosa em numerosos países. Esta política é contrária ao interesse dos países e à paz civil. “É preciso tratar a liberdade religiosa como uma questão de segurança, não apenas de liberdade do Homem, e defender sem 108 “Patriot act: The Sequel”, The Washington Post, 12 de fevereiro de 2003. 109 The Washington Post.
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equívocos a ideia de que a segurança regional só pode ser assegurada se a liberdade religiosa for garantida e as atividades legítimas dos grupos e indivíduos não forem suprimidas.”110 O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 18) e a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 9) não mencionam, como limitação à liberdade religiosa, a segurança nacional. O comentário do artigo 18 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos define a liberdade religiosa como uma liberdade fundamental que não pode ser abolida mesmo em tempo de crise maior.111 O grupo de especialistas da International Religious Liberty Association trabalha num documento intitulado “Guiding Principies and Recommandations on Security and Religious Freedom”. Segundo o grupo, “A segurança não deveria tornar-se o valor último da sociedade, mesmo sob a ameaça terrorista. Os regimes estabelecidos sob os auspícios ‘da segurança nacional’ demonstraram até que ponto são repressivos e incompatíveis com a cultura dos Direitos do Homem”.112 A história é rica em exemplos que provam os efeitos devastadores da intolerância religiosa em nome da segurança. O Império Romano teria tido um destino completamente diferente se tivesse respeitado o édito de Milão, que dava a liberdade religiosa a todos. Pode-se imaginar uma outra história para a Europa, sem a Inquisição, e a França sem a quase eliminação dos cátaros, no séc. XIII e, depois, os huguenotes. Eu partilho da ideia do professor Jeremy Gunn quando escreve: “… os dirigentes dos países devem compreender que estão a ponto de sabotar a segurança do Estado quando aplicam políticas que não asseguram o respeito pelos Direitos do Homem e que aumentam a segurança do Estado quando defendem o respeito pelos Direitos do Homem”.113 Ninguém deveria esquecer que a liberdade religiosa é uma liberdade fundamental que tem as suas raízes na revelação bíblica e se encontra nas diversas tradições religiosas. Ela foi um fator de progresso e de prosperidade quando foi respeitada. A sua negação trouxe a discriminação, a fuga dos cérebros e, por vezes, a guerra civil. Ninguém deveria ser considerado como um cidadão de se110 Robert Seiple, “Security and Religious Freedom”, in Liberty, janeiro/fevereiro de 2003, p. 3. 111 General Comment, n° 22 (48). 112 IRLA Group of Experts, “Preliminary Guiding Principles and Recommendations on Security and Religious Freedom”, Paris, 4 de fevereiro de 2003. 113 Jeremy Gunn, “Security and Religious Freedom – Thematic Topic for the IRLA Meeting of Experts in Leuven”, Projeto de declaração, 8 de janeiro de 2003.
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gunda classe porque ele ou ela utilizou a sua livre escolha para viver de acordo com a sua consciência.
III. Recomendações Não quero concluir este artigo sem uma nota positiva e algumas recomendações. É verdade que a liberdade religiosa no mundo está em perigo, mas também há algumas boas novas. Por exemplo, a recente abordagem da França em relação aos novos movimentos religiosos, mais conforme à sua tradição de defesa dos Direitos do Homem. O interesse do Qatar por uma legislação que respeite os direitos dos hindus e dos cristãos que vivem no seu território.114 E no Irão, as intenções do economista Abdolkarim Soroush, um dos aliados de Khomeini, em 1980, que inspirou a revolução cultural e é hoje o filósofo dos reformistas: “O Sr. Soroush pensa que a religião deve ficar separada do poder do mundo (wordly power), e opõe-se à utilização do Islão como uma ideologia de Estado, se bem que ele considere que o Islão e a democracia estão essencialmente ligados.”115 Para que a proteção legítima da segurança dos cidadãos não se torne um alibi a fim de limitar a liberdade religiosa, os Estados deveriam: 1. Encorajar os diálogos entre os responsáveis da segurança e os chefes religiosos. 2. Favorecer o estudo e a análise comparativa das legislações em curso. 3. Exortar as Igrejas e comunidades religiosas a ensinarem o respeito mútuo e a paz. Os crentes, qualquer que seja a sua religião, assim como os humanistas, deveriam tornar-se em campeões da paz, da reconciliação e da liberdade. Não existe nada mais aflitivo que ver crentes utilizar a violência, reclamar privilégios do Estado para limitar a liberdade dos outros crentes. Não é verdadeiramente a imagem de um Deus de amor que é assim propagada. As palavras de Jesus deveriam ser tomadas a sério quando diz. “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.”
114 In World Wide Religious News (WWRN) comunicado pela APD, 23 de Janeiro de 2003. PTI News, 23 de janeiro de 2003. 115 “The Surreal World of Iranian Politics, Anatom [sic] of a Power Struggle”, in The Economist, 18 de janeiro de 2003.
CAPÍTULO
3 Liberdade e liberdade religiosa: 1700 anos de História desde o Édito de Milão (313-2013) Recordar a História para melhor promover a liberdade e a paz no mundo. O papel da religiões.
. HISTÓRIA DA LIBERDADE RELIGIOSA
As perseguições cristãs dos primeiros séculos1 Marta Sordi2 Na antiga tradição romana, tanto sob a República como sob o Império, o direito do cidadão à liberdade religiosa decorria do direito da divindade a ser adorada segundo o modo e as formas que lhe agradavam: no senatus consultum de Bacchanalibus3 de 186 AC, a condenação dos rituais báquicos é suavizada e dá lugar a uma autorização condicional que podia ser obtida, caso a caso, do pretor urbano quando parecia impossível renunciar a estes ritos sine religione et piaculo (sem ato religioso nem sacrifício expiatório), isto é, sem receio de ofender a divindade. Igualmente, no édito de Galério de 311 DC, o direito de praticar livremente a sua religião é reconhecido aos cristãos; mas, no entanto, não se tarda a constatar que estes últimos, sob o efeito da perseguição, já não honram nem os deuses pagãos, como se deve, nem o seu Deus.4 O édito de Constantino e de Licínio, em 313, chamado o édito de Milão, concede “aos cristãos e a todos a liberdade de praticar a religião que escolherem” a fim de que “tudo o que existe de divindade e de poder celeste nos possa ser favorável, a nós e a todos os que vivem sob a nossa autoridade”.5 Na antiguidade romana é, portanto, esta noção do direito divino, que pode ser usado para assegurar o cuidado do Estado, que constitui o fundamento do direito individual à liberdade de consciência e que favorece esta tolerância de princípio, que o apologista Atenágoras, na sua Súplica a Marco Aurélio e a Comodo em 176/177, testemunha perante o povo: “Porque por um lado, consi1 Artigo publicado na Revista Conscience et Liberté nº 10, 1975. 2 Professora de História Antiga na Universidade do Sacré-Coeur em Milão, onde tem sido titular dessa cadeira por 20 anos. 3 Senatus-consulte sobre as Bacanais. 4 Lactâncio, De mortirus persecutorum, 34, 3. 5 Idem 48, 2.
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derais ímpio e repreensível não acreditar em Deus e por outro julgais necessário que cada um venere os deuses da sua escolha, a fim de por temor à divindade abster-se da injustiça”. Esta convicção profunda não basta, contudo, para impedir a perseguição religiosa; repetidamente, no decurso da História, os romanos forneceram a prova da intolerância que ela implicava: fosse ela dirigida contra os cultos estrangeiros, sob a República e no início da época imperial, ou contra o cristianismo, durante os três primeiros séculos do Império, era sempre motivada pelo facto de que a religião condenada era associada à superstição e à magia e levava a que os cultos fossem colocados fora da lei por práticas erróneas e maléficas, devidas a uma perversão sacrílega da religião, contrárias à natureza e às tradições ancestrais. Os imperadores cristãos dos IV e V séculos invocaram os mesmos motivos contra o paganismo. A tradição ancestral, o “mos maiorum” aparece nos romanos como o critério supremo em matéria de ortodoxia religiosa, como o fator determinante para diferenciar uma religião admitida, “religio licita” e uma superstição admitida: superstitio illicita. No decurso dos primeiros séculos, é essa opinião pública e as multidões, mais ainda do que o Estado, que se oporá frequentemente como um obstáculo intransponível à aceitação dos cristãos. Na origem desta atitude, é necessário ver a desconfiança que havia no mundo antigo para com qualquer inovação. O sentido pejorativo de que se revestia, nas duas línguas do mundo culto dessa época, o verbo “inovar” é reflexo disso: no grego (neotherizein), como no latim (res novas moliti), significa “alterar a ordem estabelecida” ou “pôr em perigo a ordem pública”. Como traziam uma religião nova e uma moral inédita, os cristãos passavam por “extremistas” aos olhos de público, dos intelectuais conservadores, que detinham o monopólio da cultura, e as multidões fanatizadas, nas cidades da parte oriental do Império, especialmente, onde as minorias cristãs eram muito mais fortes e mais numerosas do que no ocidente. Para o governo central, foi apenas este o caso muito mais tarde e sob s pressão da opinião pública. Contrariamente àquilo que se pretende muitas vezes, a recusa do culto imperial não constitui a causa determinante das perseguições, salvo sob Nero e sob Domiciano (a elite da classe dirigente de Roma, de formação estoica, partilhava, por outro lado, nessa época a posição dos cristãos). Esse foi, quanto muito, o pretexto invocado pelos detratores do cristianismo, em particular, junto dos governadores de província, para dar uma razão política a uma aversão cujas causas eram mais profundas e remontavam mais acima, uma aversão de origem psicológica e religiosa, cultural e “ideológica” junto, sobretudo, das cidades gregas da Ásia e da Europa, do velho antagonismo étnico que opunha os romanos às comunidades judaicas e que se alimentavam
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de medos supersticiosos; um pretexto, simplesmente, para obter do Estado uma intervenção repressiva perante a qual ele hesitava. Estas notas preliminares parecem-me necessárias para mostrar o caráter, ao mesmo tempo complexo e intermitente, da perseguição cristã durante os três primeiros séculos do Império Romano. Trata-se agora de examinar mais de perto, as diversas fases desta perseguição e os seus métodos mais clássicos. Conhecidos muito cedo pelo governo romano como uma das seitas do judaísmo na Palestina, os cristãos (cujo nomo “christiani” tem a terminação tipicamente latina, estava em uso por volta dos anos 40 nos meios romanos de Antioquia, sede do legado da Síria, e foi aí adotado para designar, especificamente, os discípulos de Cristo) foram considerados por ele favoravelmente, mais ou menos até 62, talvez porque ele via no messianismo de Jesus um caráter puramente religioso, isento de implicações políticas, um instrumento a utilizar para pacificar o messianismo revolucionário dos zelotas que agitavam a Palestina e que liderariam mais tarde a grande revolta de 66 contra os romanos. O facto de em 62 o Sumo-Sacerdote Ananos ter julgado a ausência momentânea do procurador romano da Judeia como “a ocasião propícia” para perseguir com a justiça e fazer executar Tiago Menor, no momento à cabeça da comunidade cristã de Jerusalém, e, sobretudo a destituição do Sumo-Sacerdote pelos romanos e pelo rei Agripa (Herodes Agripa II) após tal procedimento6 prova quanto os romanos até então tinham considerado com benevolência a propagação da pregação cristã na Palestina: esta atitude parece concordar com a que tinham adotado até à primavera do ano 36, data na qual o legado da Síria destituiu Caifás das suas funções de Sumo-Sacerdote.7 Esta destituição que se explica, sem dúvida, pela condenação arbitrária de Estêvão por parte de Caifás, tinha assegurado a paz na Igreja “em toda a Judeia, a Galileia e Samaria” (Atos 9:31). A mudança de orientação da política imperial para com os cristãos confirma-se entre 62 e julho de 64: Nero decide então incriminar os cristãos de Roma pelo incêndio da cidade.8 Contudo, a decisão de pôr em causa os cristãos por causa da sua confissão religiosa deve ter precedido o incêndio, que apenas forneceu um pretexto para intensificar e tornar mais dura uma repressão de teve a sua primeira manifestação com o processo de Paulo e a sua condenação à morte. O fundamento jurídico da perseguição sob Nero permanece ainda como assunto de debate. As opiniões são hoje divididas entre os que pensam que foi 6 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, XX, 200. 7 Idem XVIII, 95. 8 Tácito, Anais, XV, 44.
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aplicada aos cristãos uma lei especial, ou que, pelo contrário, foram punidos com base nas leis habituais (sobre o incêndio, o infanticídio, o incesto, os colégios ilícitos, o crime de lesa-majestade) e os que concluem pela aplicação de coação, do poder coercivo, isto é a aplicação de simples disposições de polícia. Da minha parte, dou razão a Tertuliano quando afirma9 que na origem da perseguição está um velho sénatus-consulte da época de Tibério que Nero foi o primeiro a aplicar: isto explica, entre outras coisas, o facto de que as medidas contra os cristãos não cessaram após a abolição das acta (ordenanças) de Nero, depois da morte deste último e a condenação da sua memória (damnation memoriae). Se vamos para além do aspeto jurídico, parece-me importante salientar que a mudança de orientação da política imperial para com os cristãos coincide com certas modificações da política geral de Nero, com a grande viragem do ano 62 que marcou o abandono, pelo imperador, da linha seguida de César a Cláudio e que era a do principado, a acentuação do culto imperial e das tendências orientalistas, assim como a rutura definitiva com Séneca e os estoicos, consagrada pelos acontecimentos de 65/66. Não existe nenhuma ligação profunda entre o cristianismo e o estoicismo, o que não impede que as suas respetivas éticas apresentassem, na prática, certos aspetos comuns e que a sua linguagem fosse, frequentemente, a mesma. Isso traduzia-se principalmente através de um comportamento idêntico para com o Estado, o lealismo de que são evidência a epístola de Paulo aos Romanos e a primeira epístola de Pedro, a afirmação que elas contêm – que a autoridade vem de Deus e merece ser obedecida e respeitada por razões de consciência e não de medo – a aptidão para a coexistência que disso deriva, procedente, simultaneamente, da submissão à autoridade concebida como um serviço e da liberdade, todos estes elementos, bem baseados em princípios diferentes, encontram-se na atitude dos estoicos do primeiro século, de Séneca e de Musonius Rufus, de Pérsia e de Paetus Thraséa, que recusaram, com uma intransigência igual à dos cristãos, o culto imperial e a transformação do principado em domínio. O que Nero atacou nos cristãos, como nos estoicos, foi, sem dúvida, o antagonismo da mesma natureza, espiritual e “ideológico”, no momento em que ele começou a dar ao principado um cariz teocrático. Sob Domiciano, como sob Nero, a perseguição associou, com alguns anos de intervalo, os cristãos aos estoicos; o ano 93 foi o ano em que os filósofos foram expulsos de Roma, em que foram condenados à morte ou ao exílio as personalidades da classe dirigente que tinham encontrado na filosofia e, essencialmente no estoicismo, motivos de 9 Apologética V, 1.
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oposição política, tais como Junius Arulénus Rusticus e Herennius Sénécion; 95 foi o ano da condenação dos cristãos, do cônsul Flávius Clemens e da sua esposa, Flávia Domitilla, de uma outra Flávia Domitilla, sobrinha, parece, de Flavius Clemens, todos parentes do imperador e todos acusados, “com muitos outros, entre os quais M. Acilius Glabrio, de práticas judaicas e de ateísmo”.10 A breve, mas violenta perseguição que teve ligar sob Domiciano, que se pretendeu, erroneamente, que nunca existiu, feriu, contrariamente à de Nero, os cristãos das classes dirigentes, para se estender depois aos aristocratas, que foram incriminados em massa. O meio que serviu para identificar os cristãos foi, provavelmente, a extensão do ficus iudaicus (imposto pago pelos judeus em benefício do príncipe, atestado por Suetónio11, e que visava salientar a distinção entre cristãos e judeus; este imposto obrigava os primeiros a pagar uma dupla dracma, sendo assim assimilados aos judeus, a imunidade e os privilégios concedidos por Roma aos adeptos de uma religião diferente da dos romanos, mas lícita (religio licita), seja em admitir abertamente a sua adesão a um culto não reconhecido pelo Senado, a uma superstitio illicita uma superstição ilícita a qual, excluindo todos os outros cultos, permitia aplicar a acusação de ateísmo. A sua recusa de todos os deuses imperiais e a sua prática de um culto não autorizado, fazia com que os cristãos não pudessem beneficiar, mesmo de uma forma implícita e mal definida, da imunidade concedida aos adeptos de uma religio licita, como o caso do judaísmo. Bastava que as pressões hostis da opinião pública se fizesse sentir com mais força e que, da parte do imperador, a vontade política de proteger os cristãos enfraquecesse (esta vontade que se encontra ainda em Nerva, quando ele apôs o seu veto, segundo Dion Cassius (68, 1,2) às acusações de “impiedade e de práticas judaicas” e que lembrava a efígie de uma moeda), os cristãos podiam desde logo ser legitimamente incriminados pela prática de uma superstitio illicita, na ocorrência a fé cristã. Tal era a situação jurídica que se encontrava estabilizada no II século; durante o período que vai de Trajano até Marco António, a atitude do imperador para com os cristãos, era regida pelas disposições imperiais, isto é, as respostas oficiais que os imperadores davam a cada interpelação, aos magistrados e às comunidades. Temos conhecimento das disposições de Trajano, de Adriano, de António o Pio; apenas para o de Trajano, no entanto, o texto do pedido do magistrado (Plínio, o Jovem. Legado na Bitínio entre 111 e 113) conservou com ele a resposta do imperador;12 esta 10 Dion Cassius, 67, 14. 11 Dom. 12, 2. 12 Plínio, Cartas X, 96/97.
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permite que façamos uma ideia da situação jurídica, que a disposição deixa supor, e da intenção política que estava na base da decisão imperial. Também os especialistas que, na época moderna, estudaram o assunto, concentraram a sua atenção nestes documentos. Alguns pensam poder encontrar aí a prova que não existe nenhuma lei especial contra o cristianismo, assim como de outras – e na minha opinião, estão cheios de razão – demonstram, a partir desses mesmos documentos, que a prática do cristianismo era passível de perseguições legais já antes de Trajano. Com efeito, todos os pedidos de Plínio, que justifica a sua inexperiência do facto de que não tinha participado nas medidas precedentes contra os cristãos, são orientadas sobre a relativa ao nomen, à designação, isto é, à questão da aplicação da punição (sobre a qual não teve nenhuma hesitação, uma vez que ele condenava à morte os cristãos confessos), que se trate do próprio facto de aderir ao cristianismo ou de crimes (flagitia) eventualmente inerentes a esta adesão. Aquilo que o incitou a escrever a Trajano, foi a situação dramática da sua província, onde deveria continuar a aplicar o critério adotado até então e tendo em conta a multiplicação das denúncias anónimas, condenar à morte um enorme número de pessoas, entre as quais mulheres e crianças, unicamente culpados, aos seus olhos, de uma superstitio politicamente inofensiva. Na sua resposta, o imperador ignora deliberadamente a pergunta sobre o nomen e a concernente às descriminações possíveis, mas propõe, contudo, uma linha de conduta assaz clara e, em definitivo, não hostil aos cristãos: estes não devem ser objeto de investigações; as denúncias anónimas não devem ser tomadas em consideração; a ação judicial não pode ser exercida senão se existe uma acusação conforme a regra; quem quer que professe o cristianismo será condenado, tal como quem quer que nega ser cristão e demonstra que não o é oferecendo um sacrifício aos deuses será absolvido sem outro inquérito sobre o seu passado. O delito religioso, pelo qual o indivíduo era passível de perseguição, mas não a comunidade, permanece portanto, para Trajano (que passa também em silêncio as alusões de Plínio à recusa das libações imperiais e à constituição de associações interditas) o único delito dos cristãos; ele cede à opinião pública, que exige a perseguição, dando seguimento às denúncias (desde que elas não sejam anónimas) mas, ao mesmo tempo, esforça-se por conter esta perseguição dentro de limites precisos; na falta de uma denúncia pessoal, os cristãos têm a garantia individual e como comunidade, que o Estado não intervirá e ignorá-los-á voluntariamente; evitando toda a precisão quanto à natureza da falta que constitui a adesão ao cristianismo, Trajano procura, antes de tudo, evitar a transformação de um delito individual num crime coletivo. Esta proteção tem um caráter ambíguo, que encobre um convite implícito aos cristãos para viverem
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numa semiclandestinidade, representa o essencial da atitude do imperador para com os cristãos do II século, a qual, pelas suas contradições intrínsecas, era feita para desagradar tanto aos cristãos, como aos seus adversários. Os primeiros, por parte dos apologistas, solicitaram várias vezes que o Estado abolisse a condenação pelo nomen (e o reconhecimento do cristianismo como religião lícita) assim como os segundos pediram, com insistência, que se adotassem as investigações de ofício. Na segunda metade do século II, a difusão do montanismo entre os cristãos, com tudo quanto isso comportava de intransigência fanática e de particularidades governamentais, abertamente provocatórias, levou o Estado a modificar a sua linha de conduta: Marco Aurélio é talvez o único imperador a ter perseguido os cristãos por motivos francamente políticos e que tinha visto na propagação da sua religião, que para ele se confundia com o montanismo, uma ameaça à qual devia, como imperador, opor uma defesa legítima. A investigação de ofício foi adotada em 177 na Gália, depois do episódio dos mártires de Lião, e, na mesma época, na Ásia após um escrito de Militão. A perseguição foi apresentada por Celso,13 contemporâneo e talvez também porta-voz de Marco Aurélio, como uma defesa por parte do imperador. Mas a preocupações de Marco Aurélio estavam baseadas num equívoco: nem os bispos da grande Igreja, nem a maioria dos cristãos partilhavam dos preconceitos hostis ao Estado do montanismo, e os apologistas de 176/177 (Atenágoras, Militão, Apolinário) confirmaram, face às perturbações provocadas pelos adeptos da “nova profecia”, o lealismo dos cristãos para com o Estado. O convite de Celso aos cristãos para abandonarem a clandestinidade e cooperarem ativamente com o Estado não permaneceu sem eco. Uma nota de Tertuliano14 portanto não negou – na minha opinião – a verdade histórica, atribuiu ao mesmo Marco Aurélio uma medida que, se não anulava as disposições que faziam da prática do cristianismo um crime, visava contudo desencorajar as denúncias individuais e a dar garantias aos cristãos dispostos a participar nas atividades do Estado. Em todo o caso, é verdade que o reinado de Marco Aurélio representa uma viragem e que após a morte do imperador assiste-se à Igreja a sair gradualmente da clandestinidade (ela começa, pelo fim do II século, a reivindicar a propriedade de lugares de culto e de sepultamento) e assiste-se à integração progressiva dos cristãos na vida do Império. Na época dos Severos, o clima devido ao sincretismo religioso e cultural adotado e encorajado pelas princesas cultas que falavam a língua siríaca fez com 13 VIII, 68, Bader. 14 Apologética V, 6.
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que o cristianismo fosse não só tolerado, mas despertou a simpatia e o interesse de milhares da própria corte. O episódio do legado de Caracala na Arábia que, desejando compreender as lições de Orígenes, solicitou a vinda deste último à sua província, pediu para isso a autorização do perfeito do Egito e do bispo de Alexandria; o facto de Hipólito e Bardesanes terem dedicado tratados de teologia aos imperadores e às imperatrizes, o interesse suscitado pela teologia de Orígenes junto de Júlia Mamaea, mãe de Severo Alexandre, e a amizade evidente deste último para os cristãos, são em muitos aspetos, evidência de novas condições, sinais de cordialidade, nas quais se desenrolam, nessa época, as relações entre o Estado Romano e os cristãos. A hostilidade da opinião pública e dos intelectuais conservadores impede, contudo, mesmo aos imperadores mais favoráveis ao cristianismo, reconhecer este legalmente e isso tornou possível, mesmo então, manifestações esparsas da perseguição (especialmente nas províncias). Em contrapartida, é necessário excluir – e isto é admitido, atualmente, pela maior parte dos historiadores modernos – a existência, atestada nas fontes do século IV mas ignorada pelos autores contemporâneos, de uma perseguição geral ordenada por um édito de Sétimo Severo. A política religiosa dos Severos prosseguiu, exceção feita a um curto período do reinado de Maximino o Trácio, até sob Filipe o Árabe, de quem se tem dito que era, simplesmente, cristão, caso contrário, à luz do cristianismo – verdade ou suposto – deste imperador e da sua patente benevolência para com os cristãos, que reprovava os mais intransigentes pagãos, explica-se a reação anticristã de Décio, assim como o seu famoso édito. É necessário situar, assim como parece indicar a análise cronológica dos documentos que chegaram até nós, cerca de abril de 250, quando evidências suficientes da popularidade da perseguição foram reunidas nas províncias africanas e orientais, e foi, antes de mais, a realização de uma medida de propaganda destinada a ganhar, para um imperador que tinha chegado ao poder por usurpação de direitos militares, o favor das massas pagãs assim como elementos conservadores do senado e da classe dirigente. Aplicado de forma desigual acompanhando o acolhimento da opinião pública reservou às medidas de perseguição, o édito, que não mencionava os cristãos, impondo a todos os cidadãos do Império o sacrifício aos deuses (que Trajano tinha exigido como uma prova negativa dos cidadãos suspeitos de praticar o cristianismo): ele não provocou, senão, renúncias superficiais e, na realidade, em nada mudou a situação. Mais humilhante – por causa das numerosas
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apostasias – do que sanguinária, a perseguição de Décio pode ser considerada pelos cristãos, logo que terminou, como um meio providencial de revelar os fiéis que uma paz prolongada tinha corrompido.15 Os adversários do cristianismo descobriram que para o combater, já não era possível voltar à antiga legislação, que não o condenava como delito religioso individual mas ignorava deliberadamente a existência da comunidade cristã: ora era necessário, daí em diante, ter em conta a presença desta, e ferir o cristianismo como Igreja. Foi o que fez Valério através dos éditos de 257 e 258. Paradoxalmente, foi o interesse crítico sobre os cristãos por Valério e a sua decisão de renovar profundamente a antiga legislação anticristã, e acabaram por ser os seus meticulosos éditos, atacando o cristianismo como Igreja, como hierarquia, e como estrutura, que fizeram evoluir a situação no plano jurídico e que permitiram, pela primeira vez, ao Estado romano conceder, pelo contrário, uma atenção positiva ao cristianismo e à Igreja. Com efeito, em 260, logo que Galiano, ficou sozinho no poder (depois da prisão do seu pai) quis parar a perseguição, não foi possível restaurar simplesmente as condições anteriores: foi obrigado a revogar, formalmente, os éditos ainda em vigor, (não foi senão para negar) olhando para a existência e a estrutura da Igreja, e teve de reconhecer esta última, assim como hierarquia e como comunidade, sujeita à lei e habilitada a possuir bens. Desde esse momento e até à proclamação dos éditos de perseguição de Diocleciano, isto é, durante cerca de quarenta anos, a Igreja constituía no seio do Império uma associação legítima e o cristianismo tornou-se religio licita; as dispensas concedidas durante estes anos, aos magistrados cristãos, de praticarem o culto pagão, atestam, assim como a condenação de Maximiliano, em 195, como objetor de consciência, mas não na sua qualidade de cristão, a despeito da sua profissão de fé cristã repetida, e que o texto do édito de Serdica, pelo qual Galério pôs fim, em 311, à perseguição lançada por Diocleciano e que concedia de novo aos cristãos o direito de existir como tal e o de fundar comunidades.16 Em 313, o édito chamado “édito de Milão”, fruto de um acordo entre Constantino e Licínio, ia muito além da tolerância de facto e do direito de realizado por Serdica; não se limitava a alargar as concessões concedidas por este último, decretando a imediata restituição à Igreja dos bens que lhe tinham sido confiscados, mas transformava completamente o espírito. O cristianismo já não representava, como para Galério, um erro que era necessário tolerar que não é possível corrigir, mas tornou-se um culto que o Estado respeitava em nome do 15 Cipriano, De lapsis, 5. 16 Lactâncio, De mortirus persecutorum, 34.
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direito do indivíduo de escolher livremente a sua religião segundo a sua própria consciência e, em nome, sobretudo, da veneração da divindade, que considerava como o seu interesse supremo para se colocar sob o Seu favor.17 A aliança com a divindade, a escolha do deus mais forte, não segundo o número de adeptos, mas em função do seu do seu poder divino, do deus capaz de salvar o Império tornou-se, depois das catástrofes militares, económicas e naturais do IIIº século, como foi o caso na época arcaica, a ideia essencial na política religiosa de Roma. A escolha de Constantino optando pelo Deus dos cristãos, em 313, foi, assim como a de Aurélio preferindo o Sol ou o de Diocleciano impondo Júpiter optimus maximus, uma escolha política, mas que derivava da política do Estado para com a divindade. Esta atitude reflete-se no tratado de Milão, em que o respeito devido à divindade é o ponto principal, o elemento dominante do programa político imperial. Ressalta do texto que a tolerância absoluta, a plena liberdade religiosa que o tratado concede “aos cristãos e a todos”, não é, na política de Constantino para com a divindade, senão uma primeira fase, a saber, a busca de um compromisso com um confrade pagão, atendendo a que a situação, pela sua evolução, permite a Constantino ser o único imperador e que a religião escolhida por ele se torne a religião oficial do Império. Esta, seguindo a lógica da antiga religião romana que se considerava como uma aliança entre Roma e os seus deuses; seguindo a lógica de Aurélio e de Diocleciano; e por fim segundo as exigências existenciais de uma “época de angústia”.
17 Idem, 48.
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Constantino18 Pierre Lanarés19 “Constantino foi o primeiro imperador cristão a estabelecer um tipo de relações entre o Estado e a Igreja. Este modelo que subsiste ainda hoje em alguns países, condicionou todo o desenvolvimento da civilização ocidental.” Esta declaração de um especialista da história da liberdade religiosa, H. Bainton, põe em evidência a importância da ação do imperador Constantino.20 Para compreender a obra de Constantino, é preciso traçar em grandes linhas o quadro histórico em que ele se insere. Diocleciano (284-305) tinha como tarefa preservar a unidade do Império, unidade que ele fundou sobre uma base religiosa. As suas primeiras moedas provam que o Estado não estava estabelecido sob a autoridade do Senado, ou da do exército, mas sob a proteção de Júpiter. Os discursos oficiais deste imperador muito religioso são demonstração do fervor que ele testemunha aos deuses, particularmente a Mitra o grande benfeitor. O decreto de março de 295, sobre o casamento professa: “Não duvidamos que os deuses invisíveis e amáveis estão bem agradados dos Romanos quando sob a nossa autoridade conservamos uma vida piedosa, calma e pacífica”. Em 296, um decreto contra os maniqueus precisa: “A religião antiga não deve ser criticada por uma nova religião…” “Estamos decididos a punir a malícia obstinada dos homens que substituem o antigo culto dos deuses por novas seitas …” “A praga desse mal (o maniqueísmo) deve ser extirpado e aniquilado da nossa época”. Em 299, os cristãos, oficiais do exército romano, foram perseguidos por causa da sua fé. A 23 de fevereiro de 303, decidiu-se, por decreto, a destruição das igrejas e a confiscação das propriedades eclesiásticas com a interdição de se reunirem 18 Artigo publicado na revista Consciênce et Liberté, nº 10, 1975 . 19 A obra do professor Pierre Lanarès, como Secretário-Geral, foi determinante para a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Pierre Lanarés dedicou-se, também, à estruturar esta Associação e a dar-lhe credenciais. A partir de 1966, várias secções nacionais da Associação viram o dia nos países da Europa ocidental, na África francófona e no Oceano Índico. Foi durante o seu mandato, em 1978, que a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa recebeu o estatuto de ONG (organização não governamental) junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa, em 1980. A organização de Congressos, de colóquios e de encontros de especialistas, assim como a publicação e a edição internacional de “Conscience et Liberté”, a promoção da tolerância religiosa através da educação fez igualmente parte da sua missão. 20 Hermann DORRIES, Constantine the Great, Harper and Row, NY 1972, prefácio VIII.
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para celebrar o culto. Seguiram-se dois outros decretos a respeito do clero. O quarto decreto de 304, obriga todas as pessoas a oferecerem sacrifícios e a consumirem a carne e o vinho destinados aos deuses. Parece que Galério, imperador com Diocleciano, foi o principal instigador das perseguições. Ele aboliu-as pelo decreto de 311 no qual procura justificar-se. Este édito de tolerância reconhece oficialmente que a renovação religiosa pagã não se efetuou. Em 306, Constantino recebeu a púrpura. Depois de ter, como o seu pai, adorado o deus Hércules, escolheu, em 310, o culto do deus sol. Este emblema do sol invencível será gravado nas suas moedas. Constantino sonha apoderar-se de Roma. Chegado, com as suas tropas, aos arredores da cidade… teve, repentinamente, a visão de uma cruz luminosa e recebeu a misteriosa ordem de colocar o sinal divino no escudo dos seus soldados. Foi assim que munidos deste emblema, os soldados se lançaram no combate e se apoderaram da capital a 28 de outubro de 312. Por ocasião do terceiro aniversário desta vitória, Constantino fez gravar no seu capacete o monograma de Cristo. Este gesto era o sinal visível do seu envolvimento… Ele pensava que se os imperadores precedentes tinham fracassado nas suas perseguições, foi porque tinham desprezado o poder do Deus dos cristãos que era o único que podia conceder a vitória ao seu exército. Esta batalha ganha por um imperador cristão desempenhou um papel decisivo no destino do Império Romano. No dia da sua entrada triunfal em Roma, o imperador não ofereceu o habitual sacrifício no templo de Júpiter. Nunca mais a partir daí ele oferecerá sacrifícios… renunciará mesmo aos que lhe eram dedicados por ocasião do culto a que assistia. Dedicou o palácio de Latrão aos bispos e ordenou a construção de uma basílica. Ele fez edificar uma estátua colossal representando-o tendo na mão uma longa lança em forma de cruz. No decurso dos anos 312 e 313, devolveu as propriedades que tinham sido confiscadas às comunidades cristãs. Em fevereiro de 313, confirmou o decreto de Tolerância (decreto de Milão) já publicado na Nicomédia pelo seu cunhado Licínio. Cristãos e pagãos eram livres daí em diante, de praticar a sua religião: “e que qualquer divindade no céu nos seja benevolente e favorável como a todos ao cidadãos do Império”. Os cristãos foram os primeiros beneficiários desta declaração. Foi assim que Constantino se tornou o fundador da Europa cristã. Mas rebentou uma guerra entre Licínio e Constantino. Cada um deles se esforçou por envolver os deuses para obter o concurso dos seus discípulos. Licínio declarou: “Constantino não combate contra nós mas contra os deuses. Se na batalha, os deuses se revelarem uma ajuda eficaz, marcharemos contra aqueles
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que os rejeitam. Mas se o Deus estranho ganhar, teremos sacrificado em vão aos nossos deuses.”21 Licínio foi vencido e deve, como era hábito, ser executado. Este episódio marcou o fim da luta pela monarquia universal. Constantino compreende que para assegurar a proteção divina, é indispensável a oração. Rodeia-se de bispos, faz cunhar moedas e decorar o seu palácio com sinais tangíveis da sua conversão ao cristianismo. Por ocasião da inauguração de Constantinopla, a 11 de maio de 330, Constantino deixou a sua marca – uma cruz gravada sobre um globo – numa moeda de prata. A capital do mundo começa o seu reinado sob o sinal da cruz. Constantino recusa que a sua estátua seja erigida nos templos, assim como interdita qualquer sacrifício ao imperador. Atitude que, no entanto, fazia correr o risco de diminuir o seu prestígio se não conseguisse convencer os homens da sua missão divina. Por outro lado, dedica-se a tornar as leis mais humanas “o homem é mais do que a lei”, declarou. Ele admite que alguns casos sejam submetidos aos bispos que indiretamente recebem autoridade civil. Os tribunais eclesiásticos tomam posteriormente importância para o Estado. Ao reorganizar o exército, Constantino reintegra aqueles que tinham sido eliminados injustamente e, ao mesmo tempo, oferece aos soldados que o desejem fazer por razões de consciência, a ocasião de abandonar o exército. Os militares, é verdade, eram continuamente confrontados com a efusão de sangue e a sua vida diária estava impregnada de ritos pagãos. A própria carne que consumiam era previamente oferecida aos deuses. Era por isso que os cristãos consideravam o serviço armado como sendo incompatível com a sua fé. No concílio de Arles, em 314, foi estabelecido que os soldados cristãos que derramassem sangue seriam excluídos da comunhão. Um elemento importante da legislação de Constantino prolongou-se até aos nossos dias: trata-se do domingo. Nessa época, judeus e cristãos observavam o sétimo dia da semana (o sábado bíblico). Ora, ao longo da Sua vida terrestre, Cristo manifestou o Seu respeito pelo dia posto à parte tendo em vista glorificar o Criador. Os pagãos, porém, honravam o primeiro dia da semana dedicado ao Sol, soberano dos deuses astrológicos. Encontramos, aliás, traços desta adoração no sentido da palavra domingo, seja em inglês ou em alemão: Sun…day, Sonn…tag. O édito de 7 de março de 321 estipula: “O imperador Constantino a Helpidius: Que todos os juízes, as populações das cidades e todos os corpos de ofícios cessem o trabalho no venerável dia do Sol. Contudo, que os agricultores se consagrem livremente e sem entraves à cultura dos campos, por receio de que esta interrupção não se perca a ocasião oferecida pela providência celeste; acon21 Citado por H. Dorries, ob. cit. p.57.
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tece frequentemente, com efeito, que nenhum outro dia convenha melhor para semear os cereais ou para plantar a vinha”. Diversos decretos assinados por Constantino e por imperadores sucessivos regulamentaram, de forma mais precisa, o caráter do domingo. A Igreja não manifestou um interesse particular por esta decisão. A substituição do sábado pelo domingo ainda não tinha entrado nos hábitos. O espírito do dia consagrado ao Sol não correspondia ao dos cristãos adorando o seu Criador. Mais tarde a Igreja encontrará na mudança do dia o meio de facilitar a entrada dos pagãos no seu seio e em convidá-los a vir adorar em vez de irem a um templo pagão. Mais de um século mais tarde, em 360, o concílio de Laodiceia, sem abolir o dia de sábado, convida a transferir o descanso do sábado para o domingo (canon 29). Em 425 o imperador Teodósio II interdita certas atividades ao domingo porque o clero os declara contrários ao seu caráter sagrado. Não é senão no século IV que a Igreja toma claramente posição em favor do domingo no II concílio de Mâcon em 585. Constantino chama a este dia de repouso “o dia do sol”, coisa que agrada aos pagãos. Ele próprio era favorável a este culto. O arco que o glorifica é um monumento erigido ao culto do sol e muito tempo depois da sua conversão, as moedas continuarão a ter gravada a imagem do deus sol. Foi Teodósio que mudou a terminologia do domingo para “dia do Senhor” colocando assim, todos os cidadãos do império sob a influência da Igreja do Estado, o que constitui uma excelente preparação para a unidade da religião. A prosperidade do Estado depende do culto cristão celebrado por todos os sujeitos do império. O que dá importância à decisão de Constantino é o seu caráter legal que foi reforçado na Idade Mádia pela Igreja do Estado. É também o repouso concedido que valoriza o aspeto social do cristianismo e é por fim que a celebração do culto divino permanece o objeto essencial considerado por ocasião do estabelecimento deste dia. Na Roma antiga, a prosperidade da nação dependia do favor dos deuses. A religião não era considerada como uma experiência interior, individual, mas como um ato público cumprido num lugar determinado segundo regras precisas. Augusto considerava-se como responsável do império e por conseguinte, da sua vida religiosa, tomando o nome de sumo pontífice. Era o controlo da religião pelo Estado. Quando o cristianismo se tornou religião oficial, Constantino tomou o mesmo papel de pontífice sem estar batizado e sem nunca ter participado na comunhão. Contentou-se em ler as Sagradas Escrituras e a orar, o que não o impediu de se intitular “bispo do exterior”, de convocar concílios e de prescrever pela lei, a obediência aos cânones conciliares.
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Para Constantino, o cristianismo era um novo ensino religioso, uma lei pacífica que substituía a ordem civil e constituía uma força moral. Quando a heresia se manifestava no seio da Igreja Cristã, Constantino considerava, segundo a tradição romana, que era normal intervir para manter a ordem pública e restabelecer a unidade religiosa. Contrariamente ao espírito do Evangelho, que oferece a cada um a liberdade de escolha, Constantino colocou os seus súbditos perante a obrigação de aceitar a doutrina oficial. A Igreja, considerando as enormes vantagens que tirava desta situação, não resistiu à autoridade deste protetor invasivo. Foram precisos séculos para que cristãos que desejavam permanecer fiéis ao verdadeiro Evangelho admitissem, ao preço de sofrimentos indiscritíveis, o valor de outras comunidades religiosas, até que o direito de todo o ser humano ter as suas próprias convicções fosse finalmente reconhecido. Contudo, o exemplo de Constantino permanece ainda vivo e muitos são os chefes de Estado que querem seguir o seu caminho para controlar a religião ou servir-se dela para a sua política. Basta pôr em prática a regra que Constâncio – filho de Constantino – exprimiu no concílio de Milão em 355: “O que eu quero torna-se a lei da Igreja”. A própria Igreja favoreceu este compromisso entre o paganismo e o cristianismo para suscitar a conversão dos pagãos. Mas isso foi feito com o custo da integridade da mensagem da qual ela era responsável. O imperador Aurélio (270-275) tinha feito edificar em Roma um templo magnífico destinado ao culto do sol e tinha decretado que o dia 25 de dezembro seria dia feriado oficial para celebrar o sol invencível. Na época do Constantino, a Igreja escolheu o 25 de dezembro para honrar Cristo que é “o sol da Justiça” e decidiu fixar a data do nascimento de Jesus nesse dia. O édito de Teodósio I em 380, que fez da Igreja cristã a Igreja oficial, tentou a eliminação do paganismo. Esta atitude é diametralmente oposta à de Diocleciano, no início do século IV. Mas é o mesmo espírito de intolerância posto ao serviço da Igreja cristã. São estes princípios que serão mais tarde utilizados por Zwínglio e os seus discípulos para exterminar os anabatistas de Zurique. Quando Constantino proibiu as assembleias dos hereges e entrega os seus locais de culto aos católicos, os cristãos, esquecendo as perseguições que tinham sofrido, aceitaram esta decisão louvando o imperador. A Igreja não se deu conta do mal que fazia aos seus fiéis e ao Estado. Não tardou a justificar a violência e a servir-se do Estado para estabelecer a unidade da fé. Este sistema, evidentemente, não apresenta apenas aspetos negativos. A Igreja exerceu uma ação de caridade, de educação e social. Em certas ocasiões foi um elemento de unidade nacional, mas não foi mais o profeta que lutava pela
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soberania de Deus e a liberdade dos homens. Não podia deixar de ser pervertida pelo exercício do poder. “O rigor de um sistema que enquadra todas as condições humanitárias num controlo preciso, a severidade apaixonada dos conflitos clericais, não basta para desculpar este naufrágio da liberdade religiosa hipocritamente consentido para Igreja protegida pelo imperador”.22 Um jesuíta, Joseph Lecler, colocou claramente em destaque as consequências da política de Constantino e dos seus sucessores: Aplicando aos dissidentes penas corporais misturou durante séculos a distinção do espiritual e do temporal sobre a qual se baseava até aí, a autonomia da Igreja. As perseguições imperiais contra o cisma e a heresia favoreceram, largamente, o cesaropapismo e justifica no século XVI o poder espiritual dos príncipes protestantes. As penalidades contra o cisma e a heresia, não deixaram de se agravar desde Constantino (exílio, prisão, confiscação de bens, infâmia, execução pelo fogo). “A política imperial do séculos IV e V aparece, portanto, inteiramente decisiva. Ela não explica apenas a intolerância medieval, mas pelo menos abriu o caminho.”23 Outro padre jesuíta falando da sua Igreja depois de Constantino declara: “Na luta contra as heresias houve contudo mais intolerância e opressão do que liberdade de consciência. Na defesa da verdadeira doutrina, a essência do cristianismo, o amor, foi muitas vezes negado e a dignidade e a liberdade pessoais dos adversários foram desprezadas.”24 É necessário estar atento à ação de Constantino para discernir a sua influência, sempre subtil e penetrante, a fim de que a liberdade religiosa que tinha querido estabelecer com o édito de Milão, não seja aniquilada por compromissos que parecem vantajosos para as duas partes, mas que, na realidade, não são mais do que um negócio de loucos para aqueles que os concluem e causa de sofrimento para aqueles que os se lhe sujeitam. 22 Charles PIETRI, Mythe et Realité de l’Eglise constantinienne, Les quatre fleuves, nº 3, Seuil 1974, p. 30. 23 Joseph LECLER, Histoire de la tolérance au siècle da la Reforme, Auber, Paris 1955, T. I., pp. 76 e 77. 24 Joseph LECLER, Pas de monopole dans la promotion de la liberte, Conscience nº 93. Março 1974.
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II. A LIBERDADE RELIGIOSA SEGUNDO DIFERENTES PERSPETIVAS
O sentido da liberdade no pensamento ortodoxo25 O Cristão, um ser livre Emilianos Timiadis26 Não há problema mais apaixonante, mais atual e que conduza desde logo ao coração do cristianismo do que o da liberdade. É justo que a linguagem da liberdade ocupe um lugar relativamente restrito no Novo Testamento; não é sob este ângulo que se apresenta geralmente a salvação através de Cristo. Não é menos verdade que S. Paulo a evoca em termos magníficos a ponto de fazer dela a própria vocação do cristão, o seu ideal e objeto dos seus mais ardentes desejos. No estudo das virtudes, a maior dificuldade é circunscrever os seus limites. Como a natureza humana tem uma tendência inata para alargar indefinidamente a dimensão das virtudes cristãs citadas no Novo Testamento, convém encontrar o ponto de equilíbrio ideal em que qualquer virtude deixa de ser legítima para se tornar excessiva. Esta regra, válida em todas as coisas, torna-se essencial quando se trata de liberdade religiosa. Ensinada por Cristo, desenvolvida por S. Paulo, ela ocupa um lugar predominante no Evangelho. O crente finalmente liberto do pecado recupera a sua liberdade. No meio de criação ele é o único ser dotado da faculdade de escolher. Ele opera a sua própria liberdade. A sua consciência leva-o a discernir as diferentes noções motivando a opção e sugerindo-lhe a preferência a dar, mas em nenhum caso o obriga. O próprio Criador respeita a decisão do homem. Vejamos o filho pródigo; nesta parábola o pai não exerce nenhuma pressão quando o filho decide abandonar a casa para partir à aventura; simplesmente menciona os inconvenientes e os perigos desta decisão, mas não se lhe opõe. 25 Artigo publicado na revista Conscience et Liberté nº 13, 1977. 26 Emilianos Timiadis, bispo grego ortodoxo do Patriarcado ecuménico. Foi metropolita da Silyvria e representante do Patriarca de Constantinopla no COI durante 5 anos (1959-1964). É cofundador do EIIR (Encontros Internacionais e interconfessionais das religiões).
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1. A liberdade do homem é respeitada por Deus O arquétipo é semelhante ao antítipo. O Homem é formado à imagem do modelo divino. Uma vez que desde a Sua encarnação Cristo escolheu livremente abstrair-Se da Sua grandeza para salvar o Homem e restituir-lhe a liberdade, este é livre desde então, de determinar o seu próprio destino. A criação não teria respondido ao seu objetivo se o Homem não se distinguisse do animal por certas qualidades superiores. É bom notar que a moral paulina ignora tudo o que tivesse a aparência de casuística. O fiel respira livremente. Uma vez desentulhado o vasto campo dos atos rituais impostos pela lei, Paulo recusa substituir uma ética por outra. Ele deseja formar consciências adultas e não abandonar o Homem a ser dirigido como uma criança. Para se conduzir, o cristão, tem, de facto, a “gnose”, o supremo conhecimento, que penetra todas as realidades da vida. Ele é gnóstico, iniciado nas sabedorias sagradas. A gnose e a consciência completam-se: “os gregos veem nesta síntese a famosa sophia, a sabedoria mais elevada, humanamente incontestada. “Quem é realmente livre?” perguntavam-se os Gregos – “Aquele que vive sem paixão” respondiam os filósofos. Os ascetas encontravam a verdadeira libertação na submissão do carnal ao espiritual. Esta questão coloca-se ainda hoje aos monges e aos homens que vivem no mundo: “Quem é livre e em que momento?” Cada um encara a liberdade do ponto de vista que lhe é próprio. O ser verdadeiramente livre será considerado por alguns como escravo, ligado aos seus cuidados e paradoxalmente o verdadeiro escravo pode sentir-se plenamente livre. Que antítese! O princípio monástico de desprezo pelo mundo, contemptos mondi, com o seu equivalente saeculi actibus sa facere alienum, encontra a sua motivação num objetivo superior: ultrapassar as realidades terrestres, desfazer os laços do temporal para desenvolver a sua própria vocação. Rejeitar o mundo para por fim possuir a plena liberdade de se consagrar ao Eterno. Não é uma anulação, é um ultrapassar. O monge limita conscientemente a sua visão do terrestre e do transitório para melhor se dispor à contemplação do espiritual. Na Vita Antonii, vemos que o desprezo dos demónios assim como a mortificação, facilitam a elevação das faculdades humanas em direção aos horizontes celestes e aproximam a nossa natureza da de Deus (cap. 38, págs. 26, 897) São Paulo é o único escritor do Novo Testamento a utilizar, correntemente, um vocabulário que gira em volta da palavra liberdade. Ele emprega o adjetivo eleftheros, o substantivo eleftheria e o verbo eleftheroo mais frequentemente do que outros termos. Ele mantém uma realidade íntima, a liberdade de consciência, a independência perante uma oposição exterior, e afirma o
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acesso a um mundo superior. Mas uma vez que toda a consciência sofre uma destruição, o remédio será uma reestruturação contínua pela graça, o socorro do Espírito Santo (de auxilli gratie). Um pensamento a que os libertinos tinham distorcido o sentido circulava entre os coríntios: o Homem não pode, de forma alguma, controlar-se. Chegavam a pretender que a fornicação é uma necessidade legítima do corpo, uma necessidade imperiosa da natureza humana, tal como o comer e o beber. O esclarecimento de S. Paulo mantém toda a sua importância; o homem, um ser livre, não se deve deixar dominar por nada. A liberdade do Homem é condicionada. Qualquer outra interpretação leva às consequências desastrosas do autodeterminismo ou a uma moral autónoma. São Paulo tem consciência do laxismo pagão, especialmente epicurista. Sem contestar o “tudo é permitido” do pensamento então em voga, repete a fórmula tendo o cuidado de acrescentar a modificação essencial trazida pelo cristianismo: “Mas nem tudo é proveitoso” (Nem tudo é bom para mim) (I Coríntios 6:12). Podemos, certamente, gozar de todos os prazeres para nossa satisfação pessoal, mas não sem refletir até que ponto a nossa atitude serve o nosso interesse – imediato e futuro – e se convém à natureza humana, consagrada, ou secular. O ser humano deve procurar e conservar o equilíbrio entre o desejo carnal e a exigência espiritual. Omitindo estes dois fatores, corre-se o risco de falsear o sentido da vida e de confundir a ordem das nossas faculdades. O resgate, diz São Paulo, tem uma vocação única: tornar o colaborador, o synergos de Deus a fim de que o Seu reino se estabeleça sobre a Terra como no Céu. Neste contexto, ele é chamado a restabelecer a ordem e a harmonia neste mundo desorganizado e desorientado e a reconstruí-lo nas suas dimensões cósmicas. O Homem não é um imitador. É um inventor original. A conquista espacial e o progresso técnico, devidos ao génio de um ser verdadeiramente livre, podem servir para fins pacíficos, para o bem-estar geral. Para Deus, a liberdade humana é ilimitada. Ele não deseja intervir pela força e cercear o livre arbítrio. Criado à imagem de Deus, o Homem goza da faculdade de se elevar ao modelo divino para se tornar, ele mesmo, divino e microtheos. Mas ele também podia recusar, até mesmo desobedecer e revoltar-se sem nenhuma ingerência do Altíssimo. Quando Cristo convida os Seus discípulos a seguí-l’O, deixa-os absolutamente livres na sua escolha: aceitar ou recusar. Assim o Evangelho não se impõe, de forma alguma, a este ser livre que é o homem. Esta liberdade de opção é atestada por S. Basílio o Grande, a propósito do batismo (De Spirit. Sanct. Pág. 32,117). Vamos ainda mais longe, o Homem pode ignorar, desprezar e até mesmo negar o seu Criador. Deus tolera o endurecimento no mal, a incredulidade, o de-
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sespero, o ateísmo. A negação de Deus está prevista da economia da Salvação e longe de lhe responder com o ódio, respondeu com a misericórdia. No calvário, Cristo orou por aqueles que O crucificavam e por Israel. A Sua compaixão é sem limite, ultrapassa qualquer expectativa humana. O senhorio de Deus pode ser recusado pela criatura, a liberdade religiosa permanece para o Criador o valor mais sagrado.
2. A liberdade do homem é violada pelo homem Assim Deus considera que a liberdade humana é ilimitada. Mas para o Homem ela deve ter limites. Não os reconhecer conduz ao autodeterminismo. Se o Homem é um ser eleito pelo seu Criador para uma dignidade quase divina, ele é, ao mesmo tempo, certamente, um ser decaído, imperfeito, sob o pecado. O seu julgamento não encerra todos os elementos que levariam à escolha perfeita. A sua consciência sofre os males da sua queda. Ele tem necessidade da assistência contínua que o Espírito Santo lhe concede através da Igreja. A incorporação do cristão na Igreja não tem outro significado do que a de uma ajuda, de um apoio paternal nas diversas fases da sua vida espiritual. A liberdade de um indivíduo reveste-se de uma forma diferente quando este se integra num grupo, quando vive numa comunidade. Neste sentido, as epístolas de São Paulo são ricas em ordenanças, preceitos, exortações. Uma liberdade mal controlada e não disciplinada corre o risco de destruir a autêntica liberdade do homem. Quanto mais nos alegramos por sermos “livres” mais devemos tomar consciência da nossa responsabilidade. Quando “faço o que quero”, a minha liberdade não é mais do que aparente; São Paulo demonstrou claramente que quando faço isso, acabo na hipocrisia. O Homem não pode, por si mesmo, permanecer livre. Ele é libertado por Cristo que lhe oferece os meios de salvaguardar esta liberdade. Afastemos portanto, do nosso espírito esta deformação de uma liberdade prisioneira. Infelizmente constatamos hoje que o indivíduo se destaca completamente da comunidade; é preciso procurar a razão desta deslocação da liberdade. A dispersão da vida é um fenómeno alarmante. Muitos não se ligam a nada, são os isolados, outros anónimos, virados para si próprios. Nómadas, desenraizados. Cada um deles se esforça por todos os meios para permanecer desconhecido, “livre”, um pássaro sem ninho e sem ligação; recusam precisamente, pertencer a um grupo determinado, para viver a seu belo prazer, rejeitam qualquer responsabilidade, descartam qualquer envolvimento. Com este objetivo aparecem algumas vezes alguns celibatários que vivem à margem da comunidade humana para escapar às obrigações familiares.
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Assim, Deus respeita a liberdade que Ele desejou para o homem. Desde logo, a Igreja não pode conceder a liberdade através de tal ou tal decisão, e menos ainda pretendendo agir com generosidade! Esta liberdade foi dada à Igreja desde o começo. Não lhe cabe suprimi-la, nem controlá-la. Ela permanece inviolavelmente ligada ao seu ser, confirmada nos Decretos conciliares (ver os Cánones 6 do Concílio de Neocesareia e 8 do VII Concílio Ecuménico de Constantinopla, sobre o assunto da admissão ao batismo ou da entrada na Igreja de um herético ou de cismático em virtude de uma pressão exercida). Contudo, no decurso dos séculos, a Igreja afastar-se-á do exemplo divino. À medida que se desenvolvia, foram impostas restrições institucionalizadas que marcaram diferentes etapas. As frequentes acusações feitas contra a Igreja nem sempre devem ser imputadas à calúnia. As cartas encíclicas do passado esclarecem suficientemente o historiador sobre a estreiteza de vistas para com a imprensa, a expressão do pensamento entre os intelectuais: Decreto Romani Pontificis Providentia (1572) por Pio V. O seu sucessor, Gregório XIII na sua bula Ea est reforça ainda as sanções contra as publicações não censuradas. Sisto V, em 1587 ordena que o responsável de uma edição, ainda que modesta, tenha uma mão cortada e a língua arrancada. Teresa d’Avila conta, na sua autobiografia quanto sofreu por causa do Index redigido pelo Inquisidor-mor Don Fernando de Valdes. Outros papas tiveram a mesma atitude: Alexandre VI, bula Inter multíplices (1501), Leão X, Inter sollicitudines (1515), Pio VI, Quod Aliquantum (1791), Gregório XVI, encíclica Mirari vos. Foi apenas com Leão XIII e Bento XV que começa a concessão de uma liberdade de expressão, ainda que um recuo tenha sido marcado mais tarde pelas encíclicas Immortale Dei (1851) e Libertas Praestantissimum (1888) de Leão XIII. Vivemos numa sociedade pluralista, gozando de grandes facilidades de comunicação e de interpenetração, em que todas as confissões, as seitas e as ideologias poderem ser praticadas abertamente. Seria utópico guerrear contra tudo o que não sejam as nossas próprias convicções, através de restrições e do recurso ao poder secular. Torna-se cada vez mais difícil desviar o fiel do proselitismo de uma outra religião. Dirigem-se-lhe não apenas através da imprensa e da rádio, mas mais ainda por meio de contactos pessoais, profissionais. Não parece que as pessoas mais expostas a esta penetração pluralista – citamos os Estados Unidos – sucumba à irreligião, à indiferença ou à atividade do proselitismo. Contudo, ninguém aceitará que os fiéis sejam um epifenómeno passivo, que não sofram de uma real influência. O
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remédio não consiste, em todos os casos, em decretar e em aplicar medidas restritivas. O público deve, pelo contrário, iniciar-se nas ideias e nos pensamentos de outras conceções religiosas, sem contudo cair na confusão e no sincretismo; a estrutura no nosso mundo moderno aproxima-nos uns dos outros muito mais facilmente do que no passado. Os fiéis não serão considerados como um bloco monolítico e fixo. Eles são uma realidade fluída e móvel. Eles têm por vocação uma capacidade de julgar, de discernir e de dialogar num espírito ecuménico, desprovido de fanatismo. A sua colaboração é indispensável nos domínios práticos para conservar e consolidar a paz, para favorecer as relações amigáveis em todos os setores da vida humana. Eles adaptar-se-ão mais facilmente às aspirações do mundo moderno e às outras confissões se se esforçarem por compreender melhor a sua fé e por rejeitar, com um espírito generoso, todos os preconceitos. Nenhuma Igreja se pode cristalizar no estatismo e no conformismo. As agitações do nosso século exigem uma nova confrontação e uma renovada interpretação da liberdade religiosa. Longe de atribuir ao Estado um carater sacrossanto, a Igreja deve defender-se pelo seu reflexo e a sua própria força espiritual. […]
3. A liberdade do homem e a verdade revelada A atitude defensiva da Igreja primitiva explica-se facilmente. A sua posição ainda frágil num mundo pagão, obrigava os bispos a aconselhar prudência e a restringir as relações com os heréticos. Nessa atitude seguiam o exemplo de S. João evangelista; este apóstolo da caridade recomenda, com efeito, aos fiéis que não tenham nenhuma comunicação com os dissidentes (II João 10,11). Contudo, impõe-se clarificar um ponto. Se é verdade que os autores cristãos se opunham severamente às heresias, por ser uma deformação da Verdade, um afastamento do ensino apostólico, mostram-se, contudo, caridosos para com os heréticos. São João Crisóstomo não aprova, de forma alguma, a hostilidade para com eles. Pelo contrário ele exorta os ortodoxos a manifestarem uma grande compreensão e a ter sincera compaixão por aqueles que, por uma razão, ou por outra, abandonaram a doutrina da Igreja. As perseguições, como as medidas excessivas tomadas contra os heréticos provinham, sobretudo, do poder secular. O Império não tolerava que a paz e a ordem fossem perturbadas por doutrinas
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em conflito com a Igreja estabelecida e protegida pelo Estado. Tal foi a conceção constantiniana. Os heréticos, e sobretudo os heresiarcas, são considerados não só como adversários da Igreja, mas também como inimigos do Estado. Na sua carta às diaconisas, filhas do conde Térence (cerca de 372), são Basílio de Cesareia retrata-as como intrépidas lutadoras permanecendo fora dos ataques da heresia de Ario. Contudo, insiste, “elas devem fugir de qualquer comunhão com os arianos e evitar toda a relação com eles, como coisa prejudicial às almas…” (Epíst. C.V. 34). Numa carta, dirigida aos padres de Tarso (372), S. Basílio demora-se sobre o triste estado em que a Igreja então se encontrava. Ele é favorável à união com os heréticos. Mas opõe-se a qualquer concessão sobre a fé…: “A união far-se-á se nós quisermos descer à condição dos mais fracos, sobre os pontos em que não causemos nenhum prejuízo às nossas almas” (Epist. CXIII). Já no ano precedente Basílio tinha dirigido a um dos seus parentes, Artabios, bispo de Neocesareia, um profundo apelo em favor de uma ação rápida e solidária. Qualquer demora arriscava-se a agravar a segurança de toda a Igreja: “Sabe, (escreveu ele 377) que se nós não empreendemos para as Igrejas a mesma luta que os adversários da sã doutrina travam para a sua destruição e o seu completo desaparecimento, nada impedirá a verdade de perecer derrubada pelos seus inimigos e, nós mesmos, sermos afetados pela condenação, por não termos usado todo o nosso zelo e todo o nosso ardor numa mútua harmonia e de acordo sobre as coisas de Deus, a mostrar toda a solicitude possível em favor da união das Igrejas. Peço-te, portanto, tira da tua alma este pensamento de que não tens necessidade de estar em comunhão com ninguém… o estandarte da guerra que está à nossa volta, virá até nós…” (Epist. LXV). Face aos cismáticos, aos heréticos, os Pais da Igreja apelaram à tolerância, à clemência e ao amor dos fiéis. Os primeiros merecem a nossa indulgência, porque são vítimas de circunstâncias imprevistas e difíceis de clarificar. É por isso que S. João Crisóstomo recusa o argumento invocado por alguns, a saber, que aqueles que estão no erro se encontram, por esse facto, privados da nossa caridade. Ele chama a sua atenção para a exortação de Paulo a Timóteo segundo a qual um servo de Deus não deve lutar mas ser doce para com todos. Ele é encarregado de instruir, conservando o tom da moderação, para com aqueles que resistem à verdade, para ver se Deus lhes dará o conhecimento (II Tim. 2:24,25). “Bem, comenta João Crisóstomo, direis vós, se estes são nossos inimigos, se são gentios, não devemos odiá-los? O que devemos odiar, não são os gentios. É o seu erro. Não é o Homem. É o mal que ele faz, é a sua falta. O Homem, com efeito, é obra de Deus. O erro, esse, é do demónio. Não confundamos aquilo que é de Deus e o que é
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do demónio… S. Paulo, que tanto amava a Cristo, detestava-os por isso? De forma alguma. Pelo contrário amava-os e fazia tudo por eles… É obra do demónio afastar-nos uns dos outros. Coloca todos os seus esforços para fazer desaparecer a caridade entre os Homens e a fim de nos fechar qualquer via de melhoria para manter um no seu erro, outro no ódio e de lhes fechar, dessa forma, o caminho da salvação” (Hom. XXXIII, 4,5 in Epist. I ad Corinth. Pg. 61, 282,283).
4. Uma exigência da liberdade: o respeito para com o outro O mundo atual impõe-nos, cada vez mais, a companhia de indivíduos e de grupos cuja conceção filosófica ou religiosa difere da nossa. O respeito mútuo pelas convicções do outro é uma necessidade imperiosa, que deriva do amor. Se a maior de todas as virtudes é a caridade, como poderíamos nós desprezar o pensamento religioso ou ideológico do nosso próximo, mesmo que muito longe de nós? A estrutura da sociedade é pluralista. Não existe país, ou nação com uma confissão única. Ora a atitude de um crente para com aqueles que pertencem a outras confissões é clara: não só não deve desaprovar e, menos ainda, caluniar as suas convicções, mas, pelo contrário, esforçar-se por encontrar pontos comuns entre as suas respetivas crenças. Por outro lado, o ecumenismo impõe a todos novos deveres. Não se trata de uma simples tolerância de um estilo de coexistência interconfessional, mas de procuras sinceras, animadas pelo amor, por reconhecer e revalorizar as riquezas e as tradições do outro. Vivemos grandes acontecimentos históricos. A confusão eleva-se contra a certeza, o desespero contra a esperança. A nossa geração recusa qualquer referência à História. O mundo que está perante nós não quer ou nem pode crer. Como lhe transmitir a fé? No passado seguiram-se duas rotas que, bem diametralmente opostas, oferecem as mesmas insuficiências; por um lado, olhar exclusivamente para Deus, por outro, o interesse absoluto do Homem. O primeiro método apresenta graves lacunas, o seu quietismo egocêntrico concentra a nossa atenção sobre Deus esquecendo a Sua imagem: o Homem. O segundo método é igualmente deficiente porque concede a preeminência à norma antropocêntrica, sem nenhuma relação com o Ser supremo. O nosso problema, hoje, é harmonizar a vertical com a horizontal, a teologia com a sociologia, conservando, cada uma, a sua integridade. Um outro aspeto do problema á a nossa responsabilidade perante o nosso próximo, assim como para com os heréticos ou os não crentes. Como dizia S. Paulo, irrepreensível perante os Judeus, os gregos e a Igreja de Deus (I Coríntios
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10:32). Comentando esta passagem, S. João Crisóstomo traça este belo retrato do cristão: “Nós somos a luz e o fermento, os archotes e o sal; devemos iluminar e não espalhar as trevas; devemos ser um elemento fortificador e não dissolvente; atrair os infiéis e não os pôr em fuga. Porquê perseguir aqueles que é necessário atrair?... Eis a regra do cristianismo em toda a sua perfeição; eis a definição à qual nada falta: eis o ponto mais elevado, procurar o interesse comum… Com efeito, nada nos pode tornar tão imitadores de Cristo como o nosso zelo pelo bem do próximo.” (Hom. XXV, I in Epist. I ad Corinth. pág. 61, 208). É necessário, também, prestar justiça ao esquema Libertate Religiosa que reexamina o mesmo problema na ótica do movimento ecuménico. Evidentemente, ele coloca em relevo o respeito da liberdade religiosa para todos e por todos. Já a Carta dos Direitos do Homem das Nações Unidas, a Resolução similar do Conselho Ecuménico das Igrejas tinha reafirmado o direito do Homem a praticar livremente a sua religião ou a dotar tal ou tal opinião ideológica. Perante as restrições a esta liberdade decretada em alguns países não cristãos, eles tinham tentado assegurar ao Homem as garantias indispensáveis. O esquema entra bem nesta linha impondo, aos países maioritariamente católicos, o respeito pelas convicções dos outros cristãos. Do respeito e do entendimento nascerá, esperamos, uma colaboração mais estreita para o bem comum de todos. São João Crisóstomo, que tinha estudado profundamente a solidariedade humana e o dever de todo o cristão perante os riscos comuns, desenvolve esta ideia do apoio mútuo com uma largueza de vistas espantosa. O seu ponto de partida e a doutrina do corpo místico. Ele ilustra através de um exemplo extraído da vida diária. Quando um incêndio deflagra, a proprietário da casa vizinha não pergunta a quem pertence a casa em chamas. A questão da raça, da classe social ou da convicção religiosa, não lhe coloca nenhum problema. Ele sabe que se o fogo não for rapidamente extinto, o desastre surgirá com as suas consequências, talvez, incalculáveis. “Quando sentirdes pouco interesse pelo próximo, pensai que não tendes outro meio de vos salvardes a vós mesmos, e, não deixaria de ser do vosso interesse velar pelo vosso irmão e sobre o que lhe diz respeito… (aquele que recusa), qual não será o seu castigo? O fogo avançando, aumentará sempre, queimará tudo o que têm nas vossas casas e, por não terdes querido tomar a peito ser útil ao próximo, perdereis também, aquilo que possuís. Deus, com efeito, não desejou fazer de todos os homens mais do que um conjunto único, e por isso Ele dispôs todas as coisas de tal maneira que o interesse de cada um se encontra, necessariamente, ligado ao do próximo. E é dessa forma que o mundo forma um todo quando bem organizado… Que ninguém
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procure apenas o seu interesse, se quer estar certo de o encontrar. E tenhamos todos a profunda noção de que, nem a renúncia das riquezas, nem o martírio, nem o que quer que seja, nos pode proteger, se não temos a perfeição da caridade” (Hom. XXV, 4 in Epist. I ad Corinth., pág. 61, 210-212). É nesta perspetiva que devemos considerar a questão da liberdade religiosa. Uma vez que a maior parte dos nossos irmãos, seja qual for a confissão a que pertençam, se encontra perante o mesmo problema de separar do mundo tudo o que é sagrado, estamos ligados uns aos outros, unidos por uma responsabilidade comum: opor a nossa recusa à recusa do Homem desequilibrado, edificar em conjunto a Igreja, responder de todo o coração às necessidades do mundo. Não podemos, seja por que pretexto for, deixarmo-nos sepultar num isolamento confessional, anti ecuménico. Um mundo dilacerado, um cristianismo sem unidade não nos deve deixar inativos e satisfeitos. A nossa geração desaprova, em termos indelicados, as nossas querelas históricas. Os não crentes ironizam sobre a nossa fraqueza, a nossa incapacidade de encontrar uma via de reconciliação. O sectarismo e o integrismo levantam, por vezes, obstáculos diante dos esforços realizados pelos obreiros corajosos que procuram o entendimento. O espetáculo do cristianismo de hoje não difere do designado no seu século, pelo grande patriarca de Constantinopla: “Vejo todo o corpo da Igreja espalhado pela Terra neste momento como um corpo morto. Como um corpo que acaba de ser privado de vida, vejo olhos, mãos, pés, um pescoço, uma cabeça, mas o que eu não vejo, é um membro repleto das suas funções. Mesmo aqui, todos aqueles que estão presentes têm a fé em partilha, mas não é uma fé ativa. Temos o calor vital extinto. Temos feito do corpo de Cristo, um corpo morto. Se esta palavra é espantosa, bem mais espantosa ainda é a realidade que se mostra pelos factos atuais. Nós chamamo-nos irmãos, mas as nossas ações revelam inimigos. Somos todos, pelo nome, membros uns dos outros. Mas estamos de facto divididos como animais ferozes. Não estou a expor as nossas faltas, mas o que digo a este respeito, é para vos fazer vergonha, é para vos fazer mudar de atitude” (Hom, XXVII, 4 in Epís., II ad Corinth., pág, 61, 588). Agora é o tempo de esquecer, de perdoar, que todas as Igrejas mobilizem as suas forças, teológicas e pastorais, que ensinem aos seus fiéis o sentido da mensagem deixada por Cristo ao mundo antes de Se sacrificar por ele: “Que eles sejam um”. É chegada a hora de franquear as nossas fronteiras confessionais e de assumir, com uma mentalidade diferente, e uma grande abertura de coração e de espírito, a nossa responsabilidade comum: não é o desespero ou a fuga que resolve as nossas divisões, mas a caridade. Coloquemos e guardemos sob
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os nossos olhos esta descrição ideal do Homem ecuménico traçado por S. João Crisóstomo: “Vede aqui a extrema dor que exprime esta imagem de um fogo devorador (trata-se da exclamação de S. Paulo: Quem se não enfraquece, que eu, não me enfraqueça? Eu estou na chama. O fogo consome-me: suplício atroz… o que o asfixiava, o que lhe queimava o coração, lhe dilacerava a alma era ter de sofrer tanto pelo mal de cada enfermo, fosse ele qual fosse. O seu caráter não era de se afligir com os estimados, sem cuidar daqueles que o eram menos; o ser mais abjeto ele via como um dos seus próximos. Daí as suas palavras: “Quem é fraco?”. Parecia que cuidava de toda a Igreja, tanto quanto era atormentado por cada um dos seus membros” (Hom. XXV, 2 in Apist. II ad Corinth., pág. 62, 572). Assim os pais da Igreja dão relevo ao fundamento espiritual da liberdade em relação ao interesse fraternal pelo próximo. A liberdade, não é mau repetir, é um dom, uma graça que se liberta de nós próprios e do próximo. A Igreja, fiel ao princípio da subsidiariedade, deve tender, por consequência, a impor um mínimo de obrigações, mantendo o máximo de liberdade. Segundo as vicissitudes da sua história, a Igreja coloca a ênfase tanto na liberdade, como no amor da comunidade. Duplo aspeto que apresenta contrafações da obediência transformada em servilismo ou de frouxidão da autoridade que se parecem exteriormente com a prudência. Uma cruzada das Igrejas torna-se, portanto, uma necessidade imperiosa. Tal é desde logo, o sulco traçado pelo concílio Vaticano II: esquecer o passado na reconciliação e na cooperação fraternal, com todo o Homem, mesmo os não crentes. Permaneceremos insensíveis a este apelo?
O SENTIDO DA LIBERDADE NO PENSAMENTO CATÓLICO ROMANO
A liberdade religiosa e a dignidade humana27
Monsignor Pietro Pavan28 I. Uma interpretação insustentável No decurso dos anos que se seguiram ao Concílio, e mais particularmente estes últimos tempos, uma posição doutrinária assaz corrente na tradição católica pré-conciliar, sobre o direito à liberdade religiosa, surgiu de novo à superfície. Trata-se da posição, segundo a qual, apenas aquele que está na verdade, portanto, unicamente aquele que é católico, pode ter e tem, de facto, um direito original ou natural à liberdade religiosa; assim que aquele que não é católico, se tem um direito à liberdade religiosa, não se pode tratar de um direito positivo, um direito que lhe tenha sido concedido pelo Estado para vantagem de todos; um direito concedido nos nossos dias, porque quase todos os Estados, como resultante da situação histórica que se estabeleceu no interior de cada um deles, como em relações recíprocas; um direito que poderia contudo diminuir, num futuro mais ou menos afastado, se mudanças importantes venham a acontecer na coexistência humana. Sobre este assunto, impõem-se algumas observações. É absolutamente legítimo que o Documento “Dignitatis Humanae” – assim como qualquer outro Documento do Concílio – seja escolhido pelos estudiosos, católicos romanos ou outros, para um exame aprofundado; seja para precisar o conteúdo doutrinal, com a maior clareza possível, seja para reexaminar com uma maior atenção a relação entre o conteúdo e algumas posições precedentes da Igreja 27 Artigo publicado na revista Conscience et Liberté, nº 11, 1976. 28 Cardeal italiano, Mons. Pavan foi reitor da Universidade Pontifícia de Latrão. Especialista no Concílio Vaticano II e colabora da redação de textos pontifícios como a Encíclica Pacem in Terris.
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neste domínio; seja ainda para ver se este conteúdo é suscetível de uma evolução ulterior. Isso tanto mais que o pensamento sócio-político de inspiração cristã não é um sistema fechado, mas, bem ao contrário, como se diz, um sistema aberto. É porque a Igreja – hierarquia e laicado – sob o estímulo mais ou menos pressionante da História, o submete a uma enucleação incessante através de dados sempre novos. Este pensamento é como uma semente que se torna árvore e, uma das tarefas mais difíceis e delicadas dos investigadores é distinguir, nessas novas contribuições, os elementos que seguem um irreversível passo em frente na evolução deste pensamento, elementos que estão inteiramente ligados à situação do momento em que são elaborados e que, logo que esta situação deixa de existir, também desaparecem. Por outro lado, não é difícil compreender que há também entre os investigadores católicos, pessoas que continuam a pensar (opinião puramente pessoal) que apenas aquele que professa a verdadeira religião tem, ou pode ter, naturalmente, direito à liberdade em matéria religiosa. No entanto, no exame do documento conciliar, se se parte do pressuposto de que ele não é válido senão na medida em que se situa na posição doutrinal mencionada, ou, de forma ainda mais surpreendente, se se fazem todos os esforços possíveis para demonstrar que esta posição é confirmada pelo próprio documento, é uma conclusão inaceitável pela simples razão que ela não corresponde à verdade. A Declaração “Dignitatis Humanae” é que ela é, e deve ser compreendida dando aos termos em que está constituída o sentido que eles têm na sua aceitação corrente e no contexto da própria Declaração, e isso, tanto mais que estes termos foram minuciosamente escolhidos no decurso do debate que durou longo tempo e que foi acompanhado com uma enorme atenção e um envolvimento constante por parte de numerosos Padres Conciliares. No início do processo de elaboração do Documento, estes últimos encontravam-se, muitas vezes, em posições divergentes e por vezes até, radicalmente opostos. No entanto, ao longo de todo o processo, as divergências foram-se esbatendo pouco a pouco e as oposições reduziram-se até produzir, na frase final, uma convergência de posições que se estendeu à quase totalidade dos Padres envolvidos.
II. Um Direito Universal No que diz respeito à natureza do direito à liberdade religiosa, não há dúvida que, tal como ela é definida e proclamada no Documento do Concílio e no espírito dos Padres, é um direito que não admite distinções; ele é idêntico para todos, a saber, é um direito universal que pertence a todos os cidadãos de todas
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as sociedades civilizadas, aos católicos e aos não católicos, aos cristãos e aos não cristãos, aos crentes e aos não crentes. E é assim, porque está fundado, como veremos mais à frente, sobre elementos inerentes ao ser individual, elementos que se encontram em cada ser humano, por todo o lado e sempre. De resto, desde que este direito foi proclamado é o sentido que recebeu em todo o mundo e em todos os meios culturais; isto significa que foi acolhido não apenas como uma reafirmação por parte do Concílio, de uma posição pré-conciliar da Igreja Católica romana sobre este ponto, mas como uma nova tomada de posição no que respeita à posição perante os indivíduos das outras comunidades religiosas e de autoridades civis. Isso a despeito do facto de que quando se examina, com uma serena objetividade, este direito nos seus elementos essenciais, chega-se à conclusão de que ele não representa uma novidade no sentido absoluto na Igreja Católica Romana. Ele revela-se como uma demonstração clara de uma exigência imanente nesta tradição; ou, para exprimir esta mesma ideia em termos mais acessíveis, como um passo em frente na evolução intrínseca do pensamento sociopolítico de inspiração cristã. Trata-se de um passo irreversível, porque não está inteiramente ligado às circunstâncias históricas, se bem que sejam elas que tenham decidido os Padres conciliares a examinar este direito e a pronunciarem-se sobre o seu sentido profundo. “Além disso – declara o documento conciliar – ao tratar desta liberdade religiosa, o Sagrado Concílio pretende desenvolver a doutrina dos últimos Pontífices acerca dos direitos invioláveis da pessoa humana e da ordem jurídica da Sociedade” (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 502).
III. A dignidade da pessoa, fundamento do direito Um outro elemento afirmando a universalidade do direito proclamado na Declaração do Concílio “Dignitatis humanae”, é fornecido pelo seu fundamento, que é a dignidade do ser humano. Precisemos, desde já, que, neste documento, a dignidade da pessoa não é entendida no sentido moral, a saber, a dignidade que deriva da retidão da sua consciência e da honestidade das suas ações. O que significaria que a existência deste direito é condicionada pelas ações corretas e honestas dos homens e que este direito se enfraqueceria se esta forma de agir cessasse. Não se poderia então, considerar como um direito universal; ou seria necessário tomar a palavra “universal” no sentido de condicionada e problemática, o que seria um
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sentido não habitual e equívoco e, de forma alguma, no estilo dos documentos do Concílio. O direito à liberdade religiosa proclamada pelo Concílio é um direito fundamental da pessoa, um direito que cada cidadão possui como pessoa e que o Estado deve, portanto, reconhecer. Este não é um direito que o Estado tenha concedido a uma pessoa na qualidade de cidadão ou membro desta sociedade particular. “Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa – é declarado no documento do Concílio – deve ser reconhecido na ordem jurídica da sociedade, de tal forma, que se torne um direito civil” (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 502/3). Trata-se, portanto, de um direito universal. E é, no seu significado, evidente; é universal no sentido absoluto e apodítico, como ressalta também da afirmação que se baseia na dignidade da pessoa, assim como é entendida no próprio documento, isto é, ontologicamente. É a dignidade que pertence a toda a pessoa em virtude da sua própria natureza ou¸ desta realidade humana que existe, isto é, em virtude de elementos inerentes ao seu ser existencial dotado de inteligência e de liberdade. É a dignidade que todo o ser humano possui em todo o lado e sempre, pelo simples facto de que existe como pessoa e não porque se trata corretamente do ponto de vista moral. É a dignidade que deriva e que depende do seu ser e não da sua maneira de agir que pode ser, de tal forma correta, que corresponde à verdade objetiva, ou tão correta que é fruto de uma consciência ferida de uma ignorância invencível. No documento do Concílio examinam-se explicitamente três elementos que constituem a dignidade da pessoa humana no sentido ontológico. Estes três elementos são: A responsabilidade à qual ninguém se pode subtrair no estabelecimento das suas relações com Deus ou na decisão do seu destino eterno; A dependência imediata e a natureza da relação entre cada pessoa e a verdade; A identidade pessoal ou a exigência de cada pessoa em ser sempre ela própria no pensamento, no amor, na ação.
IV. Uma responsabilidade à qual não nos podemos subtrair Entre os elementos que constituem a dignidade do indivíduo no sentido ontológico, que é questionado explicitamente no documento, é necessário ter em conta, como acabámos de dizer, a responsabilidade à qual nenhum ser humano se pode subtrair quando estabelece a sua relação com Deus, isto é, quando decide do seu destino eterno. Esta é uma responsabilidade que tem de se as-
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sumir porque ela tem a sua fonte naquilo que se é por natureza, e não no que nos tornamos pelas nossas ações. É por isso que ninguém se pode substituir no estabelecimento desta relação: “Quifecit te sine te – escreveu Santo Agostinho – non te justificat sine te. Fecit nescientem, justificat volentem” (Sermão 189, 11-13; P.L. 38-823). Ora o facto de não se poder subtrair a uma responsabilidade pessoal no estabelecimento desta relação, assim como de ser árbitro insubstituível do seu próprio destino eterno, é certamente um sinal de uma grande dignidade. Contudo, esta responsabilidade não pode ser exercida senão livremente; ela implica, portanto, a exclusão de meios coercivos – particularmente em matéria religiosa – porque nesse domínio, qualquer atitude assumida ou ação praticada quando se é forçado a assumir ou a praticar não tem nenhum valor, bem pelo contrário: ela não tem nenhum sentido e não é agradável a Deus. É, com efeito, especificado no documento: “Certamente, Deus chama o Homem a serví-l’O em espírito e verdade; pelo que estes ficam obrigados em consciência, mas não por coação (a palavra não está sublinhada no texto). É que Deus tem em conta a dignidade da pessoa humana por Ele criada e que deve reger-se por determinação própria e gozar de liberdade. Isso manifestou-se sobremaneira em Cristo Jesus, em quem Deus Se manifestou perfeitamente a Si mesmo e deu a conhecer os Seus desígnios” (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 509).
V. O imediatismo e a natureza da relação entre a pessoa e a verdade Um segundo elemento constitutivo da dignidade humana, sempre no sentido teológico, é formado pelo imediatismo e pela natureza da relação entre a pessoa humana e a verdade. Este elemento é tratado inextenso no segundo parágrafo do artigo 2 da Declaração do Concílio. Este artigo precisa que os seres humanos, inteligentes e livres por natureza e, por consequência, providos de uma responsabilidade pessoal nas suas ações, não podem subtrair-se à exigência e ao dever de procurar a verdade, e, em primeiro lugar, o que diz respeito à religião, de aderir a esta verdade à medida que a encontram e de conformar toda a sua vida com a luz e segundo as exigências da verdade descoberta ou, como se diz, de traduzir a verdade em ações. Conhecer, amar, agir são as três etapas que permitem aos seres humanos desenvolver-se e aperfeiçoar-se como pessoas. Contudo, a verdade não pode ser descoberta senão à luz da verdade: no conhecimento, a força que provém do exterior não pode tomar o lugar de evidência interior
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“…a verdade não se impõe de outro modo senão pela força dessa mesma verdade que penetra nas almas ao mesmo tempo suave e fortemente”. (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 502). A adesão total à verdade exige um ato de amor que apenas pode ser cumprido livremente; e a harmonização da vida, em todas as suas manifestações com a verdade conhecida, não tem valor humano senão se for cumprida não sob o efeito de pressões constrangedoras do ambiente, mas na sequência de decisões pessoais. É fácil de compreender quanto tudo isso exige que os seres humanos sejam isentos de coerção na sua vida social, para estabelecerem as suas relações multiformes com a verdade. É uma exigência enraizada na própria natureza destas relações independentemente da forma como cada um as estabelece. Assim – pode ler-se no parágrafo citado – o direito à imunidade perante qualquer pressão contínua a persistir mesmo que se abuse dela; no entanto, o seu exercício pode ser limitado ou impedido se, por um abuso, se altera a ordem pública como o notifica o nº 7 da Declaração. “Todos os homens, segundo a sua dignidade, uma vez que são pessoas, isto é, seres dotados de razão e vontade livre e, por isso mesmo, de responsabilidade pessoal, são impelidos por sua própria natureza e obrigados moralmente a procurar a verdade, antes de mais a que se refere a religião. Têm também a obrigação de aderir à verdade conhecida e ordenar toda a sua vida segundo as exigências da verdade. Mas os homens não podem satisfazer esta obrigação psicológica e ao mesmo tempo a imunidade de coação externa. Portanto, o direito à liberdade religiosa não se funda nas disposições subjetivas da pessoa, mas na sua própria natureza. Pelo que o direito a esta imunidade permanece também naqueles que não satisfazem a obrigação de procurar a verdade e aderir a ela; e o seu exercício não pode ser impedido desde que se guarde a devida ordem pública.” (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 503.) O imediatismo e a natureza da relação entre a pessoa humana e a verdade se bem que impliquem, como temos constatado, a exclusão dos meios coercivos a fim de que esta relação possa ser corretamente estabelecida, revelam, também, a grandeza do ser humano que exige abrir-se à verdade, à luz da verdade e que progrida sem cessar no conhecimento da verdade até que chegue a abrir-se diretamente sobre a Verdade que é o próprio Deus, Aquele que “fez penetrar nas suas narinas um sopro de vida” (Génesis 2:7): “Tu fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração não estará tranquilo se não repousar em Ti” (Santo Agostinho, Confissões, 1).
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VI. A identidade ou a exigência da pessoa ser sempre ela própria A identidade do ser humano, isto é, o facto de ser ele próprio no pensamento, no querer e na ação, é uma exigência objetiva da sua própria dignidade, sentido mais profundamente no nosso tempo. Pensar, querer, agir são as três etapas pelas quais, como vimos, a pessoa se exprime e se desenvolve, isto é, que ela exprime e desenvolve a sua humanidade. No entanto, estas três etapas encadeiam-se naturalmente, e cria-se, entre elas, uma relação de continuidade. Cada etapa é, em suma, o desenvolvimento da outra; as faíscas da verdade que o pensamento faz brilhar na alma, fazem nascer nela impulsos de amor; e no meio desses impulsos elas se traduzem ou se concretizam na ação. Eis porque quebrar esta continuidade (em todos os domínios da vida, mas sobretudo no da religião) obrigando a pessoa a agir de forma contrária ao seu pensamento e à sua vontade ou impedindo de agir de acordo com eles, equivale a violar um dos direitos fundamentais: o direito de não ser forçado a trair-se a si mesmo; e o de não ser impedido de ser sempre ele mesmo – no pensamento, na vontade e na ação – isto é, de não ser impedido de manifestar a sua existência através da sua ação, por crescer na sua humanidade. Apenas um abuso eventual deste direito pode justificar a suspensão do seu exercício, por parte do poder civil, para salvaguardar a ordem pública. É contudo evidente que a suspensão do exercício de um direito não arrasta a sua eliminação “O homem percebe e conhece os ditames da lei divina por meio da sua consciência, a qual ele tem de seguir fielmente em toda a sua atividade para chegar a Deus, seu fim último. Portanto, não deve ser forçado a agir contra a sua consciência. Mas também se não deve impedir que proceda de acordo com ela, principalmente em matéria religiosa. Porque o exercício da religião, por sua própria índole, consiste, primeiro que tudo, em atos internos, voluntários e livres, pelos quais o homem se ordena diretamente para Deus; e atos deste género não podem ser impostos nem impedidos por um poder meramente humano. Por outro lado, a própria natureza social do homem exige que este manifeste externamente os atos internos da religião, comunique com outros em matéria religiosa e professe a sua religião de modo comunitário. É, pois, injúria à pessoa humana e à própria ordem por Deus estabelecida ao homem, negar a este o livre exercício da religião na sociedade, desde que se conserve a devida ordem pública.” (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 503/4).
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VII. Caráter negativo do direito e dignidade da pessoa A universalidade do direito à liberdade religiosa proclamada no documento do Concílio ressalta igualmente do caráter negativo do seu objeto ou conteúdo, que é a imunidade da violência no duplo significado: não ser forçado a agir contra a sua própria consciência, em matéria religiosa, e não ser impedido de agir de acordo com ela: “Tal liberdade consiste em que todos os homens devem estar imunes de coação, quer da parte de pessoas particulares, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano, de tal maneira que em matéria religiosa ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de atuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado a outros dentro dos devidos limites”. (Vaticano II, Documentos Conciliares, 2ª edição, 1967, União Gráfica, pág. 502) No início da elaboração do documento do Concílio, muitos Padres estavam inclinados a pensar que o objeto do direito da liberdade religiosa era o conteúdo das diferentes religiões ou a faculdade de cada um, reconhecido e salvaguardado juridicamente, professar a sua própria religião; foi por isso que os Padres hesitaram, com razão, em reconhecer este direito como um direito universal. Com efeito, suponhamos que uma religião não seja verdadeira, ou que contenha elementos não verídicos, aquele que a professa contribui para difundir o erro; ora a difusão do erro é um mal que não pode constituir um objeto de um direito, e por maioria de razão objeto de um direito baseado na dignidade da pessoa humana. Contudo, no decurso da elaboração do documento, e particularmente a partir da terceira versão, a posição dos Padres já não tinha nenhum fundamento; porque já nessa versão se afirmava, claramente, que o objeto do direito é a não existência de qualquer pressão no duplo sentido mencionado acima. A imunidade de qualquer pressão ou exclusão de meios de coerção no desenvolvimento de relações de coexistência no setor delicado da vida religiosa, é, sem qualquer dúvida, um critério universalmente válido porque responde, plenamente, à dignidade da pessoa; mais do que isso, é um critério exigido por esta dignidade. Com efeito, as relações de coexistência humana – em todos os setores, mas por maioria de razões no da vida religiosa – não devem, por via de regra, ser governados pela força; devem ser conciliados à luz da razão, pelo método da persuasão e com a maior participação possível dos cidadãos para realizar o bem de cada um e de todos, num envolvimento consciente e responsável.
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No que diz respeito à questão do caráter negativo do direito, não têm faltado aqueles que têm manifestado a sua deceção, porque pensam que um direito de conteúdo puramente negativo tem muito pouca incidência sobre a vida religiosa: a esta opinião falta, contudo, um fundamento sólido. Sobre este assunto é oportuno fazer algumas observações. Em primeiro lugar: é verdade que hoje o direito à liberdade religiosa é afirmado na organização jurídica de quase todas as sociedades civis (ver Pietro Pavan, Libertá Religiosa e Publici Poteri, Milão, 1965); uma outra opinião assaz espalhada, mesmo se não é partilhada por todos, (ver Pio Fedele, La Liberta Religiosa, Milão, 1963) pretende que este direito contém, em geral, um elemento negativo. De todas as partes do mundo, foi colocada à hierarquia da Igreja Católica Romana, reunida em Concílio, a seguinte questão: O que pensa a Igreja Católica deste direito? A Declaração de Concílio “Dignitatis humanae” é a resposta, e a hierarquia católica pronuncia-se a favor deste direito. Contudo, para evitar qualquer mal-entendido ela precisa os elementos constitutivos: 1) É um direito universal: 2) baseia-se na dignidade da pessoa no sentido ontológico; 3) o seu objeto, ou conteúdo, é essencialmente negativo. Estes três elementos devem ser considerados simultaneamente no seu conjunto, porque existe entre eles uma relação intrínseca em virtude da qual eles se ligam entre si, e explicam-se e justificam-se reciprocamente. Assim, é apenas tendo em conta esta relação que o documento do Concílio “Dignitatis humanae” se revela estar bem ajustado internamente e igualmente válido para os católicos do ponto de vista doutrinário, caso contrário não se consegue o encadeamento interior das diferentes partes e o documento arrisca-se a parecer pouco claro e até mesmo pouco consistente no domínio da doutrina. Mas, é necessário de imediato observar, e é esta a segunda observação, não é pelo facto de o direito à liberdade, proclamado pelo Concílio, apresentar um conteúdo negativo que perde a sua importância; pelo contrário, é precisamente por causa do seu conteúdo negativo que esse direito se baseia num pressuposto que se revela de um enorme valor. A condição prévia é que por este direito é reconhecido aos seres humanos, como pessoas, dentro de uma zona reservada no seio da qual eles são chamados, por natureza, e obrigados, por dever, a agir por sua própria iniciativa e de forma responsável. Uma das mais fortes razões de ser deste direito é justamente que a intangibilidade desta zona se encontra garantida pelas autoridades civis; este é um espaço em que se abre uma perspetiva transcendente para os seres humanos, um laço em que Cristo lança uma luz viva
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e inextinguível, e é aí que se tem começado a ver uma maior claridade, desde que o cristianismo se inseriu na história da família humana. Por outro lado, o conteúdo negativo do direito à liberdade religiosa – assim como o conteúdo negativo de não importa que outro direito original ou natural se relacione com os valores do espírito – revela e exalta a dignidade da pessoa porque é igualmente uma relação intrínseca e vital com o modelo do Estado que surgiu no mundo da cultura e da realidade jurídico-política das sociedades civis da época moderna, isto é, com o modelo de Estado de Direito democrático social. Não há dúvida que este tipo de Estado, tira, historicamente, a sua existência desde logo de uma maior consciência da sua própria dignidade que os seres humanos adquiriram na época moderna. Esta consciência tornou intolerável o Estado absoluto que existia na época pré-moderna – um Estado que em matéria de religião tinha adotado o critério “cuius regio eius et religio”, pelo menos na Europa – levou-os a criar um Estado cuja principal tarefa consistia em assegurar-lhe uma liberdade de movimentos no mundo dos valores espirituais, assim como contribuir para a criação de um ambiente social em que pudessem encontrar os meios necessários para um desenvolvimento integral do seu ser. Na Encíclica “Pacem in Terris” o Estado organizado segundo o Direito democrático social é definido como segue, no que concerne à sua génese histórica, a sua estrutura e o seu funcionamento relativamente à dignidade dos cidadãos: “Na organização jurídica das Comunidades políticas na época moderna, nota-se, desde logo, uma tendência para redigir em fórmulas claras e concisas uma carta dos direitos fundamentais do Homem: uma carta que é muitas vezes inserida nas Constituições ou torna-se parte integrante delas. Em segundo lugar, tende-se a fixar nestas Constituições, em termos jurídicos, o modo de designação dos mandatários públicos, as suas relações recíprocas, o âmbito das suas competências e, por fim, os meios e modos em que são obrigados a observar na sua gestão. Estabelece-se por fim, em termos de direitos e de deveres, quais são as relações entre cidadãos e poderes públicos; e concede-se à autoridade o papel primordial de reconhecer e de respeitar os direitos e deveres dos cidadãos, de assumir a conciliação recíproca, a defesa e o desenvolvimento. Pode, por certo, admitir-se a teoria segundo a qual apenas a vontade dos homens – indivíduos e grupos sociais – seria a única e primeira fonte donde emanarão os direitos e deveres dos cidadãos e donde derivam a força obrigatória das Constituições e a autoridade dos Poderes públicos.
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Contudo, as tendências que acabámos de revelar provam-no suficientemente: os homens do nosso tempo têm adquirido uma consciência mais viva da sua dignidade, o que os leva a tomar uma parte ativa nos assuntos públicos e a exigir que as estipulações do Direito Positivo dos Estados garantam a inviolabilidade dos seus direitos pessoais. Eles exigem, por outro lado, que os governos não acedam ao poder senão segundo um procedimento definido pelas leis e não exerçam a sua autoridade senão dentro dos limites desta”. (in Pacem in Terris nº 32.) Para terminar é oportuno notar que o exercício da liberdade como um direito, tal como é proclamada pelo Concílio Vaticano II, está subordinada ao exercício da liberdade como dever e ao exercício da liberdade como amor. Conclui-se que atingiu diretamente aquele que acredita que este direito encontra o seu fundamento mais sólido na resposta que Cristo deu ao doutor da lei que lhe perguntou: “Mestre, qual é o grande mandamento da lei?” E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo semelhante a este é: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas”. (Mateus 22:37-40)
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O PENSAMENTO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO PENSAMENTO ADVENTISTA
A dignidade humana baseada na criação do homem à imagem de Deus: um argumento legítimo em favor da paz entre os homens – Parte I Ganoune Diop29 I. Introdução Aventurarmo-nos a compreender a natureza do ser humano é uma das tarefas mais fascinantes, mais complexas e mais difíceis que existem. As dificuldades são muitas. Os humanos não são apenas seres políticos regidos pelas regras do Estado, nem simples seres sociais ligados aos seus deveres cívicos, nem mesmo simples seres bioéticos ou racionais dotados de traços evidentes que os distinguem de outras entidades do mundo natural. Os humanos são irredutíveis nestes aspetos indispensáveis da personalidade. Somos fundamentalmente dotados de uma dimensão espiritual, que faz 29 O professor Ganoune Diop é o diretor adjunto do departamento de assuntos públicos e da liberdade religiosa (PARL) da Conferência Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia e representa a Igreja junto das Nações Unidas em Genebra e em Nova Iorque. Ganoune Diop é igualmente secretário-geral adjunto da Associação Internacional para a Liberdade Religiosa (IRLA) e trabalha bastante para favorecer a mútua compreensão entre as tradições religiosas cristãs e outras religiões e filosofias do mundo. Ele treina, regularmente, lideres no reforço das capacidades em matéria de paz, de justiça e de direitos humanos: os pilares da Organização das Nações Unidas. É redator chefe do Relatório mundial sobre a liberdade de religião ou de convicção e redator chefe de Fides et Libertas. É ainda titular de um doutoramento em Antigo Testamento da Universidade de Andrews, nos Estados Unidos, e candidato ao doutoramento em Novo Testamento pela Universidade de Paris.
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de cada pessoa um mistério semelhante Àquele que, de acordo com as Escrituras judeo-cristãs, criou os humanos à Sua imagem e semelhança. A abertura à transcendência faz parte daquilo que são os seres humanos. Vivemos de símbolos e de rituais. Apenas a matéria, não pode contar toda a nossa história. Nada surpreende que o materialismo não responda à sede existencial nem à busca de sentido para a vida. Ele não pode, por si mesmo, conseguir toda a prova do valor do ser humano. Há em nós muito mais do que isto. Apesar das tentativas de explicar a natureza humana, como sendo puramente de categoria materialista, ou através das lentes de uma “conceção materialista da consciência”, com o cérebro sendo considerado como uma espécie de “sistema de cálculo programado”, os humanos não podem ser reduzidos mecanismos orgânicos com cérebros programados de forma simplesmente biológica. Há muito mais do que isso na natureza humana. Este artigo propõe-se mostrar a importância de considerar a dignidade humana, através das lentes da criação “à imagem de Deus”, como a pedra angular do valor de cada pessoa. Além disso, este valor intrínseco, ou axiomático, da dignidade humana é essencial para a necessidade de liberdade, de todas as liberdades, e, especialmente, a liberdade de religião ou de convicção. Esta é devida ao lugar único ocupado pela liberdade de religião ou de convicção. Esta liberdade não é apenas uma liberdade fundamental ou mesmo uma liberdade primeira, como a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos; ela está também ligada a todas as outras liberdades, principalmente por causa da sua relação intrínseca com a dignidade humana. A comunidade internacional realizou avanços consideráveis e significativos elaborando instrumentos importantes para promover uma cultura de respeito pelos direitos do Homem à escala mundial. Com efeito, não faltam convenções, acordos, pactos e tratados internacionais (tratados bilaterais, multilaterais e multi-bilaterais) que mostram a importância dos direitos humanos em geral e da liberdade de religião ou de convicção em particular. No entanto, resta ainda uma questão a reexaminar: quais são os fundamentos dos direitos do Homem? Em que base devemos justificar a defesa da liberdade de religião ou de convicção? O presente artigo procura valorizar argumentos em favor do respeito pela dignidade humana como sendo fundamental para a promoção dos direitos do Homem e para favorecer relações pacíficas entre indivíduos e entre comunidades. A. Os valores do mundo e a dignidade humana O conceito da dignidade humana está presente nos textos importantes de tratados e de pactos internacionais; encontram-se nos pilares sobre os quais
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repousa a Organização das Nações Unidas, na qualidade de liberdade de viver na dignidade. O espaço apropriado para medir o que tem maior importância para os humanos de todo o mundo é o fórum dos pilares da ONU. Esses três pilares são os seguintes: 1) a paz e a segurança, 2) a justiça e o desenvolvimento, 3) os direitos do Homem em termos de liberdade individual, de igualdade das pessoas e de dignidade humana. A noção de liberdade individual pode, por outro lado, ser alargada para incluir a liberdade de não ter falta de nada, a liberdade de não ter medo e a liberdade de viver em dignidade. As violações de um qualquer destes pilares conduz ao atentado da dignidade dos seres humanos, minam as suas oportunidades de viver decentemente e privam-nos desta possibilidade. As violações dos direitos do Homem têm um denominador comum: a ignorância, a negligência ou a recusa em aceitar e afirmar a dignidade de cada pessoa. Os objetivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD) podem também ser utilizados como indicadores daquilo que é importante para as pessoas no mundo de hoje. A sua implementação funciona, certamente, como antídoto contra os males e infelicidades da Humanidade. E o que mais preocupa as populações e as nações são, especialmente, a proteção da vida de cada indivíduo, a saúde, a educação, a igualdade, o desenvolvimento duradouro e a durabilidade do ambiente. Mas para além da justificação do reconhecimento, da defesa e da proteção dos direitos do Homem, para além da necessidade de desenvolvimento, há um aspeto da liberdade de consciência e de crença que merece ser posto em destaque. A liberdade religiosa, com efeito, possui, por essência, uma dimensão incontestável relativa ao que significa “ser um humano”. Ela repousa, fundamentalmente, sobre a dignidade humana. Ora uma das colunas que sustem o conceito de liberdade individual á, precisamente, a liberdade de viver em dignidade. “A ideia de dignidade está no primeiro plano dos documentos dos direitos do Homem. O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem começa declarando que ‘o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.’30 30 Roger Trigg, Equality, Freedom, and Religion, Oxford University Press, Oxford, 2012, p. 28.
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O conceito de dignidade humana suscitou um grande interesse nos estudos e práticas interdisciplinares. No entanto, mesmo se a família humana beneficiou da competência de inúmeras pessoas vindas de diversos domínios de especialidade – cientistas, especialista em ética, legisladores, juristas, economistas, médicos, filósofos, teólogos e outros – o facto é que, da bioética aos tribunais, as opiniões variam quanto aos fundamentos da dignidade humana. Para muitos, a questão não é apenas viver mas também de morrer “com dignidade”. O que isso significa é objeto de debates no seio dos movimentos “pró-vida”. Contudo, será a dignidade humana inerente, ou é uma virtude adquirida que depende do mérito? O problema da dignidade humana lança luz sobre as opiniões na investigação acerca das células estaminais. Deve a investigação sobre as células estaminais limitar-se a fins terapêuticos ou de reprodução? O artigo 11 da Convenção geral da UNESCO na “Declaração Universal sobre o genoma humano e os Direitos do Homem”, em 1997, declara que “as práticas que são contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem dos seres humanos com o objetivo da reprodução, não são autorizadas”.31 Numerosas discussões sobre o assunto têm sido influenciadas pela abordagem jurisprudencial. Mas, mesmo neste caso, é necessário clarificar as ideias. “Isso tem constituído um aspeto importante dos julgamentos realizados em diversos casos, e numerosos direitos, ou interesses constitucionais, têm sido adequados à dignidade humana no decurso dos últimos cinquenta e oito anos. Contudo, até hoje, ainda não se pôde ver nenhuma jurisprudência organizativa. Eis um preceito constitucional que ganha, cada vez mais importância mas que, de facto, tem-se desenvolvido tendo sido muito pouco enquadrado ou refinado. É um princípio largamente estabelecido, um pouco menos limitado que outras doutrinas. Com efeito, está, no fim de contas, estreitamente ligado a uma grande parte do nosso pensamento jurídico sobre os direitos civis e políticos e, consequentemente, é mais diversificado na base, mais amorfo na sua natureza e no seu conteúdo, mas mais universal no seu âmbito e na sua utilização, do que qualquer outro princípio constitucional.”32 31 Joe M. Kapolyo, in The Human Condition: Christian Perspectives Through African Eyes, Langham Global Library, Carlisle, Cumbria, Reino-Unido, 2013, p. 6,7. O autor defende que a Declaração da Convenção da UNESCO é “em geral a posição da maior parte da comunidade científica, e todos os países do mundo estão de acordo com esta Declaração, que interdita a realização de uma possibilidade científica se é eticamente inaceitável.” 32 Jordan J. Paust, Human Dignity as a Constitutional Right: A Jurisprudential Based Inquiry in Cri-
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Ao nível político, mesmo a noção de democracia está, na essência, dissociada da dignidade humana.33 O sofrimento, a desumanização e a exploração das populações vulneráveis e sem defesa, a avidez do lucro que, de forma sistemática e sistémica, faz com que os pobres sejam privados do mínimo vital, a forma como se servem das mulheres e das crianças, as sevícias que lhes infligem, a dessacralização do corpo humano, reduzido a um objeto de prazer e um produto descartável, tudo isso tem a mesma raiz; não se faz nenhum caso do valor e da importância infinitas de cada pessoa humana, em essência, da dignidade de cada pessoa. As divisões, as hostilidades, as lutas tribais, as rivalidades pelo controlo dos recursos aos níveis local, regional e mundial, a busca do poder para dominar os outros e utilizá-los para interesses pessoais, e as guerras que infligem uma dor e sofrimentos indizíveis a milhões de pessoas nesta Terra são todas a expressão desde mesmo e único mal: a recusa de reconhecer e de respeitar a dignidade de cada pessoa. Quando os seres humanos se deixam cair na violência e deslumbrar pelo poder, a indignidade deixa de ter limites. Eis porque é necessário instaurar não apenas uma cultura dos direitos do Homem, mas, mais profundamente, uma cultura de respeito, de promoção e de proteção da dignidade humana. Qualquer grupo de pessoas deve fazer face a este imperativo que determina, por si só, o decurso de qualquer relação. A forma como o conceito de dignidade humana e as suas consequências pela justiça e a paz podem ser integradas na própria estrutura do modo de pensar das pessoas, na sua forma de agir e de ser, na relação umas com as outras, é uma questão essencial. Ela pode, com efeito, anular numerosas disfunções no seio da sociedade. Ela contribui, sobretudo, no respeito pelo espaço comum e conduzirá, todas as pessoas de boa vontade, a participar na criação de um ambiente acolhedor no interesse de todos. O desenvolvimento para o bem do outro, a irradicação da corrupção e da sua origem, a cupidez, tornar-se-ão então numa realidade para este mundo martirizado onde, paradoxalmente, os pobres vivem no meio de riqueza e de teria and Content, The Social Science Research Network Electronic Paper Collection, University of Houston Public Law and Legal Theory Series, Nº 2012-A-2, p. 150. 33 Gabriel Ndinga, “De la dignité individuelle en Afrique”, in Dignité humaine en Afrique: Hommage à Henri De Decker, Press da UCAC, Yaoundé, Camarões, 1996, p. 81, onde o autor declara: “Tendo dito que a África tem vindo a promover novas estruturas socioculturais, pensamos que a verdadeira questão diz respeito à dignidade individual, sobre a qual é necessário refletir e que deve ser respeitada”.
A dignidade humana baseada na criação do homem à imagem de Deus: um argumento legítimo em favor da paz entre os homens
enormes recursos naturais. As riquezas do solo africano e a pobreza espalhada por esse continente são uma triste ilustração deste paradoxo. A fim de melhorar as condições de vida de milhões de pessoas através do mundo, um número impressionante de organizações e organismos empenham-se em dar a conhecer os seus direitos aos indivíduos e aos grupos. Com origem em diferentes áreas de estudos, os seus membros contribuem assim para atrair a atenção da família humana sobre os direitos, e, ao mesmo tempo, sobre os deveres e responsabilidades. Uma abordagem e uma colaboração pluridisciplinares justificam-se, com efeito, se se quer fazer face, de forma concreta, aos diversos desafios que estão ligados à questão dos direitos do Homem, os direitos das minorias e de todos os grupos da população. A chave deste processo está em revisitar os fundamentos da dignidade humana. A complexidade do nosso assunto está em relação, entre outros, com o facto de que “a dignidade não é um bem entre outros dados empíricos. (…) A dignidade é mais o motivo transcendente pelo facto de os seres humanos terem direitos e deveres”.34 Apresentar uma descrição específica do seu significado e do seu alcance pode, portanto, ser um desafio. No entanto, a larga aceitação do seu estatuto de base, no domínio legal, político, ético, social e muitos outros, coloca a dignidade humana num campo heurístico de estudo que pode contribuir para sanar as divisões, as fraturas, as descriminações e outros males que envenenam o espaço público. A dignidade humana é um direito constitucional e um preceito jurídico internacional; no entanto, não se pode subestimar a necessidade de ter em consideração outras perspetivas suscetíveis de enriquecer o debate e fazer avançar as coisas tendo em vista o melhoramento das relações humanas. O presente artigo postula que a comunidade internacional tem tudo a ganhar em promover uma cultura dos direitos do Homem tendo, especialmente, em conta, a ajuda da teologia, que tem uma colaboração particularmente importante a oferecer sobre a importância, o objetivo e a pertinência da dignidade humana como fundamento da forma como tratamos o outro. Cada religião do mundo – à sua maneira e nos seus próprios termos, de acordo com a sua própria lógica interna – aborda a questão da dignidade do Homem. É um tema que, de facto, cria uma plataforma onde um diálogo inter-religioso autêntico pode ter lugar. 34 Robert Spaemann, Love and the Dignity of Human Life: On Nature and Natural Law, Eerdmans Grand Rapids, Michigan, 2012, p. 27.
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Mas o que é mais importante, o que é absolutamente necessário conhecer, que influi no sentido da vida e determina o valor de cada pessoa, é o próprio fundamento da dignidade humana. Exegetas e teólogos têm tentado clarificar e explicar o que justifica a dignidade humana, de diferentes formas que têm uma incidência particular sobre a importância de cada pessoa e sobre as relações das pessoas entre si. O ponto de vista sobre o qual este artigo repousa é o dos escritos judeo-cristãos, em particular da Bíblia, uma vez que os seus diferentes autores apresentam argumentos – implícitos e explícitos – em favor da dignidade humana.35 O postulado é: “Desde os tempos mais recuados, o pensamento teológico na herança judeo-cristã considerou a Imago Dei (imagem de Deus) como a pedra angular do pensamento sobre a identidade dos humanos e sobre a sua relação com Deus, com os outros seres humanos e com o mundo que os envolve.”36 De Santo Agostinho a Karl Barth, passando por Tomás de Aquino e Calvino, para citar apenas alguns, célebres pensadores contribuíram para demonstrar o caráter fundamental desta questão da dignidade humana, principalmente ligada com o que se chama a Imago Dei. Todas as principais tradições cristãs têm afirmado o caráter central da dignidade humana como fundamento de uma forma de se posicionar relativamente ao valor de todas as pessoas humanas, de a tratar e de a honrar. Estas pessoas não podem ser reduzidas a objetos, nem a seres políticos, nem a simples entidades biológicas. O consenso dos pensadores de todas as tendências do cristianismo mundial revela uma unanimidade sem paralelo, exatamente perante a 35 Um estudo comparativo das religiões e filosofias do mundo não entra no quadro deste artigo. Basta notar, como conclui Behrouz Yadollahpour, que não há uma compreensão única da dignidade humana que seja unânime nos meios islâmicos: “O estudo aprofundado das exegeses e dos comentários do santo Corão indica que nenhuma teoria única sobre a dignidade humana predomina entre elas. Se bem que citem todos o mesmo texto sagrado, a questão fundamental que eles colocam sobre a natureza humana difere totalmente um do outro. Alguns defendem que esta dignidade humana concedida é intrínseca aos seres humanos de qualquer origem étnica, cor de pele, etc., e que a dignidade humana é a característica distintiva da humanidade nas aquisições da virtude. Outros, pelo contrário, não consideram a dignidade como essencial ao género humano, mas creem que à medida que a virtude e a fidelidade de qualquer aumentam, as suas exigências de dignidade aumentam também”. 2011 International Conference on Sociality and Economics Development, IPEDR, (2011), vol. 10 (2011). IACSIT Press. Singapura. 36 Philip Vinod Peacock, The Image of God for Today: Some Insights in the Imago Dei, in Created in God’s Image: From Hegemony to Partnership, editado por Patricia Sheerattan-Bisnauth & Philip Vinod Peacock, World Communion of Reformed Churches and World Council of Churches, Genebra, Suíça, 2010 p. 22.
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aceitação da revelação da Trindade entre os cristãos. O conceito da dignidade humana, repousando no facto de que todos os humanos foram criados à imagem de Deus, constitui o dom do mundo cristão ao mundo, e a melhor base sobre a qual existe uma unidade tangível entre aqueles que fazem assentar a sua antropologia no mistério e na revelação do que Deus é e de quem são aqueles que foram criados à Sua imagem. O documento do Vaticano II Dignitatis Humanae coloca, sem equívoco, a tónica sobre a natureza essencial da dignidade humana.37 As ricas tradições ortodoxas sobre a dignidade humana permitem-nos reflexões críticas sobre os escolhos de uma abordagem humanista a uma só dimensão sobre os direitos do Homem sem perspetiva cristã.38 Os autores ortodoxos têm sublinhado no contexto da antropologia negativa, que o “elemento decisivo na nossa personalidade humana é que nós fomos criados à imagem e à semelhança de Deus”.39 O documento de estudo “Faith and Order” do Conselho Mundial das Igrejas, intitulado Christian Perspectives on Theological Antropology, pode, sem qualquer dúvida, ser considerado como uma publicação marcante sobre este problema. B. Justificação de uma antropologia teocêntrica Falando do futuro da própria noção dos direitos do Homem num mundo multipolar, onde apresentam várias ideologias religiosas e laicas, John L. Allen Jr., correspondente do Vaticano para a National Catholic Reporter, insiste na necessidade de uma “teoria da lei natural e de uma antropologia teológica católicas”. O objeto desta diligência, sugere, deveria dedicar-se a uma análise da dignidade espiritual da pessoa humana mais do que sobre ideias políticas vindas das Luzest.40 A sua proposta é bem-vinda, especialmente à luz do alargamento do debate sobre a universalidade dos direitos do Homem tal com é formulada sob o prisma da racionalidade laica. Os desafios que representam os pontos de vista asiático e islâmico sobre os direitos humanos fazem, também, com que se torne 37 Ver também o documento católico romano intitulado Gaudium et Spes. 38 Ver: Arcebispo Anastasios (Yannoulatos), Facing the World: Orthodox Christian: Essays on Global Concerns, Imprensa do Seminário de Vladimir, Crestwood, Nova Iorque, 2003. 39 Metropolita Kallistos Ware, Orthodox Theology in the Twenty-First Century, Publicações do Concelho Mundial das Igrejas, Genebra, Suíça, 2012, p. 32. 40 John L. Allen Jr., The Future Church: How Ten Trends Are Revolutionizing the Chatolic Church,Crown Publishing Group, Nova Iorque, 2009, p. 445.
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útil revisitar as contribuições específicas das tradições judeo-cristãs para além das ideologias laicas.41 A maior parte das religiões, filosofias ou conceções de mundo afirmam a dignidade humana. Mas o que justifica esta dignidade é interpretada de forma diversa. Isto é devido, principalmente, ao facto de que as suas perspetivas partem de premissas diferentes. Um colóquio com representantes das religiões mundiais e das filosofias mundiais sobre o consenso urgente de apoiar a dignidade humana é uma das melhores tribunas para promover e apoiar a paz e a justiça entre os povos de boa vontade. Na segunda parte deste artigo, examinaremos os fundamentos bíblicos e teológicos da dignidade humana como justificação do conceito dos direitos do Homem. A nossa abordagem apoiar-se-á na perspetiva de uma antropologia teológica especificamente judeo-cristã.
41 Tony Evans, Human Rights in the Global Political Economy: Critical Process, Lynnie Rienner, Londres, 2011, p. 60-87.
O SENTIDO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO PENSAMENTO MUÇULMANO
Das relações antigas a um novo contexto42 Mohamed Talbi43 É necessário, desde logo, recordar que o problema da liberdade religiosa, preocupação individual e internacional, é relativamente recente. Nos tempos antigos, a questão nem sequer se punha. Durante a Antiguidade, cada um achava natural venerar as divindades da cidade. Estes últimos tinham como tarefa proteger a casa, vigiar sobre a família e sobre o Estado. À imagem dos seus adoradores, eles seguiam o curso da História. Assim, as divindades cartaginesas não podiam senão ser inimigas das de Roma. No seu contexto, a recusa em venerar as divindades da cidade era assimilada a uma atitude de deslealdade em relação ao Estado Na origem, a situação era um pouco idêntica na tradição bíblica. Com efeito, na Bíblia, Javé agia como o Deus dos Judeus. Ele não cessa de exortar o Seu povo a não venerar nenhuma outra divindade e a não obedecer senão à Sua lei. Este povo, monoteísta, é também a associação de uma entidade física – as doze tribos que descendem de Abraão por Isaque e Jacob – e de uma terra – a Palestina. A comunidade judaica é o protótipo, por excelência, da unidade: obedece simultaneamente à lei do sangue, do vínculo e da religião, o Ius sanguinis, loci et religionis. Ele constitui o exemplo tipo da comunidade étnica homogénea, baseada na religião e alicerçada num país e num Estado. De certa forma, falar de liberdade religiosa num tal caso releva-se um absurdo. Não há outra alternativa para além da de se integrar no Estado-comunidade ou de o deixar. Noutras palavras, o judeu que se converta a uma outra religião cessa ipso facto de pertencer ao seu Estado-co42 Este artigo apareceu na revista Conscience et Liberté, nº 32, 1986. 43 Professor e islamólogo tunisino e também deão da Faculdade de Letras e das Ciências Humanas da Universidade de Tunes.
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munidade. A sua conversão é então assimilada a uma traição e, como tal, passível da pena de morte44. Se considerámos a comunidade judaica como um exemplo tipo, é porque ela nos faz lembrar, em certos aspetos, a Umah islâmica clássica, tal como ela é ideada pela teologia tradicional. Por razões históricas, a situação foi completamente modificada com o aparecimento da pregação cristã. Desde o início, a palavra cristã, dissociou-se do Estado e o povo de Jesus – a comunidade judaica – rejeitou esse apelo. Jesus tinha ordenado aos Seus discípulos “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21). Mas esta tentativa revolucionária de dissociar o Estado da religião e de assegurar a liberdade de consciência foi um fracasso. O momento ainda não era oportuno. Isso explica porque é que os cristãos eram considerados, no Império romano, como desleais, uma vez que se recusavam a honrar as divindades da sua cidade e do seu grupo social, e, em consequência, foram tratados como rebeldes. O direito à autodeterminação e à liberdade religiosa foi-lhes, além disso, recusado. Para resumir esta longa história, digamos, simplesmente, que o poder e a religião têm, mais ou menos, conservado as relações que sempre tinham mantido. Na verdade, tinham grande necessidade um do outro. A intolerância do grupo social dominante manifesta-se por todo o lado através de guerras internas e externas, assim como por práticas discriminatórias mais ou menos duras. O mundo islâmico, embora relativamente tolerante, não constitui uma exceção à regra. Os direitos do Homem têm sido aí afrontados como em todo o mundo e ainda o são – se bem que mais ou menos ignorados – em certas regiões. Mas iremos ver que isso não significa que o islão autorize portanto a violação destes direitos fundamentais. Para não considerar apenas os aspetos negativos das coisas, é necessário saber que o nosso passado comum nem sempre tem sido ensombrado e em que se notam alguns períodos felizes em que reinava a tolerância, o respeito, a compreensão e o diálogo.45 É preciso, contudo, esperar pelo século XIX para ver reivindicar, claramente, o direito ao livre pensamento. O liberalismo político e os estudos filosóficos estavam então em voga e reivindicava-se tanto o livre pensamento, como o direito de não crer. Foi assim que o conceito de liberdade religiosa se tornou desafortunadamente sinónimo de secularização, de agnosticismo e de ateísmo. Consequentemente, a liberdade religiosa foi combatida 44 Ver Deuteronómio 13:2,19; Levítico 24:10-23. 45 Ver, por exemplo, R. Caspar, Les versions arabes du dialogue entre le Catholique Timothée et le Calife al-Mahdî (IIe/VIIe siècle, in Islamochristiana, Roma, 1977, III, 107-175.
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encarniçadamente. Precisamos de esquecer esta conceção errónea para abordar o assunto com toda a objetividade. É necessário, além disso, admitir que a liberdade religiosa é hoje definitivamente enraizada na nossa vida social. Desde a Declaração dos direitos do Homem em 1945, este conceito tornou-se num dos aspetos essenciais do Direito Internacional. Depois, vivemos num mundo pluralista, e esta tendência vai enfraquecer num futuro próximo. Já escrevi anteriormente46 que cada indivíduo tem o direito de ser diferente, mas que, ao mesmo tempo, o nosso planeta é já demasiado pequeno para conter todos os nossos sonhos e todas as nossas ambições. Neste novo mundo em perpétua gestação, o exclusivismo já não tem lugar. Devemos aceitar-nos mutuamente. Tal como somos. A diversidade é a lei da nossa época. Hoje, através dos mass media mais sofisticados, cada homem vive, verdadeiramente, na vizinhança de outrem. Nos países islâmicos, temos o costume, desde sempre, de viver em contacto com comunidades de confissões diferentes. Isto nem sempre tem sido fácil e alguns acontecimentos recentes dispensam comentários. Em contrapartida, somos, desde há pouco tempo, confrontados com o secularismo. Experimentamos por nossa vez, o surgimento no nosso interior, do agnosticismo e do ateísmo.47 Devemos tomar consciência da mudança impressionante que surge no seio das nossas sociedades e exercer o nosso pensamento teológico sobre este conceito totalmente novo. Mas antes de prosseguir, precisamos de definir o que é a liberdade religiosa. Não se limita ela apenas ao direito de não crer? Poder-se-á dizer que a liberdade religiosa é muito frequentemente assimilada ao ateísmo. Mas este não é senão um aspeto do problema, e, na minha opinião, um aspeto negativo. Na realidade, a liberdade religiosa, é, no seu todo, o direito de decidir, por si mesmo, sem ser submetido a pressões, sem medo e sem apreensão; é o direito de crer ou de não crer, o direito de assumir o seu próprio destino em plena consciência, o direito, seguramente, de se libertar de qualquer crença supersticiosa que se tem perpetuado desde a Idade Média, mas também o direito de desposar a religião 46 M. Talbi, Une communauté de communautés. Le droit à la différence et les voies de l’harmonie, in Islamochristiana, Roma, 1978, IV, 11. 47 Ver M Talbi, Islam et Occident. Au-delà des affrontements des ambiguïtés et des complexes, in Islamochristiana, Rome, 1981, VII, 57-77. Um inquérito sociológico realizado recentemente na Tunísia mostra que 5 % da população declara abertamente ser ateia e 15 % são indiferentes. Ver A. Hermassi, al-Mutaqqaf wa-l-faqîh, in La Revue tunisienne, 15-21, 1984, n° 8, p. 46.
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da sua escolha, de adorar e de testemunhar da sua fé em plena liberdade. Esta definição está conforme com os ensinos do Corão.
Os ensinos fundamentais do Corão Na minha opinião, a liberdade religiosa repousa essencialmente, e antes de mais, segundo o Corão, na natureza divinamente ordenada do Homem. O Homem não é um ser entre tantos outros. De todas as criaturas existentes sobre a Terra, apenas o Homem tem deveres e obrigações. É um ser excecional. Não pode ser reduzido a um simples corpo, porque o Homem é, antes de mais, um espírito, um espírito que recebeu a capacidade de conceber o Absoluto e de se elevar até Deus. Se o Homem possui este poder excecional e goza desta posição privilegiada no seio da Criação, é porque Deus “insuflou nele parte do Seu espírito” (Surata XXXII, 9)***. O Homem, seguramente, como todos os animais viventes, é matéria. O seu corpo foi criado “do barro da argila moldável” (Surata XV,28). Mas ele recebeu o Espírito. Ele tem dois aspetos: um aspeto inferior – a argila que o compõe – e um aspeto superior – o Espirito de Deus. Este aspeto superior, segundo os comentários de A. Yusuf Ali, “daria ao homem uma superioridade sobre as outras criaturas”.48 Esta posição privilegiada do homem da obra criadora é perfeitamente ilustrada no Corão pela cena em que os anjos recebem a ordem de se prostrar perante Adão (Surata XV, 29; Surata XXXVIII, 72), o protótipo celeste do Homem. Em certo sentido, e na condição de mantermos o Homem no seu lugar, como criatura, podemos dizer, como muçulmanos, e de acordo com os descendentes espirituais de Abraão, os judeus e os cristãos, que Deus o criou à Sua imagem. Um hadit, ou adágio do Profeta, se bem que posto em dúvida, permite esta declaração. Podemos, portanto, dizer, que ao nível do Espírito todos os homens são verdadeiramente iguais, quaisquer que sejam as suas aptidões e as suas capacidades físicas ou intelectuais. Eles têm o mesmo “sopro” de Deus e graças ao qual podem subir até Ele e responder ao Seu apelo com toda a liberdade. Têm, portanto, a mesma dignidade e o mesmo caráter sagrado que lhes permitem gozar equitativa e plenamente, do mesmo direito à autodeterminação sobre a Terra e além dela. Segundo o Corão, os direitos do Homem encontram a sua origem naquilo que todo o homem é por natureza, isto é, pela virtude do plano de Deus e da Sua criação. Não pode deixar de se dizer que a pedra angular de todos os direitos do Homem é constituída pela liberdade religiosa. 48 A. Yusuf Ali, The Holy Qur’ân, text translation and commentary, éd. The Islamic Foundation, Leicester (G.B.), 1975, 643, nota 1968.
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Isso é de tal modo evidente que na ótica muçulmana, que eu partilho, o Homem não é simplesmente fruto de “acaso e da necessidade.”49 A sua criação obedece a um plano e a um objetivo. Pelo “sopro” recebeu a faculdade de estar em pé de igualdade com Deus, e a sua resposta deve ser formulada livremente para ter algum significado. Os ensinos do Corão são claros: o Homem é um ser privilegiado beneficiando de favores especiais (Surata XVII,70); não foi criado sem objetivo (Surata XXIII,115); tem uma missão é o herdeiro de Deus sobre a Terra (Surata II,30). Investido por Deus de uma missão a cumprir, o seu destino é o de se Lhe juntar. “Quem faz o bem por si o faz; quem faz o mal contra si o faz. Depois ao vosso Senhor sereis restituídos.” (Surata XLV,15) É por isso que é absolutamente essencial que cada um escolha o seu caminho livremente e sem nenhum constrangimento. Cada um deveria decidir do seu próprio destino em toda a consciência. O Corão diz claramente que a força é incompatível com a religião. “Não há constrangimento na religião. A retidão distingue-se da aberração. Quem se afasta do Demónio e crê em Deus, pegou na asa mais forte, sem fenda. Deus tudo ouve, é onisciente.” (Surata II, 256). Tanto quanto eu saiba, de todos os textos trazidos à luz, apenas o Corão insiste na liberdade religiosa de uma forma bem precisa e pouco ambígua. Isso é devido ao facto de que a fé, para ser verdadeira e fiável, deve ser um ato absolutamente livre e voluntário. Convém desde logo sublinhar que o verso citado visa condenar a atitude de alguns judeus e de alguns cristãos recentemente convertidos ao islão em Medina, e desejosos de converter os seus filhos à sua nova fé.50 É, portanto, dito claramente que a fé é uma preocupação e um envolvimento individuais, e que mesmo os pais se devem abster de intervir. A própria natureza da fé, como diz clara e indiscutivelmente o texto de base do islão, deve ser um ato voluntário que tem a sua origem na convicção e na liberdade, na realidade, até mesmo Deus Se abstém de dominar o homem a ponto de o forçar a agir contra a sua vontade. Isso é também expresso claramente no Corão.51 A fé é então uma dádiva, a dádiva de Deus. O homem pode aceitá-la ou recusá-la. 49 Ver Jacques Monod, Le hasard et la nécessité, éd. du Seuil, Paris, 1970, obra na qual o célebre biólogo desenvolve um ponto de vista materialista. 50 Ver Cheikh Si Boubakeur Hamza, Le Coran, traduction nouvelle et commentaire, éd. Fayard-Denoël, Paris, 1972, I, 97, que cita Tabarî, Râzî et Ibn Kathîr. 51 Ver o Corão, XXVI, 4, e o comentário de Mahmûd Shaltût, al-Islâm’aqîdatan wa sharî’acan, 2e éd., Le Caire, p. 33. Ver igualmente A. Yusuf Ali, The Holy Qur’ân, text, translation and commentary, éd. The Islamic Foundation, Leicester (G.B.), 1975, p. 946 e nota 3140.
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Tem a faculdade de abrir o seu coração e a sua razão à dádiva de Deus. São-lhe dirigidos conselhos (hudan)52 convidando calorosamente a escutar o apelo de Deus. Deus adverte-o em termos claros e não ambíguos. Como sublinha o verso citado sobre a liberdade do homem: “A Verdade distingue-se suficientemente do Erro”. Cabe ao homem, fazer a escolha. A condição do homem – que é o resgate da sua dignidade e do seu caráter sagrado – não está desprovido de tragédia. O homem pode ser induzido em erro, pode fazer más escolhas e desviar-se do caminho correto. Numa palavra, ele pode resistir ao apelo de Deus e é sobre esta possibilidade que repousa a sua verdadeira liberdade. Mesmo o Mensageiro, cuja missão é transmitir a mensagem e o apelo de Deus, é impotente em tais circunstâncias. Ele é clara e fortemente aconselhado a respeitar a liberdade do Homem e o mistério de Deus. “Se o teu Senhor quisesse, todos os que estão na Terra teriam acreditado. Podes tu forçar os homens até que sejam crentes?”. (Surata X,99) A. Yusuf Ali, na sua tradução do Corão, começa este verso da seguinte forma: “… os homens que têm a fé não se devem impacientar ou encolerizar quando são confrontados com a incredulidade e, sobretudo, devem guardar-se da tentação de impor a sua fé a outro através de coação física, ou por qualquer outra forma de coação: pressão social ou influência exercidas através da riqueza ou de uma função, ou ainda de outras vantagens fortuitas. A fé imposta não é fé.53 A missão do Apóstolo – e por consequência a nossa – deve consistir simplesmente em advertir, a transmitir uma mensagem e admoestar sem forçar. É-lhe pedido o seguinte: “Lembra-lhes ó Muhammad, pois tu não és mais do que um conselheiro! Tu não és, de maneira alguma, um guardião para eles.” (Surata LXXXVIII, 21,22). Noutros termos, Deus fez o homem um ser verdadeira e tragicamente livre. O que Ele quer é uma resposta espontânea e submissa, com pleno conhecimento de causa e em tudo liberto ao Seu apelo; é o que a palavra islão significa. Contudo, isso não significa que devemos adotar uma atitude de abandono e de indiferença. Na verdade, devemos evitar dois males. Devemos, seguramente, abstermo-nos de intervir na vida privada de outrem, como já sublinhámos suficientemente. É tempo de acrescentar que devemos evitar de nos mostrarmos indiferentes para com todos e negligentes para com o nosso próximo. Devemos lembrar-nos que ele é o nosso vizinho. Devemos testemunhar da nossa fé e transmitir a mensagem de Deus, o que representa uma pesada tarefa. 52 Ver por exemplo o Corão, II, 38 ; III, 4 ; V, 44, 46 ; VI, 157 ; IX, 33 ; XVI, 89, 102 ; XX, 123 ; XXVII, 2 ; XXXI, 3 ; XLVIII, 28; LXI, 9. 53 A. Yusuf Ali, op. cit. p. 510, nota 1480.
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Somos muito tentados, nos nossos dias, a fecharmo-nos a nós mesmos, e a viver confortavelmente perdidos nos nossos pensamentos. Mas não é isso o que Deus quer. O respeito não é indiferença. O próprio Deus dá o exemplo. Ele está mais perto do homem “do que a sua veia jugular” (Surata L,16) e conhece melhor os nossos desejos mais caros e o que esses desejos nos “incita com sedução” (tuwaswisu) (Surata L,16). Ele conserva-Se perto de nós, fala incessantemente a cada um de nós, enche-nos de avisos e de promessas através de uma pedagogia divina adaptada às pessoas de todos os horizontes sociais e intelectuais e utilizando imagens e palavras das quais só Ele se pode servir em toda a Sua soberania. E Deus convida-nos a seguir o Seu exemplo e que nos voltemos para os nossos irmãos sem ter em conta fronteiras geográficas ou confessionais. “Ó povo Nós vos criámos a partir de um varão e de uma fémea; constituímo-vos formando povos e tribos para que vos conheçais. O mais nobre de vós perante Deus é o mais piedoso. Deus é omnisciente, está bem informado”. (Surata XLIX,13) A. Yusuf Ali comenta este verso da seguinte forma: “Este verso dirige-se ao conjunto da humanidade e não apenas aos muçulmanos, se bem que num mundo perfeito os dois sejam sinónimos. De facto, a humanidade é fruto de um casal. As tribos, raças e nações não são senão recursos práticos que permitem distinguir algumas características diferentes. Mas perante Deus, os homens são apenas um e o mais honrado é o mais piedoso.”54 Noutros termos, o homem não foi criado para ser solitário e individualista. Foi criado para viver em comunidade, estabelecer laços com outro e dialogar. Ele encontra o seu cumprimento na sua reconciliação com Deus e os outros homens. Em cada caso, devemos encontrar o meio de realizar esta dupla reconciliação sem trair Deus e sem causar prejuízo à vida provada dos outros. Para isso, devemos escutar o conselho de Deus: “Cremos no que nos foi revelado e no que vos foi revelado. O nosso Deus é o vosso Deus e são uno, e nós estamos-Lhe submetidos”. (Surata XXIX,46) Convém sublinhar que a palavra árabe utilizada neste verso e traduzida pela expressão “submeter-se” é “Musliûn” – muçulmanos. Portanto, ser um verdadeiro muçulmano significa manter um diálogo cortês com as pessoas que tenham outra fé ou ideologia, e submeter-se à vontade de Deus, devemos interessar-nos pelos nossos vizinhos. Temos deveres para com eles e não sonhos ilhas de solidão. A atitude respeitosa e cortês que o Corão nos recomenda deve estender-se, bem entendido, a toda a humanidade, aos crentes como aos não 54 A. Yusuf Ali, op. cit., p. 1407, nota 4933.
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crentes com exclusão, contudo, dos “maus” isto é daqueles que são injustos e violentos e que recorrem deliberadamente à força física ou verbal. Nesse caso, é melhor evitar o diálogo para impedir o pior. Em resumo, e depois da interpretação que tenho feito como muçulmano, é nosso dever testemunhar da nossa fé e da forma mais cortês e mais respeitosa da liberdade intrínseca e do caráter sagrado do nosso vizinho. Devemos, igualmente, estar prontos a escutar com toda a sinceridade. Devemos, como muçulmanos, recordar que um hadîth do nosso Profeta diz: “O crente está continuamente em busca de sabedoria, por todo o lado onde ela se encontra e agarrá-la”. Um outro hadîth acrescenta: “Procurai a ciência em todo o lado, mesmo se for preciso ir à China”. Enfim, pertence a Deus o julgar, porque nós, pobres que somos, apenas conhecemos uma parte das coisas. “(…) Instituímos para cada um de vós uma norma, uma lei e um caminho. Se Deus quisesse, ter-vos-ia reunido numa comunidade única, mas dividiu-vos com o fim de vos pôr à prova no que deu. Rivalizai nas boas obras! O vosso lugar de reunião, o de todos, está junto de Deus. Ele vos fará saber aquilo em que estais em discrepância”. (Surata V,48) “ Diz; Deus meu! Criador dos céus e da Terra! Sábio do oculto e do testemunhável! Tu julgarás entre os Teus servos naquilo em que divergem”. (Surata XXXIX, 46.)
Para além dos limites impostos pela teologia tradicional Se bem que todos os muçulmanos estejam ligados pelos ensinos fundamentais do Corão, a teologia muçulmana tradicional, por razões históricas, propagou-se de uma forma nem sempre conforme o espírito do Corão, isto na minha opinião. Iremos recordar brevemente a este respeito, dois casos importantes: o dos dhimmis – isto é, a situação das minorias confessionais no seio do Império islâmico durante a Idade Média – e a dos apóstatas. Comecemos pelos dhimmis.55 Desde logo, devemos sublinhar que as portas de um grande número de países foram abertas (fath) pela força ou gihâd56 55 Existe uma vasta bibliografia sobre este assunto. O artigo de Cl. Cahlen, na Encyclopedia of islam (dhimma), dá as referências mais importantes. O livro de base é sempre a obra de A. Fattal, Le statut légal des non-musulmans en pays d’Islam, Beyrouth, 1958. Ver também o artigo de B. Lewis, L’Islam et les non-musulmans, in Annales, Paris, 1980, n° 3-4, p. 784-800. A obra de Bat Yé Or, Le dhimmi, profil de l’opprimé en Orient et en Afrique du Nord, Paris, 1980, é parcial. 56 Não é inútil recordar que, de um ponto de vista muçulmano, jihâd não é nem a guerra, nem a guerra santa. Trata-se de um conceito orientalista. A palavra árabe “ jihâd” significa literalmente “esforço”. A jihâd
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– como foi o caso de Espanha – para preparar o caminho do islão, o islão em si mesmo jamais foi, por assim dizer, imposto por obrigação. Sob este ponto de vista, os ensinos do Corão funcionaram profundamente. Concederam aos dhimmis uma sólida proteção contra as formas mais insustentáveis de intolerância religiosa. Com duas ou três exceções, contidas no tempo e no espaço, os dhimmis nunca foram impedidos de seguir a religião da sua escolha, de manifestar a sua adoração ou de organizar as suas comunidades de acordo com a sua própria lei. Podemos mesmo dizer que a conquista islâmica melhorou, consideravelmente, a situação. Atravessaram longos períodos de tolerância e de real prosperidade,57 e muito frequentemente, exerceram altas funções na administração, na justiça e na economia. Mas é verdade que por vezes sofreram, aqui e ali, discriminação. As coisas começaram a degradar-se para eles durante o reinado de al-Mutawakkil (232247/847-861). A discriminação, especialmente ao nível do vestuário, manifestou-se então de uma forma abertamente humilhante. Esta opressão chegou ao seu paroxismo no Egito durante o reinado de al-Hâkim (386-411/996-1021) que não estava provavelmente são de espírito. No contexto medieval das guerras, das hostilidades e dos tratados, esta política de discriminação e de opressão aberta foi sempre encorajada ou fortemente mantida pelos teólogos. Para compreender este estado de facto, devemos lembrar-nos que isto não era uma das virtudes da época – segundo a mentalidade que reinava no mundo inteiro e no seio das comunidades – o considerar que todos os seres humanos são iguais. Como se poderia considerar como iguais a Verdade e o Erro, os verdadeiros crentes e os heréticos? Quando julgamos o passado, devemos ter sempre em conta as circunstâncias e fazer todo o possível para evitar que ressurjam as mesmas situações e os mesmos erros. Para cada caso, os ensinos fundamentais do Corão dos quais temos tentado explicar o significado profundo, fixam-nos uma linha de conduta bem clara. Eles ensinam-nos a respeitar a dignidade e a absoluta liberdade do outro. consiste em lutar para cumprir o desígnio de Deus. A sua forma extrema consiste em lutar contra as nossas más tendências naturais. São razões históricas e contingentes que deram às guerras travadas pelos muçulmanos o nome de jihâd frequentemente de forma injustificada. E impossível apresentar uma bibliografia. O livro mais recente sobre este assunto é uma tese de doutoramento de A. Morabia, La notion de jihâd dans l’Islam médiéval, des origines à al-Gazali, Universidade de Lille (França), III, 1975. Ver também M. Arkoun, M. Borrmans, e M. Arosio, L’Islam religion et société, Paris, 1982, pp. 60-62. 57 Ver S.D. Goitein, A mediterranean society, vol. I, Economic Foundations, Berkeley e Los Angeles, 1967 ; vol. II, The community, Berkeley, Los Angeles e Londres, 1971 ; vol. III, The family, Berkeley, Los Angeles e Londres, 1978. Ver, do mesmo autor Letters of Medieval Jewish Traders, Princeton, 1974.
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Num mundo em que gigantescos holocaustos têm sido perpetrados, em que os direitos do Homem ainda são ameaçados, manipulados ou francamente ignorados, os nossos teólogos muçulmanos modernos devem levantar-se contra toda a discriminação por se tratar de um crime expressamente condenado no Corão. É necessário, igualmente, examinar, contudo, o caso dos apóstatas. Nesse caso, ainda, a teologia tradicional não tem respeitado o espírito do Corão. Esta teologia tem limitado, consideravelmente, a liberdade de escolher a sua própria religião. Segundo esta teologia, se bem que a conversão ao islão se deva fazer e se faça, na realidade, sem constrangimento,58 é praticamente impossível abandonar o islão uma vez que se lhe adira. A conversão do islão a uma outra religião é considerada como uma traição, e o apóstata arrisca a pena de morte.59 A teologia tradicional repousa, na sua Constituição, por um lado sobre o precedente criado pelo primeiro califa do islão, Abû Bark (11-13/632-634) que combateu energicamente as tribos que rejeitaram a sua autoridade depois da morte do Profeta e recusavam pagar o imposto para os indigentes, assimilando assim a sua rebelião à apostasia. Por outro lado, os teólogos têm, sobretudo, colocado a ênfase no seguinte hadîth: “Qualquer que mude de religião será condenado à morte.”60 Quanto eu saiba, esta lei que condena os apóstatas à morte, nunca foi aplicada no decurso da história do islão. Ela é, sobretudo, teórica. Mas é necessário sublinhar que nos anos 70, no Egito, os islamitas quase chegaram a aplicar esta lei61 contra os coptas que, sem grande reflexão se converteram ao islão, ge58 Nas fórmulas de conversão ao islão, é mencionada de forma explícita que o convertido “escolheu o islão em total liberdade, sem constrangimento, com toda a segurança perante o perigo, e sem a menor pressão”. Ver Muhammad B. Ahmad al-Umawî al-ma’rûf bi-Ibn al-’Attâr, Kitâb al-wathâ’iq wa-l-sijillât, éd. P. Chalmeta e F. Corriente, Madrid, 1983, p. 405 ; ver igualmente p. 409, 410, 414, 415, 416. 59 Ver ‘Abd al-Rahmân al-Jazarî, Kitâb al-fiqh ‘alâ al-madhâhib al-arba’a, Beirute 1392/1972, V, 422426. Segundo os Hanbalitas, o apóstata deve ser morto imediatamente. As três outras escolas de fiqh concedem-lhe três dias para refletir, e é apenas se ele recusa retratar-se que deve ser condenado à morte. Ver também Ibn al-’Attâr (330-399/942-1009), que, comentando os atos de conversão firmados perante notários, precisa em que condições o apóstata deve ser condenado à morte (op. cit., p. 407). Assinalamos por fim a obra recente, que podemos obter, de Nu’mân’Abd al-Razzâq al-Samarrâ’î, Ahkâm al-murtadd fî al sharî’a al-islâmiya, dirâsa muqârana (as disposições aplicáveis ao apóstata conforme e lei islâmica, estudo comparativo), éd, Dâr al-ulûm, Riadh, Arábia Saudita, 1404/1983. 60 Para este hadîth, ver por exemplo Buhârî, Sahîh, éd. al-Sa’b, Cairo w.d., IX, 19 ; Abû Dâwud, Sunan, Cairo, 1952, II, 440. Ver também Buhârî, Sahîh, VIII, 201, 202, e IX, 18-20 ; Abû Dâwud, Sunan, II, 440-442. 61 Ver Mohamed Charfi, Islam et droits de l’homme, in Islamochristiana, Roma, 1983, IX, 15. Ver também Claire Prière e Olivier Carré, Islam, guerre à l’Occident ?, éd. Autrement, Paris, 1983, p. 185, onde se
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ralmente para casar com jovens muçulmanas e, em caso de isso falhar, voltaram à sua religião de origem. Alguns ateus tunisinos recentemente também foram inquietados com esta situação.62 Convém, portanto, clarificar a posição do apóstata perante o islão, se bem que se trate de um caso sobretudo teórico. Desde logo é preciso sublinhar que o hadîth sobre o qual repousa essencialmente a pena de morte, é sempre, mais ou menos, ligado, nos livros da Tradição, com a rebelião e o banditismo mais grave. Os apóstatas mortos durante a vida do Profeta ou pouco tempo depois da sua morte foram, sem exceção pessoas que, após a sua “apostasia”, voltaram as suas armas contra os muçulmanos que constituíam ainda, na época, uma comunidade pequena e vulnerável. A pena de morte aparece, portanto, nestas condições, como um ato de autodefesa num período de guerra. É sem nenhuma dúvida por este motivo que a Escola Hnafit de fiqh não condena as mulheres apóstatas à morte “porque as mulheres, contrariamente aos homens, não são feitas para a guerra”.63 Dito de outra forma, o hadîth que autoriza a pena de morte não é, no sentido próprio, mutawâtir64, e não envolve por conseguinte, ninguém segundo o sistema tradicional do hadîth. Além disso, este hadîth pode e deve ser posto em causa na perspetiva atual. Muitas coisas, na minha opinião, levam a crer que foi fabricado em todos os seus aspetos, talvez sob a influência de Levítico (24:16) e de Deuteronómio (13:2-19) – onde é exigida a lapidação dos apóstatas até à morte – se isto não é diretamente, indiretamente, por intermédio dos judeus e dos cristãos convertidos ao islão. De qualquer forma, o hadîth em questão está em desacordo com os ensinos do Corão onde não é feita, em nenhum caso, menção da pena de morte contra os apóstatas. No decurso da vida do Profeta, o caso foi apresentado válê: “ Assim em 1977, uma proposta de lei de pena de morte contra “o apóstata manifesto” foi apresentada no Parlamento. Grande problema? Uma tal lei, com efeito, tocaria especialmente os comunistas militantes. Com efeito, temos visto, que estes últimos são declarados ateus e apóstatas. Tocaria igualmente os numerosos coptas que, para se casarem com uma muçulmana ou para se divorciarem, se declaram muçulmanos, e depois retomam publicamente a sua prática religiosa copta mais tarde. “ No momento em que eu fazia a minha comunicação, estava longe de pensar que a atualidade nos iria fornecer uma trágica ilustração das disposições da Sharî’a relativas à ridda (apostasia). Mahmond Taha, enforcado em Cartum no dia 18 de janeiro de 1985 às 10 h da manhã, foi oficialmente assassinado em aplicação destas disposições, e este assassinato foi justificado por um semanário qua se intitula al Muslimûn (Os muçulmanos), da pena do Dr ‘Abd al-Halîm ‘Uways (n° da 23-29 março de 1985, p. 15). 62 Ver M. Talbi, Islam et Occident..., in Islamochristiana, Roma, 1981, VII, 68, 69. 63 A. al-Jazari, op. cit., V, 426. 64 Um hadîth é chamado mutwâtir quando é transmitido por diversas cadeias de transmissão de fontes seguras.
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rias vezes, e muitos versículos lhe fazem alusão.65 Em todos estes versículos, sem nenhuma exceção, a punição do apóstata que persiste em rejeitar o islão depois de o ter abraçado, é deixado à apreciação de Deus e reservado para o além. Em todos os casos citados no Corão e pelos comentadores tratar-se-ia de oportunistas individuais ou em grupos que, segundo as circunstâncias, regressaram ao seu passado,66 ou pessoas hesitantes atraídos pelos “adeptos do Livro” (Surata II, 109; III, 99,100), os judeus e os cristãos. Tendo em vista circunstâncias particulares, o Corão argumenta, chama a atenção ou recomenda a atitude a adotar, sem jamais formular ameaças de morte. 1) O Corão argumenta Do ponto de vista muçulmano, o Corão reconhece todas as revelações anteriores, autentifica-as e melhora-as. “Diz: Nós cremos em Deus, naquilo que Ele nos revelou, no que Ele revelou a Abraão, Jacob e às tribos, ao que Moisés recebeu, Jesus e os outros profetas do seu Senhor. Nós não fazemos nenhuma diferença entre eles e à vontade de Deus nós nos entregamos (Muslimûn)”. (Surata III,84). Isso não significa que cada um pode, segundo as circunstâncias, mudar de religião como muda de camisa. Uma tal atitude seria, na realidade, a prova de falta de uma fé autêntica. Essa é a razão pela qual o verso citado, um apelo dirigido ao conjunto da humanidade, insiste sobre a universalidade do islão:67 “Os que desejam renunciar ao islão para seguir outra religião não serão aceites e na outra vida estarão entre os desventurados”. (Surata III,85) Os apóstatas são portanto postos de sobreaviso: aqueles que optam pela apostasia depois de terem sido convencidos, no mais profundo do seu ser, que o islão é a Verdade são injustos e não podem, portanto, continuar a ser guiados por Deus, com tudo o que isso implica para a sua salvação. “Como guiará Deus as gentes que deixam de crer depois da sua profissão de fé, depois de haverem testemunhado que o Enviado, Muhammad é verídico, depois de terem vindo as provas? Deus não dirige as gentes injustas”. (Surata III,86 e 87-91) Por outro lado, o Corão denuncia a atitude dos “detentores da Escritura” que têm exercido uma pressão sobre as pessoas recentemente convertidas ao 65 Coran II, 109, 217 ; III, 85-89, 91, 99, 100, 106, 149 ; V, 57-9 ; XLVII, 25, 32, 34, 38. 66 Ver Cheik Si Boubakeur Hamza, op. cit., comentário dos versos III, 85, 88, 91, 101, 106 ; IV, 31, 91,106 ; V, 54 ; XLIX, 14. 67 Ver M. Talbi, Islam et Dialogue, éd. MTE, Tunes, 1972, p. 28-33 ; tradução árabe in Islamochristiana, Roma, 1978, IV, 12-16.
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islão para as fazer retratar. Não há nenhuma dúvida que a luta entre o islão nascente e as antigas religiões foi intensa. Em tais circunstâncias, o Corão incita aqueles que aceitam o islão a conservar a sua nova fé até à morte, a cerrar fileiras, a recusar escutar aqueles que se esforçam por fazer apóstatas e a frustrar as suas armadilhas. Recordam-lhes o estado de desunião em que se encontravam quando estavam “à beira do Precipício de fogo” e exortam-nos a ser um povo “que chamam os outros ao bem” para assegurar a sua salvação final. “Diz: ‘Ó Adeptos do Livro! Porque afastais da causa de Deus aqueles que creem? Quereríeis fazê-la tortuosa, mas vós mesmos sois testemunhas de que Deus não ignora o que fazeis.’ Ó vós que credes! Se obedecerdes a uma parte daqueles que receberam o Livro (os judeus), vos transformarão em infiéis depois de haverdes feito a vossa profissão de fé. Como descrer se vos recitam as palavras de Deus e entre vós está o seu Enviado? Quem se apegue a Deus será conduzido no verdadeiro caminho. Ó vós que credes! Temei a Deus com verdadeiro temor, e não morrais sem Lhe estardes submetidos. O vínculo que liga Deus aos homens é o islão, e não vos separeis dele. Recordai-vos das graças que Deus espalhou sobre vós quando éreis inimigos e reconciliou os vossos corações: com as Suas graças vos transformastes em irmãos. Estáveis à beira do abismo do Inferno, mas salvou-vos. Assim vos aclara Deus nos Seus versículos. Talvez estejais no bom caminho. E assim surja de vós uma geração cujos membros pratiquem o bem, respeitem o estabelecido, proíbam o reprovável: esses serão os bem-aventurados.” (Surata III, 99-104) Assim, continuamente e por todos os meios, o Corão esforça-se por elevar o espírito do novo muçulmano, a fim de o impedir de cair na apostasia. A argumentação é apenas moral. O Corão acrescenta: Este não é movido senão “por inveja” (Surata II,109) e “estes vos farão voltar atrás e transformar-vos-eis em perdidos” (Surata III,149); não deveis temê-los, “Deus é o vosso Senhor e Ele é o único que vos pode socorrer. Lançaremos nos corações dos que não creem, o terror” (Surata III,150,151); “Os vossos amigos são Deus, o Seu Enviado e os que creem são membros do partido de Deus: esses são os vencedores (…) entre aqueles a quem se deu o Livro antes de vós e entre os infiéis, não tomeis amigos: olham a vossa religião como passatempo e jogo” (Surata V,55-57). Por fim, aqueles que, apesar disso, são tentados à apostasia, são postos em observação: se abandonam a Causa esta não conhecerá, apesar disso, prejuízo. Outros a cumprirão bem.
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“Ó vós que credes! Aqueles de vós que repelem a religião, saibam que Deus trará umas gentes a quem amará e O amarão: humildes perante os crentes, altivos frente aos infiéis, combaterão pela causa de Deus e não temerão a censura do maldizente. Esse é o favor de Deus: dá-o a quem quer, pois Deus é imenso, omnisciente.” (Surata V,54) Enfim, os apóstatas são prevenidos: eles “não prejudicarão a Deus em nada. Este fará estéreis as suas obras”. (Surata XLVII,32) 2) O Corão avisa A jovem comunidade muçulmana deu bastantes razões para conservar a sua nova religião. Os membros desta comunidade são igualmente prevenidos que não devem afastar-se da sua fé para asseguraram a sua salvação. Incita-os a conformar-se com o verdadeiro espírito do islão que se define da seguinte forma: desde logo amarão a Deus e Deus os amará; depois, mostrar-se-ão humildes no meio dos seus irmãos, mas não recearão os perversos e não se ligarão com eles. Se por temor, fraqueza ou oportunismo, se afastam desta linha de conduta e caiem no estado de apostasia, assumirão a responsabilidade e a sua punição será severa no além. “Aquele dentre vós que abjure a sua religião e morra é um infiel, e para esses, serão inúteis as suas boas ações nesta vida e na outra; esses serão entregues ao fogo: viverão nele eternamente”, (Surata II, 217). Os apóstatas cairão sob “a maldição de Deus, dos anjos e dos homens, de todos” (Surata III, 87); o mesmo não acontecerá àqueles “que se arrependerem e se emendem. Deus é indulgente, misericordioso” (Surata III,89). Mas não há esperança para aqueles que persistem na via da apostasia (Surata III, 90, 91). Estes apóstatas obstinados irão “saborear o tormento” como preço da sua incredulidade” (Surata III,106; ver também Surata III, 140). Estes homens estão sob o império do Mal (Surata XLVII, 25). Eles conspiram com o inimigo (Surata XLVII, 26, 27) e “se afastam da senda de Deus” (Surata XLVII, 32, 34). E Deus não lhes concederá, de forma alguma, o perdão (Surata XLVII, 34). 3) O Corão aconselha Que comportamento ter perante esses apóstatas obstinados e mal-intencionados? Como tratar aqueles que tentam atrair-vos para o seu campo ou manipular-vos? Convém sublinhar, uma vez mais, que o Corão não faz nenhuma menção de uma punição, pena de morte, ou outra. Para utilizar o termo árabe apropriado, não existe hadd68 neste caso. 68 hadd = pena legal descrita de forma explícita no Corão.
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Pelo contrário, os muçulmanos são exortados a perdoar e a contemporizar “até que Deus venha com a Sua Ordem. Deus tem o poder sobre todas as coisas” (Surata II,109). Noutros termos, não há castigo na Terra. Isso não releva da lei; trata-se de um debate entre Deus e a consciência do apóstata, e não nos cabe a nós imiscuir-nos nesse assunto. Os muçulmanos não estão autorizados a pegar em armas senão em caso de autodefesa, quando são atacados e a sua fé é gravemente ameaçada. Em tal situação, o “combate” (al-qitâl) é-lhes “prescrito” (kutiba), mesmo se lhe “seja odioso” (kurhun lakun) (Surata II,216) e isto, mesmo durante o mês sagrado da Peregrinação (Surata II, 217,194). Em resumo, os muçulmanos são exortados a não se submeterem quando a sua fé está em jogo, e a pegar em armas contra aqueles que “não cessarão de vos combater até que vos fazer abjurar a vossa religião, se puderem” (Surata II, 217).
Conclusão É portanto evidente que o problema da liberdade religiosa, com as suas múltiplas ramificações, não é novo no islão. O Corão comenta-o longamente. No âmago do debate encontra-se o espinhoso problema da apostasia. Vimos que, sobre este assunto, o Corão multiplica os argumentos, os conselhos, mas que jamais recorre ao argumento da espada. Este silêncio explica-se pelo facto de que a argumentação é estranha à fé. No mundo pluralista em que vivemos, os teólogos modernos deveriam ter isso em conta. Não repetiremos suficientemente, que a liberdade religiosa não é um ato de caridade, nem um gesto de tolerância para com os indivíduos em erro. Trata-se de um direito fundamental para cada um. O reivindicar para mim implica, ipso facto, que estou pronto a reivindicá-lo para o outro. A liberdade religiosa não é necessariamente sinónimo de ateísmo. O meu direito, e portanto igualmente o meu dever, é dar testemunho da minha própria fé e de responder ao apelo de Deus e isto, de uma forma leal. Em última instância, é a cada indivíduo que cabe decidir livremente e em toda a consciência o responder ou não ao seu apelo. Na ótica muçulmana, e na base dos ensinos do Corão, do qual tentamos colocar em evidência a letra e o espírito, a liberdade religiosa é um ato de respeito fundamental perante a soberania de Deus e perante o mistério do seu desígnio para o homem que recebeu o terrível privilégio de forjar, por si mesmo, e sob a sua própria responsabilidade, o seu destino nesta Terra e no além. Em última análise, respeitar a liberdade do homem, é respeitar o desígnio de Deus. O bom muçulmano submete-se a esse desígnio. E coloca o seu ser, voluntária e livremente, com confiança e amor, nas mãos de Deus.
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