Agentes e Embaixadores da Paz
CONSCIÊNCIA E
LIBERDADE 2016
CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
AGENTES E EMBAIXADORES DA PAZ
28 2016
Protegendo a Liberdade de Religião e a Liberdade de Expressão contra a Violência no nome da Religião Volume III
Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA
Consciência e Liberdade Edição Especial Volume III
AGENTES E EMBAIXADORES DA PAZ
Berna, Suíça
EM HOMENAG EM AOS DIPLOMATAS PARA A PAZ NO MUNDO às Nações Unidas, ao secretário-geral Ban Ki-moon ao Conselho da Europa, à OSCE e aos esforços realizados pelas outras organizações internacionais, para o respeito e a proteção dos direitos do Homem, do Estado de direito, da democracia e da segurança ao Relator especial sobre a liberdade de religião ou de convicção Heiner BIELEFELDT AGRADECIMENTOS aos governos e aos parlamentos, à sociedade civil e às organizações não governamentais, aos representantes das religiões, das crenças e do meio universitário, aos media que têm estado ligados ou que estão implicados na defesa da paz, a justiça social e a não descriminação, pela educação e a proteção dos direitos do Homem, do respeito pela diversidade e a tolerância, e pela defesa do princípio da liberdade religiosa e de consciência para todas as pessoas HOMENAGEM aos presidentes do Comité de Honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR): Senhora Franklin ROOSEVELT, Dr. Albert SCHWEITZER, Paul Henry SPAAK, René CASSIN, Edgar FAURE, Leopold Sedar SENGHOR, Mary ROBINSON aos antigos secretários-gerais da AIDLR: Dr. Jean NUSSBAUM, Dr. Pierre LANARES, Dr. Gianfranco ROSSI, Dr. Maurice VERFAILLIE e Karel NOWAK AGRADECIMENTOS pelo trabalho efetuado pelos antigos e atuais colegas e membros nos assuntos relacionados com a liberdade religiosa: Dora, Laura, Robert, Petru, Mikulas, Herbert, Dietrich, Harald, Fiedbert, Bert, Oliver, Paulo Sérgio, Kabrt, Tzango, Valeriu, Ganoune, Pedro, Jean-Paul, Viorel, Alberto, Ioan, Tiziano, Nelu, Davide, Jose-Miguel, Jose, Antonio-Eduard, Cole, John, Sofia, Joaquin, Susan, Rafael, Rik, Silvio, Corrado, Gabriel Maurer, Jesus Calvo, David Jennab e outros numerosos defensores e lobistas AGRADECIMENTOS PARTICULARES aos antigos assistentes de redação: Mari-Ange BOUVIER, Sigrid BUSCH Christiane VERTALLIER ao presidente da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, Bruno VERTALLIER, pela sua liderança, os seus sábios conselhos, o seu apoio E o seu envolvimento nas conferências e nas diferentes manifestações sobre A liberdade religiosa em favor da revista “Consciência e Liberdade” A Mário BRITO, Norbert ZENS, Barna MAGYAROSI OBRIGADO A TODOS OS DEFENSORES DA DIGNIDADE QUE SÃO TODOS EM CONJUNTO EMBAIXADORES DA LIBERDADE E DA PAZ
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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
Publicação Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº 28 – Ano 2016 Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Sede da Redação: Rua da Serra, 1, Sabugo – 2715-398 Almargem do Bispo Tel.: 219 626 207, info@aidlr.org.pt
Edição em Português:
Direção: Artur MACHADO Edição: Paulo Sérgio MACEDO Conselho de Redação: Artur MACHADO Maria Augusta LOPES Mário BRITO Paulo Sérgio MACEDO Rúben de ABREU
Gabinete de Redação
Email: info@aidlr.org Editor: Liviu OLTEANU Editor Assistente: Mercedes FERNÁNDEZ Revisão: Shelley KUEHL
Comité de Redação
Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito, Alemanha Liviu OLTEANU, advogado, especialista em Direitos do Homem e Liberdade Religiosa, doutorando em Direito, Suíça Ioan Gheorghe ROTARU, jurista, Doutor em Filosofia e Doutor em Teologia, Roménia Tiziano RIMOLDI, reitor universitário, Doutor em Direito, Itália
Conselho de Especialistas
Heiner BIELEFELDT, relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção, professor de Direitos do Homem na universidade de Erlangen Nuremberga, Alemanha – Michele BRUNELLI, professor na universidade de Bérgamo, cadeira UNESCO, Itália – Jaime CONTRERAS, vice-reitor da universidade de Alcala de Henares, Espanha – Ganoune DIOP, diretor adjunto de Public Affairs and Religious Liberty (PARL) e diretor das relações com as Nações Unidas em Nova Iorque e em Genebra, professor universitário, USA – Petru DUMITRIU, embaixador, delegado permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas em Genebra, Suíça – W. Cole DURHAM, diretor do Centro Internacional de Estudos do Direito e da religião na universidade Brigham Young, USA – Silvio FERRARI, professor de Direito e de religião na universidade de Milão, Itália – John GRAZ, Dou-
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tor em História das Religiões, secretário-geral da IRLA, USA – Sofia LEMMETYINEN, conselheira independente sobre a questão das religiões e das crenças no quadro da política estrangeira a EU, Bruxelas, Bélgica – Dwayne O. LESLIE, advogado, USA – Joaquin MANTECÕN, professor na universidade Cantábrica, Espanha – Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Juan Antonio MARTINEZ MUNOS, professor de Direito na universidade Complutense, Madrid, Espanha – Javier MARTINEZ TORRON, diretor da cadeira de Direito eclesiástico da universidade Complutense de Madrid, Espanha – Gabriel MAURER, vice-presidente da AIDLR, Suíça – Harald MUELLER, juiz, Doutor em Direito, Hanover, Alemanha – Liviu Olteanu, secretário-geral da AIDLR, advogado – Rafael PALOMINO, professor na Universidade Complutense, Madrid, Espanha – Tiziano RIMOLDI, Doutor em Direito, Itália – Ioan Gheorghe ROTARI, jurista, doutor em filosofia e doutor em Teologia, Roménia – Jaime ROSSEL GRANADOS, deão da faculdade de Direito na universidade da Estremadura, Espanha – Robert SEIPLE, antigo embaixador itinerante para a liberdade religiosa internacional no departamento de Estado americano, presidente da IRLA, USA – José-Miguel SERRANO RUIZ-CALDERON, professor de filosofia de Direito na universidade Complutense de Madrid, Espanha – Rik TORFS, reitor da universidade de Lovaina, Bélgica – Bruno VERTALLIER, doutor em ministério pastoral, presidente da AIDLR, Suíça.
Comité Consultivo Roberto BADENAS – Jean Paul BARQUON – Herbert BODENMANN – Dora BOGNANDI – Mário BRITO – Nelu BURCEA – Jesus CALVO – Corrado COZZI – Alberto GUAITA – Friedbert HARTMANN – David JENNAH – Tomas KABRT – Rafat KAMAL – Harri KUHALAMPI – Paulo Sérgio MACEDO – Reto MAYER – Tsanko MITEV – Carlos PUYOL – Pedro TORRES – Norbert ZENS Outras Edições: Gewissen und Freiheit (Alemanha e Suíça) Conscience et Liberté (França) Conscienza e libertà (Itália) Consciencia y libertad (Espanha) Savjest i sloboda (Croácia e Sérvia) © Dezembro 2016 – Consciência e Liberdade
Tiragem: 750 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 286548/08 ISSN: 0874 – 2405
Distribuição gratuita. Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente
Execução Gráfica: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. Venda do Pinheiro
a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo Editor da Revista são submetidos à apreciação do Conselho de Redação.
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ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Uma organização não governamental detentora de estatuto consultivo junto das Nações Unidas, em Genebra, Nova Iorque e Viena, do Parlamento Europeu, em Estrasburgo e em Bruxelas, do Conselho da Europa, em Estrasburgo, e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
SEDE ADMINISTRATIVA
Schosshaldenstr. 17, CH 3006 Bern, Switzerland Tel. +41 (0) 31 359 15 31 - Fax +41 (0) 31 359 15 66 Email: info@aidlr.org Website: www.aidlr.org Presidente: Bruno VERTALLIER Secretário-Geral: Liviu OLTEANU
COMITÉ DE HONRA
Presidente: Mary ROBINSON, antiga Alta-Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas e antiga Presidente da República da Irlanda.
MEMBROS
Jean BAUBÉROT, professor universitário, Presidente Honorário da École Pratique des Hautes Etudes, Sorbonne, França Beverly Bert BEACH, antigo Secretário-Geral e Secretário-Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América Francois BELLANGER, professor universitário, Suíça Heiner BIELEFELDT, Relator Especial da Nações Unidas sobre Liberdade de Religião e Crença, professor de direitos humanos, Universidade de Erlangen, Nuremberga, Alemanha Reinder BRUINSMA, autor, professor universitário, Holanda Jaime CONTRERAS, professor universitário, Espanha Alberto DE LA HERA, antigo Diretor-Geral dos Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Petru DUMITRIU, Embaixador e Delegado Permanente do Conselho da Europa nas Nações Unidas, Suíça W. Cole DURHAM, Diretor do Centro Internacional para o Estudo da Lei e da Religião na J. Clark Law School, Universidade Bringham Young, Estados Unidos da América Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain Garay, advogado e investigador na Universidade Aix-Marseille, França John GRAZ, Secretário-Geral da International Religious Liberty Association, Estados Unidos da América
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Alberto F. GUAITA, Presidente da AIDLR, Espanha Pierre HESS, antigo Secretário da secção suíça da AIDLR, Suíça José ITURMENDI, Deão Honorário da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid, Espanha Joaquin MANTECON, professor universitário, antigo Diretor de Assuntos Religiosos, Ministério da Justiça, Espanha Francesco MARGIOTTA BROGLIO, professor universitário, Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Representante da Itália na UNESCO, Itália Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Juan Antonio MARTINEZ MUÑOZ, professor universitário, Espanha Javier MARTINEZ Torron, professor universitário, Espanha Rafael PALOMINO, professor universitário, Espanha Émile POULAT, professor universitário, diretor de pesquisa no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, antigo membro do Conselho Constitucional, França John ROCHE, membro do Instituto, França Jaime ROSSELL GRANADOS, Deão da Faculdade de Direito, Universidade da Estremadura, Espanha Gianfranco ROSSI, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça Robert SEIPLE, antigo Embaixador da Liberdade Religiosa Internacional, Departamento de Estado, Estados Unidos da América Jose Miguel Serrano RUIZ- CALDERON, professor universitário, Espanha Mohammed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, Reitor da Universidade de Leuven, Bélgica Maurice VERFAILLIE, antigo Secretário-Geral da AIDLR, Suíça
ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ DE HONRA
Franklin ROOSEVELT, 1946 to 1962 Albert SCHWEITZER, 1962 to 1995 Paul Henry SPAAK, 1966 to 1972 René CASSIN, 1972 to 1976 Edgar FAURE, 1976 to 1988 Leopold Sédar SENGHOR, 1988 to 2001
ANTIGOS SECRETÁRIOSGERAIS DA AIDLR
Jean Nussbaum Pierre Lanarès Gianfranco Rossi Maurice Verfaillie Karel Nowak
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DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro ato governamental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio têm o direito à obediência respeitosa e voluntária de cada indivíduo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a ação contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.
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Número 28 – 2016
Edição Especial – 3ª parte Introdução Bruno Vertallier – Ultrapassar o fanatismo e acolher a vida..................................... 13 Editorial Liviu Olteanu – As Nações Unidas: um atelier para a paz – 70º aniversário. A necessidade de conservar a perspetiva da paz e do avançar do “Doomsday clock”. .. 15 Capítulo I
Uma entrevista exclusiva e um acontecimento no Palácio das Nações Unidas Bodgan Aurescu – Os diplomatas encarregues de tratar das questões dos direitos do Homem não têm o monopólio da sabedoria neste domínio – Apreciação da ação da AIDLR no decorrer dos anos........................................... 31 José Miguel Serrano Ruiz-Calderón – Um esforço universal para uma “diplomacia da liberdade religiosa” – Uma crónica dos acontecimentos na Universidade Complutense e nas Nações Unidas. .............................................. 38 Capítulo II
A liberdade: origens e horizontes – comportamentos e correntes Henri Didon – Deus e César..................................................................................... 46 Michelle-Marie Fayard – O Bispo e o Emir............................................................ 48 Carlyle B. Haynes – As nossas liberdades duramente adquiridas desaparecem pouco a pouco. ....................................................................................... 59
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Capítulo III
As minorias religiosas, a liberdade de religião e a liberdade de expressão: diversas perspetivas Rafael Palomino – Liberdade de expressão contra sentimentos religiosos: será “Quem gritará mais alto?” .................................................................................... 66 Liviu Olteanu – Desafios e atitudes relativos aos Direitos do Homem, à liberdade de religião e à liberdade de expressão no nosso mundo atual. A questão “Charlie” ou como gerir as divergências – Algumas propostas. ........... 72 Joaquín Mantecón – Manifestações do discurso cristianofóbico no interior e no exterior da esfera ocidental. ................................................................................ 86 Alex Kozhemyakov – Três organismos de supervisão – um objetivo comum. ... 94 Jaime Rossell Granados – Governação, não discriminação e minorias religiosas na União Europeia. ................................................................................... 100 Susan Kerr – A responsabilidade social das empresas multinacionais na hora dos desafios da mundialização: abrir a caixa de Pandora......................... 109 Iwao Munakata – Estudo sociológico das causas da intolerância e da discriminação. ..................................................................................................... 119 Capítulo IV
A religião e a liberdade religiosa como instrumento da paz e de segurança Günther Gebhardt – As religiões – incendiários do ódio ou bombeiros da paz? – 1ª parte. ...................................................................................................... 128 James E. Wood Jr – Os direitos religiosos, a identidade étnica e a liberdade religiosa numa perspetiva ecuménica e internacional – 1ª parte........................... 136 UNESCO – Declaração sobre o papel da religião na promoção de uma cultura da paz. ............................................................................................................ 143 Roland Minnerath – A especificidade da liberdade religiosa em relação com as outras liberdades do espírito. ....................................................................... 147 Capítulo V
A tolerância em favor da diversidade, uma via para a liberdade religiosa – a vitória da guerra das ideias
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Omar Saif Ghobash – Ganhar a guerra das ideias no mundo árabe: um ponto de vista dos Emiratos Árabes Unidos. ................................................... 153 Silvio Ferrari – A liberdade religiosa na época da globalização e do pós-modernismo: a questão do proselitismo – 1ª Parte................................... 168 Jacques Doukhan – A vocação para aceitar a diferença........................................ 176 W. Cole Durham Jr. – Os papéis distintos da Igreja e do Estado. ...................... 181 Nicholas Berdyaev – Socialismo e Cristianismo. ................................................. 188 Capítulo VI
Direitos do Homem, Liberdade religiosa e Liberdade de expressão Documentos – Declarações – Encontros Federica Mogherini – Declaração Oficial da 28ª sessão do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas – Os princípios fundamentais da UE ............... 194 Martin Lidegaard – Declaração oficial submetida ao Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas – “Eu não sou apenas Charlie” ................................ 199 Peter Sørensen – A União Europeia: Defesa da universalidade dos Direitos do Homem – Pleiteando em favor de um espaço para a sociedade civil.............. 203 Ra’ad Zeid al-Hussein – Conclusão do relatório sobre a luta contra a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando algumas pessoas, por causa da sua religião ou da sua convicção........................................................................... 206 Heiner Bielefeldt – Extrato do relatório sobre a liberdade de religião ou de crença e a violência em nome da religião. ........................................................... 209 Conselho da Europa – Recomendação 1202 (1993) sobre a tolerância religiosa numa sociedade democrática. .................................................................... 218 Liviu Olteanu – Declaração escrita da AIDLR apresentada ao Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas................................................................. 222 AIDLR – Declaração oral apresentada pela AIDLR na 28ª sessão do Conselho dos Direitos do Homem da ONU, no quadro debate geral. .......... 228 Ban Ki-moon – As Nações Unidas asseguram-se do apoio aos chefes religiosos e dos jovens nos seus esforços contra o extremismo violento. .............. 234
Introdução Ultrapassar o fanatismo e acolher a vida Bruno Vertallier1 Caros leitores, Não é necessário recordar os diferentes atos de violência destes últimos meses para nos convencermos de que a sociedade se afunda em terrenos movediços sem fim. Os atos terroristas estão presentes no nosso espírito e marcam uma escalada de horror. Estes atos demonstram a incapacidade daqueles que os cometem de considerar a não-violência como uma verdadeira alternativa. A violência cega por modos de pensar arcaicos é uma recusa de considerar o valor da vida humana como o mais precioso bem. Numa mescla de incompreensão política e religiosa, cheia de ódio contra as sociedades ancestrais, guiada por espíritos sectários, o mundo afunda-se num caos do qual ninguém consegue medir o impacto para as gerações futuras. Esta violência não deve paralisar os espíritos esclarecidos, impedindo-os de continuar a esperar que a tolerância triunfará e que a cura das feridas se tornará numa realidade. A violência, seja ela qual for, jamais dará origem à paz. Isso verifica-se em todos os conflitos desde há séculos. O motor da paz encontra-se, na verdade, em cada indivíduo. Não vale a pena alimentar ilusões: sem uma tolerância recíproca para com o que está no fundo do coração de cada um, as linhas não se moverão. Imaginar que, pela força ou pelo terror, uns vão impor a sua fé, a sua crença, ou os seus valores sobre os outros é um sonho sem amanhã. Aquele que semeia o vento recolhe a tempestade e tem sido assim ao longo de gerações. Na Bíblia, que está cheia de palavras de sabedoria, está escrito: “Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram.” Isto apela à res1 Bruno Vertallier é titular de um doutoramento em teologia. É autor de artigos sobre religião, ética e liberdade de religião e participa em conferências internacionais sobre liderança, assim como sobre a liberdade religiosa, através do mundo. No momento da publicação desta revista, era presidente da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa.
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ponsabilidade em matéria de preservação da tolerância para as gerações futuras. Que herança iremos legar aos nossos filhos? Fala-se muito de preservação do ambiente. Que dizer do ambiente humano em matéria de tolerância? Porque devemos continuar a lamentar-nos e a contar os crimes cometidos por aqueles que lutam para infligir aos outros o sofrimento por que passaram, numa onda cada vez maior de vingança e ódio? A esperança dos valores profundos deve continuar a animar as mulheres e os homens de boa vontade a fim de que a chama da tolerância possa continuar a brilhar e a ser vista por aqueles que não querem abandonar as trevas em que acreditam. A coragem e a confiança pertencem àqueles que continuam a dar ao outro a possibilidade de crerem numa tolerância recíproca. O futuro pertence aos que souberem elevar o seu olhar, tendo em vista uma perspetiva de restabelecimento da própria natureza humana, mesmo se isso parece exigir uma força sobre-humana.
EDITORIAL As Nações Unidas: um atelier para a paz – 70º aniversário. A necessidade de conservar a perspetiva da paz e do avançar da “Doomsday Clock”. Os objetivos do desenvolvimento duradouro Para além de 2015” Liviu Olteanu2 A Organização das Nações Unidas não foi criada para nos levar para o Céu, mas para nos salvar do inferno. Dag Hammarskjold, segundo Secretário-Geral da ONU Sumário: 1. Introdução 2. Principais etapas da Consciência e Liberdade 3. “Doomsday Clock” – O grande ponteiro do tempo – sobre questões preocupantes 4. Os diplomatas do mundo para a paz As Nações Unidas como árbitro dos diferendos e protetor da paz A sala de meditação e de oração das Nações Unidas – uma outra abordagem para manter a paz 5. O futuro que queremos viver 1. Introdução A violência é uma característica que tem coexistido com as civilizações humanas. O mundo no qual vivemos hoje corresponde bem a um dos grupos sistematicamente violentos, onde as religiões, assim como as divisões raciais, étnicas ou territoriais, são usadas para fomentar desordens, terrorismo e, algumas vezes, até mesmo o genocídio. Com efeito, à escala mundial, a violência centrada em torno de divisões metodicamente cultivadas está omnipresente na nossa vida
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contemporânea. Os progressos científicos e tecnológicos também têm amplificado o potencial catastrófico de uma tal violência, mesmo fora de um contexto de guerra nuclear, química ou biológica, como, por exemplo, por ocasião do “11 de setembro”.3 Wallace Harrison escreveu, em 1974, que o mundo aspirava tornar-se num símbolo de paz. Nós demos-lhe um “atelier para a paz”. Há sete décadas que as Nações Unidas trabalham incansavelmente, 24 horas sobre 24 horas, para fazer face às urgências quotidianas, procurando instaurar os fundamentos para um futuro melhor. “Paz, desenvolvimento e direitos humanos são os pilares dos nossos esforços, interdependentes e reforçando-se mutuamente”, escreveu recentemente Ban Ki-moon no decurso do 70º aniversário das Nações Unidas. Segundo o Secretário-Geral da ONU, o 70º aniversário “revela uma organização com grandes realizações no seu ativo, desafios consideráveis na sua ordem do dia e um pessoal devotado e experiente que se esforça para dar vida aos ideais e objetivos da carta das Nações Unidas”. A fim de aprofundar a nossa visão sobre certas questões – desafios mundiais e atitudes – preparámos uma importante trilogia sobre “os direitos humanos, a história da liberdade, as diferenças ou a diversidade, a liberdade de religião ou a liberdade de expressão, as minorias religiosas e a paz”. 2. Principais etapas e atores para a paz A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) propôs, há alguns anos, uma trilogia sobre “Os direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo – Um novo equilíbrio ou novos desafios” a aparecer na sua revista anual Consciência e Liberdade. a) O primeiro volume da trilogia intitula-se “Os direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo – um novo equilíbrio ou novos desafios”. Ele sublinha dois aniversários importantes: 313-2013: 1700 anos de História desde o Édito de Milão, e 1948-2013: 65 anos de existência da revista Consciência e Liberdade. Na leitura deste número, juntamo-nos a personalidades de renome internacional que deram o seu apoio especial em favor da liberdade de religião: Eleanor Roosevelt, René Cassin, Edgar Faure, Leopold Sédar Senghor, Mary Robinson, Dr. Jean Nussbaum, Javier Perez de Cuellar, Boutros Boutros Ghali, Kofi Annan, Ban Ki-moon, assim como os embaixadores e especialistas internacionais: Navi Pillay, Laura Dupuy, Petru Dumitriu, Robert Seiple, Heiner Bielefeldt, Mohamed Talbi, Mons. Pietro Pavan e Mons. Timiadis.
As Nações Unidas: um atelier para a paz - 70º aniversário
b) O segundo volume dedicado à “História da liberdade e respeito pela diferença” está centrado principalmente sobre as figuras influentes que marcaram a história da liberdade de consciência e de religião, tais como: Moisés, Buda, Confúcio, Jesus, Maomé, Gandhi, Voltaire, Lutero, João Huss, Marie Durand, Roger Williams, Alexandre Soljnitsyne, Gala Galaction, João Paulo II, Hans Küng e Beverly Beach. Duas entrevistas exclusivas com relatores especiais das Nações Unidas – Heiner Bielefedt e Rira Izsak – enriqueceram as duas primeiras edições (volumes I e II). Muitas abordagens, de um ponto de vista académico, e segundo a perspetiva de responsáveis religiosos bem como da sociedade civil, sobre a necessidade da educação e do pluralismo sobre a liberdade religiosa, foram abordados por autores e especialistas notáveis como Bruno Vertallier, Harald Mueller, Tiziano Rimoldi, Jose-Miguel Serrano, Pierre Lanarès, Gianfranco Rossi, Ganoune Diop, Maurice Verfaillie, James Vaughn, Ghorghe Ioan Rotaru, John Graz, Harry Kuhalampi e Liviu Olteanu. c) O presente volume (III) trata dos “Agentes e Embaixadores da Paz” e coloca um particular destaque sobre a proteção das pessoas – a liberdade de religião, as minorias religiosas e a liberdade de expressão – contra a violência e o terrorismo em nome da religião. Recomendamos a leitura da entrevista com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Roménia, Sua Excelência M. Bogdan Aurescu; os artigos ou as declarações de Sua Excelência o embaixador Omar Saif Ghobash; Sua Excelência Ban Ki-moon, Secretário-Geral das Nações Unidas; Sua Excelência o príncipe Ra’ad Zeidal Hussein, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem; Sua Excelência a Srª Federica Mogherini, Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Estrangeiros e a Política de Segurança e Vice-Presidente da Comissão Europeia; Sua Excelência Martin Lidegaard, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca; Sua Excelência o embaixador Peter Sørensen, chefe da delegação da União Europeia junto da ONU em Genebra; o professor Heiner Bielefeldt, relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião ou de crença; os artigos de investigadores e especialistas internacionais: Natan Lerner, W. Cole Durham Jr., Jose-Miguel Serrano, Rik Torfs, Silvio Ferrari, Rafael Palomino, James E. Wood Jr., Florian Sartorio, Winfried Noack, Jacques Doukhan, Roland Minnerath, Alexey Koshemyakov, Jaime Rossell Granados, Janusz Symonides, Günther Gebbardt, Alphonse Maillot, Susam Kerr, Liviu Olteanu, sem esquecer Nicholas Berdyaev, e ainda outros.
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Eis alguns dos temas tratados neste III volume: “A liberdade: origens e horizontes – comportamentos e correntes”; “As minorias religiosas, a liberdade de expressão: diversas perspetivas”; “A religião e a liberdade religiosa como instrumentos de paz e de segurança”; “A tolerância em favor da diversidade, uma via para a liberdade religiosa – a vitória da guerra das ideias”; “Direitos do Homem, liberdade religiosa e liberdade de expressão – Documentos – Declarações – Encontros”. Neste livro, podemos distinguir diferentes categorias “de agentes e embaixadores para a paz”. Há diplomatas para o nosso mundo, as partes interessadas, as organizações, as instituições, os organismos, os decisores políticos, os responsáveis religiosos, a sociedade civil, os intelectuais, os escritores, os representantes dos media, as personalidades que, globalmente ou ao nível regional, têm trazido, ou trazem, a sua contribuição e a sua influência para a paz, através da sua vida e do seu trabalho. 3. “Doomsday Clock”4 – O grande ponteiro do tempo – sobre questões preocupantes a) O medo de uma guerra nuclear vai crescendo numa escala de tempo medida em meses ou em anos. Governantes, entre os diversos poderes nucleares, parecem menos reticentes em abordar o desarmamento numa escala de tempo medida em gerações – e não mostram qualquer interesse em retomar a tarefa rapidamente.5 Um vigoroso movimento mundial da sociedade civil, chocada pela devastação da Primeira Guerra Mundial, fez pressão sobre os dirigentes políticos a fim de procurar a paz mundial e o desarmamento. Mais tarde, no decurso das fases finais da Segunda Guerra Mundial, os aliados começaram a planificar a ordem do pós-guerra, determinados a garantir a sua segurança e a não repetir os erros cometidos após a Primeira Guerra Mundial e o acordo de paz de Versailles. Entre os dirigentes políticos aliados havia sérias divergências sobre a forma de atingir o fim esperado. Havia pressões para voltar à grande “realpolitik” do mesmo tipo que o Concerto da Europa, que tinha regido as relações europeias no decurso do século XIX. Estaline queria dividir o mundo em poderosas “esferas de influência” e Churchill e De Gaule estavam determinados a restabelecer os seus países ao nível de potências coloniais. Contudo, houve um forte interesse em estabelecer instituições liberais de ordem internacional que permitiriam regular os diferendos pela Diplomacia e pelo Direito, na ONU.6
As Nações Unidas: um atelier para a paz - 70º aniversário
b) No decurso da guerra fria, a ameaça iminente de uma destruição nuclear gerou um clima de desconfiança entre as nações desconfiadas das suas próprias armas, assim como para com as dos adversários. A diminuição do nível de armamento tinha o sentido de, ao mesmo tempo, reduzir os riscos de “faíscas” acidentais potencialmente capazes de deflagrar uma guerra, e limitar o poder destruidor da guerra, se esta ocorresse. As nações falam muitas vezes em procurar níveis “suficientes” ou “mínimos” na planificação da sua defesa.7 Se bem que a utilização de uma só bomba nuclear mataria e mutilaria a grande maioria da população de uma região e tornaria uma cidade inabitável, a utilização atual de poderosas armas convencionais na guerra está a matar centenas de milhares de pessoas, destrói cidades, causando o colapso das sociedades no Médio Oriente, em África e na Ásia, e é um vetor das migrações, causando sofrimentos e perturbações em quase todos os países do mundo.8 c) A instabilidade e o sofrimento espalham-se e o mundo responde com uma paralisia inquietante. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, e o Presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Peter Maurer, lançaram em conjunto uma advertência sem precedentes sobre o impacto dos conflitos atuais sobre os civis. Pediram para tomarem medidas urgentes e concretas a fim de terem em consideração o sofrimento humano e a insegurança. Os dois dirigentes sublinharam a importância do respeito pelo Direito Internacional Humanitário para travar o caos e impedir uma maior instabilidade. “Raramente temos assistido anteriormente a tantas pessoas deslocadas, a tanta instabilidade e a tanto sofrimento. Nos conflitos armados no Afeganistão, no Iraque, na Nigéria, no Sul do Sudão, na Síria, no Iémen e noutros locais, os combatentes desafiam as normas mais fundamentais da Humanidade. Cada dia, ouvimos falar de civis que foram mortos e feridos, em violação das regras fundamentais do Direito Internacional Humanitário, e com total impunidade. A instabilidade propaga-se, o sofrimento cresce. Perto de sessenta milhões de pessoas no mundo foram deslocadas dos seus lares por causa dos conflitos e da violência – o número é o mais elevado depois da Segunda Guerra mundial. Os conflitos prolongam-se, o que significa que numerosas pessoas deslocadas são obrigadas a viver anos longe dos seus lares, das suas comunidades e dos seus meios de subsistência”, declarou Peter Maurer. “No caso de uma desumanidade flagrante, o mundo respondeu com uma paralisia inquietante”, declarou o Secretário-Geral Ban Ki-moon. “Isso quebra a razão de ser das Nações Unidas. O mundo deve reafirmar a sua humanidade e respeitar os seus ensinos em virtude do Direito Internacional Humanitário.
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Hoje, falamos a uma só voz para exortar todos os Estados a tomarem medidas concretas e imediatas para atenuar os sofrimentos dos civis.”9 d) Controlo dos conflitos e a perseguição da paz. “O futuro que queremos”, as propostas apresentadas pelo grupo de trabalho para os Objetivos do Desenvolvimento Duradouro depois de 2015 (ODD),10 fixam como Objetivo 16 “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento duradouro…”. Os Objetivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD) estipulam que “os conflitos permanecem a maior ameaça para o desenvolvimento humano com os países frágeis e tocados por um conflito conhecem, geralmente, as mais elevadas taxas de pobreza”.11 A ONU expôs e manteve numerosas ações em matéria de controlo dos conflitos e da luta pela paz. Abordagens de uma diplomacia preventiva e a prevenção dos conflitos são importantes para manter as sociedades pacíficas e inclusivas nas quais os objetivos para o “mundo que queremos” podem ser melhor conseguidos.12 As iniciativas mundiais serão necessárias para apoiar um avanço positivo, mas também para evitar os contratempos, abordando o problema das ameaças como as do caos climático, a fome e as instabilidades da agricultura, as pandemias transfronteiriças. Vagas de migração e o tráfico de pessoas necessitam, igualmente, de ações regionais e mundiais numa escala bem maior do que a que temos hoje. A migração é, por um lado, consequência dos conflitos e das violações dos direitos humanos e, por outro, devido a um crescimento das desigualdades num mundo de ambições crescentes e uma tomada de consciência mundial. e) A liberdade de expressão, a liberdade de religião, as minorias religiosas e os refugiados são submetidos a um forte ataque do extremismo, do fundamentalismo religioso e do terrorismo em nome da religião, que se perpetuam em grandes territórios do mundo, com um impacto particular no Médio Oriente, e na África do Norte. Na Síria e no Iraque, na Nigéria e no Sudão, etc., as crianças e as mulheres, os Cristãos, os Yazidis e as outras minorias religiosas sofrem, perseguidos e mortos quase todos os dias. Os ataques terroristas a Cristãos ou outras minorias e crenças afetam o mundo, e exigem uma estratégia coordenada e uma resposta séria da comunidade internacional e do Conselho de Segurança. f ) O tempo está contado. O “Doomsday Clock” é um indicador representando o tempo restante a escoar-se antes de chegar a catástrofe fatídica causada pelas tecnologias da nossa própria invenção. As armas nucleares podem causar estragos quase apocalípticos, num tempo muito curto. Sem esforços, todos os
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azimutes podem pôr fim à utilização de poderosas armas convencionais e fazer face a conflitos de interesses, isto é, sem um desarmamento geral e completo, estamos condenados a viver numa instabilidade crescente, ao sofrimento humano e, até mesmo, como sabemos, ao fim da civilização. O tempo está contado.13 O tempo do “Doomsday Clock” relativo à catástrofe quotidiana do extremismo, do terrorismo, do caos climático, da pobreza, da fome, das pandemias, das violações dos direitos do Homem e das desigualdades crescentes, igualmente se acelera. 4. Agentes, mensageiros de paz e embaixadores para a paz Em 1981, a Assembleia-Geral proclamou que o dia de abertura da sua sessão regular anual, um dia internacional da paz, deveria ser celebrado a fim de honrar e reforçar os ideais entre todas as nações do mundo. O dia da paz é celebrado no mesmo dia cada ano, a 21 de setembro. Quem são aqueles que, ao nível internacional e regional, dão a sua contribuição como agentes e embaixadores da paz? a) Gostaria de começar esta lista considerando e apreciando a ação da Fundação do Prémio Nobel outorgando cada ano o Prémio Nobel da Paz. Thorbjørn Jagland, presidente do Comité Nobel norueguês, artesão da paz no Conselho da Europa e no mundo, tem desempenhado, a este propósito, um papel determinante. O mundo tem necessidade de múltiplos exemplos de diplomatas, decisores políticos, ONG e representantes da sociedade civil, dos meios universitários e dos dirigentes religiosos, falando alto e com voz inteligível a favor da liberdade de religião e da paz, como muitos fazem hoje: diplomatas, universitários e chefes religiosos; o papa Francisco, o patriarca ecuménico Bartholomée, Katrina Sweet, Adama Dieng, o príncipe Ra’ad Zeid, Heiner Bielefeldt, Valeriu Guiletchi entre tantos outros. Num mundo em rápida evolução, a AIDLR procura constantemente melhorar a sua eficácia – pela sua experiência, pelas suas ações e pelos acontecimentos, assim como pela revista Consciência e Liberdade, querendo ser um sólido agente internacional e um “embaixador” para a paz e para a liberdade. Por esta razão, a AIDLR popôs ao mundo defender os direitos do Homem dados por Deus, e o princípio da liberdade religiosa para todos, ajudar os governos e as organizações internacionais nos seus esforços por um mundo melhor e de paz. Numerosas outras organizações e universidades apoiam igualmente os direitos humanos, a liberdade de religião, a liberdade de expressão e o diálogo internacional para a liberdade e a paz: Amnistia Internacional, HRWF (Direitos do Homem sem Fronteiras), IRLA (International Religious Liberty Association), CSW (Comissão para a Condição Feminina), EPRID (Plataforma Europeia sobre a
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Intolerância Religiosa e a Descriminação), HRW (Human Rights Watch), Open Doors International, EEE (Espaço Económico Europeu), ADF, USCIRF (United State Commission on International Religious Freedom), o Centro Internacional do Direito e Ciências Religiosas, o Centro para o Diálogo Cultural e Inter-religioso da Universidade de Griffith, o Instituto dos Direitos do Homem na Universidade Complutense de Madrid, o programa da liberdade religiosa no Centro de Religião de Berkley, Paz e Assuntos Internacionais na Universidade de Georgetown, Yale, Oxford, Faculdade de Direito de Harvard, Cambridge, etc.. Sobre a questão da paz, a vigilância faz sempre a diferença e cada pessoa conta. b) As Nações Unidas. As Nações Unidas e outras organizações regionais têm desenvolvido uma “diplomacia em ação”, com muitos dos órgãos ou organismos, das entidades, dos organizações e das comissões, dos comités, dos departamentos e escritórios, dos agentes e diplomatas, a lutarem todos juntos pela paz e pela dignidade. Alguns dos mais representativos são o Secretário-Geral da ONU, o Conselho de Segurança, a Assembleia Geral de Nova Iorque, o escritório do Alto Comissariado para os Direitos do Homem e o Alto Comissário, o Conselho dos Direitos do Homem, o Conselho de Genebra, o Gabinete das Nações Unidas sobre a Prevenção do Genocídio e da Responsabilidade de Proteger, a UNESCO, os Representantes Especiais do Secretário-Geral da ONU e os Relatores Especiais. Existem também organizações regionais: o Conselho da Europa com o Secretário-Geral e a Assembleia Parlamentar (APCE), a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, a União Europeia com o seu Alto Representante para a política externa e a segurança comum, Sra. Mogherini, o Parlamento Europeu. Todos pertencem ao “atelier mundial para a paz”.14 Os outros agentes da paz deveriam ser os políticos – parlamentos e governos nacionais. Da mesma forma, devemos incluir: o mundo académico, a sociedade civil, organizações não-governamentais – pela sua poderosa defesa da justiça social, a educação e formação sobre os direitos do Homem e as liberdades fundamentais, a cultura, as religiões, os defensores dos direitos do Homem, os meios de comunicação – como fazedores de opinião – todos juntos, têm ou poderiam ter um impacto significativo sobre a paz mundial, a liberdade e a segurança. Este volume final da nossa trilogia, “Agentes e embaixadores para a paz”, sublinha, especificamente, “a liberdade, a tolerância, as religiões e as minorias religiosas” como agentes da paz e dão uma especial atenção à proteção da liberdade de religião e liberdade de expressão contra a violência em nome da religião. c) As Nações Unidas como árbitro mundial dos diferendos e protetor da paz – Os políticos e diplomatas em todo o mundo:
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Franklin D. Roosevelt O que o Presidente americano Franklin D. Roosevelt observou em 13 de abril de 1945 tem o mesmo valor ou ainda mais, hoje. Ele exprimiu-se assim: “Buscamos paz – e uma paz sustentável. Mais do que um fim da guerra, queremos pôr um fim aos inícios de todas as guerras – sim, um termo a este método brutal, desumano e completamente irrealista para resolver conflitos entre governos. Hoje, somos confrontados com um facto preeminente: se a civilização deve sobreviver, devemos cultivar a ciência das relações humanas – a capacidade de todos os povos viverem e trabalharem em conjunto, no mesmo mundo, em paz.” Roosevelt acreditava verdadeiramente na possibilidade de um mundo regido por processos democráticos, com uma organização internacional desempenhando o papel de árbitro dos diferendos e protetor da paz. A Carta do Atlântico era a segunda tentativa para as nações aliadas redigirem um acordo a fim de promover a cooperação e a segurança internacionais, depois da Declaração Interaliada de junho de 1941. Entre 1941 e 1945, após uma série de reuniões internacionais frequentadas por um número crescente de nações aliadas – em Teerão, Moscovo, Bretton Woods, Dumbarton e Ialta – os princípios da paz, da segurança, da justiça internacional, a autodeterminação e os direitos humanos foram discutidos, afinados e desenvolvidos, estabelecendo e preparando o terreno para o qual a Carta do Atlântico apontava “a implementação de um sistema mais vasto e permanente da segurança geral”: a Organização das Nações Unidas. Harry S. Truman Harry S. Truman, igualmente, no seu discurso de 25 de abril de 1945 na Conferência das Nações Unidas em São Francisco, disse: “O objetivo desta conferência não é elaborar um tratado de paz, no sentido antigo do termo. A nossa missão não é regular as questões específicas dos territórios, as fronteiras, a cidadania e as reparações. Esta conferência vai consagrar as suas energias e os seus trabalhos exclusivamente ao único problema de pôr em ação a organização essencial a fim de assegurar a paz. Ireis escrever a carta fundamental.” Também Wallace Harrison, diretor da planificação da ONU, escreveu em 1947: “Para aqueles que viram Dunkerque, Varsóvia, Estalinegrado, Hiroshima, que possamos construir tão só honesta e propriamente que isso inspire as Nações Unidas, que estão hoje a construir um mundo novo, a construir este mundo sobre este mesmo modelo (…) O mundo espera um símbolo de paz. Nós demos-lhes um ‘atelier para a paz’.” Kofi Annan
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Kofi Annan, Secretário-Geral da ONU, falando das pessoas que sacrificaram a vida por causa da paz, sublinhou: “A Organização das Nações Unidas foi fundada por homens e mulheres que sonhavam com a paz, porque conheciam o custo da guerra. Nós, na nossa época, temos também o testemunho de amigos e de colegas que pagaram o preço último na causa da paz. Nossos colegas que tombaram e partiram do mundo com a convicção de que o seu serviço podia fazer uma diferença entre a guerra e a paz, a pobreza e a segurança, a opressão e a liberdade. Mostraram, no seu trabalho e na sua vida, que os conflitos humanos não são inevitáveis, que a pobreza pode ser vencida e que a promessa da paz e da tolerância existe entre todos os povos. Quer se trate de trabalhar num escritório, como advogado, motorista ou representante especial, funcionário iraquiano ou internacional, cada um, ou cada uma, destes homens e mulheres têm contribuído para isso de forma única e inestimável.” Ban Ki-moon Segundo Ban Ki-moon, “Criar a Organização das Nações Unidas exigiu esforços intensos para satisfazer as diferenças de pontos de vista entre os países depois da Segunda Guerra Mundial. Pela negociação e o diálogo, os 51 membros fundadores da Organização em 1945 estabeleceram um instrumento mundial duradouro para a paz, a segurança e o progresso humano (…)”. Em 2015, por ocasião do septuagésimo aniversário da Organização das Nações Unidas, Ki-moon declarou que a ONU intervém num momento de grande transição para a família humana – aquela que oferece uma ocasião memorável para responder a estas ameaças, para a mobilização da ação mundial a fim de assegurar o nosso futuro comum. Uma população mundial, estimada em 2,3 biliões de indivíduos em 1945, atingiu mais de 7 biliões. Num tal mundo interconectado de forma irreversível, os desafios encontrados por um temporal de desafios com os quais todos são confrontados, por vezes progressivamente, mas muitas vezes de forma repentina. Tal é a lógica global do nosso tempo. Ban Ki-moon afirma: “Quero trazer o sentimento de esperança e de solidariedade para as pessoas nas necessidades de hoje e assegurar que a ONU é um instrumento eficaz do progresso e da dignidade para todos. Isto é aquilo em que me envolvo perante os habitantes do Planeta, por ocasião deste septuagésimo aniversário.” d) Dag Hammarskjöld e a sala de meditação e de oração da ONU – Uma abordagem diferente para apoiar e reforçar a paz
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Dag Hammarskjöld, Secretário-Geral da ONU, exprimiu em 1957 uma perspetiva atípica podendo ter um impacto no apoio da paz; ele planificou e supervisionou pessoalmente, nos menores detalhes, a criação da “sala de meditação das Nações Unidas” tal como existe hoje, e escreveu o seguinte texto inscrito na parede em frente da sede da ONU em Nova Iorque – a propósito desta sala de oração e meditação especial (e necessária) para a paz: “Todos temos no fundo de nós mesmos um local calmo envolto em silêncio. Esta casa consagrada ao trabalho e ao debate ao serviço da paz deveria ter uma sala dedicada ao silêncio no sentido ‘exterior’ e à calma no sentido ‘interior’. O objetivo foi criar, nesta pequena sala, um local em que as portas se poderiam abrir para as terras infinitas do pensamento e da oração. Pessoas de diversas confissões reunir-se-ão aqui, e por isso nenhum dos símbolos aos quais estamos habituados na nossa meditação poderão ser aqui utilizados. No entanto, há coisas simples que falam a todos, na mesma língua. Procurámos tais coisas e acreditamos que as encontrámos no raio luminoso que incide na superfície cintilante do chão de pedra. Assim, no centro da sala, encontramos um símbolo da forma como diariamente a luz dos Céus dá vida à Terra sobre a qual estamos, um símbolo para muitos de entre nós exprimirmos a forma como a luz do espírito dá vida à matéria. Mas a pedra no centro da sala ainda nos diz mais alguma coisa. Devemos vê-la como um altar, vazio, não porque Deus não exista, não porque se trataria de um deus desconhecido, mas porque é dedicado ao Deus que o Homem venera sob formas diferentes, e de múltiplas formas. A pedra no centro da sala também nos lembra aquilo que é sólido e permanente num mundo de movimento e mudança. O bloco de mineral de ferro tem o peso e a solidez do Eterno. É uma lembrança dessa pedra angular da perseverança e da fé sobre a qual deve repousar todo o esforço humano. A pedra incita a dirigir os nossos pensamentos para a necessidade da escolha entre destruição e construção, entre guerra e paz. De ferro o homem forjou as suas espadas de ferro e fez igualmente os seus arados. De ferro construiu carros de assalto, mas de ferro construiu igualmente casas para o homem. O bloco de mineral de ferro faz parte da riqueza que herdámos nesta Terra que é a nossa. Como iremos utilizá-lo? O raio luminoso fere a pedra numa sala de uma simplicidade total. Não há outros símbolos, não há nada para distrair a nossa atenção ou para interromper o silêncio em nós mesmos. Quando os nossos olhos se desviam destes símbolos, na parede, cruzam apenas um simples fresco abrindo um espaço na sala para a harmonia, a liberdade, e o equilíbrio do espaço.
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Um velho ditado exprime o sentido de que um barco não está no seu casco, mas no seu interior. Assim é esta sala. Está lá para aqueles que vêm encher o vazio com o que encontram no seu centro de calma.” 5. O futuro que queremos viver Devemos recordar e apoiar o Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, que sublinha: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à Humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e pela instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso económico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista disso, os nossos respetivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem os seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.” Obrigado à Organização das Nações Unidas por ser ainda um “atelier para a paz” para cada um, em todo o lado, e por velar pelos direitos humanos e a segurança. Obrigado a todos os diplomatas no mundo e aos esforços das partes envolvidas em favor de uma vida melhor, da liberdade e da paz. Como significado pelas palavras inscritas na parede diante da sede da ONU em Nova Iorque, lembramos o profeta hebreu Isaías (2:4), visando um mundo no qual as pessoas converterão as suas espadas em lâminas de arado e as suas lanças em foices – convertendo a economia do militarismo na da paz. A Carta das Nações Unidas apoia este horizonte. O artigo 26 da Carta lança um apelo para a manutenção da paz e a segurança internacional com o mínimo de recursos humanos e económicos aos armamentos.15
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2. Liviu Olteanu é membro e investigador do Instituto dos Direitos do Homem na Faculdade de Direito da Universidade Complutense (Madrid). Assim como Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) com Sede na Suíça, é observador e representante permanente junto das Nações Unidas em Genebra, Nova Iorque e Viena e junto do Parlamento Europeu em Bruxelas e Estrasburgo e igualmente representante junto do Conselho da Europa em Estrasburgo e da OSCE. É diretor e editor-chefe das revistas Consciência e Liberdade e Liberty Today – Trends & Attitudes. Liviu Olteanu obteve o título de doutor em Direito com a mais alta distinção “Summa Cum Laude” nos Estudos de Doutoramento na Universidade de Madrid e na Universidade de Oxford. A sua tese tem como título “Origines et horizon de la lutte pour la liberté religieuse. Les Nations Unies et la diplomatie en action pour la protection de la liberté religieuse”. É igualmente advogado e detém um diploma em Direito e um mestrado em teologia, um mestrado em educação, o título de especialista em Direitos do Homem, um diploma de estudo internacional e diplomático, um diploma de estudos avançados em Direito e é também bolseiro da Universidade de Oxford. 3. Segundo Amartya Sen, presidente, Civil Paths to Peace (Os caminhos civis para a paz) capítulo 1 sobre: Why do respect and Understanding matter? (Porque competem o respeito e a compreensão?) 4. “Doomsday Clock” é um relógio simbólico, representando uma contagem regressiva para uma eventual catástrofe mundial (por exemplo, a guerra nuclear ou a alteração climática). Tem sido mantido desde 1947 pelos membros do Conselho da Ciência e da Segurança (Bulletin of the Atomic Scientists), que são, por sua vez, informados pelo Conselho de Administração dos patrocinadores, incluindo 18 laureados com o prémio Nobel. O relógio está regulado para a meia-noite do dia em que os cientistas pensam que um desastre global acontecerá no mundo. (Wikipédia.) 5. Andrew Lichterman, conselheiro principal para a pesquisa, retirado da apresentação da Western States Legal Foundation sobre The Challenge of Disarmament: Still Nonviolence or Nonexistence, sede da ONU, Nova Iorque, outubro de 2015. 6. Matthew Bolton, Time for a Discursive Rehabilitation: A Brief History of General and Complete Disarmament, at the Seminar Comprehensive Approaches for Disarmament in the 21st Century. Rethinking General and Complete Disarmament. Sede da ONU em Nova Iorque, a 21 outubro de 2015. 7. Sua Exª, o embaixador Alyson JK Bailes, antigo British Foreign Service, para o desarmamento completo e geral (GCD) e as políticas de defesa. 8. Kennette Benedict, Artigo em Setting the Doomsday Clock, submetido às Nações Unidas em Nova Iorque a 21 de outubro de 2015. 9. UN News, Genebra, 31 de outubro de 2015. 10. UN documento A/68/970, disponível em http://undocs.org/A/68/970. 11. UN The Millenium Development Gols. Relatório 2015 DPI/2594E. 12. M. Richard Jolly conselheiro especial para o programa de desenvolvimento da ONU e diretor-adjunto executivo do Fundo das Nações Unidas para a infância, artigo sobre os objetivos de desenvolvimento duradouro: The Need for Peacebuilding and Measures o Disarmament, apresentado à ONU em Nova Iorque, a 21 de outubro de 2015. 13. Kennette Benefict, ibid.. 14. Por ocasião da exposição organizada na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, em outubro de 2015, no 70º aniversário das Nações Unidas. 15. Sua Exª, o embaixador Paul Meyer, Keynote on Hard and Soft Linkages between Nuclear and Conventional Disarmament, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, outubro de 2015.
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CAPÍTULO
1 Entrevista exclusiva com: S. Exª Bodgan Aurescu Ministro dos Negócios Estrangeiros “Os diplomatas que lidam com os direitos humanos não têm um monopólio da especialidade relacionada com eles – Apreciação pelo trabalho feito, ao longo dos anos, pela AIDLR” e
Evento Especial no Palácio das Nações Unidas
Esforço universalista pelos direitos humanos e “diplomacia de liberdade religiosa” – Crónica dos Eventos na Universidade Complutense e nas Nações Unidas
Entrevista exclusiva com
S. Exª Bodgan Aurescu Ministro dos Negócios Estrangeiros da Roménia Entrevista realizada por Liviu Olteanu Diplomata e professor universitário de carreira, Bodgan Aurescu (nascido em 1973) contraria a noção convencional que associa a competência com a idade avançada. Nada na sua impressionante formação profissional deixa supor a sua juventude relativa. Serviu como representante do governo perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e também como representante da Roménia perante o Tribunal Internacional de Justiça. Quando era Secretário de Estado coordenou os assuntos europeus, assim como os assuntos estratégicos. É membro substituto da Comissão de Veneza, presidente do ramo romeno da Associação de Direito Internacional, redator-chefe do jornal romeno de Direito Internacional; e a lista não para por aqui. Os seus conhecimentos jurídicos têm sido postos à prova como representante do seu país no assunto da delimitação marítima do Mar Negro, uma contestação de fronteiras com a Ucrânia, apresentada pela Roménia perante o Tribunal Internacional de Justiça, e que lhe valeu um sucesso considerável. Bodgan Aurescu foi também o principal negociador do Acordo da defesa dos mísseis balísticos, recentemente assinado entre a Roménia e os Estados Unidos, e a Declaração comum sobre a parceria estratégica para o século XXI assinada entre estes dois países. Entretanto, dá, na Universidade, cursos de Direito Internacional, sobre as organizações internacionais, a proteção das minorias, etc.. É coautor ou coordenador de quinze livros consagrados a estes temas. Bodgan Aurescu exprimiu muito cedo na sua carreira o seu princípio diretor como diplomata; a sua tese de doutoramento em filosofia tinha como tema a supremacia da lei internacional. E permanece fiel a este princípio até hoje. Liviu Olteanu (LO): Excelência, por ocasião do 70º aniversário, as Nações Unidas relembram o papel que têm desempenhado para “salientar os desafios mundiais e ajudar as pessoas nas suas necessidades desde 1945”. O que representa, para a Roménia, e para a política dos Direitos do Homem, o trabalho realizado pelas Nações Unidas desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem?
Entrevista exclusiva
Bodgan Aurescu (BA): Partilho a opinião de que o domínio no qual o trabalho das Nações Unidas tem sido realizado, da forma mais substancial e aprofundada, é o da lei internacional sobre os Direitos do Homem. O mundo mudou graças à difusão de armas morais, políticas e, em particular, jurídicas, por iniciativa da Nações Unidas, com a sua Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Com o tempo, as suas disposições têm sido largamente aceites como normas fundamentais dos direitos do Homem, que cada Estado deve promover, respeitar e proteger. A Declaração Universal tornou-se no fundamento sobre o qual estão estabelecidos mais de 60 diversos tratados internacionais sobre os Direitos do Homem assim como outros instrumentos jurídicos. Para a Roménia, a maior parte das convenções das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, assim como as convenções do Conselho da Europa, fazem parte já integrante do seu sistema jurídico, tal como a prevalência dos tratados internacionais, assim como cinco outras convenções, mecanismos e instituições estabelecidas pelas Nações Unidas, que poderiam assegurar o respeito por todos os direitos do Homem, ou, até mesmo, conduzir a sanções, como é o caso no domínio da luta contra a Descriminação. LO: Como vê a cooperação entre os representantes diplomáticos e os outros membros do governo, por um lado, e os organismos da sociedade civil, por outro? Pensa que a especialização sobre os Direitos do Homem, acessível graças aos organismos não governamentais nacionais e internacionais, faz hoje a diferença na implementação dos compromissos dos Direitos do Homem? BA: Gostaria de fazer notar que os diplomatas que tratam dos Direitos do Homem não têm o monopólio dessa especialização. O assunto é muito vasto e os mecanismos da proteção dos Direitos do Homem são muito complexos para serem deixados a um punhado de especialistas. Eles são mais os que sincronizam os esforços nacionais e internacionais para melhorar o quadro jurídico, tendo em vista uma proteção eficaz dos Direitos do Homem. Por detrás de tudo isso, há uma gama de instituições nacionais cujo dever é criar a legislação sobre os Direitos do Homem, supervisionar a sua aplicação e sancionar os atentados que lhe são feitos. Na Roménia, isso vai desde o Conselho Nacional para a Luta Contra a Discriminação até ao escritório do Ombudsman (Provedor), ao Departamento para as Reações Interétnicas, aos comités parlamentares apropriados, à Agência Nacional para os Roma, ao Conselho Nacional das Minorias, que inclui, também representantes da sociedade civil, ao Conselho
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Nacional Audiovisual, etc.. Mas este panorama de atores, de instituições em relações mútuas, seria incompleto sem os organismos não-governamentais que estão ativos neste domínio. Eles trazem não só uma grande quantidade de trabalhos de especialistas, muito úteis, mas também uma espécie de flexibilidade e de rapidez que, muitas vezes, falta aos organismos governamentais. O diálogo permanente entre estes atores governamentais e não-governamentais é a prova de que este sistema funciona, no seu sentido mais amplo. Podemos ainda fazer melhor; mas os ingredientes estão lá e os resultados já podem ser vistos. Se a Roménia hoje honra os compromissos que assumiu no domínio dos Direitos do Homem, é graças a este mecanismo equilibrado. LO: Lembramo-nos dos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque, de Madrid, de Londres, da Síria, do Iraque, da Nigéria e mais recentemente em Paris (Charlie Hebdo), de Copenhaga e da Tunísia, e dos ataques terroristas cada vez mais numerosos e mais frequentes, perpetrados em nome da religião. Pensa que a “religião” se tornou num “problema” crescente para a segurança e a paz, no plano mundial? BA: É talvez uma das falsas conceções mais nocivas que circulam hoje em relação com as tragédias mencionadas. Nem uma só das grandes religiões é um problema para a paz e a segurança. Nem uma só de entre elas prega outra coisa que não seja a paz, o amor e a generosidade. As religiões trazem encorajamento e dão orientação. Têm sido cometidos crimes em nome de ideais muito elevados desde o alvor da História. Os ideais elevados não justificam os crimes, assim como os crimes não podem manchar esses ideais. Sejamos claros: isto é devido ao uso abusivo da religião por um punhado de grupos fanáticos, desviados, ou simplesmente interessados, e, assim como os governos têm o dever de proteger os seus cidadãos e de fornecer todos os instrumentos necessários para evitar a radicalização dos grupos religiosos ou étnicos, penso que o dever de tratar o conteúdo da propaganda religiosa que incita à violência incumbe, sobretudo, aos chefes religiosos. Eles podem e devem clarificar o verdadeiro sentido da sua religião para “aqueles que estão desviados” e desmantelar assim os discursos tóxicos “daqueles que estão desviados”. É seu dever para com os seus seguidores, que estão muitas vezes perplexos perante os acontecimentos do nosso mundo contemporâneo. O exemplo mais evidente é o mal que os diversos grupos jihadistas causam ao Islão. LO: Acredita que os encontros “diplomático-religiosos” e os encontros “diplomáticos-sociedade civil/ONG” possam ser úteis e exercer, de facto, uma influência positi-
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va sobre os desafios contemporâneos à liberdade religiosa? Representa, a liberdade de religião, um desafio importante para os diplomatas e os políticos? Devem eles fazer mais do que têm feito? BA: Se estas reuniões são úteis? Absolutamente. Gostaria de mencionar apenas dois acontecimentos recentes deste género: um organizado em março pela França, que tinha, então, a presidência do Conselho de Segurança, sobre o assunto da violência motivada por razões étnicas e religiosas no Médio Oriente; o outro, um debate de alto nível, que teve lugar um mês mais tarde na Assembleia-Geral das Nações Unidas, sobre a promoção da tolerância e a reconciliação. Estes encontros contribuíram para construir esta massa crítica necessária para agir de forma decisiva fazendo face aos desafios atuais. Eles constituíram excelentes fora para partilhar ideias e conhecimentos para encontrar soluções. No fim, e não é este o menor dos seus méritos, restauraram, de uma forma simbólica, este sentido da comunhão ameaçada pela abordagem sectária de todos estes “santos guerreiros” contemporâneos. A liberdade de religião torna-se, desde logo, num problema porque a diversidade religiosa e cultural é um facto nas sociedades atuais, e um recurso para as sociedades democráticas. E, de facto, os políticos, os diplomatas, os chefes religiosos, os jornalistas e a sociedade civil podem e devem fazer mais e melhor, porque a questão complexa da violência e da discriminação motivadas por causas religiosas devem encontrar uma resposta completa. O que significa não nos contentarmos em combater o fenómeno, mas também atacá-lo nas suas raízes, quer ele seja social, económico, ideológico ou político. A economia disfuncional de certos países do terceiro mundo e o insucesso das políticas de integração social nos países da Europa Ocidental podem gerar indivíduos que se tornam presa de ideologias radicais. Os jovens são particularmente vulneráveis à sua propaganda, porque essas ideologias dão realmente, a alguns desses jovens, uma orientação; mas não pela boa via. Devem ser estudadas as causas desta vulnerabilidade e é necessário um esforço coletivo para obter resultados. LO: O artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 18 do ICCPR, assim como a Declaração de 1981, são particularmente pertinentes sobre o problema da liberdade religiosa respeitante a cada indivíduo, à liberdade religiosa e à liberdade de consciência, e também à liberdade de adotar uma religião ou de mudar dela. No entanto, quando consideramos estas liberdades num contexto geopolítico e de globalização, e quando consideramos a ameaça crescente do
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fundamentalismo, de extremismo e do terrorismo, acredita que ainda temos, agora, necessidade de mais leis internacionais sobre a liberdade religiosa? BA: Devemos desconfiar do excesso de legislação, e também das violações possíveis que incidirão sobre outras liberdades, como, por exemplo, a liberdade de expressão. Como já disse, as normas jurídicas fixadas pelas Nações Unidas e os tratados internacionais que se seguiram representam um sólido elemento para ultrapassar os desafios aos direitos do Homem, incluindo a liberdade de religião e de crença. Têm sido feitas tentativas para introduzir novos princípios internacionais no que concerne à religião; mas, de facto, estas introduzem restrições sobre as outras liberdades, o que é inaceitável. O que nos falta são, acima de tudo, novos mecanismos para fazer face à ameaça do extremismo. A Roménia sugeriu recentemente que se refletisse sobre a utilidade de instituir um tribunal criminal internacional que julgaria os delitos criminais do terrorismo internacional. Esta ideia foi bem recebida pelos nossos parceiros europeus e outros, e trabalhamos atualmente para desenvolver o conceito. A luta contra o terrorismo exige também uma ação unânime e coordenada do Estado e das instituições. Por fim, e não menos importante, como já disse, devemos procurar soluções para as causas do terrorismo, porque a ação preventiva tem sido, na nossa opinião, um pouco negligenciada. LO: Depois do 11 de setembro, temos notado que a iniciativa de um grande número de resoluções, documentos e recomendações sobre a liberdade religiosa ou de crença circulando nas Nações Unidas foi aceite por países ocidentais e, igualmente, desde há alguns anos, por países islâmicos. Tem havido, também, numerosos encontros, convenções e simpósios, assim como diretivas adotadas por organismos internacionais ao nível mundial e regional. Acredita que os governos concedam a essas organizações internacionais e regionais poderes suficientes para implementar essas resoluções? BA: Do facto de haver ainda violações dos Direitos no que concerne a liberdade religiosa e de convicção, como discursos de ódio incitando à violência e a manifestações violentas de intolerância baseadas na religião, não se pode dizer que os governos tenham feito muito. Pelo contrário, eles devem fazer, nesse campo, mais do que nunca, porque os crimes cometidos em nome da religião não só são uma violação dos direitos fundamentais do Homem como dão também origem a confusão sobre os valores e o papel das religiões e sobre o seu significado para os indivíduos e para as sociedades.
Entrevista exclusiva
Sim, acredito que os governos em todo o mundo têm reagido com firmeza e de maneira responsável no interior das Nações Unidas, concedendo a mais alta prioridade à luta contra a intolerância religiosa, assim como à educação e à tomada da mais alta consciência dos perigos do extremismo religioso. Muitas coisas têm sido realizadas ao nível regional, em particular pelo Conselho da Europa e por todas as suas instituições: o Conselho de Ministros, a Comissão Europeia contra o Racismo, a Comissão para os Direitos do Homem e a Comissão de Veneza. Esta última publicou, em colaboração com o gabinete da OSCE para as instituições democráticas e os Direitos do Homem, preciosas recomendações para uma revisão das leis que afetam a religião ou a convicção. Além disso, devo acentuar o papel particular desempenhado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que elaborou um importante conjunto de leis e de princípios no domínio da liberdade de consciência e de religião. Juntemos a isso a campanha contra os discursos de ódio junto dos jovens, lançada recentemente e dirigida com sucesso pelo Conselho da Europa. Este é um trabalho que está em curso e que deve continuar. LO: Como podemos, num “fórum externum”, identificar e remover os obstáculos existentes e em vias de aparecer, a respeito dos direitos à liberdade de religião ou de convicção? BA: Temo que não tenhamos problemas em identificar, hoje, estes obstáculos porque eles são demasiado evidentes, especialmente em certas regiões do mundo. Eles não afetam apenas a prática da religião, o fórum externum, mas também as crenças religiosas interiores, o fórum internum. As violentas agressões contra os Cristãos e outras minorias religiosas no Médio Oriente, por parte de grupos radicais, têm ultrapassado a simples recusa da liberdade de prática; recusam também a liberdade de religião em privado. Para a maior parte dos países, a solução é a democracia: um sistema democrático que crie e garanta o quadro jurídico e institucional para o livre exercício das crenças religiosas. Diferentes denominações têm vivido juntas durante séculos, e mesmo bem antes de existir a democracia tal como a conhecemos. Portanto, tudo se resume aos Estados. Os governos são responsáveis pelo destino dos seus cidadãos, em todos os aspetos, e devem ser mantidos por responsáveis desde que tenham aderido aos acordos internacionais. Em que medida alguns de entre eles controlam o seu território, isso é outra questão; mas isso ultrapassa o quadro desta entrevista.
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Entrevista realizada por Liviu Olteanu
LO: Sendo a Roménia um país em que a maioria da população é ortodoxa, que atenção concede às minorias religiosas? Poderia dar-nos alguns exemplos do apoio concedido aos direitos fundamentais e às práticas da liberdade religiosa e de convicção, à liberdade de expressão e às minorias religiosas no seu país? BA: A Roménia é um país em que coabitam 18 denominações juridicamente reconhecidas; 10 de entre elas pertencem a minorias nacionais. É verdade que uma larga maioria é ortodoxa; mas ela é ecuménica em espírito. A Roménia foi o destino da primeira visita jamais feita por um chefe da Igreja Católica a um país ortodoxo: a visita histórica de Papa João Paulo II em 1999. Penso que é necessário procurar a primeira explicação desta situação no bom senso dos membros locais de todas estas denominações, que aprenderam a viver em conjunto através dos bons e dos maus dias, procurando o seu apoio e a sua direção na sua religião. Depois, é também a obra de diversos governos e parlamentos desde 1989, que forneceram o quadro jurídico e institucional necessário, garantindo a verdadeira liberdade de religião. A Constituição de 2003 estipula o princípio da não-discriminação com base na religião e também o princípio da liberdade de consciência e de religião. Além disso, a redação da Lei de 2006 sobre a liberdade de religião e o regime geral dos cultos beneficiou de um largo processo de consulta, tanto no interior, como no plano internacional. Este processo durou quase dois anos, assistiu a numerosas consultas com os representantes das denominações religiosas, da sociedade civil e das instituições públicas, assim como os simpósios e as mesas redondas consagrados a este assunto. Isso resultou num conjunto consistente de legislações capazes de fazer face à complexidade da vida religiosa na Roménia. O resultado é que todas as denominações religiosas beneficiam de um apoio financeiro do Estado, e que as minorias étnicas gozam de serviços religiosos na sua língua materna. Porque damos uma tal importância às minorias religiosas? Primeiro porque a Roménia tem a intenção de honrar os seus compromissos no domínio dos Direitos do Homem. Em segundo lugar, porque acreditamos na ética da reciprocidade: visto que a religião é uma parte essencial da identidade pessoal, esperamos que as minorias romenas presentes noutros países beneficiem de um tratamento similar. Gostaria de chamar a vossa atenção para um último ponto: também temos uma minoria muçulmana indígena – as comunidades turca e tártara no Leste da Roménia. Estas deram um importante contributo para a construção da Roménia como Estado membro da Comunidade Europeia e da NATO. Isto
Entrevista exclusiva
para responder aos que consideram que algumas religiões são incompatíveis com a Europa, a democracia ou certos conceitos sobre a segurança. LO: Que influência pode ter, para a paz e a segurança no mundo, este diálogo inter-religioso, o respeito pelas diferenças, a tolerância e o papel das minorias religiosas? BA: Devemos ter consciência de que a diversidade religiosa é uma vantagem e não um problema. Ignorar ou gerir mal significa privar a sociedade de uma preciosa fonte a favor da democracia. As tensões e as violências, motivadas pela religião desde há uns anos, mostram claramente que os Estados devem, desde logo, dar importância à liberdade de religião, a fim de criar um clima de paz e de segurança nas comunidades multiculturais e multirreligiosas. A coesão social não significa eliminar a identidade cultural e religiosa, nem a assimilação: significa a integração na vida social da comunidade mais vasta e culturalmente diversa. O diálogo inter-religioso é, portanto, de primeira importância. Este diálogo deve ser promovido por todos os atores envolvidos, sejam eles governamentais ou não. Neste domínio, não posso senão exprimir a minha mais elevada apreciação pelo trabalho realizado no decurso dos anos pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa na promoção deste diálogo inter-religioso. Este é um esforço que gostaria de ver multiplicado nesta época, em que tantos acontecimentos dramáticos têm lugar na cena mundial. LO: Que mensagem final gostaria de partilhar com os leitores da revista Consciência e Liberdade? BA: A criação de um conjunto completo de leis internacionais sobre os Direitos do Homem é, talvez, uma das realizações humanas das mais importantes do último meio século. Isto tem dado o exemplo ao mundo civilizado e constitui um instrumento útil para abordar os problemas dos Direitos do Homem. É, portanto, nosso dever salvaguardar e melhorar, na medida das nossas capacidades, o que tem sido realizado por alguns dos melhores espíritos jurídicos e políticos. LO: Gostaria de aproveitar esta ocasião para lhe agradecer de todo o coração pelo tempo que nos consagrou e pelos pontos de vista que partilhou connosco.
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Um esforço universal para uma “diplomacia da liberdade religiosa” – Uma crónica dos acontecimentos na Universidade Complutense e nas Nações Unidas
José Miguel Serrano Ruiz-Calderón 16 Os acontecimentos de 2014, incluindo as perseguições religiosas na Ásia e em África (onde existem conflitos armados), os problemas ligados à liberdade religiosa na Ucrânia e à crise dos refugiados na Europa, associada, em grande medida, à perseguição por motivos religiosos, mostram a necessidade de multiplicar e de reforçar os fóruns de diálogo sobre a liberdade religiosa. Neste contexto, os esforços da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) realizados em 2014 e 2015 parecem ter sido premonitórios. A AIDLR viu bem, organizando colóquios e combinando três elementos fundamentais: o primeiro é o que poderíamos chamar a “diplomacia da liberdade religiosa”, para usar as palavras de Liviu Olteanu, Secretário-Geral da AIDLR; o segundo é a participação de um grupo importante de universitários, o que permite uma abordagem rigorosa e de alto nível das questões colocadas; e o terceiro é a participação ativa de membros de diversas confissões religiosas, provavelmente o elemento mais útil porque essas pessoas exprimem as suas próprias opiniões e propõem pistas para desenvolvimento pessoal, que inclui a exigência da liberdade religiosa. Um exemplo desta tríplice realidade foi o encontro organizado em 17 de janeiro de 2014 pela AIDLR na sede do Instituto para os Direitos do Homem na Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid (UCM). Este acontecimento foi consagrado a questões relativas às minorias religiosas e ao tratamento discriminatório que lhes é aplicado, tratamento que atenta contra o verdadeiro respeito pela dignidade humana. Como foi dito, “a pedra de toque do respeito pela liberdade religiosa é a forma como as minorias são tratadas”. Este tratamento é precisamente o que permite avaliar o verdadeiro respeito pela dignidade humana que deve ser compreendida no seu duplo sentido: o que é “sagrado” e o que está para além da avaliação económica.
Um esforço universal para uma “diplomacia da liberdade religiosa”
O colóquio que teve lugar na Universidade Complutense teve dois efeitos determinantes: um é o facto de que numerosos universitários se interessaram pela liberdade religiosa no seio das grandes instituições públicas no plano nacional e internacional; o outro é que deu a possibilidade, a um bom número de confissões religiosas, de estarem presentes no quadro universitário, de que, até certo ponto, estavam privadas ao longo do tempo, salvo nas universidades confessionais. Neste sentido, pode ser sublinhado que a Universidade Complutense, mesmo sendo de origem fundamentalmente confessional ao ponto de não poder conceder diplomas em Direito Civil, tornou-se posteriormente na Universidade do Estado por excelência, segundo o modelo napoleónico. O laço entre a religião e os direitos fundamentais é assim adquirido, no quadro universitário, objetivo pelo qual a AIDLR tem trabalhado desde a sua fundação. Além disso, este novo estatuto deu lugar a uma colaboração entre o Instituto dos Direitos do Homem e o Secretário-Geral da AIDLR, este último tendo sido anteriormente aluno deste Instituto, depois bolseiro da Universidade de Oxford por intermédio deste Instituto e, finalmente, colaborador e professor deste Instituto. Uma parte dos convidados e dos participantes neste colóquio dependiam das Nações Unidas, do Conselho da Europa, do Parlamento Europeu, do governo espanhol; outra parte era composta por especialistas internacionais de confissões religiosas e de ONG internacionais. A intervenção do professor Heiner Bielefeldt sobre “a necessidade de programar regularmente este género de eventos” foi particularmente marcante. Nesta perspetiva, o Instituto previu organizar, com a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, um próximo colóquio em 2016. Além dos universitários, estavam presentes o professor José Iturmendi Morales (filosofia do Direito, da UCM); o professor Raúl Canosa Usera, deão e professor de Direito Constitucional; o professor Alberto de la Hera (Direito Eclesiástico e História Americana); o professor Fernando Falcon Tella, diretor do Instituto dos Direitos do Homem da UCM; Liviu Olteanu, especialista dos Direitos do Homem do Instituto dos Direitos do Homem, colaborador, professor e investigador deste Instituto, nomeado recentemente membro de pleno direito deste Instituto; o professor Vicente Espinar (Direito Internacional da Universidade de Alcalá de Henares); e um grande número de especialistas. Deve também assinalar-se a presença ativa de estudantes inscritos nos Mestrados em Direitos Humanos e em Direito Internacional e Relações
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Internacionais da UCM e no curso duplo de Direito e em Administração e Gestão da mesma universidade, igualmente o curso de Direito e o Mestrado em Mercados Financeiros do Instituto de Estudos de Mercados Financeiros. No Palácio das Nações Unidas O sucesso deste acontecimento encorajou a AIDLR a organizar, em 10 de junho do mesmo ano, uma mesa redonda de peritos sobre o seguinte assunto: “Os Direitos do Homem ao nível mundial, a liberdade religiosa e as minorias religiosas; ‘Dialogue Five’.” Este acontecimento teve lugar na sede das Nações Unidas, em Genebra, no decurso da 26ª sessão da Comissão dos Direitos Humanos desta organização. Além da participação da AIDLR, deve assinalar-se o apoio prestado pelas delegações permanentes do Conselho da Europa, da República do Uruguai, a missão do Canadá e os reis de Espanha e da Noruega. No plano puramente académico deste acontecimento, que teve lugar na sede internacional dos Direitos do Homem, podemos anotar o lançamento do livro Les droits de l’homme et la liberté religieuse au niveau mondial: un nouvel équilibre ou de nouveaux défis? Não se pode exagerar a importância deste livro. Desde logo, ele comemora um acontecimento marcante: o 65º aniversário da revista Consciência e Liberdade, que é a mais antiga revista consagrada à liberdade religiosa, e uma das mais antigas revistas que se concentram sobre os direitos fundamentais do Homem. Na introdução desta revista – intitulada “Feliz aniversário!” – Bruno Vertallier, doutor em teologia e presidente da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, escreveu: “A liberdade de pensamento e de religião mantém-se num equilíbrio frágil.” Além disso, chamamos a vossa atenção para a importância das contribuições trazidas por esta revista. Depois da introdução de Bruno Vertallier e o editorial de Liviu Olteanu, a primeira parte traça a história da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa apresentada sob a forma de artigos escritos pelos presidentes do Comité de Honra, de funcionários das Nações Unidas e de antigos secretários-gerais. A lista, impressionante, inclui documentos destinados à revista e outros publicados em diversas ocasiões. Entre os autores citamos: Jean Nussbaum, Eleanor Roosevelt, Edgar Faure, René Cassin, Léopold Sédar Senghor, Mary Robinson, Javier Pérez de Cuellar, Boutros Boutros-Ghali, Gianfrando Rossi, Maurice Verfaillie e Karel Novak. A segunda parte do livro compreende uma série de respostas a uma questão geral sobre “Os Direitos do Homem e a liberdade religiosa no mundo atual: um
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novo equilíbrio ou novos desafios?”. Personalidades como o Secretário-Geral das Nações Unidas Ban Ki-moon, o antigo Alto Comissário Navi Pillay, o antigo Secretário-Geral Kofi Annan, o professor e relator especial das Nações Unidas para a liberdade de religião e de convicção Heiner Bielefeldt, a relatora especial das Nações Unidas para a liberdade de religião e de convicção Laura Dupuy, o embaixador Petru Dumitriu, o antigo embaixador Robert Seiple, o juiz Harald Mueller, o professor José Miguel Serrano e o Secretário-Geral da International Religious Liberty Association John Graz, deram a sua breve e enriquecedora contribuição. A terceira parte, mais especificamente histórica, trata de liberdade e da liberdade religiosa, referindo-se ao 1700º aniversário do Édito de Milão. Os seus autores são a professora Marta Sordi, o antigo Secretário-Geral da AIDLR Pierre Lanarès, Monsr. Timiadis, Monsr. Pietro Pavin, os professores Ganoune Diop e Mohamed Talbi. Este livro é uma obra de referência e é particularmente pertinente. Merece, certamente, ter sido apresentado, como foi, em Genebra. Demonstrou, também, o esforço da universalidade da AIDLR. O número especial da Consciência e Liberdade foi editado em francês, inglês, espanhol, alemão, romeno e português, o que necessitou de um importante esforço ao nível da publicação. A seguinte citação de Bruno Vertallier é um excelente resumo: “A liberdade de consciência e de religião mantém-se num equilíbrio frágil. (…) Um homem chamado Paulo, numa época da sua vida, privou da liberdade numerosos dos seus concidadãos. Depois de uma profunda evolução na sua própria experiência escreveu: ‘Porque há de ser julgada a minha liberdade pela consciência alheia?’ (I Cor. 10:29).” A apresentação deste livro teve lugar no decurso de uma mesa redonda que teve como moderador Liviu Olteanu. Os participantes foram Bruno Vertallier, Petre Roman, antigo Primeiro Ministro, Laura Dupuy, embaixadora, Petru Dumitriu, embaixador e observador permanente do Conselho da Europa, o juiz Harald Mueller e o professor José Miguel Serrano. A segunda sessão deste acontecimento consistiu num debate sobre o seguinte assunto: “a liberdade religiosa e as minorias religiosas: como desenvolver um quadro holístico”, cujo moderador foi Petru Dumitriu. Teve as intervenções de Rita Izsak, relatora especial das Nações Unidas sobre as minorias, Ricarod García-García, membro do Ministério da Justiça de Espanha, os professores Ganoune Diop, Harry Kuhalampi e Heiner Bielefeldt, e o Secretário-Geral da AIDLR, Liviu Olteanu.
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Durante este debate foi desenvolvida a ideia de um diálogo a cinco vozes, conceito sob a égide da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa e que implica que governos, diplomatas, chefes religiosos, universitários e as ONG colaborem aos níveis local, regional, nacional e internacional para promover a tolerância e o respeito para com os outros, tendo em conta as diferenças de crenças e de religião de cada um, defendendo sempre a dignidade humana e o princípio da liberdade religiosa para todos. O moderador Petru Dumitriu lançou o debate após uma exposição na qual desenvolveu a ideia de que a liberdade religiosa é uma condição existencial para uma sociedade pacífica. É um pilar da democracia. Para ele, uma cooperação que faça tomar consciência do plano dos cinco pilares (“Diálogo Cinco”), mencionado pela AIDLR, é indispensável. A Relatora Especial das Nações Unidas sobre as minorias, Rita Izsak, que também apresentou uma exposição muito comentada, no decurso da reunião de Madrid, exprimiu-se no mesmo sentido. Evocou a necessidade para as minorias religiosas de serem agentes ativos para convencer os seus respetivos governos e para os ajudarem a promover a liberdade religiosa. De igual forma, salientou o aspeto institucional. Um outro interveniente, Ricardo García-García, subdiretor geral das relações com as confissões religiosas do Ministério da Justiça espanhol, fez uma exposição, sobre o sistema espanhol, tornado um modelo ao nível internacional. Este sistema toma em conta o facto de que, em Espanha, há apenas uma confissão numericamente maioritária, e uma série de outras confissões profundamente enraizadas na sociedade. Nesta perspetiva, e considerando a liberdade religiosa como um valor constitucional fundamental, a regra é que todas as confissões religiosas cooperem, tendo cuidado para que esta cooperação não se torne num meio de se imiscuir nos seus assuntos ou de as dominar. Assim, o sistema repousa sobre a igualdade entre as diferentes confissões sobre a separação entre o Estado e as religiões, sobre a cooperação e o respeito dos Direitos do Homem. No que concerne ao pilar institucional e particularmente a participação ativa das ONG, foi o professor Ganoune Diop que interveio, fazendo uma especial referência ao que foi realizado no quadro académico por ocasião do encontro na Universidade Complutense, desenvolvendo a mesma ideia sobre os pilares da Organização das Nações Unidas, já extremamente conhecidos: a Paz, a Segurança, a Justiça, os Direitos do Homem e a Dignidade Humana. O professor Harry Kuhalampi, igualmente implicado no Parlamento Europeu em Bruxelas, exprimiu-se sobre o assunto do respeito das religiões que
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resulta precisamente de um bom conhecimento a seu respeito – o que, pelas razões evidentes, não é muitas vezes o caso no que diz respeito às minorias religiosas. O diálogo deveria ser precisamente um meio para atingir este conhecimento; ele exprime-se pela tolerância, que se compreende não no sentido de se contentar com o ignorar a menor injustiça, mas no de se apegar aos Direitos do Homem. Trata-se, portanto, da tolerância ligada à afeição e ao respeito pela liberdade humana, expressa por essa dignidade. O professor Heiner Bielefeldt resumiu os temas abordados no decurso das duas exposições no mesmo espírito que os oradores precedentes, e, na linha desenvolvida pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, apelou a uma cooperação multifatorial que se deveria desenvolver entre a sociedade civil, os representantes do Estado e as organizações internacionais. A convergência de todos estes esforços criou uma sinergia que se tornou particularmente evidente por ocasião destes três importantes acontecimentos, sendo o primeiro a publicação do livro, o segundo a convenção de Madrid e o terceiro a jornada que evocamos aqui. Este colóquio foi encerrado por Liviu Olteanu, Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, uma instituição que, como acabámos de dizer, organizou o encontro de um certo número de personalidades que se têm distinguido pelo seu envolvimento com a liberdade religiosa. Não é exagero afirmar que a apresentação da revista Consciência e Liberdade permitiu a este último encontrar o seu papel de instância essencial de diálogo sobre a liberdade religiosa entre as instituições internacionais. 16. Professor de Filosofia da Lei e investigador do Instituto de Direitos do Homem na Universidade Complutense de Madrid.
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CAPĂ?TULO
2 A Liberdade: As suas Origens e Horizontes Comportamento, TendĂŞncias, Eventos
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R.P. Henri Didon 18 Na sua admirável obra intitulada “Jesus Cristo”, o monge dominicano Didon conta a história do tempo em que os Príncipes dos Sacerdotes e os escribas queriam criar problemas a Jesus; enviaram-Lhe alguns emissários fariseus e herodianos. Tratava-se de O comprometer perante a autoridade romana… Hipocritamente, foi-Lhe posta esta questão: “É-nos lícito pagar o tributo a César, ou não?” Pergunta perigosa, pergunta pérfida esta sobre o imposto romano. E o Mestre respondeu aos enviados dos Seus inimigos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Didon indica a importância que devia ter, para a Humanidade, esta frase que distinguia, pela primeira vez, o império político e o império espiritual. E que mostra aos homens a necessidade de dar ao domínio da fé a sua plena independência.
“(…) Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Era um ditado jurídico nas escolas, em todos os lugares onde corria a moeda de um rei, que os habitantes deviam ter por senhor. Corria entre os Judeus duas espécies de moeda: uma profana, outra sagrada; uma simbolizando o Direito terrestre e político e a outra o Direito de Deus. Jesus serviu-Se deste facto para formular uma das verdades mais desconhecidas e mais necessárias: a distinção das duas sociedades a que os homens pertenciam e os dois deveres essenciais que daí derivavam. No plano material, através do seu corpo, da sua vida física e exterior, as pessoas estavam ligadas à sociedade humana, ao seu povo e ao seu país; eram os súbditos de um poder político. Espiritualmente falando, através da sua vida interior e a sua consciência, são parte de uma sociedade religiosa e súbditos de Deus. Em poucas palavras, Jesus traça o caminho em que a Humanidade caminhará a partir daí. Todo o mundo antigo, e os próprios Judeus, viveram numa teocracia em que a Religião e o Estado se baseavam. A força das coisas vinda de Deus tinha levado Israel a separá-las, porque, perdida a sua nacionalidade, Israel já não era mais do que uma Igreja. Mas a ambiciosa esperança de voltar a ser um grande povo e de renovar a velha teocracia subsistia. Desde que Jesus disse: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, a distinção da religião e do Estado está definida, absolutamente estabelecida. O Reino espiri-
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tual que Ele vai criar jamais se confundirá com os reinos da Terra; viverá entre eles e muito frequentemente combatido e perseguido; mas respeitará o seu Direito; jamais renovará as doutrinas do Gaulonita, vingar-se-á deles e dos seus ódios mostrando-lhes justiça, bondade e paz. Os Estados não têm nada a temer da Igreja de Jesus e não receberão dela senão benefícios; não terão garantia mais segura de progresso e de tranquilidade do que a que diz: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Esta simples e poderosa fórmula contém toda a lei das sociedades humanas cuja evolução não é possível senão no indestrutível acordo da autoridade e da liberdade. Sem Deus a autoridade torna-se tirania, e a liberdade revolta. Quando os poderes políticos, sempre inclinados ao despotismo, desejam impor-se brutalmente à consciência, serão repelidos pelos discípulos de Cristo, que aprenderam com Ele a dar a Deus o que é de Deus; e quando os povos, sempre impacientes com o jugo, se deixam levar pelo espírito de revolta serão travados por Aquele que disse: “Dai a César o que é de César.” Toda a vida de Jesus confirma esta doutrina. Jamais alguém O viu a agitar a multidão; nem uma palavra dos Seus lábios que demonstrasse revolta contra a autoridade. Se o tetrarca O ameaça, Ele continua a Sua missão pacífica, se os chefes religiosos O envolvem e O querem perseguir, retira-Se triste, quando o povo incapaz de O compreender, quer proclamá-l’O rei, retira-Se e deliberadamente desencoraja-o, revelando-lhe a Sua missão messiânica, da forma mais chocante. Mesmo quando aceita as suas aclamações, Ele permitiu este aplauso apenas na véspera da Sua morte e nada neste entusiasmo popular pode inquietar os mestres do mundo. Os Seus apóstolos e os Seus sucessores seguiram o Seu exemplo; no meio de perseguições, pregam a obediência àqueles que têm a espada sob a qual tombarão. A velhacaria dos emissários enviados para comprometer Jesus foi frustrada. Esses falsos justos não podem deixar de se admirar perante a Sua sabedoria; silenciam-se e afastam-se confundidos e maravilhados. 17. Artigo publicado na revista Consciência e Liberdade, nº 1, 1948. 18. Da Ordem dos Frades Pregadores.
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O Bispo e o Emir19
Michelle-Marie Fayard 20 Acrescentando um novo capítulo à sua história de heróis da tolerância, Michelle-Marie Fayard evoca hoje, à margem da conquista da Argélia, uma “maravilhosa guerra de religiões” entre um Cristão e um Muçulmano, unidos por uma amizade fraternal, e disputando sobre qual dos dois iria causar mais desgraças. Mas, trata-se da obra de uma historiadora? Sim, sem dúvida, uma vez que este conto oriental não deve nada à imaginação do seu autor. Não se pede à historiadora que seja um juiz impassível. Michelle-Marie Fayard não esconde a sua emoção perante a grandeza da alma dos seus heróis. E convida-nos a seguirmos o seu exemplo. Quem, de entre vós, sonharia em reprová-la? Não foi sem alguns escrúpulos que escolhi o título sob o qual se inscreve este estudo. Noutra parte na nossa Revista, arriscar-se-ia a evocar na mente do leitor alguns desses chamados contos orientais, como tantas vezes escreveu Montesquieu e Voltaire, ou os dois personagens retratados são um assalto à inteligência para demonstrar que a fé é a fraqueza desculpável de uma mente suficientemente esclarecida. Ora, trata-se aqui de um verdadeiro bispo e de um verdadeiro Emir também ligados um e outro à sua religião. O bispo é o Bispo Dupuch, o primeiro bispo de Argel; o emir é Abd-El-Kader, defensor da fé muçulmana. Estes dois homens que tudo parecia separar possuíam, no entanto, uma alma suficientemente elevada para se compreenderem totalmente. Jamais se sentiram desunidos por não praticarem o mesmo culto. Pelo contrário, encontraram razões para melhor se amarem, pois a tolerância é uma virtude ativa que exerce a sua recompensa e que, mais do que qualquer outra no mundo, eleva e enobrece o coração. Esta história é a história de uma amizade entre um Cristão e um Muçulmano. Ela é bela e poética na sua verdade integral, tanto quanto um conto oriental. Gostaria que ela colocasse um ponto brilhante na alma de todos aqueles que duvidam do homem e o crê incapaz de ser bom.
O Bispo e o Emir
A ação deste drama começa em 1841, os primeiros dias da ocupação francesa na Argélia. Numa noite de tempestade, uma mulher de luto, segurando uma menina nos braços, bateu à porta do Palácio Episcopal de Argel e pediu para ser levada à presença do bispo. O porteiro sabia que o Bispo gosta de consolar pessoalmente todas as angústias que lhe vêm confiar. A jovem é introduzida. Por entre lágrimas ela conta uma história igual a tantas outras que se passam quase todos os dias na colónia: o marido, o vice superintendente Massot, foi sequestrado pelos cavaleiros do Emir Abd-El-Kader, que mantém a campanha contra os soldados do general Bugeaud e lhes fez uma guerra sem quartel. Sem quartel? O que o prova? Alguns defendem a reputação da cavalheiresca generosidade muçulmana, que talvez seja merecida. O Bispo Dupuch sabe que este guerreiro do Islão, que prega a guerra santa contra os invasores cristãos, respeita os padres católicos. O bispo, em Argel, não se surpreendeu por ver os nativos, que se apresentavam tão voluntários como fanáticos, assistir com o maior recolhimento às cerimónias cristãs e contribuir com grande caridade para as obras da sua diocese. O Bispo Dupuch confortou a jovem, sorriu para a criança, e prometeu interceder junto do líder árabe para libertar o prisioneiro. Um momento mais tarde, depois de ter meditado diante do crucifixo, o prelado escreveu esta carta a Abd-El-Kader: “Tu não me conheces, mas eu professo servir Deus e no Seu nome amar todos os homens, os Seus filhos e meus irmãos … Se eu pudesse montar a cavalo pelo campo, não temeria nem escuridão, nem o rugido da tempestade, gostaria de ir, gostaria de me apresentar na porta da tua tenda e dir-te-ia com uma voz a que, se não estou enganado a teu respeito, não saberias resistir – dá-me, dá-me, entrega-me um dos meus irmãos que acaba de cair nas mãos dos teus guerreiros … Eu não tenho nem ouro nem prata e não posso oferecer-te em troca senão as orações de uma alma sincera e o reconhecimento mais profundamente sentido da família em nome de quem eu escrevo … ... Ele disse: 'Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia para si mesmos'.” Não se sabe muito bem por que via a carta chegou ao seu destinatário, mas alguns dias mais tarde o bispo recebeu a resposta do Emir: “Recebi a tua carta e compreendi o que dizes. Não me surpreendeu, uma vez que conheço bem o teu caráter sagrado… contudo, permite-me que faça notar que na posição dupla que tomas como servo de Deus e de amigo dos homens, teus irmãos, deverias pedir não a liberdade de um só, mas, muito mais, a de
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todos os Cristãos que têm sido feitos prisioneiros desde que as hostilidades foram retomadas. Além disso. Não será que serias duplamente digno da missão de que falas, se não te contentasses em procurar o bem de 2 ou de 300 Cristãos, mas tentasses ainda procurar o benefício de procurar o bem para com um número correspondente de Muçulmanos que jazem nas vossas prisões? Ele escreveu: 'Faz aos outros o que queres que te façam a ti mesmo'.” Lentamente, muito lentamente, talvez, a autoridade militar desafiadora iniciou as negociações necessárias para a dupla libertação proposta. Mas o Bispo Dupuch não quer vencer o seu adversário em generosidade. Adversário? O santo bispo não sabe, jamais, empregar essa palavra. Ele visita os prisioneiros argelinos que o Emir confiou à sua proteção. As leis da guerra são duras. No campo de Abd-El-Kader, a vida também é rude. Apenas, a lei do Bispo Dupuch não é a lei da guerra. É a lei de Jesus: “Deixai vir a mim as crianças … bem-aventurados os pacificadores … Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.” Ele dará, portanto, asilo aos prisioneiros. Não pode recebê-los senão na casa de Deus. Não é o mais conveniente? As mulheres e as crianças árabes são, portanto, acolhidas na igreja de Santa Cruz da Kasbah. Os pobres cativos podem atender aos seus familiares no tapete do bispo e da catedral; nos bons tapetes usados normalmente apenas para as grandes festas, o Natal, a Páscoa ou o Corpus Christi. Essas pobres mães, cheias de privações, já não têm leite para os seus filhos. Então o milagre continua: o Monsenhor faz chegar cabras vindas de Malta que aclimatou com grande sacrifício para alimentar as crianças do asilo de São Cipriano. E, em breve, à sombra do tabernáculo, sob o sorriso da Virgem e do Menino, as mamãs, felizes, cantam para os bebés adormecidos doces canções árabes que parecem hinos. Podemos permanecer céticos perante os relatos edificantes construídos pelos moralistas de profissão, para mostrar que a virtude é sempre recompensada. Ora, há momentos em que isso acontece, mesmo nas histórias, uma vez que a filha do subintendente Massot reencontrou o seu papá, logo que os prisioneiros árabes voltaram para o campo de Abd-El-Kader onde contaram como o “homem de Deus” tinha salvo os seus filhos. E o Bispo Dupuch recebeu algum tempo depois um magnífico rebanho de cabras enviado pelo Emir para os seus órfãos, em memória do “doce reencontro” (foram estas as suas próprias palavras) que tinha havido entre os sacerdotes franceses e os seus subordinados, para a troca dos prisioneiros.
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“Desculpe”, acrescentou ele, “a pequenez do presente, porque estou um pouco desprovido neste momento”. Era a estrita verdade. Cercado por todos os lados pelo infatigável Bugeaud, Abd-El-Kader sentia aproximar-se a hora em que devia renunciar à luta; mas, mesmo nesse tempo de desespero, jamais devia afastar-se, nos seus encontros, com um inimigo que lhe movia então uma guerra implacável, de uma caridade em que os Cristãos teriam podido reconhecer o espírito do Evangelho. Conta--se que ele fez transportar, para a sua própria tenda, um soldado francês que, depois de ter sido ferido três vezes, por fim caiu mortalmente ferido. Tinha-o assistido na sua agonia e prestou-lhe todos os cuidados possíveis para adoçar os seus últimos momentos. “Se esse soldado ainda vivesse” – dirá mais tarde o Bispo Dupuch – “gostaríeis, como eu, de ouvi-lo contar este ato heroico, ou, digo eu, este modo cristão de se vingar”. A família do Emir, que partilhava com ele, na sua tenda, os azares e os perigos do combate, partilhava, também, a caridade. A sua mãe tinha tomado a responsabilidade pela proteção das mulheres cristãs: esposas de colonos, vivandeiras, por vezes algumas pobres raparigas argelinas atraídas pela aventura. Apercebia-se de que uma das prisioneiras estava doente? Rapidamente enviava-lhe café, açúcar, tirado da sua própria ração. Confiava aos mais infelizes trabalhos de costura que pagava por vinte vezes o seu valor, para lhes permitir melhorar um pouco a sua sorte. O Emir quis fazer ainda melhor. Ele escreveu uma segunda vez ao santo bispo em quem tinha encontrado uma generosidade igual à sua, a fim de negociar novas libertações. Ele propunha que um padre viesse imediatamente assistir aos cativos: “Junto de mim não lhe faltará nada e cuidarei que ele seja honrado e respeitado entre todos nós, como convém ao seu caráter de homem de Deus e como seu representante. Orará, cada dia com os prisioneiros e consolá-los-á. Ele poderá corresponder-se com as suas famílias e por este meio prover-lhes dinheiro, roupas, livros, numa palavra, tudo o que possam desejar e que lhes adoce os rigores do cativeiro. Apenas, assim que chegue, e de uma vez por todas, prometerá jamais revelar nas suas cartas, nem os meus acampamentos, nem as minhas operações militares.” Bugeaud, guerreiro duro, que recusava qualquer negociação com o Emir, achou que não devia fazer exceção neste caso. O primeiro capítulo desta bela história de amizade estava assim terminado.
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*** O segundo não tardaria a começar: é ainda uma história de prisioneiro. Abd-El-Kader, vencido, serviu-se da generosidade do duque de Aumale, filho de Luís Filipe, que lhe prometeu transportá-lo para um país muçulmano onde teria o direito de viver livre. Mas a Câmara francesa tornou o Emir responsável de um massacre de feridos que teve lugar na sua ausência, na desordem da retirada (cruel, mas única exceção à lei da caridade que o Emir sempre tinha praticado), recusou ratificar esta promessa. Seguiu-se a revolução de 1848. A Assembleia Constituinte que suportará, perante a História, a responsabilidade sangrenta dos dias de junho, não compreendeu melhor do que a Câmara da Monarquia de julho como uma palavra dada ao vencido, deveria ser sagrada. O sábio Arago, homem de integridade inegável, mostrou ser tão brutal como tinha sido Bugeaud, o duro aldeão de Perigord. Ele declarou da tribuna “que a República Francesa não deveria envolver-se em nada perante Abd-El-Kader e que ele deveria ser recebido na situação em que o antigo governo o tinha colocado. Isto é, prisioneiro”. O Emir e a sua família – a sua idosa mãe, a sua esposa e os seus filhos, dois deles morreriam em França – foram internados no Forte Lamalgue, perto de Toulon. Sendo depois transferidos para o Castelo de Pau, sem dúvida uma residência principesca e um museu sumptuoso, mas que é, apesar disso, uma prisão com as suas abóbadas, as suas paredes grossas, os seus longos corredores sombrios e os guardas à porta. Fazia ali frio no inverno, longe do Sol de África. Na sua aflição, Abd-El-Kader pensou imediatamente no Francês que tinha sabido compreender, mesmo que combatesse os seus. Mas a sorte não foi mais favorável ao bispo do que ao Emir. O Bispo Dupuch, coberto de dívidas devidas aos seus abundantes atos de caridade, teve de apresentar a sua demissão da sede episcopal de Argel. Regressou ao seu refúgio em Bordéus, a sua cidade natal, onde vivi da sua reforma, orando. É, como ele, um vencido. O apelo do prisioneiro reabre-lhe o caminho da ação. Tudo o que lhe resta de força e de crédito vai, a partir daí, usar para obter a libertação de Abd-El-Kader. De momento, nada mais tem para lhe oferecer do que a sua compreensão; mas as riquezas infinitas de uma tal caridade cristã não era aquilo de que o pobre exiliado mais necessitava? Vai, portanto, visitá-lo ao Castelo de Pau. Era a primeira vez que se encontravam. Acontece que uma amizade epistolar não resiste ao contacto direto; mas dois seres unidos já por tão nobres recordações não podem mais separar-se um do outro.
O Bispo e o Emir
Quando o bispo viu vir até ele este homem com o corpo frágil, vestido de luto, com o rosto pálido, carregado de sofrimentos, quando os seus olhos se encontraram com os olhos azuis do Emir, cheios de uma dolorosa resignação, não foi capaz de suster as lágrimas. Tomou-o nos seus braços e as mais ternas consolações da fé católica subiram do seu coração aos seus lábios para adoçar o sofrimento desta alma muçulmana. No fim do ano 1848, Abd-El-Kader, transferido de Pau para Amboise, pediu para parar em Bordéus para poder rever o seu amigo. O Bispo Dupuch acolheu-o com uma alegria fraternal e partilhou com ele a sua esperança: a estrela de Luís Napoleão Bonaparte subia no horizonte. Este príncipe tinha conhecido a prisão. Ele era sobrinho do prisioneiro de Santa Helena. Ele não poderia desinteressar-se da sorte de Abd-El-Kader; tanto mais que um gesto a favor no nobre exilado lhe traria o apoio entusiástico de muitos Franceses que hesitavam em ligar-se a ele. Porque Abd-El-Kader gozava, então, de uma popularidade que poderia causar inveja a Luís Napoleão Bonaparte: com uma habilidade que não se supunha ter um homem totalmente desprovido de espírito prático, o Bispo Dupuch tomou em mãos ganhar, para a causa do seu amigo, desde logo Bordéus e em breve toda a França. Oficiais do exército estacionado em África vieram corroborar o seu testemunho. Havia também a palavra dada pelo duque de Aumale que a República não respeitou. Canções, poemas exaltando o emir prisioneiro e também, por vezes, daqueles que o venceram; se bem que quando Abd-El-Kader chegou a Bordéus foi recebido com as honras devidas aos soberanos. E foi, na verdade, um espetáculo pouco comum que este guerreiro muçulmano tenha atravessado numa caleche uma cidade francesa entre dois prelados da Igreja Católica, o seu amigo Bispo Dupuch irradiando esperança, e o Bispo Donnet, arcebispo de Bordéus, que partilhava o entusiasmo do velho bispo de Argel. Quando teve de deixar o seu amigo, o Emir lançou sobre os seus ombros um precioso albornoz de lã branca, como ele tinha feito aos seus mais caros camaradas de combate; depois, com o coração mais leve, encaminhou-se para a sua nova prisão. Mas o castelo de Amboise não era mais do que uma prisão onde o Emir e a sua família iriam viver ainda quatro longos anos, marcados por desgostos e angústias. Talvez os cativos sentissem saudades da velha fortaleza de Henrique IV, onde o Sol meridional e as montanhas bem próximas lhes lembravam um pouco as paisagens da Argélia. O Loire foi muitas vezes risonho e os poetas
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cantaram a doçura do seu céu; mas tem também as suas brumas, os seus longos invernos batidos dos ventos, as suas primaveras cinzentas molhadas pela chuva. Lembranças lúgubres estavam ligadas àquele velho castelo tocado, no entanto, pelas graças da Renascença: a porta onde o jovem Carlos VIII pulava como um cervo no fogo dos seus vinte anos, com'+ocou de frente tão violentamente que morreu; a varanda de ferro sobre o Loire onde François de Guise deixou pendurados, até que os abutres os tivessem despojado, os corpos dos conjurados Huguenotes culpados de terem tentado a deposição do jovem rei Francisco II. Por fim, aqui viveram Luís Filipe e a sua família que recentemente tinham partido para o exílio, mas um exílio livre. O Emir instalou-se na sala dos Estados cujos altos arcos e as colunas decoradas não têm qualquer semelhança com as mesquitas que ele amava. Ele fazia a sua vida entre a leitura, as longas conversas com os seus familiares, a instrução dos seus filhos e, sobretudo, a oração. Nada mais parece permanecer nele do orgulhoso guerreiro de outrora, que amava as belas cavalgadas e o aroma da poeira. Tal como o seu amigo cristão, Abd-El-Kader já não era mais do que um homem de Deus. Talvez, na verdade, ele nunca tivesse sido outra coisa. Talvez o seu rosto de combatente não fosse mais do que uma máscara imposta pelas circunstâncias: talvez, no fundo do seu coração, o Emir jamais tenha acreditado nas virtudes da força. Enquanto lutava contra o corpo expedicionário do general Vallée, tinha declarado a um oficial encarregue de negociar com ele: “Não vos compreendo; a vossa ciência e o poder das vossas armas tornam-vos loucos? Respeitam mais o forte do que o justo e o homem com uma espada do que um sacerdote. Aqui está este camelo. É mais forte do que eu. Acreditas que isso me inspira respeito por ele?” Como é que o vencido de Amboise, capaz de tão bela lucidez no momento da sua glória, não se teria refugiado desde logo no culto de um Deus de justiça que reprova o uso da espada? Todos aqueles que se aproximaram dele nesse momento são unânimes em admirar a sua humildade, o seu desapego a todas as grandezas humanas, a sua comovedora caridade. O coronel Daumas, a quem o governo francês entregou a sua guarda, não tardou em sofrer com este trabalho de carcereiro. Prendeu-se também à amizade pelo seu prisioneiro “doce, simples, afetuoso, resignado, modesto, não pede nada, não se ocupa de nada deste mundo, jamais se queixa, desculpa os seus inimigos, os que causam o seu sofrimento e não permitindo que ninguém diga mal deles na sua presença”. Contudo, o Emir conhecia também horas de amargura. Tinha deixado Bordéus com a certeza de uma libertação próxima; ora os dias juntavam-se
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aos dias sem que nada viesse confirmar esta esperança prematura. Durante um inverno muitos dos que lhe eram queridos e cuja presença adoçava o seu exílio foram depositados a descansar no pequeno cemitério do castelo de Amboise no seio de uma terra cristã. Porque não estaria ali o seu amigo bispo para o ajudar a percorrer um caminho tão duro? À cela do convento em Bordéus, mais austera do que a prisão de Amboise, onde o Bispo Dupuch se consome em orações, chegam cartas pungentes, suplicando ao santo homem que venha ainda uma vez mais levar ao cativo o conforto da caridade. O bispo era pobre, doente, gasto pela penitência e pelo desgosto. Não podia empreender essa viagem: fez chegar junto do seu infeliz amigo algumas irmãs da caridade que poderiam assisti-lo e tratar das suas doenças. Os amigos do prelado não aprovaram muito o seu gesto. De que socorro serão para o Emir e os seus, estas mulheres estranhas quer na raça quer na fé? Seria que os exilados não veriam nisso a prova de um proselitismo estranho? A resposta de Abd-Ele-Kader não tardou a dissipar estes vãos escrúpulos: “Tu nos mandas dizer que não nos podes visitar antes do fim do jejum dos Cristãos. Esta última notícia contristou-nos para além do que podemos dizer. Quiseste enviar estas irmãs da caridade junto de nós e que já começaram a realizar as suas misericordiosas funções. Ah! Nós, tanto homens como mulheres, temos grande necessidade de socorro para o tempo em que aqui estamos sofrendo cruelmente.” Na páscoa de 1849, o Bispo Dupuch cede, enfim, às instâncias do seu amigo e passou com ele vários dias “na mais doce intimidade”, como ele gostava de recordar depois. Sob as altas ogivas do rei Carlos VIII, o bispo e o piedoso muçulmano conversaram de coração aberto acerca de tudo o que era caro e sobretudo da sua fé diferente. O bispo admirava, sem reservas, a piedade tão profunda do seu amigo e a elevação da sua alma: “Ele é generoso, reconhecido, com facilidade em perdoar, de uma piedade sem afetação, muito mais próximo da verdade do que qualquer um de nós pode supor.” “A religião de Jesus Cristo” – dizia, por seu lado, o Emir – “perece-me, cada vez mais, ser a doçura, a indulgência e a própria bondade de Deus”. Se bem que chegando o momento em que o bispo se perguntava se o seu amigo não chegaria a ser Cristão, o Emir soube desiludi-lo com tanta afeição e delicadeza que o velho missionário nem sequer pensou em se sentir dececionado. Jamais, talvez, duas almas de eleição se elevaram mais alto na tolerância e na compreensão mútuas. O dia da separação, contudo, chegou rapidamente; o cativo não procurar, esconder a sua melancolia:
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“Vais, portanto, deixar-me. Como os dias passaram rápidos para mim, mas voltarás. Ah! Voltai em breve, porque sabes bem, o meu coração não ficou saciado.” Quando se abraçaram, uma última vez, as testemunhas das suas despedidas (um prisioneiro tem sempre testemunhas) viram que ambos choravam. Regressado a Bordéus, o Bispo Dupuch, num momento de desencorajamento pelo seu primeiro fracasso, retoma, com novo ardor, a sua luta para libertar o glorioso vencido. Apressadamente, mas com a eloquência mais convincente, aquela que vem do coração, escreveu o relato da sua visita a Amboise. E de novo a imprensa francesa se emocionou, e manifestaram-se as simpatias. Luís Napoleão Bonaparte tornou-se no Príncipe Presidente, acabou por tomar, por sua vez, o caminho de Amboise. Alma quimérica, mas generosa, o príncipe foi, ele próprio, abalado pela dignidade e pela grandeza de alma de Abd-El-Kader. E trouxe-lhe a ordem de libertação, a 16 de outubro de 1852. No dia 21 de dezembro seguinte, o Emir e os seus acompanhantes embarcaram para a Síria. Abd-El-Kader, na alegria da liberdade reencontrada, permaneceu sensível à mágoa de não ter podido dizer adeus ao amigo cujo apoio nas horas dolorosas tinha sido tão necessário; e, por último, escreveu-lhe antes de deixar Marselha: “É para nós a coisa mais dolorosa ficarmos privados de te ver, de te abraçar no momento da nossa partida… Partimos com a mais íntima convicção de que, em qualquer lugar do mundo onde estejamos, o teu coração jamais se separará do nosso e de que assim gozaremos das doçuras da tua amizade como nós a gozámos sobre o solo da França. Saudações, uma vez mais, da parte daquele que te amará sempre. Esperamos da tua extrema bondade que nos escrevas pelo menos uma vez em cada mês…” Esta correspondência não deveria com efeito encontrar fim senão pela morte do Bispo Dupuch, a 10 de julho de 1856. *** Contudo a nossa história ainda não terminou, porque para os verdadeiros crentes a morte é uma realidade bem pequena: não é mais do que uma separação, do que uma aparência. As orações do Corão continuaram a envolver a alma cristã do santo bispo e, cada vez que no seu retiro da Síria O emir recebia um visitante vindo de França, comprazia-se em evocar a recordação daquele que dos Franceses tinha amado mais. Quanto mais crescia na via da espiritualidade,
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mais se afirmava o seu desejo de testemunhar a todos os homens, sem distinção de raça ou de fé, um amor verdadeiramente fraternal: mas bastava que se identificasse como Cristão para ter direitos particulares à sua amizade e à sua proteção. Todos os seus atos tendiam a desenraizar o preconceito, opondo um ao outro, desde as Cruzadas, entre Cristãos e Muçulmanos. “Se os Cristãos e os Muçulmanos me dessem ouvidos” – declarou ele no fim da vida – “eu faria cessar as suas divergências e tornar-se-iam irmãos”. Teve a oportunidade de dar, com perigo da própria vida, uma prova em como não existe nada de mais belo na história da Humanidade do que isso. A 9 de julho de 1860 rebentou um motim em Damasco. A população muçulmana, fanatizada por motivos muito mais políticos do que religiosos, voltou-se contra os Cristãos, incendiando as suas casas, massacrando mulheres e crianças. Os soldados do Sultão, pressionados, juntaram-se aos perseguidores. Acompanhado, apenas, por uma pequena escolta de argelinos, Abd-El-Kader lançou-se para o ponto de maior confusão para oferecer proteção e asilo aos Cristãos ameaçados. Atiram-lhe pedras, ameaçam-no, tratam-no como um renegado. Impassível perante a violência apela à razão dos seus irmãos desvairados. Lembra-lhes as palavras esquecidas do Profeta: “Não obrigar em matéria de religião. O verdadeiro caminho é bem distinto da mentira.” Os versos do Corão, tantas vezes meditados que prescrevem a bondade, o perdão, a justiça, estão nos seus lábios para desarmar os furiosos. “Ó meus irmãos, gritou ele, a vossa conduta é ímpia; é hoje um dia de batalha em que têm o direito de matar pessoas? A que grau de baixeza descestes vós, uma vez que vejo Muçulmanos cobrirem-se do sangue de mulheres e crianças? Não disse Deus: 'Aquele que tiver morto um homem sem que este tenha cometido um crime de morte ou desordens no país, será visto como um assassino de toda a raça humana'.” E, dirigindo-se aos soldados, acrescentou: “Vamos lutar hoje por uma causa tão santa como aquela pela qual combatemos juntos outrora.” Através das estreitas ruelas da velha cidade, a pequena tropa do emir avançou lentamente, prosseguindo na sua difícil missão de paz. “Oh! Cristãos, infelizes” – apela o Emir – “vinde a mim; Abd-El-Kader, filho de Mahi-Ed-Din. Vinde sob o pavilhão de França e eu vos protegerei com o sangue do meu corpo… A cabeça de cada Cristão de Damasco é a minha cabeça”. Na noite de 10 de julho de 1860, 12 000 Cristãos de Damasco estavam reunidos sob a proteção de Abd-El-Kader, o Emir. A sua família e os seus servos prodigalizaram os seus cuidados aos feridos, reconfortaram as mulheres e
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as crianças que ainda tremiam de pavor. E ninguém saberá jamais se, sob esta pesada tarefa, Abd-El-Kader teve tempo de se lembrar de que estava, desta forma, a celebrar o aniversário do seu amigo Antoine Dupuch convocado por Deus quatro anos antes para este dia… Nesta data, parece-me que é necessário marcar o fim da luta de generosidade iniciada desde 1841 entre o bispo e o Emir; e podemos perguntar quem, se o muçulmano ou se o cristão, ganhou esta maravilhosa guerra religiosa. Perguntemo-nos, pelo menos, durante quanto tempo não o compreendemos e nos recusamos a andar no caminho da luz que eles nos ensinam. Por outro lado, a resposta é simples: serei verdadeiramente Cristão, se hesito, um instante, em dizer que foi o Muçulmano? 19. Artigo publicado na revista Consciência e Liberdade nº3, 1950. 20. Professor Universitário agregado.
As nossas liberdades duramente adquiridas desaparecem pouco a pouco21
Carlyle B. Haynes 22 Lutar pela liberdade religiosa? Nos nossos dias? Porquê, uma vez que ninguém nos impede de crer no que queremos e como desejamos? Leiam, portanto, este artigo de Carlyle B. Haynes, que nos chega dos Estados Unidos, se duvidam da relevância da nossa missão. O mal da intolerância grassa por toda a parte e manifesta-se em regiões justamente reputadas pelo seu amor à cultura e à civilização. Será isto o fruto do nosso século de ferro e de fogo? As páginas de Haynes têm um ardente perfume de Apocalipse. Para vocês que não acreditam na utilidade de “fazer uma cadeia humana” para a liberdade das consciências, leiam, reflitam e… atuem. Para onde foram as liberdades humanas? Todos aqueles que lerem esta história não deixarão de ficar impressionados com o facto de que as liberdades adquiridas com um alto preço estão em vias de desaparecer com o progresso e as mudanças da nossa época. Em todo o mundo desenvolve-se a intolerância, um ódio crescente e um novo despontar de crueldade e de maldade. Chegámos a acreditar que os primeiros séculos da Idade Média estavam bem no passado, que o mundo tinha avançado de tal forma a não ser de novo envenenado pelas horríveis medidas de opressão dos tempos passados. Tínhamos, portanto, chegado a pensar que a civilização trazia com ela a caridade e a bondade. Mas hoje, em todo o mundo, forças tenebrosas estão de novo a tirar das terríveis cavernas, para onde a civilização as tinha enviado para as esconder, e estão a ponto de varrer os ganhos arduamente disputados em mais do que uma guerra pela liberdade. Por todo o mundo vemos o mundo regredir, em relação ao decurso do progresso, velho de séculos, e leva-nos, de novo, ao uso das armas, de leis e de medidas opressivas que são dificilmente concebíveis no estado atual da civilização. O mundo tinha saído, apenas recentemente, de um pesadelo de horror, durante o qual, no decurso de longos séculos, era uma prática estabelecida e universal, caçar, oprimir e perseguir as minorias, quer de raça, quer de religião.
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Esses mesmos poderes do mal fazem de novo parte integrante da vida das nações civilizadas. Há, atualmente, em diversos países, minorias que vivem no terror perpétuo da prisão, dos campos de detenção, do trabalho forçado, dos pogroms, das “purgas” e dos “banhos de sangue”. E este medo tem como causa única a sua raça e a sua religião, ou estas duas razões reunidas, ou, por fim, porque têm simplesmente exercido o seu direito divino de pensar e de expressar as suas opiniões e as suas convicções. Os preconceitos, os fanatismos, as opressões, e as injustiças bárbaras dos primeiros séculos da Idade Média renovam-se, atualmente, ao nosso redor. Ódios, lembrando os das primeiras hordas de bárbaros, reacendem-se novamente. O espírito de Nero e o pecado de Caim não passaram de moda. Estão a ponto de se repetir. O avanço da civilização não foi apenas retardado, mas para claramente no seu percurso. Na verdade, voltámos atrás, aos primeiros séculos da Idade Média. Há, mesmo na América, quem participe neste espírito de intolerância e que não hesitaria em rejeitar os ideais na nossa Constituição e o próprio espírito da Declaração da Independência. Esta Nação tem-se comportado, desde a sua Constituição, como um farol da liberdade, da democracia e da justiça social. Há aqueles que, no interior das suas fronteiras, procuram suprimir os princípios tradicionais e voltar às medidas repressivas, à intolerância. Aos feitiços do passado. As suas atividades vindicativas tendem a fazer ressurgir paixões raciais e religiosas pelo facto de que procuram suprimir qualquer opinião e qualquer culto para além do seu. Estão em curso mudanças sensacionais. Estão a ter lugar mudanças sensacionais São-nos oferecidos quase diariamente nos nossos dias exemplos do rápido e brusco aniquilamento das liberdades humanas, numa vasta escala. É absolutamente espantoso constatar com que rapidez as realizações do progresso humano, no decurso de décadas e de séculos, podem ser levadas a desaparecer, como pelo gesto da mão de um mágico. Vivemos numa época de mudanças rápidas, em que o trabalho, atento e laborioso, de longos anos de lutas e de elevado custo de vidas e de sangue, é impiedosamente destruído no espaço de uma noite. Se se produz uma crise nacional, é seguida de confusão e de agitação. Um líder espetacular aparece então como que por encanto, faz promessas impossíveis de realizar e ganha partidários aos milhões. Estes ocupam o poder; defendem-no na anulação e na remoção de todos os obstáculos que impedem a via do poder ditatorial; fazem da lealdade, para com ele, um fetiche, e da deslealdade uma traição. Gritam de satisfação quando ele procede à supressão das garantias
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constitucionais de toda a sociedade civilizada bem organizada e que ele toma nas suas próprias mãos o poder que é de um despotismo absoluto. Esta é uma imagem impensável. Depois de séculos de lamentáveis lutas e sacrifícios, a civilização, no início do século XX, aparecia bastante estável. As liberdades, pelas quais os homens tinham lutado durante os longos anos de sofrimento, consolidavam-se por todo o lado. As liberdades da palavra, de imprensa, de opinião, de reunião, de consciência e de religião eram, pouco a pouco, reconhecidas e estabelecidas um pouco por todo o lado. E hoje, com pouca diferença, no espaço de uma noite, vemos tudo isso desboroar-se como um castelo de cartas e perder-se todo o ganho de séculos. Tudo se passa como se um déspota sobre-humano, irritado até ao furor pelas luzes e pelos progressos realizados pelos seres humanos, tivesse dado a ordem de reduzir tudo a zero, e pequenos déspotas humanos aparecessem então para executar as suas ordens. E estes movimentos de destruição produzem-se com uma rapidez que nos sufoca. As extraordinárias mudanças que têm lugar atualmente sob os nossos olhos nunca foram igualadas na sua rapidez e na sua vasta envergadura. Um decreto – e grandes partidos da oposição, representando milhões de votos, são suprimidos ou mortos. Uma ordem – e um milhão de cidadãos, cujo único delito reside no facto de pertencerem a uma raça odiada, são privados dos seus direitos cívicos. Uma declaração – e a autonomia das universidades, a liberdade de imprensa, o direito de falar livremente e do debate livre, e, por fim, o direito de reunião são suprimidos. Um decreto-lei – e milhões de jovens e de crianças são militarizados e submetidos ao treino no exército. Um édito – e toda a atividade do Estado é colocada sob um controlo sem alma. Uma lei – e todas as Igrejas e a religião são reorganizadas e arregimentadas como auxiliares e agentes do Estado. Um mundo em desordem Perde-se cada vez mais o sentido da ponderação. Tudo se move com uma precipitação terrível. Projetos, envolvendo não milhões de dólares, mas biliões, são votados à pressa, sem exame nem fio orientador. A desordem reina sobre vastas áreas. Este mundo está ébrio ou louco, ou as duas coisas em simultâneo. Nada descreve melhor a época em que vivemos do que as palavras de uma velha profecia que se refere justamente à nossa época. Vendo por antecipação as nações de hoje e declarando que Deus lhe enviará o golpe da guerra e da Sua
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cólera, um velho profeta escrevia: “para que bebam e tremam e enlouqueçam” ( Jeremias 26:16). Ébrios e loucos! Na verdade, é uma descrição exata. Nada mais pode explicar a situação atual. Os distúrbios abalam o mundo. As multidões vivem no medo. As sombrias nuvens do mal reúnem-se por cima de todos os horizontes políticos da Terra. Um ódio recíproco envenena as relações entre as nações. Uma cegueira que roça o suicídio prevalece nas reuniões dos poderosos da Terra. Uma agitação febril invade todo o mundo. Os mais belos projetos dos homens são postos em xeque. Há, certamente, entre as nações, um sentimento de angústia misturado com perplexidade. Os corações dos homens desfalecem de medo e do facto de procurarem saber o que vai acontecer ao mundo. As nações agitam-se com uma fúria terrível, como o crescer do mar durante uma violenta tempestade. A maquinaria da civilização sofreu um sério choque e por isso encontra-se deslocada. Não se pode colocá-la, de novo, em ordem através de uma ordem. O mundo está ébrio e louco. Nestes tempos ameaçadores, faríamos bem em estudar novamente os princípios da liberdade civil e religiosa que, graças aos homens generosos e de espírito liberal, fundaram esta Nação. O liberalismo de Washington É como um sopro de ar refrescante e vivificante ler as palavras do general George Washington numa carta de serviço ao general Bénédict Arnold, que tinha sido colocado à testa de um exército antes de ir ao Canadá para atacar Quebeque. Esta carta, datada de 14 de setembro de 1775, dizia: “Uma vez que o desprezo pela religião de um país, ridicularizando as suas cerimónias, sejam elas quais forem, ou ofendendo os seus ministros e adeptos, tem sido sempre profundamente experimentado, deve ter uma particular atenção a que todos os oficiais e soldados se abstenham de uma tal louca imprudência e punir a menor falta nesse sentido. “Por outro lado, tanto quanto esteja na sua mão, deve proteger e manter o livre exercício da religião do país, e o pacífico gozo dos direitos de consciência em matéria religiosa, usando de toda a sua influência e de toda a sua autoridade.”23 Por quatro vezes, no decurso da sua carreira, Washington teve ocasião de repetir estes poderosos princípios; não simplesmente da tolerância religiosa, mas também de uma franca e igual liberdade religiosa. Em maio de 1779, Washington respondeu aos cumprimentos do Comité Geral da União das Igrejas Batistas da Virgínia, com estas palavras:
As nossas liberdades duramente adquiridas desaparecem pouco a pouco
“Tenho várias vezes expressado os meus sentimentos a este respeito, a saber, que todo o homem que se conduza como um excelente cidadão, não tendo de prestar contas senão a Deus no que concerne às suas opiniões religiosas, deve ser protegido no seu culto da Divindade respondendo perante a voz da sua própria consciência.”24 Em 1789, Washington, escrevendo à congregação de Savannah, Geórgia, exprimia-se desta forma: “Possa a mesma Divindade que realizou prodígios e que há longo tempo libertou os Hebreus dos seus opressores egípcios e os instalou na ‘Terra Prometida’, cuja ação providencial se manifestou recentemente através da criação destes Estados Unidos da América como nação independente, continuar ainda a enviar-lhe o maná celestial e a agir de tal forma que os povos de qualquer denominação possam participar nas graças temporais e espirituais deste povo que tem Jeová por Deus.”25 Em outubro de 1789, Washington escrevia aos Quakers, em resposta aos seus desejos, dizendo-lhes: “A liberdade, de que gozam as pessoas destes Estados, de adorar o Deus Todo-Poderoso como convém às suas consciências, não é só um dos mais preciosos dos seus bens, mas também dos seus direitos. Assim como os homens cumprem lealmente os seus deveres sociais, eles fazem tudo o que a sociedade ou o Estado pode decentemente pedir-lhes ou esperar deles e eles são apenas responsáveis perante o seu Criador, no que concerne à religião ou ao tipo da fé que podem preferir ou professar.”26 Em janeiro de 1793, respondendo aos cumprimentos dos membros da Igreja da Nova Jerusalém de Baltimore, Washington escrevia: “Neste século de luz e neste país de liberdade para todos, orgulhamo-nos de que os princípios religiosos de um homem não lhe retirarão o direito à proteção das leis nem o privarão do direito de chegar e de ocupar as mais altas funções conhecidas nos Estados Unidos.”27 Jefferson e Lincoln louvam a liberdade religiosa No seu segundo discurso inaugural, Thomas Jefferson exprimiu-se desta forma: “Em matéria de religião, sempre tenho considerado que o seu livre exercício, conforme a Constituição, é totalmente independente dos poderes do governo geral. Assim, em nenhuma ocasião, me ocupei em prescrever as práticas religiosas, como a Constituição as encontrou, sob a direção e a disciplina das autoridades do Estado, ou da Igreja, reconhecidas pelas numerosas sociedades religiosas.” 28 Em 1817, escrevia a Albert Gallatin e declarou-lhe:
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Carlyle B. Haynes
“Três dos nossos jornais enviaram-nos a cópia de uma lei da legislatura de Nova Iorque, que, se for votada, far-nos-á recuar à época do sectarismo e da barbárie mais sombria, isto para estabelecer uma comparação. O seu objetivo é que, todos aqueles que, doravante fizerem parte da seita religiosa Shaking Quakers, sejam considerados como civilmente mortos, os seus casamentos dissolvidos, e os seus filhos e os seus bens confiscados (…). Isto contrasta singularmente com um voto contemporâneo da legislação da Pensilvânia, sobre uma proposta pela qual a crença em Deus constituía uma condição indispensável para ocupar um lugar no governo, que foi rejeitada por larga maioria, se bem que, seguramente, não havia nessa assembleia um só ateu.” 29 E o grande emancipador, o mais ardente amigo e o maior campeão da liberdade que a América conheceu, Abraham Lincoln, escreveu uma circular sobre as Igrejas a 4 de março de 1864, na qual dizia: “Já escrevi, e novamente e repito, que o Governo dos Estados Unidos não deve tentar dirigir as Igrejas logo que um indivíduo, fazendo parte, ou não, de uma confissão religiosa, se torne perigoso para o bem público. Ele deve ser repreendido, mas deixem as Igrejas, como tal, ocuparem-se dos seus próprios assuntos. Não cabe aos Estados Unidos nomear administradores, diretores ou quaisquer outros mandatários para as Igrejas.”30 Temos nós, depois de cem anos, retrocedido de tal maneira no domínio do espírito que estas palavras possam parecer-nos excecionais? O crepúsculo está a descer sobre o Homem? Não. Isso não é possível! 21. Este artigo foi escrito em 1948. Publicamo-lo de novo porque ele permite comparar a época descrita com o cenário internacional atual. 22. Carlyle Boynton Haynes foi um escritor prolífero, autor de 45 livros e de numerosos artigos. Durante as duas guerras mundiais, defendeu a posição de um serviço não armado. 23. Obras de Washington, Sparks, Nova Iorque, 1847, vol. 3, p. 84. 24. Idem, vol. 12, p. 155. 25. Máximas de Washington, p. 373. Ver sítio em inglês: https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsourde/ Quote/gw.html. 26. Obras de Washington, vol. 12, p. 168. 27. Idem, vol. 12, p. 202. 28. Edição de Ford das Obras de Jefferson, vol. 8, p. 344. 29. Vol. 12. 30. Obras Completas de Lincoln, Nicolay et Hay, vol. 2, p. 491.
CAPĂ?TULO
3 Minorias Religiosas, Liberdade Religiosa e Liberdade de ExpressĂŁo Diferentes Perspetivas
Liberdade de expressão contra sentimentos religiosos: Será “Quem gritará mais alto?”
Rafael Palomino 31 Em 2009, professores da Universidade Complutense fundaram um grupo de investigação32 – de que eu fazia parte – para analisar as diferentes dimensões do caso das caricaturas de Maomé datando de 2005.33 O nosso projeto, sendo mesmo uma mínima parte de um programa universitário espontâneo bem mais vasto,34 tinha por objetivo compreender este conflito e descobrir orientações jurídicas a fim de propor uma solução perene às trágicas situações planetárias que observamos. Pensamos – infantilmente talvez – que estamos confrontados com uma explosão de violência e de incompreensão que iríamos poder examinar, uma vez que ela acalmasse com o tempo, na quietude de um ambiente universitário. A realidade veio desiludir-nos uma vez que o caso das caricaturas de Maomé se reproduziu (de formas diferentes) mais do que uma vez num período de dez anos – tendo, o último episódio, tido lugar em Paris em janeiro de 2015. Decorrente deste conflito evidente entre “discurso laico” e “sentimento religioso” (foi, durante esses anos, o tipo mais frequente de confrontação), poderia concluir-se que o problema tinha um sentido único – o mundo ocidental secularizado atacando o mundo religioso do Oriente. Contudo, também é verdade que o “discurso religioso” tem sido qualificado, “entre nós”, como “ofensivo” para com os sentimentos laicos (em particular no domínio ideológico das relações dos géneros). Este conflito está bem longe de estar “simplesmente” resolvido, tendo as partes em presença continuado a reiterar as suas respetivas posições: os media ocidentais têm reagido aos ataques com um “recrudescer do discurso”, e os ramos radicais do Islão reagiram através de uma “intensificação dos tiros”. No fim de contas, esta competição “de quem grita mais alto” custou numerosas vidas inocentes, tem-nos afastado uns dos outros, tem travado o progresso dos Direitos do Homem e tem enterrado o diálogo como meio de promoção da paz entre os povos.
Liberdade de expressão contra Sentimentos Religiosos
É fácil de deduzir que o nosso grupo de investigadores não descobriu a solução esperada que tínhamos imaginado no início do nosso trabalho universitário. Contudo, depois de três anos de pesquisa jurídica (comparando o Direito de diversos países, analisando os instrumentos jurídicos internacionais e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), chegámos a diversas conclusões a propósito deste conflito que parecia insolúvel entre a liberdade de expressão e sentimentos religiosos. Seria pretensioso da minha parte (ou de me tornar porta-voz de todos os meus colegas do grupo de pesquisa) tentar a síntese de todas estas conclusões. Prefiro, portanto, avançar a seguir algumas ideias pessoais. Importa sublinhar que, em quase todos os casos, não há nenhum conflito de Direito (stricto sensu) entre liberdade de religião e a liberdade de expressão. Um conflito de Direito real surge quando “um Direito autoriza uma coisa enquanto um Direito concorrente o prescreve”.35 Ora não é este o caso aqui: o facto de alguém pronunciar palavras que firam, julgadas como insultuosas, provocatórias, até mesmo blasfemas, por aqueles que as ouvem, não significa necessariamente ter violado o direito de outrem a ter uma religião ou uma crença, de mudar ou de adotar uma seja a título individual ou comunitário, ou de manifestar a sua religião ou a sua crença através do culto, a observância de regras ou de ritos, a prática do ensino… Além disso, o direito à palavra não implica o direito de não escutar. “A liberdade de palavra coloca a ênfase no orador e naquilo que ele diz (…) A tendência que inquieta é o equilíbrio entre o que é dito e o que é compreendido, ou a forma como as coisas são entendidas incluindo a possibilidade que um indivíduo, ou um grupo, tem de se sentir ferido ou ofendido por aquilo que é dito. Há um desvio do objetivo (o que foi dito) ou subjetivo (como foi recebido e entendido). Isto é contrário a uma regra de Direito fundamental.”36 Evidentemente, não é senão no caso em que o discurso é ofensivo que “há o risco de chegar à violência e à morte (que) constitui um motivo para que o Estado aplique uma sanção. O mesmo se aplica ao facto de que ofender as convicções religiosas de alguém é muito suscetível de causar grave desconforto psicológico ou danos a essa pessoa”.37 Dito isto, é também incontestável que “um ambiente social de livre troca de ideias e de livre expressão – incluindo a livre expressão de crenças – é algo essencial à democracia. Inversamente, um ambiente social cuja tonalidade é a agressão ou a violência verbal não é, certamente, o meio mais adaptado ao
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exercício das liberdades. Nesta perspetiva, os ataques contra a religião não são intrinsecamente diferentes dos que são baseadas no género, na raça ou na nacionalidade de origem; todos estes fatores são mencionados no artigo 14 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que proíbe qualquer discriminação”.38 Ainda, o novo cenário, que põe em cena a colisão entre o livre discurso e os sentimentos religiosos, tem as suas características próprias, inéditas e surpreendentes, o que é, em parte, devido à “audiença eventual e imprevisível” do discurso ofensivo. A internet permite atingir países e culturas onde o contexto e as reações não seriam apreciados de acordo com as expectativas dos media ocidentais. Há vários anos, Olivier Wendell Holmes sublinhou o papel que desempenham as circunstâncias e o local no caso da limitação da liberdade de expressão: “A mais rigorosa proteção da liberdade de expressão não protegeria alguém que tivesse falsamente gritado 'fogo' num teatro e causasse pânico. Nem sequer protege um homem de uma injunção contra o pronunciar palavras que podem ter todo o efeito da força. (…) Em cada caso, a questão que se põe é saber se as palavras usadas o são em circunstâncias tais, e são de uma tal natureza, que dão origem a um perigo evidente e imediato ao ponto de suscitar males maiores que o Congresso tem o direito de prevenir. É uma questão de iminência e de amplitude.”39 Nos nossos dias, a pertinência do contexto está aumentada na medida em que a internet e a tecnologia tornam quase impossível saber (voltamos a Wendell Holmes) se estamos num teatro, se este está cheio ou vazio, e quem constitui precisamente o auditório (bombeiros? pirómanos?). Num contexto mundializado deveria poder-se pensar e agir de formas diferentes e com diferentes atitudes. Em primeiro lugar, podemos pensar e agir localmente: “Aqui, na Europa, a liberdade de expressão é sagrada e integra o direito de publicar coisas suscetíveis de serem consideradas como insultuosas e blasfemas… A liberdade de expressão é a mesma para todos: eu posso dizer ‘X’, outro pode dizer ‘Y’… A liberdade marcada pelas ideias faz parte das regras do jogo. – O que dizer acerca do Paquistão ou da Nigéria? – Pois bem, esse não é o nosso problema…” Em segundo lugar, podemos pensar localmente e agir mundialmente: “Todos, em todos os lugares, devem respeitar os Direitos do Homem. Ponhamos em prática a liberdade de expressão em todo o mundo a fim de transformar este mundo, respondendo a qualquer violência com mais palavras. – O que dizer acerca do Paquistão ou da Nigéria? – Pois bem, a causa da liberdade pode conduzir ao martírio.” E, por fim, pensar e agir
Liberdade de expressão contra Sentimentos Religiosos
mundialmente: “A liberdade de expressão é um direito humano fundamental que todo o ser humano possui. É verdade que há palavras cujo alcance ultrapassa as nossas fronteiras culturais (…) Pensemos então nessas pessoas inocentes e façamos um uso responsável da nossa liberdade.” Esta última opção não é senão uma escolha “ética”. No seu reconhecimento da liberdade de expressão, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem precisa que este direito “comporta deveres e responsabilidades”. No contexto mundial, nem todos os deveres e responsabilidades estão compilados no direito de cada nação, “A liberdade de expressão deve incluir o direito jurídico de ofender. Mas não em todas as circunstâncias, uma total liberdade de o fazer”.40 Por outro lado, a mundialização permitiu-nos fazer a experiência da religião como fenómeno com múltiplas facetas. No pensamento ocidental dominante, a religião é uma questão de escolha,41 faz parte das ideias que se podem ter ou não ter, que se podem abandonar ou que se podem mudar. Ora, no mundo oriental, considera-se que ela faz parte da identidade pessoal.42 A imprensa ocidental visa, por vezes, ridicularizar as “ideias”, não as pessoas. Mas o seu efeito no Oriente é bem diferente. Isso não quer dizer que é necessário avaliar a liberdade de expressão em função da sensibilidade do auditor, mas que encoraja a tomar consciência da complexidade do que a religião é, no contexto mundial. A violência não é uma resposta legítima aos discursos, sabemo-lo bem. E as reações de violência por parte dos extremistas (tanto dos países muçulmanos como não muçulmanos, não esqueçamos isso) convidam a reflexões sérias e a intervenções no interior do mundo muçulmano. Ao mesmo tempo, a liberdade de expressão no domínio dos sentimentos religiosos exige um certo grau de delicadeza e de responsabilidade. Um universitário espanhol, em 2012, fez notar que por ocasião de um dos terríveis episódios de um caso que durou muito tempo,43 o Parlamento e o povo líbio pediram perdão pelo assassínio do embaixador dos Estados Unidos, exigindo, também, o respeito pelas crenças islâmicas. Nesse momento, estavam no bom caminho: repudiaram a violência, mas exigiram do Ocidente que demonstrasse decência. De facto, numa sociedade diversificada – mas, por vezes, instável –, os ataques injustos contra as grandes religiões não são assim tão raros. O problema é saber como reagir de forma adequada. 31. Professor na Universidade Complutense, Madrid. 32. Ministério da Educação e das Ciências espanhol, Projeto “Liberdade de religião e liberdade de expressão” (2009-2011), ref. DER2008-05283. 33. Uma parte dos resultados foi publicada, com as contribuições de outros universitários
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europeus J. Martínez-Torrón; S. Cañamares Arribas (dir.), Tensiones entre libertad de expresión y libertad religiosa, Tirant loBlanch, Valência (Espanha), 2014. 34. A produção universitária sobre este assunto escapa a quase todo o controlo. Citar-se-á, entre outros: F. Alicino, “Liberté d’expression et religion en France. Les démarches da laïcité à la française"; La Costituzione francese /La constitution Française, 2 vol., Giappichellí, Turin, 2009; S. Angeletti, “La diffamazione delle religioninei documenti delle Nazioni Unite: Alcune osservazioni critiche"; Coscienza e Libertà, 44, 2010; I. M. Briones Martinez, “Religion y religiones en el Reino Unido. Diez anos desde la ley de Derechos Humanos a la supresión del delito de blasfemia”, Anuário de Derecho Eclesiástico del Estado, vol. 25, 2009; B. Chelini-Pont, “La diffamazione delle religioni: un braccio di ferro internazionale (1999-2009)”; Coscienza e Libertà, 44, 2010; B. Clarke, “Freedom of Speech and Criticism of Religion: What are the Limits?”, Murdoch University Law Journal, vol. 14, 2, site consultado em 10/04/2015 https://elaw.murdoch.edu.au/archives/elaw14-2-2007.html; N. Colaianni “Diritto di sátira e libertà di religione”, Stato, Chiese e pluralismo confessionale, maio 2008, site consultado em 07/08/2012: http://www.statoechiese.it/images/ stories/2008.5/colaianni_diritto.pdf; Z. Combalia Solis, “Libertad de expresión y difamación de las religiones: el debate en Naciones Unidas a propósito del conflicto de las caricaturas de Mahoma”, Revista General de Derecho Canónico y Derecho Eclesiástico, del Estado, 19/2009; Conseil de 1’Europe, Commission de Venise, Blasphemy, insult and hatred – Finding answers in a democratic society, Council of Europe Publishing, Strasbourg, 2010; A. M. Emon, “On the Pope, Cartoons, and Apostates: Shari’a 2006”, Journal of Law and Religion, vol. 22, 2006; C, Evans, “Religion and freedom of expression”, Fides et libertas, 2010 ; J. Ferreiro Galguera, “Las caricaturas sobre Mahoma y la jurisprudência del Tribunal Europeo de los Derechos Humanos”, Revista Electrónica de Estudios Internacionales, vol. 12, 2006; P. Floris, “Liberta religiosa e liberta di espressione artística”, Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica, vol. 2008, 1; J. Foster, “Prophets, Cartoons, and Legal Norms: Rethinking the United Nations Defamation of Religion Provisions”, Journal of Catholic Legal Studies, vol. 48, 1, 2009; D. García-Pardo, “La protección de los sentimientos religiosos en los medios de comunicación”, Ius Canonicum, vol. XL, 79; M. Grinberg, “Defamation of Religions v. Freedom of Expression: Finding the Balance in a Democratic Society”, Sri Lanka Journal of International Law, vol. 18, 2006; C. C. Haynes, “Living with our Deepest Differences: Freedom of Expression in a Religiously Diverse World”, Fides et Libertas, vol. 2008-2009; N. Lerner, “Freedom of Expression and Incitement to Hatred”, Fides et Libertas, vol. 2008-2009; A. López-Sidro López, “Libertad de expresión y libertad Religiosa en el mundo islâmico”, Revista General de Derecho Canónico y Derecho Eclesiástico del Estado, 30, 3012; J. Martinez-Torron, “Libertad de expresión y libertad de religion. Comentários en torno a algunas recientes sentencias del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Revista General de Derecho Canónico Derecho Eclesiástico del Estado, 11, 2006; L. Martín-Retortillo Baquer, “Respeto a los sentimientos religiosos y libertad de expresión”, Anales de la Real Academia de Jurisprudencia y Legislación, vol. 36, 3306; I. Minteguia Arregui, “Libertad de expresión artística y sentimientos religiosos”, Anuário de Derecho Eclesiástico del Estado, 14, 1998; I. Minteguia Arregui, “El arte ante el debido respeto a los sentimientos religiosos”, Revista General de Derecho Canónico y Derecho Eclesiástico del Estado, 11, 2006; D. Norris, “Are Laws Proscribing Incitement to Religious Hatred Compatíble with Freedom of Speech?”, UCL Human Rights Review, vol. 1, 1, 2008; F. Pérez-Madrid, “Incitación al odio religioso ‘hate speech’ y libertad de expresión”, Revista General de Derecho Canónico y Derecho Eclesiástico del Estado, 19, 2009; G. Puppinck, “Lottare contro la diffamazione delle religioni”, Coscienza e Libertà, 44, 2010; J. Rivers, “The Question of Freedom of Religion or Belief and Defamation”, Religion and Human Rights, 2, 2007 ; A. Sajó (dir.), Censorial sensitivities: free speech and religion in a fundamentalist world, Eleven International Publ., Utrecht, Portland (Oregon), 2007; J. Temperman, “Blasphemy, Defamation
Liberdade de expressão contra Sentimentos Religiosos
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Desafios e atitudes relativos aos Direitos do Homem, à liberdade religiosa e à liberdade de expressão no nosso mundo atual. A questão “Charlie” ou como gerir as divergências. Algumas propostas.44
Liviu Olteanu 45 I. Introdução Excelências, Minhas Senhoras e Meus Senhores, Desde já, tenho de agradecer ao governo e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros italiano, e muito particularmente ao Presidente do Comité Interministerial para os Direitos do Homem, Sua Excelência o Embaixador Gianludovico de Martino, pelo convite para me juntar a vós, aqui, em Trévise, por ocasião desta conferência internacional que tem como título: A Liberdade de consciência, de pensamento e de religião: quais são os limites aos progressos sociais, económicos e culturais?, conferência organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros italiano. Gostaria de partilhar com V. Exas. algumas das minhas reflexões sobre o seguinte assunto: Direitos do Homem, liberdade religiosa e liberdade de expressão no nosso mundo atual. A questão “Charlie” ou como gerir as divergências. Algumas propostas. Tenho a honra de me exprimir aqui como membro e investigador do Instituto dos Direitos do Homem da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid e, igualmente, como Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR), cuja sede é na Suíça, e que foi criada em 1946 pelo Dr. Jean Nussbaum. Como sabem, durante 16 anos, a minha organização gozou da boa vontade da Srª Eleanor Roosevelt,
Desafios e atitudes relativas aos direitos do Homem
primeiro presidente do Comité de Honra. Entre as pessoas que trouxeram as suas contribuições e os seus conselhos figuram o Dr. Albert Schweitzer, Paul Henry Spaak, René Cassin, Edgar Faure, Léopold Senghor e Mary Robinson. Dado o contexto histórico da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, é para mim uma grande honra exprimir-me em seu nome. Sinto-me particularmente honrado ao dirigir hoje as minhas felicitações a S. Exª o professor Adama Dieng, conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a prevenção dos genocídios, pelo seu excelente trabalho como embaixador internacional para os Direitos do Homem. Desejo, igualmente, manifestar a minha consideração muito particular para com S. Exª a Srª Federica Mogherini, Alto Representante para os assuntos estrangeiros e a política de segurança, vice-presidente da Comissão Europeia e ex-ministra italiana dos Negócios Estrangeiros – uma personalidade eminente que tive o privilégio de reencontrar este ano no Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas, em Genebra. Dirijo também os meus profundos agradecimentos ao Governo Italiano pelo seu envolvimento na segurança e na cooperação de assistência às políticas humanitárias e a cooperação de desenvolvimento, assim como em termos de proteção e de promoção dos direitos e das liberdades fundamentais. Aprecio muito particularmente que o ministro italiano dos Negócios Estrangeiros, S. Exª Sr. Paolo Gentiloni, tenha declarado: “A Itália sublinha a dimensão coletiva da liberdade religiosa e a sua defesa ativa”46 por ocasião da Conferência Internacional de Trévise organizada pelo presidente italiano do comité ministerial para os Direitos do Homem. S. Exª Sr. Gianludovico De Martino, com o apoio do Subsecretário de Estado, digníssimo ministro S. Exª Sr. Benedetto Della Vedova, demonstrou uma considerável atenção da parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros italiano para com a dimensão global da liberdade religiosa. Sr. Presidente, Excelências, Minhas Senhoras e Meus Senhores, caros colegas, Os intelectuais analisam47 as operações dos sistemas internacionais; aqueles que têm sido elaborados pelos homens de Estado. Há uma grande diferença entre a perspetiva de um analista e a de um homem de Estado. O analista dispõe de todos os factos; é julgado sob a pressão intelectual. O homem de Estado deve agir de acordo com as avaliações que faz sem ter a prova; a História o julgará sobre a forma, sábia ou não, como ele gere a mudança inevitável e, sobretudo, sobre a forma de preservar a paz. O facto de os homens de Estado, os Universitários, os Ministros e os especialistas dos Direitos do Homem participarem, conjuntamente, nesta notável
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conferência internacional de Trévise e de quererem, em conjunto, encontrar soluções para estes sensíveis problemas contemporâneos deve ser entendido como uma perspetiva positiva do horizonte dos Direitos do Homem aos níveis regional e internacional. Minhas Senhoras e Meus Senhores, Quando se olha para os desafios postos aos direitos do Homem, os problemas ligados à liberdade religiosa, à violência e ao terrorismo em nome da religião, as migrações, os refugiados e tantos outros problemas humanitários contemporâneos, creio que é verdadeiramente necessário repensar e reconstruir o sistema internacional. A estrutura da ordem mundial do século XXI deve ser revelada48, por um lado, como estando submetida a pressões, problemas e crises e, por outro, pela ausência de um mecanismo eficaz de aplicação ao nível da comunidade internacional. Desde logo, a própria natureza do Estado, célula fundamental da vida internacional, está submetida a pressões inumeráveis: é deliberadamente atacada e desmantelada, ou embotada pela oscilação dos acontecimentos ou, ainda, quebrada, nas suas expectativas, e nas suas perspetivas, pelas diversas crises humanitárias relacionadas, tais como a imigração, a violência e o terrorismo em nome da religião. Mas é duvidoso que as reivindicações pela paz e pela segurança mundiais distintas de todo o conceito global comum estratégico possam resolver as tensões, as questões e os problemas profundos de religião, de liberdade de expressão, de terrorismo, de migração e de dignidade de toda a pessoa humana, o que permanece incerto. Em segundo lugar, é necessário notar a ausência de um mecanismo eficaz para permitir aos grandes poderes consultar e eventualmente cooperar sobre os problemas mais fundamentais. Por exemplo: por ocasião das reuniões do Conselho de Segurança ou do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas, os chefes de Estado e os embaixadores participantes, pela própria natureza das suas posições, focalizaram-se, particularmente, no impacto das suas ações junto do público presente, então, nas reuniões; foram tentados a salientar as implicações táticas ou os aspetos das relações públicas. Uma estrutura contemporânea de regulamentos e de normas internacionais, se se reconhecesse pertinente, não deveria ser afirmada meramente por uma simples declaração comum; deveria ser fomentada como sujeito de uma convicção comum.
Desafios e atitudes relativas aos direitos do Homem
II. Desafios Contemporâneos Excelências, vivemos num mundo complexo, com mudanças tais como nunca vimos. Entre os desafios da sociedade contemporânea, encontramos: 1. O respeito pelas diferenças e proteção das minorias religiosas. 2. Os esforços no sentido de objetivos comuns. 3. A adaptação das políticas às mudanças mundiais e a solução para remediar as violências religiosas. 4. O respeito pela dignidade. 5. A ambiguidade do pós-modernismo. 6. As divergências sobre os valores comuns, a abordagem dos direitos do Homem e a liberdade de expressão. 7. Os problemas ligados às migrações e aos refugiados. 1. O respeito pelas diferenças e proteção das minorias religiosas A defesa da justiça e a proteção das minorias religiosas constituem, hoje, um desafio. Uma das grandes dificuldades consiste em reconciliar identidade cultural e respeito pelas diferenças na sociedade em que diversas crenças e culturas coexistem. O nosso objetivo de conseguir uma sociedade mais justa e mais fraterna passa pela mudança das nossas atitudes mentais e pelo nosso comportamento. Segundo o primeiro embaixador americano para a liberdade religiosa, Robert Seiple, “os governos que ignoram a liberdade religiosa das minorias ou que exercem discriminações contra estas, não podem obter a segurança para a maioria”. 2. Os esforços no sentido de objetivos comuns A base pedagógica para a paz, o respeito e a não-violência é uma educação portadora de esperança e de crescimento da liberdade. “As realizações sociais jamais resultam dos esforços de um único indivíduo ou de um grupo de pessoas entusiásticas e empenhadas. Também não são a obra exclusiva de um governo ou de uma administração. Elas provêm de um trabalho coerente e deliberado de um grupo de indivíduos que se entendem sobre objetivos comuns.” 3. A adaptação das políticas às mudanças mundiais e a solução para remediar as violências religiosas Falando da ordem mundial, a situação muda e radicaliza-se com a perda da autoridade e da legitimidade dos valores. Hoje, praticamente todas as reivin-
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dicações culturais escondem violências de natureza religiosa. Pertencer a uma mesma cultura ou religião não garante a tolerância ou a bondade política. Segundo uma das resoluções das Nações Unidas, datada de março de 2015, as violências perpetradas “em nome da religião”, isto é, com base nas crenças religiosas do responsável ou na pertença atribuída, podem levar a violações massivas dos Direitos do Homem, incluindo a liberdade de religião ou de crença. A principal mensagem é que a violência em nome da religião não deveria ser entendida de forma errada como uma explosão “natural” de um surto de atos coletivos de agressão que supostamente refletem hostilidades sectárias existentes desde tempos imemoriais. Em vez disso, ela emana tipicamente de fatores e de atores contemporâneos, incluindo contextos políticos. O relator especial recomenda igualmente ações concertadas tomadas por todas as partes interessadas, incluindo os Estados, as comunidades religiosas, as iniciativas relativas ao diálogo inter-religioso, as organizações da sociedade civil, os representantes dos media, a fim de conter e eventualmente eliminar a fonte das violências perpetradas em nome da religião. 4. O respeito pela dignidade A individualidade é que dá aos seres humanos a sua dignidade específica, a qual não pode ser trocada por um qualquer preço. As diferenças entre seres humanos são múltiplas e variadas. As pessoas diferem umas das outras pela comunidade política à qual aceitam pertencer, pela sua filiação religiosa, pelo seu contexto cultural e por inumeráveis outras dimensões, que, no seu conjunto, constituem um ser humano. 5. A ambiguidade do pós-modernismo O multiculturalismo necessita de ensinar a viver com as diferenças. Porquê? Samuel Huntington predisse que os conflitos futuros serão desde logo, determinados por fatores culturais tanto como económicos e ideológicos. As nações e os povos têm necessidade de desenvolver uma compreensão mais profunda das conceções religiosas e filosóficas das outras civilizações. A dimensão central e o mais perigoso da política global emergente será o conflito entre grupos de civilizações diferentes, o que torna necessária a educação intercultural mais imperativa. É necessário estabelecer uma interação entre todas as culturas, sem suprimir a identidade específica da cada uma delas. O que, na sociedade pós-moderna, atrai primeiro a nossa atenção é a aparente importância concedida ao que tem sido qualificado como debate moral. A
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reflexão religiosa sobre explicações globais, que são contudo exigências morais, tem sido substituída pelo debate direto de questões morais. O efeito supressor, para o observador, é que há, por exemplo, uma exigência que as diversas posições religiosas se adaptem às exigências morais sucessivas ou, mais ainda, ao laxismo moral tão espalhado entre os nossos pares. Uma certa relatividade (ou um certo relativismo) parece afetar todos os valores. Por outro lado, podemos dizer que permanecemos ancorados na ambiguidade do pós-modernismo. 6. A questão “Charlie” ou como gerir as divergências sobre os valores comuns, a abordagem dos direitos do Homem e a liberdade de expressão Até hoje, o problema do fundamento dos valores era extremamente simples: “Deus propôs leis aos humanos para que eles possam agir corretamente. Por outro lado, no contexto secular das sociedades muito próximas umas das outras, a situação era similar, uma vez que os preceitos éticos estavam bem fundados. Obedecer e respeitar os valores era uma atitude evidente.” Tudo muda com cada vez mais autonomia e responsabilidade individual, a tal ponto que se considera que o imperativo já não vem de Deus, da religião, do Estado ou da sociedade, mas do próprio indivíduo. Segundo o professor Heiner Bielefeldt, relator especial das Nações Unidas para a Liberdade de Religião ou de Crença, dividir o conceito dos direitos do Homem entre conceções “ocidental” e “islâmica” e outros culturalmente definidos, seria o fim dos direitos do Homem universais. A linguagem dos Direitos do Homem não seria mais do que uma arma retórica numa competição intercultural. Devemos encontrar um meio de sair da situação difícil do relativismo cultural contra o imperialismo cultural. Temos necessidade de uma defesa crítica dos direitos universais do Homem, de forma a deixar de lado (diria mesmo “criar um espaço”) a diversas interpretações culturais e religiosas e, ao mesmo tempo, evitando as armadilhas do essencialismo cultural. Nós vemos nos Direitos do Homem o centro de um “consenso sobreposto” transcultural ( J. Rawls) sobre os padrões normativos de base nas nossas sociedades cada vez mais multiculturais. O “consenso sobreposto” é um ideal moderno para uma sociedade pluralista, não o descritivo de um status quo. Por um lado, abre espaço concetual para uma pluralidade de visões diferentes do mundo, ideologias, religiões, doutrinas filosóficas, etc..49 Temos visto a divergência expressa pelo slogan: “Eu sou Charlie” e “Eu não sou Charlie”. Porquê? Será possível ser “Charlie” e, ao mesmo tempo, não ser “Charlie”? O que queremos exprimir ao dizer-se “Charlie” mas sublinhando também não ser “Charlie”?
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Dizer “Eu sou Charlie” significa que condenamos firmemente o terrorismo e a perda de vidas humanas mas é também reconhecer e sublinhar que a liberdade de expressão é fundamental para todos os seres humanos e que deve ser protegida pelo Direito Nacional e Internacional; ninguém pode retirar e “matar” essa liberdade. Dizer “Eu não sou Charlie” sublinha que é recomendado exprimir-se com prudência e dando prova de respeito, sobretudo sabendo que a nossa “linguagem” (pelas palavras ou pela arte) afeta as sensibilidades do foro interior de uma pessoa ou de uma religião. É necessário ter em conta certos limites que nos impomos a nós mesmos, na nossa própria liberdade de expressão, para respeitar os sentimentos e a dignidade de outrem ou os assuntos ligados à religião. Uma obra interessante sobre “A juventude e a transformação dos conflitos”, elaborada em parceria com a Comissão Europeia e o Conselho da Europa, aborda a liberdade de expressão de um ponto de vista interessante e (porque não?) sábio. Embora muitas pessoas rejeitem a ideia de que certas coisas devem muito simplesmente não ser criticadas, o historiador britânico Timothy Garden Ash lembra que a liberdade de expressão não significa que não importa quem está autorizado a dizer não importa o quê, não importa onde, não importa quando, e que o debate demonstra-se extremamente delicado. Para respeitar outrem e viver em conjunto pacificamente, é necessário impor limites a si mesmo e ter consciência do que se pode e não se pode dizer em público.50 Qualquer que ela seja, a violência física não pode jamais ser considerada como uma reação legítima a uma ofensa, seja ela verbal ou escrita, dirigida a um indivíduo ou a uma religião. Liberdade OU segurança, qual das duas prevalece sobre a outra? Eu diria, acima de tudo, que liberdade e segurança devem prevalecer.51 É a religião “culpada” dos atos cometidos pelos terroristas que pretendem agir em nome da religião (Islão)? Absolutamente não! 7. Os problemas ligados às migrações e aos refugiados Os problemas ligados à questão dos refugiados são debatidos em grande escala na União Europeia e nas Nações Unidas. Algumas preocupações são tratadas no contexto cultural e religioso dos refugiados. III. Atitudes regionais e internacionais 1. Falta de consenso entre os participantes e sobre as aplicações. 2. Meios de cooperação. 3. Ausência de modelo comum. 4. Regulamentos ineficazes e ausência de aplicação.
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5. Esferas de interesse de exclusão As seguintes atitudes52 podem ser observadas em relação ao contexto internacional das questões sensíveis dos Direitos do Homem em causa e olhando também para os decisores políticos e atores internacionais. 1. Falta de consenso entre os participantes e sobre as aplicações Os assuntos internacionais desenrolam-se presentemente à escala mundial e não há nenhum consenso entre os principais atores quanto à regulação e aos limites que balizam o processo de resolução dos problemas mundiais. O resultado é uma tensão crescente. Na cena geopolítica, a ordem estabelecida e proclamada como universal pelos países ocidentais está num ponto de viragem. As suas grandes linhas são globalmente compreendidas mas não existe consenso quanto à sua aplicação. Com efeito, conceitos, tais como a democracia, os Direitos do Homem e o Direito Internacional, são interpretados de formas tão divergentes que os beligerantes os invocam, regularmente, uns contra os outros no fragor das batalhas. 2. Meios de cooperação (regionais e internacionais) As nações têm mais frequentemente perseguido os seus próprios interesses do que os nobres princípios, e têm estado bem mais frequentemente em concorrência do que dispostas a cooperar umas com as outras. Bem poucas coisas deixam entender que este modo de agir, imemorial, teria mudado ou que estará para mudar nos decénios futuros. 3. Ausência de modelo comum Cada parte (poder) tem o seu próprio modelo e segue, de facto, uma conceção das relações internacionais tirada da História e baseada na sua própria capacidade.53 4. Regulamentos ineficazes e ausência de aplicação As regras do sistema têm sido promulgadas mas têm-se revelado ineficazes pelo facto da ausência de uma aplicação ativa. Em certas regiões, o envolvimento de parceiros e da comunidade tem sido substituído, ou, pelo menos, acompanhado, por uma tímida tentativa de avanços cujos limites estão continuamente a ser encurtados… 5. Esferas de interesse de exclusão Formas identitárias mais fundamentais são colocadas sobre a base de esferas de interesse de exclusão. Resulta num mundo de realidades cada vez mais contraditórias. Não acredito que, se nós não prestarmos atenção a essas tendências, elas se conciliarão por si, simplesmente, só num mundo de equilíbrio e de cooperação.54
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IV. Algumas propostas Com toda a evidência existem desafios à liberdade de religião no mundo atual. Que garantias? Que soluções? E o que dizer dos instrumentos que podem ser utilizados sendo concretamente eficazes? A questão da dignidade de toda a pessoa e da vida protegida (sobre o fundo das guerras e das migrações, a questão dos Direitos do Homem e da liberdade de religião e de expressão) no contexto da violência e do terrorismo em nome da religião requer uma cooperação e uma ordem internacional, um plano estratégico dotado de um mecanismo ativo, e exige o respeito pelos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, na base de princípios, de valores e de cooperação e de coordenação internacionais. Algumas propostas práticas: 1. Diálogo e comunicação entre as culturas, as religiões e os governos. 2. Coordenação (do diálogo e das medidas) entre diversas categorias de atores (ver o projeto de que a AIDLR é a iniciadora “Diálogo Cinco”). 3. Formar os formadores: educação e formação nos princípios, nos valores comuns e na cultura do respeito e da não-discriminação para todos. 4. Não defender uma religião ou uma Igreja… mas o princípio da liberdade religiosa, liberdade de consciência e liberdade de expressão para todos. 5. Prudência e equilíbrio na área das divergências. 1. Diálogo e comunicação entre as culturas, as religiões e os governos Eis algumas sugestões para um diálogo útil. a. Temos necessidade de uma prática positiva de tolerância. É fácil demonstrar tolerância pelo simples facto de se ser indiferente. A autoridade reserva-se o direito de agir nos casos em que alguns querem impor a sua religião, a sua moralidade ou a sua política de forma coerciva, limitando a liberdade de outrem, e entravar o livre exercício da liberdade de pensamento. A tolerância ativa exige reconhecer o outro. É o ato religioso um componente básico do ser humano e do seu desenvolvimento como cidadão do mundo? Sem dúvida! Conhecer as características de uma realidade que nos envolve – as conceções do mundo, do humano e da sociedade – é uma forma de saber o que a moral implica. Estas conceções têm, pelo menos, os valores de serem as crenças (e as experiências) do outro, meu vizinho. Se eu não conheço as ideias, as emoções e
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as esperanças do outro, não posso conhecê-lo nem respeitá-lo. Não posso praticar a tolerância ativa para com ele e vou projetar uma falsa imagem dele que se demonstra injusta e opressiva. b. Nós somos iguais e diferentes, o que implica que devemos ser tolerantes. É possível passar tempo com o outro como igual, apreciando as nossas diferenças e enriquecermo-nos mutuamente com isso. A tolerância é o respeito para com a diversidade através da nossa humanidade comum. Num documento da UNESCO, a escola é definida como o lugar por excelência onde a tolerância se exerce, onde os Direitos do Homem são respeitados, onde a democracia é praticada e onde a diversidade e a riqueza das identidades culturais se aprendem. c. Criar um clima de tolerância. O clima de tolerância começa pela eliminação dos fatores que ameaçam a paz e a democracia, a saber, a violência, a xenofobia, o racismo, o nacionalismo e o fundamentalismo agressivos, as violações dos Direitos do Homem, a intolerância religiosa, o terrorismo e o fosso crescente entre países ricos e pobres. Devemos considerar a diversidade religiosa como útil para a nossa época. Mas ela torna-se negativa logo que uma religião do Estado é fixada pela lei, por direito ou de facto, ou logo que há uma obrigação efetiva de pertencer a uma religião particular em que os indivíduos ou as instituições ligados a uma outra religião são deliberadamente excluídos. A intolerância religiosa leva frequentemente ao ódio, à divisão e à guerra. As pessoas religiosas traem muitas vezes os nobres ideais que elas próprias pregam. 2. Coordenação do diálogo e de medidas entre (pelo menos) cinco categorias de atores Para demonstrar a eficácia da abordagem holística, a Associação para a Defesa da Liberdade Religiosa lançou um novo projeto chamado “Diálogo Cinco”: representantes das esferas diplomática, política, religiosa, universitária e da sociedade civil trabalhando em conjunto. A AIDLR e o Instituto dos Direitos do Homem da Universidade Complutense de Madrid organizaram a Conferência Internacional de Madrid, na Faculdade de Direito do Instituto dos Direitos do Homem, a 17 de janeiro de 2014. O tema foi: “À luz do Édito de Milão, liberdade e minorias religiosas no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios?”
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Sobre a importância deste quadro holístico elaborado e proposto pela AIDLR, convido-vos a tomar conhecimento das observações de Heiner Bielefeldt, nas quais ele fez notar:55 a. Atribuo uma grande importância ao modelo proposto por ocasião da Conferência de Madrid, pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, a saber, o tomar em consideração sistemática de “cinco” atores, isto é, a presença de cinco atores de pontos de vista diferentes dos Direitos do Homem a diversos níveis das Instituições de Direitos do Homem. b. Em termos de Direitos do Homem, temos obrigações a diversos níveis: nacional, regional e internacional, e crenças religiosas e Direitos do Homem desenvolvem-se em direções diferentes e podem ir uns contra os outros. Há a abordagem do Conselho da Europa, a abordagem da UE, diversas abordagens nacionais, a abordagem das Nações Unidas… Contudo, chego, por vezes, a pensar que estas diversas instituições são efetivamente mundos em si mesmas.” “Temos necessidade de coordenação: um dos objetivos é evitar que minemos mutuamente a autoridade colocada pelas normas dos Direitos do Homem; por isso, temos de nos conhecer melhor e de ter consciência dos acontecimentos, portanto, do meu ponto de vista, embora eu trabalhe agora nas Nações Unidas, é extremamente importante ver o que se passa no Conselho da Europa, no seio da UE e nos diferentes países.” c. “A estrutura e o objetivo da Conferência de Madrid demonstraram como evitar os estragos, as situações de risco e a perda de autoridade porque uma instituição poderia estar a agir contra as outras. Mas há, seguramente, também a ocasião positiva de aprender uns com os outros: essa é a tarefa da 'transfecundação'.” d. Estas mudanças são-nos necessárias para poder aprender a partir das nossas respetivas atividades, como nos apoiarmos mutuamente e reforçarmo-nos uns aos outros mais do que nos afrontarmos sem mesmo saber o que estamos a fazer. e. A Conferência de Madrid constitui verdadeiramente um exemplo. É algo a que nos devemos ater e que devemos, verdadeiramente, imitar. Isto é bom e útil. De facto deveríamos mesmo instaurá-la de forma regular. f. O objetivo da Associação para a Defesa da Liberdade Religiosa é desenvolver um quadro holístico coerente, a diversos níveis e no seio das instituições para que os elementos de infraestrutura se possam integrar uns com os outros. 3. Formar os formadores – Educação contínua e formação dos governos, parlamentos e representantes da sociedade civil e religiosa, nos valores comuns e na cultura do respeito e da não-discriminação. Comecemos por formar os atores e, antes de qualquer outra coisa, os decisores,
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através de programas educativos sobre a liberdade de consciência, de religião, de expressão e de valores. A educação sobre valores justifica-se pela nossa necessidade, como indivíduos, de nos envolvermos com certos princípios éticos, contribuindo para avaliar as nossas próprias ações e as dos outros. Considerando estas questões, devemos ter consciência das características desses valores: (a) Os valores são crenças prescritivas ou princípios normativos que nos sugerem que um certo tipo de conduta é pessoal e socialmente preferível a outras quando tratamos de nos opor ou contradizer a outras. (b) Estes valores valem verdadeiramente a pena. (c) A realidade é dinâmica. (d) Os valores são qualidades que nos permitem tornar o mundo melhor. (e) Os valores são dinâmicos e influenciam a nossa vida, levando-nos à ação. Contrariamente ao que alguns dizem, o perigo que nos ameaça hoje NÃO é o choque das civilizações mas a ausência de valores partilhados. Naturalmente, os problemas e as mudanças surgidas no nosso mundo afetam-nos a todos. Cada vez mais, o papel dos valores deve ser encorajado para promover o indivíduo e a sociedade. 4. Não defender uma religião ou uma Igreja mas um princípio: o princípio da liberdade religiosa para todos. Quando olhamos para a História e para as situações atuais de certas regiões, compreende-se que seria desajustado que o Estado controlasse as questões religiosas (porque cada Estado deve funcionar individualmente) mas antes que os dois campos estivessem separados. O Estado não necessita de promover uma religião, mas um princípio, o princípio da liberdade religiosa e da liberdade de expressão para todos. Assim, poder-se-iam evitar melhor conflitos e violências. 5. Demonstrar prudência e equilíbrio na resolução das divergências. A liberdade de expressão é uma liberdade fundamental e deve ser protegida e respeitada pelo Direito Nacional e Internacional. A fim de se viver pacificamente em conjunto, é necessário impor limites a si mesmo, ter consciência do que se pode e do que se não pode dizer em público, medir as consequências, sobretudo quando se sabe que a nossa linguagem pode ter efeitos sobre as sensibilidades de um indivíduo ou da sua religião. Não é necessário concordar com a religião ou a cultura de outrem mas é necessário respeitar a diversidade e a dignidade da religião, a identidade e a cultura do outro. Necessitamos de um diálogo inter-religioso e intercultural a fim de nos conhecermos e nos respeitar-
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mos uns aos outros. Enquanto alguns cometem erros em termos de liberdade de expressão causados por uma ignorância real, outros repetem esses erros por arrogância. Este último caso é mais dado a conflitos e pode levar a consequências bem mais graves. Respeitando a diversidade que o outro representa, defendemos e protegemos a paz e a segurança. Algumas reflexões e conclusão (a) Pelo exemplo e pelas suas políticas, cada país das Nações Unidas, cada país do Conselho da Europa, cada país da União Europeia deve e pode promover a cultura da não-discriminação, a cultura do respeito, da justiça, da tolerância e da liberdade para todos os povos, religiões, culturas, civilizações, minorias religiosas e pela dignidade de cada um. (b) Nem as diversas obediências cristãs, nem os Muçulmanos, os Judeus, os Hindus, os Budistas, os Bahais ou os Comunistas, etc., têm um qualquer direito moral de exercer uma pressão sobre quem quer que seja para fazer aceitar as suas filosofias, crenças ou religião; nem têm o direito de impedir o outro de partilhar voluntariamente os seus ensinos ou de o impedir de mudar de religião. (c) Os governos também não devem impor uma ideologia ou praticar discriminações contra as minorias religiosas ou outras minorias de crenças ou de manifestar discriminações, intolerância ou perseguir quem quer que seja de crença diferente, com base na liberdade de consciência. Promovamos o respeito para com as diferenças no seio de uma sociedade na qual coexistem diferentes crenças e culturas. Renovo os meus agradecimentos ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e à cooperação internacional italiana por ter organizado esta Conferência Internacional de Trévise sobre o tema “Liberdade de consciência, de pensamento e de religião: o que é que limita os progressos sociais, económicos e culturais?”. Não é senão pelo nosso trabalho comum, a nós, homens de Estado, universitários, políticos, dirigentes religiosos, diplomatas, representantes da sociedade civil e jornalistas, que poderemos ter uma perspetiva positiva sobre o horizonte dos Direitos do Homem e as questões religiosas ao nível regional e internacional. Pela sua experiência, pela sua estratégia e pela sua visão, a partir da Suíça, a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa tem sido sempre e permanecerá como um parceiro sério e um apoio dos governos, dos parlamentos e das organizações internacionais e regionais, tais como as Nações Unidas, a União Europeia, o Conselho da Europa e a OSCE, em favor da promoção e da proteção dos princípios da democracia, das leis e da não-discri-
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minação para com as minorias religiosas e a favor do respeito pela dignidade da cada ser humano, das liberdades fundamentais, do princípio da liberdade de consciência, de religião e de expressão para todos. Tornemo-nos embaixadores da liberdade, da dignidade e da paz! Excelências Muito obrigado! 44. Uma parte do presente estudo foi apresentado em Trévise (Veneza) por ocasião da conferência internacional organizada pelo Ministério Italiano dos Negócios Estrangeiros, em 18 e 19 de setembro de 2015, um resumo desta conferência foi transmitida por escrito à OSCE HDIM em Varsóvia a 30 de setembro de 2015. 45. Ver nota 2 do Editorial para a biografia de Liviu Olteanu. 46. http://www.esteri.it/mae/en/sala_stampa/archivionotizie/approfondimenti/2015/09/gentiloni-alla-conferenza-internazionale.html. Gentiloni assistiu à conferência que relançou um plano de ação contra a violência religiosa e étnica no Médio Oriente. 47. Henry Kissinger, World Order, Nova Iorque, 2014. 48. Idem. 49. Heiner Bielefeldt, “Conceptions ‘occidentale’ contra ‘islâmico’ dos Direitos do Homem? Uma crítica do essencialismo cultural no debate sobre os Direitos do Homem”. 50. Yael Ohana, Youth transforming conflict. T-Kit Youth transforming conflict, parceria entre a Comissão Europeia sobre a juventude, publicações do Conselho da Europa, outubro 2012. 51. Esta questão será abordada como tema específico num dos próximos números da revista Consciência e Liberdade. 52. Henry Kissinger, Diplomatia, Simon & Schuster Paperbacks, 2013. 53. Idem, p. 716. 54. Henry Kissinger, World Order, Penguin Group, Nova Iorque, 2014, pp. 364 e 365. 55. A/HRC/25/NGO/121 p.4.
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Manifestações do discurso cristianofóbico no interior e no exterior da esfera ocidental Joaquín Mantecón56 Como jurista, a minha abordagem deste tema deveria ser essencialmente jurídica. Contudo, esta questão não é fácil de tratar sob o plano estritamente jurídico. Discorrerei, portanto, no quadro da sociologia e da opinião pública. Há alguns anos, Bernard-Henry Lévy, um dos representantes mais conhecidos da Nova Esquerda, defendia no jornal Il Corriere della Sera, de Milão, que os Cristãos representam, à escala planetária, a comunidade mais constantemente, mais violentamente e mais impunemente perseguida.57 Com efeito, quem quer que acompanhe a imprensa internacional, com alguma atenção, toma consciência disto. O Boletim anual de Kerkin Nood sobre a liberdade religiosa no mundo chegará à mesma conclusão, ilustrando, de forma detalhada, país por país.58 No entanto, não há na opinião pública, parece-me, uma perceção clara da vastidão e da importância deste fenómeno, o que, portanto, não tem suscitado tanta preocupação como pelos episódios de islamofobia ou de judeofobia, talvez porque se trate de algo a que estamos menos habituados no nosso Ocidente cristão. É um facto que os Cristãos representam minorias discriminadas na maior parte dos países muçulmanos onde, o mais frequente, é serem simplesmente tolerados. Nesses países, os Cristãos não podem realizar o mais elementar proselitismo e a conversão ao Cristianismo supõe, na maior parte dos casos, a morte civil – se não física – do convertido. Além disso, os episódios sangrentos de perseguições verificadas não são raros. Lembremos o episódio dos 21 Cristãos coptas martirizados na Líbia, os incêndios de igrejas no Iraque e na Síria, a destruição sistemática de aldeias cristãs pelo Boko Haram na Nigéria, etc.. Constata-se a mesma falta de liberdade e as mesmas violências por parte das autoridades em países comunistas como a China, a Cuba, a Coreia do Norte ou o Vietname; as autoridades aí exercem uma estreita vigilância sobre a hierarquia e os ministros de culto cristãos, impedem o exercício de inúmeras atividades de formação ou de ajuda social inerentes à atividade pastoral das Igrejas.
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Da mesma forma, não podemos esquecer a sangrenta perseguição à qual estão submetidos os Cristãos em certos Estados da União Indiana por parte de Hindus exaltados, e apesar da sua já longa lista de martírios, de destruições de igrejas e de locais cristãos, não há reação eficaz por parte das autoridades locais. Com toda a evidência, estas situações são precisamente o resultado dos errados estereótipos existentes nesses países a propósito do cristianismo. Apesar dos Cristãos viverem nestes territórios há séculos, desde antes da chegada dos Muçulmanos, são ainda assim identificados como ocidentais, colonialistas e sucessores dos cruzados. Desta forma, os Cristãos locais são considerados como uma eventual quinta coluna e estão submetidos a uma suspeição permanente. O resultado disso é uma emigração contínua e crescente dos Cristãos que se veem obrigados a fugir da sua própria terra, num êxodo que adquire proporções bíblicas. Será que se têm interrogado sobre o que aconteceria, se os Muçulmanos que vivem e trabalham na Europa devessem retornar para os seus países de origem como resultado de pressões islamofóbicas? Torna-se inevitável evocar a fraca reação, quantas vezes a ausência de reação, dos países ocidentais, em princípio campeões dos Direitos do Homem, perante estas discriminações flagrantes e esses episódios de perseguição dos Cristãos. Tem-se, por vezes, a impressão que as vantagens geoestratégicas ou económicas são preferíveis aos Direitos do Homem. Da mesma forma, surpreende o vigor bem maior das respostas que são dadas quando se trata de casos de islamofobia ou de judeofobia. Foi, sem dúvida, por esta razão que, por ocasião da sua participação, em agosto de 2014, no Encontro para a Amizade entre os Povos, em Rimini, o secretário para as relações entre o Vaticano e os Estados, Monsenhor Dominique Mamberri, lançou um apelo à comunidade internacional para combater a cristianofobia com a mesma determinação que é usada para combater a rejeição dos Judeus e dos Muçulmanos. Ele afirmou o seguinte: “Compreende-se que a eficácia da ação internacional depende, em grande medida, da sua credibilidade e, portanto, também, do seu caráter ‘inclusivo’. Noutras palavras, seria paradoxal omitir a adoção de medidas concretas para garantir a liberdade dos Cristãos, ou melhor, de criar uma espécie de hierarquia de intolerâncias, precisamente quando se trata de eliminar a discriminação e a intolerância.”59 Mas não nos podemos esquecer de que a cristianofobia é um fenómeno que afeta também o Ocidente cristão, embora de uma maneira diferente. Existem, por um lado correntes ideológicas fortemente antirreligiosas e, por
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outro, forças especificamente anticristãs e anticlericais que provocam situações de cristianofobia. Em Espanha, a cristianofobia está circunscrita à Igreja Católica, uma vez que os protestantes constituem, até hoje, uma estreita minoria injustamente discriminada e ignorada. Poder-se-ia mesmo falar, mais exatamente, de protestantofobia por parte da maioria Católica e dos governos confessionais, fobia felizmente desaparecida hoje (uma vez que, como poderia indicar o meu bom amigo Andavert, subsistem ainda alguns restos particularmente desagradáveis para os protestantes espanhóis). Em Espanha, a presença histórica de um Estado fortemente confessional criou toda uma lógica de reações anticonfessionais e, mais precisamente, anticlericais. Os elementos tradicionais destas correntes em que se misturam o fator antirreligioso e o anticlericalismo têm sido a franco-maçonaria, os partidos políticos de origem “radical”, os partidos e sindicatos marxistas, assim como os anarquistas. A última guerra civil foi uma luta fratricida, uma “luta de morte”, não apenas entre fações políticas opostas, mas também entre duas visões da vida: uma fortemente marcada pela influência religiosa e outra utopicamente antirreligiosa e visceralmente anticlerical, que produziu, como o atestam os historiadores, uma das perseguições religiosas mais sangrentas da História, com 13 bispos e mais de 7000 padres e religiosos assassinados in odium religionis (sem contar os leigos assassinados pelo simples facto de serem conhecidos como Católicos praticantes, o que seria necessário contar por milhares). Curiosamente, as feridas da guerra civil, que pareciam saradas com a transição democrática, foram reabertas recentemente, fazendo surgir uma série crescente de iniciativas anticatólicas e anticlericais, sendo a mais recente e a mais pitoresca o dinamitar a cruz do Vale dos Caídos e o dessacralizar a basílica para a tornar num museu em honra das vítimas do franquismo.60 É de notar que este pedido foi feito não por um grupúsculo marginal, mas por uma associação legalmente declarada e mesmo subvencionada. Um dos estereótipos mais frequentes é identificar a Igreja Católica com o franquismo como forma de desqualificação absoluta que não admite réplica. Os crucifixos nos locais públicos são uma herança do franquismo (esquece-se que já lá estavam muito antes de Franco) e, bem entendido, é necessário tirá-los; a Igreja continua a receber dinheiros públicos, como no tempo de Franco (e também muito antes), e, consequentemente, é necessário recusar qualquer tipo de financiamento; etc..
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O atual bispo de Bilbao, por exemplo, tinha 10 anos à morte de Franco e o de Salmona 9. Dito de outra forma, a hierarquia católica espanhola de hoje tem muito pouco a ver com a da época de Franco. Os Católicos que podem recordar-se de Franco são atualmente uma minoria, seguindo um processo de extinção natural. Um outro estereótipo recorrente consiste em considerar a Igreja Católica como um agente social obscurantista e antidemocrático por causa da sua defesa radical da vida, da maternidade e da família. Mas este estereótipo vai mais longe. Acusa-se, também, a Igreja de querer impor as suas normas morais a toda a sociedade, invadindo, abusivamente, o espaço social, e contrariando a vontade democrática dos cidadãos. Estas simplificações são assumidas sem rodeios pelos meios de comunicação, que são os verdadeiros criadores da opinião pública. Tanto assim que, muitas vezes, os cidadãos com pouca formação e pouca capacidade para analisar criticamente os factos acabam por se convencer de que as coisas são realmente como os media as afirmam. Assim, acaba por se criar um clima de cristianofobia, mais ou menos equivalente ao que existe entre os Muçulmanos ou os Hindus, para com os Cristãos nos seus respetivos países. Finalmente, a Igreja Católica, isto é, os Católicos, são considerados como pessoas non grata no quadro democrático. Bem entendido, não se podem lançar aos leões como nos tempos de Roma; mas podem-se rotular de fascistas sem outras explicações. Isto permite ridicularizar publicamente a Igreja Católica assim como os símbolos comuns a todos os Cristãos, quer seja na televisão, ou em exposições artísticas, em obras teatrais, nos jornais, nas revistas, etc., sem cuidar de ver serem aplicadas as normas administrativas ou penais previstas para casos semelhantes. Estes acontecimentos são então apresentados como corajosas manifestações de liberdade de expressão. Muito recentemente, um anúncio contra a sida concebido pelos Jovens Socialistas da Andaluzia ( JSA) dizia o que se segue, parafraseando os termos ao sabor evangélico: “Bem-aventurado seja o preservativo que elimina a SIDA do mundo”, acompanhado de uma imagem em que se podia ver duas mãos apresentando o preservativo como um padre a dar a hóstia aos fiéis. Os Cristãos sentiram-se, logicamente, insultados e protestaram, sem grande resultado, diga-se. Isso resulta num certo cansaço da sua parte, que depois acaba por passar a humilhação da ditadura da liberdade politicamente correta de expressão, a qual, por sua vez, justifica os estereótipos anticristãos e a intolerância.
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Mas existe uma cristianofobia ainda mais subtil e deletéria que se desenvolve nos países ocidentais. Infelizmente, é difícil de identificar como tal, porque se trata de um fenómeno aparentemente neutro. Não há dúvida de que a maior parte da elite intelectual, cultural, política e económica no Ocidente se sente estranha à esfera religiosa, que considera como um obscuro resíduo de um passado felizmente obsoleto, quando não se coloca particularmente como oponente à religião cristã e a tudo o que a cultura cristã significa. As causas são, provavelmente, os preconceitos herdados das Luzes e da Revolução Francesa, assim como dos sistemas filosóficos idealistas e do marxismo-leninismo. Estas correntes ideológicas conservam os preconceitos anticristãos e defendem um modelo de sociedade onde a religião aparece como absolutamente residual. Procuram a sua justificação última no princípio da tolerância, conhecido como um relativismo absoluto, tornado, paradoxalmente, num novo dogma oficial. Podemos situar nesta linha as medidas administrativas e legislativas com um conteúdo muito ideológico que, sem responder a uma necessidade social muito clara, impõe modelos de conduta, aparentemente neutros, mas que se traduzem por disposições diretamente atentatórias das convicções de um setor importante da população. Faço alusão às leis que são a expressão da ideologia do género. Mesmo se forem legais do ponto de vista formal e material, o facto de elas não permitirem um eventual objetor de consciência supõe (subentende) uma falta de sensibilidade preocupante quanto ao sentido real da liberdade de religião e de crença. Por outro lado, convém lembrar que não parece aceitável que o Estado assuma, mesmo em aparência, a menor ideologia, seja qual for a sua orientação. O Estado não tem religião oficial, mas também não tem ideologia oficial. A época das ideologias oficiais chegou ao fim com o naufrágio do nazismo, do fascismo e do comunismo. Foi sublinhado muito justamente que impor este tipo de medidas não aumenta os limites da liberdade, como afirmam os seus autores; pelo contrário, na prática, entram valores fortemente enraizados na sociedade impondo aquilo que muitos consideram como anti-valores. Com efeito, afirmar que se trata de posições neutras aparece como um sofisma inaceitável uma vez que o resultado é uma clara divisão da sociedade. Em definitivo, a Espanha conhece também manifestações de cristianofobia, que eu qualificaria como cada vez mais numerosas. Por um lado, as do tipo claramente anticlerical, agressivas e escandalosas, sob a capa de uma dita liber-
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dade de expressão. Por outro, iniciativas – culturais, administrativas, políticas – formalmente neutras, que, sem serem diretamente antirreligiosas ou especificamente anti-cristãs, não afetam menos os valores religiosos de um número importante de cidadãos. Suponho que, além de causas históricas objetivas e indubitáveis, os Cristãos têm também a sua parte de responsabilidade nesta situação. Erros, digamos táticos, têm sido praticados. Mas eu penso, sobretudo, que os Católicos espanhóis – e particularmente a hierarquia – demoraram a assimilar a passagem de uma sociedade estreitamente confessional e autoritária para uma sociedade democrática e não confessional; por fim, não souberam vender os seus valores de forma convincente. Mas a experiência contribui para a aprendizagem. Uma das coisas que se aprende mais depressa é a não esperar pela salvação que ninguém lhe pode trazer, isto é, dos políticos. Os Cristãos deverão habituar-se a viver como o fermento na massa irreligiosa ou antirreligiosa; contudo, como titulares de direitos irrevogáveis, deverão, sem criar dramas, utilizar todos os meios à sua disposição para defender esses direitos. Antes de terminar, permitam-me mencionar – e não é mais do que justo fazê-lo – as fobias religiosas para com as confissões minoritárias do nosso país. O antissemitismo existe em Espanha? Sem dúvida nenhuma, mesmo se, na minha opinião, se trate de um fenómeno muito minoritário e estreitamente ligado a grupúsculos nazis e fascistas. Não parece muito espalhado e, por outro lado, o código penal parece suficiente para se lhe opor, sem, contudo, levar a baixar a guarda. O trabalho de prevenção permanecerá sempre necessário e importante. Mais espalhada e mais intensa é uma islamofobia difusa. O islão provoca uma certa desconfiança, própria em geral para com tudo o que é diferente ou desconhecido. Daí à islamofobia é apenas um passo. Neste caso, é necessário ter em conta a imagem que os meios de comunicação dão do islão, muitas vezes imbuída de preconceitos e estereótipos negativos, o que contribui para dar do islão uma imagem deformada. O fenómeno mais visível desta islamofobia é o protesto – sob a forma de petições ou de manifestações – dos habitantes de alguns bairros onde se pretende construir uma mesquita. Mas, em geral, podemos afirmar que os ataques violentos contra os Muçulmanos representam algo de absolutamente raro e excecional. Quanto à minoria protestante, não se pode propriamente falar de protestantofobia. Ela existiu nos primeiros decénios do franquismo, mas atualmente felizmente, desapareceu. As igrejas protestantes estão bem integradas no nosso país e algumas são particularmente conhecidas. Citemos, por exemplo, a Igreja
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Adventista do Sétimo Dia, que é muito apreciada pelas suas publicações sobre saúde e educação, pelos seus colégios e pela sua ação social (ADRA). Esta Igreja, por outro lado, realiza um esforço constante e importante em favor da liberdade religiosa e da tolerância entre todas as confissões. Sobre este assunto, gostaria de mencionar a Conferência internacional reunida em Madrid há dois anos e organizada pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR), que reuniu representantes renomados das Nações Unidas, do Parlamento Europeu, do Conselho da Europa e dos Ministérios da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, assim como líderes religiosos cristãos, judeus, muçulmanos, representantes das Igrejas Adventista, Batista, Católica, Evangélica, Ortodoxa, etc., assim como investigadores, professores e representantes da sociedade civil, a fim de se dedicarem, em profundidade, aos temas da liberdade religiosa e das minorias religiosas. Os representantes internacionais e os do Governo espanhol observaram e apreciaram o trabalho da Igreja Adventista do Sétimo Dia como ator importante para uma cultura de respeito pela diversidade e pelo diálogo inter-religioso: neste sentido, ela tem sempre sublinhado a necessidade de uma coordenação entre todos os atores (stakeholders) internacionais, regionais e nacionais em matéria da liberdade religiosa, defendendo o princípio da liberdade religiosa e de consciência para todos, independentemente da denominação ou da crença. Iniciativas como esta contribuem, sem qualquer dúvida, para criar um clima de compreensão mútua e de tolerância que faz das confissões religiosas um elemento de paz mais do que de preocupação(ões) de conflito(s) ou de fobia(s). CURRICULUM VITAE DE JOAQUÍN MANTECÓN 1. Doutor em Direito pela Universidade de Barcelona, Espanha. 2. Doutor em Ciências Jurídicas, pela Universidade de Granada, Espanha. 3. Professor de Direito, na Universidade da Cantábria (Santander, Espanha). 4. A sua erudição académica inclui, entre outras, as seguintes publicações: “El derecho fundamental de libertad religiosa”; “Los Acuerdos de cooperación con las Confesions esacatólicas”; “Lecciones de Derecho Canónico”; e de numerosos artigos e estudos sobre a liberdade religiosa e as relações entre a Igreja e o Estado em publicações académicas espanholas e estrangeiras. 5. Membro da Academia Real de Jurisprudência e de Legislação (Madrid).
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6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.
Membro do Comité de Honra e do Comité Consultivo da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, Berna (Suíça). Membro do Comité Consultivo de “Anuário de Derecho Eclesiástico del Estado” e do Conselho Externo Consultivo da “Revista General de Derecho Canónico y Derecho Eclesiástico del Estado”. Conselheiro da Comissão dos Assuntos Jurídicos do Colégio dos Bispos Espanhóis. Membro eleito do Senado e do Comité de Regentes da Universidade da Cantábria. Vice-deão da Faculdade de Direito da Universidade da Cantábria. Secretário do “Instituto para el Estudio de la Libertad Religiosa”. Membro fundador do “Consorcio Latino americano de Libertad Religiosa” Lima, (Peru). Membro do Conselho Nacional Consultivo sobre a Liberdade Religiosa. Condecorado com a Cruz da Ordem de S. Raymond de Peñafort, reservada aos juristas distintos. Tem sido: 16. Vice-diretor geral da Coordenação e da promoção da liberdade religiosa e vice-diretor geral do Registo das entidades religiosas do Ministério Espanhol da Justiça. 17. Membro da Comissão de Acompanhamento dos Acordos de Cooperação do Estado com as Federações Israelita, Evangélica e Islâmica. 18. Diretor do Seminário Permanente sobre os Direitos do Homem da Universidade de Jaén. 19. Membro da Comissão dos Assuntos Jurídicos do COMECE (Bruxelas).
56. Professor na Universidade Cantábrica, Espanha. 57. “Difendere tutti i perseguitati a cominciare dai cristiani d’Oriente.” Consultável (em italiano) em: http://archiviostorico.it/2010/novembre/17/Difendere_tutti_perseguitati_cominciare_dai_co_9_101117057.shtml. 58. “Religious Freedom in the World. Report 2010.” Consultável (em francês) em: http://www. ain-es.org/informe2010/index.html. 59. No site espanhol: http://blogs.periodistadigital.com/infordeus,php/2008/03/31/p186198. 60. No site espanhol: http://www.europapress.es/madrid/noticia-foros-memoria-piden-voladura-gran-cruz-valle-caidos.exhumacion-restos-franco-20101118131844.html.
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Três organismos de supervisão – um objetivo comum61 Alex Kozhemyakov 62 A Europa concebeu um sistema único e sem precedente, destinado a proteger, a fazer aplicar e a promover os Direitos do Homem no domínio das minorias nacionais, das suas línguas e da luta contra a discriminação. Diferentes órgãos do Conselho da Europa, tendo competências gerais (como o Secretariado-Geral, o Conselho de Ministros, a Assembleia Parlamentar, a Comissão dos Direitos do Homem, o Congresso dos Poderes Locais e Regionais, a Conferência das Organizações Internacionais não Governamentais e, mais importante ainda, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), defendem e fazem a promoção dos Direitos do Homem graças à organização de convenções internacionais e de diversas atividades. No entanto, existem igualmente três organismos de supervisão dependentes do Conselho da Europa que têm como vocação contribuir para a proteção dos Direitos do Homem em domínios sensíveis como as minorias, as suas línguas e a luta contra a discriminação. Trata-se do Comité Consultivo da Convenção-Quadro para a proteção das minorias nacionais (1994), da Comissão Europeia contra o racismo e a Intolerância (1993) e da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias (1992). A níveis diferentes em função dos seus objetivos estatutários, estes três organismos contribuem direta ou indiretamente para a defesa da liberdade de consciência, da liberdade religiosa e, mais geralmente, da diversidade cultural na Grande Europa. Pode, igualmente, afirmar-se que eles criam um clima propício ao livre exercício destas liberdades. Nos dias 17 e 18 de janeiro de 2014, a Conferência organizada conjuntamente pela Universidade Complutense de Madrid, pela Faculdade de Direito e pelo Instituto dos Direitos do Homem (Professor José Miguel Serrano RuizCalderón) e a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (Liviu Olteanu, doutor em Direito), que teve lugar em Madrid, Espanha, foi uma excelente ocasião para apresentar os resultados dos trabalhos ao Conselho da Europa, neste domínio. O seu título era “Os direitos humanos e a liberdade religiosa no mundo: um novo equilíbrio ou novos desafios”. Este acontecimento foi provavelmente o primeiro onde se encontrou reunido um número muito impressionante de representantes de todas as grandes instituições internacio-
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nais agindo no domínio da proteção das minorias e da liberdade de religião e de convicção, assim como altos representantes espanhóis, membros académicos, representantes dos media, da sociedade civil e de diferentes grupos religiosos.63 Uma tal representatividade multi-institucional da sociedade civil e profissional deveria ser bem-vinda no futuro, conservando o espírito que uma abordagem sectorial e “administrativa” dificilmente poderia responder ao conjunto da complexidade da ordem do dia proposta. Como podem constatar desde a data da sua criação (ou a data do início do exercício), estes três organismos de supervisão foram estabelecidos no início dos anos 1990, pouco tempo depois da reestruturação da carta geopolítica da Europa de Leste e do Sudoeste e sob a pressão dos novos desafios surgidos nestas regiões. Contudo, este novo desenvolvimento coincidiu com alterações mais vastas nas sociedades da “velha Europa” e da “nova Europa”. Com efeito, o nacionalismo tradicional e a homogeneidade nacional, étnica e religiosa dos Estados começaram a declinar e a dar lugar a novas culturas e a novas identidades, fazendo, assim, aparecer uma maior diversidade nas sociedades europeias. Assim, estes organismos de supervisão foram criados no seio do Conselho da Europa, ele mesmo criado em 1949, em adequação com as novas realidades que deviam aparecer meio século mais tarde. Informações detalhadas assim como a análise de especialistas sobre a Convenção-quadro para a proteção das minorias nacionais, a Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância e a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias estão disponíveis nos sites do Conselho da Europa ou nestes outros sites: http://www.coe.int/fr/web/minorities http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/ecri/default_fr.asp http://www.coe.int/t/dg4/education/minlang/default_fr.asp Eis, contudo, um breve resumo apresentando as suas atividades e a sua contribuição para a defesa da liberdade religiosa na Europa. A Convenção-quadro para a proteção das minorias nacionais (até ao presente ratificada por 41 Estados) tem como fim proteger os direitos das minorias em domínios tão variados como os media, a educação, a discriminação e a participação. Um grande número dos seus artigos (artigos 5, 6, 7, 17) menciona explicitamente a religião como sendo um elemento essencial contribuindo para o bem-estar das minorias nacionais, exercendo uma influência sobre a sua identidade, a sua liberdade, a sua presença e o seu desenvolvimento cultural, permitindo lutar contra a discriminação. A Convenção-quadro funciona graças a um meca-
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nismo de acompanhamento que estuda os relatórios fornecidos regularmente pelos Estados e que se esforça para favorecer um diálogo construtivo com todas as partes envolvidas. Este mecanismo de acompanhamento implica visitas aos diferentes países e a avaliação da adequação das medidas tomadas pelos Estados por especialistas independentes do Conselho Consultivo. Tudo isto permite ao Conselho de Ministros elaborar conclusões e fazer recomendações. Um diálogo direto e permanente tem lugar entre o Conselho Consultivo e os representantes das minorias nacionais e da sociedade civil no decurso das visitas que são organizadas e das ações que, em seguida, são postas em ação. Este mecanismo de acompanhamento pode revelar o disfuncionamento de certos Estados, se as medidas tomadas não estão em harmonia com os princípios enunciados na Convenção-quadro. O seu objetivo consiste, portanto, em fazer recomendações específicas e precisas no domínio legislativo e institucional e em propor modificações nas práticas adotadas, a fim de melhorar a situação das minorias nacionais. A missão da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância é a de combater o racismo, a discriminação racial, a xenofobia, o antissemitismo e a intolerância de acordo com preconizações da Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem, e os seus protocolos adicionais e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não sendo um organismo de uma convenção, as suas atividades desenrolam-se no quadro internacional dos Direitos do Homem. É composto de membros independentes. Depois de minucioso trabalho de preparação, a Comissão efetua um trabalho de acompanhamento em cada país. Dos assuntos tratados, sendo por vezes sensíveis, são publicados relatórios após um diálogo confidencial com as autoridades nacionais. A Comissão estuda a legislação dos Estados-membros, as políticas adotadas e outras medidas compreendendo a sua aplicação, a sua realização e a sua eficácia. Depois, a Comissão dá conselhos concretos e práticos sobre a forma de abordar os problemas do racismo e da intolerância nos diferentes países. Além dos relatórios estabelecidos, faz igualmente recomendações de política geral (14, atualmente) destinadas aos governos e acompanhadas de linhas de orientação em que os responsáveis da elaboração das estratégicas e das políticas nacionais são convidados a inspirar-se. Também é necessário mencionar que os assuntos relativos à religião dizem respeito, de uma certa forma, a todas as atividades desenvolvidas pela Comissão, uma vez que a religião está frequentemente ligada ao problema do racismo. A Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias (ratificadas até hoje por 25 Estados) é o quadro jurídico europeu de referência para a proteção e para
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a promoção das línguas (trata-se de línguas e não de minorias étnicas que estão submetidas às regras desta Carta), utilizado pelas minorias nacionais e étnicas (as línguas dos migrantes não são abrangidas por este Tratado). A Carta obriga os Estados-membros a promover ativamente o uso das línguas das minorias em quase todos os domínios da vida pública: educação, justiça, administração, media, cultura, vida económica e social e cooperação transfronteiriça. A Carta prevê, também, um mecanismo de controlo que permite avaliar a sua aplicação em cada três anos (ou em cada cinco anos para os dois organismos atrás descritos). O elemento central deste mecanismo de controlo é o Conselho de peritos independentes, os quais avaliam de que forma os Estados-membros parte põem em prática as recomendações da Carta. Faz sugestões de melhoramento nos domínios da legislação, das políticas adotadas e da sua aplicação e faz um relatório para o Conselho de Ministros. É claro que, tendo estes objetivos, esta Carta não se aplica diretamente às questões de religião. No entanto, não devemos subestimar o seu impacto sobre a situação das minorias religiosas que falam uma língua regional ou minoritária diferente da língua oficial, especialmente nos serviços religiosos. A particularidade do modelo europeu na sua abordagem da proteção das minorias reside, especialmente, no caráter obrigatório dos seus critérios para as duas convenções baseadas nos mecanismos de controlo (a Convenção-quadro para a proteção das minorias nacionais e a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias), assim como as obrigações políticas às quais estão ligados os Estados-membros do Conselho da Europa (ver as resoluções do Conselho de Ministros de 2002) sobre os objetivos e o funcionamento da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância. É necessário ter em conta o seu amplo campo geográfico (se bem que cada mecanismo convencional se ocupa de um certo número de Estados-membros). Trata-se, portanto, de um sistema global cujos diferentes elementos se completam mutuamente. O objetivo é reparar todos os disfuncionamentos, mas também acentuar as práticas positivas de acordo com os critérios adotados pelo Conselho da Europa. Este tipo de funcionamento permite igualmente propor soluções adaptadas e alterar as situações para as quais a ajuda do Conselho da Europa poderia tornar-se necessária a fim de assegurar a aplicação destas soluções. Estes três organismos atuam à sua maneira, mas têm pontos comuns. São independentes (na medida em que cada um dos especialistas ligados a um dos 47 Estados-membros não representa um governo, mas age independentemente), agem no quadro internacional dos Direitos do Homem, implementam ações positivas e não se contentam em fazer declarações, possuem o seu próprio
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mecanismo de controlo que os ajuda a colocar as suas ações no contexto de uma abordagem crítica da realidade. Por fim, mais importante ainda, agem numa total transparência, sendo públicos os resultados dos seus trabalhos. As ações que empreendem têm duas outras vantagens importantes. São transparentes, uma vez que, após a adoção dos resultados pelo Conselho de Ministros, os relatórios das atividades estão acessíveis a todos e estas ações devem ser colocadas em estreita ligação com a sociedade civil de todos os Estados envolvidos, especialmente por intermédio das Organizações não-governamentais oficiais. Assim, estes organismos estão à disposição de todos os Europeus e desejam que estes se envolvam ativamente. Não foi por um mero acaso que estes três organismos foram unidos ao Departamento das Minorias Nacionais e da luta contra a discriminação no quadro da Declaração Geral da Democracia e do Secretariado-Geral do Conselho da Europa no fim do ano 2000. Esta mudança estrutural foi o reflexo de uma ligação natural que existe entre estes três organismos e da vontade política da Organização de os colocar sob o mesmo “teto”, tendo em vista uma melhor coordenação e reforçar o papel do Conselho da Europa neste domínio. Estes setores, envolvendo a sua “dimensão religiosa”, cuja importância varia, desempenham um papel essencial que permite estabelecer um modelo europeu no domínio da proteção dos Direitos do Homem, da democracia e dos Estados de direito. No decurso dos últimos anos, tem sido possível notar que numerosos esforços têm sido realizados com o fim de fortalecer a sinergia, não apenas entre os parceiros exteriores a funcionar no seio do Conselho da Europa, mas, igualmente, entre os parceiros externos essenciais, como, por exemplo, o Conselho da Europa e o Alto Comissariado para as minorias nacionais da OSCE. Paralelamente, devemos ter consciência das novas ameaças que se apresentam ao nosso modelo europeu político, social e institucional, e os desafios difíceis que se nos apresentam, a nós que estamos, de uma forma ou de outra, ligados aos três domínios de que falámos anteriormente (as minorias, as suas línguas, a discriminação). É necessário sublinhar que, segundo a esmagadora maioria dos Estados-membros do Conselho da Europa, ao problema mais corrente permanece a discriminação sob diferentes formas! E, por razões históricas, o efeito acumulado dos disfuncionamentos neste domínio, como as ruturas de diálogo, a ressurgência dos incitamentos ao ódio, as violências verbais e, por vezes, físicas contra as minorias – especialmente por razões étnicas e religiosas – poderia provocar uma explosão.
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A noção de sentimento de segurança generalizada resultante da aceitação dos Direitos do Homem ao nível europeu, assim como das regras democráticas e dos princípios de funcionamento dos Estados de direito, especialmente no domínio das minorias nacionais, das suas línguas e da luta contra a discriminação, está mais ameaçada do que nunca. Uma vez mais, a Europa está numa encruzilhada. 61. Resumo do funcionamento do Conselho da Europa, no domínio das minorias nacionais, das suas línguas e da luta contra a discriminação. 62. Alex Kozhemyakov é titular de um doutoramento em Direito, é professor convidado da cadeira de Teoria Política, na Universidade de Moscovo (Moscow State Institute), onde leciona o curso de Relações Internacionais. Até que em abril de 2014 se tornou responsável do secretariado da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias do Conselho da Europa. 63. Para mais detalhes, ver o Documento da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em inglês: A/ HRC/25/NGO/121; Dist.: Geral, 4 de março de 2014.
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Governação, não discriminação e minorias religiosas na União Europeia64
Jaime Rossell Granados 65 1. Introdução Desde há algumas dezenas de anos, a UE tornou-se – consequência (entre outros fatores) dos processos migratórios – uma sociedade plurirreligiosa bem afastada da hegemonia cristã. Esta realidade levou ao surgimento de diversas situações, derivadas do exercício da liberdade religiosa, tanto no plano individual como no dos grupos e implicando a evolução de diversos sistemas jurídicos nacionais. Ora a questão que, de acordo com o que penso, se põe na Europa hoje não é o saber se o direito à liberdade religiosa está assegurado no plano jurídico, mas se os grupos religiosos envolvidos, que são uma minoria, estão ou não integrados nas suas sociedades de acolhimento. Ou, pelo contrário, se a especificidade, o elemento religioso, vai ao ponto da exclusão social no sentido de uma rejeição, pela sociedade, das práticas e crenças do grupo em questão. No passado, vários modelos de integração foram elaborados por estas comunidades em diferentes países da Europa, sem, contudo, dar os resultados que se poderiam esperar. Os acontecimentos que se desenrolaram em países como a França, o Reino Unido, a Holanda, a Bélgica, a Espanha, a Itália e a Alemanha mostram-nos, por um lado, uma sociedade por vezes incapaz de dominar as expressões de racismo ou as situações discriminatórias e, por outro, como os membros dessas minorias religiosas manifestam, não aceitando certas regras de conduta, o seu total desinteresse pela sua integração na sociedade de acolhimento. Se se observam todos os modelos possíveis, o bom elemento para ir na direção da coesão social, permitindo-nos falar de uma verdadeira integração das minorias na sociedade, parece repousar, essencialmente, em três pilares: a) a promoção da igualdade de direitos para todas as pessoas; b) o respeito pelas liberdades fundamentais; c) a participação na vida política dos indivíduos pertencentes a estas minorias. Compreendemos que este último pilar – a participação política das minorias – é uma condição fundamental para a instauração de uma identi-
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dade coletiva, de pertença a uma comunidade e, no fim de contas, de toda a coesão social, e que deve, portanto, tornar-se num dos objetivos a alcançar. O Conselho dos Direitos do Homem e o Fórum das Nações Unidas Sobre as Questões Relativas às Minorias, que se reúnem regularmente em Genebra, pronunciaram-se várias vezes sobre o tema. Esta é uma questão cuja resolução será determinante para as modalidades de obtenção de uma real integração das minorias religiosas, a sua participação na esfera política, permitindo dar origem a esta coesão social tão desejada. É desta forma que a governação se torna num elemento de primeiro plano. Para tornar isso possível, o Estado deve reconhecer o direito à participação cívica dos indivíduos e dos grupos para além da sua simples representação política, porque não basta que apenas alguns atores sociais sejam ouvidos. Nesta perspetiva, o reconhecimento dos direitos civis e políticos dos grupos é uma posição constante das Nações Unidas, embora o direito das minorias a terem uma participação efetiva figure em diferentes documentos internacionais. A respeito das minorias religiosas, figura explicitamente no artigo 2 da Declaração sobre o direito das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas de 1992,66 que visa assegurar a participação das minorias na vida pública, em particular, perante as decisões que as afetam, a elas, e a conseguirem a sua integração, o que está estipulado na Declaração de Durban de 2001 e aparece nos debates do Fórum das Nações Unidas Sobre as Questões Relativas às Minorias. Claramente, “A participação na vida política e social do país, e na elaboração das políticas, e a participação nos serviços públicos (beneficiando deles) deveriam ser meios de lutar contra a marginalização e a alienação”.67 Por consequência “os Estados que são favoráveis à participação e à integração das minorias tendem não só a ser mais estáveis, mas também mais prósperos”.68 Para assegurar, no entanto, uma participação real e efetiva, diversas exigências devem ser satisfeitas: a) em primeiro lugar, o Estado deve promover as minorias religiosas como tal; b) em segundo lugar, “promover a participação efetiva na sociedade de homens e de mulheres pertencentes a estas minorias exige um diálogo de fundo, permanente. Este diálogo deveria ser multidirecional, a saber, ter lugar entre pessoas pertencentes às minorias e a população maioritária;96 c) por fim este diálogo deve ser também intercultural e inter-religioso e implicar não só os dirigentes mas também as comunidades de base. A este propósito, a especialista independente sobre as questões relativas às minorias, Rira Izsák, declara no seu relatório de 201270 que “a criação de mecanismos institucionais destinados a promover o diálogo interconfessional permi-
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te estabelecer contactos entre os grupos confessionais que poderiam tornar-se cada vez mais polarizados e desconfiados”. (…) A especialista independente sublinha o valor dos mecanismos permanentes de participação e diálogo intercultural. “Estes mecanismos beneficiam não só as comunidades minoritárias mas são igualmente essenciais para suprimir as práticas de exclusão e modificar as perceções discriminatórias para com as minorias que podem existir na sociedade no sentido amplo e ser institucionalizadas. A luta contra o “racismo institucional” permanece um desafio em numerosos Estados e exige atividades de promoção e de diálogo que não sejam centradas unicamente nas minorias, mas que se dirijam a todos os setores da sociedade.71 Tal diálogo interconfessional pode contribuir para a resolução dos conflitos e a manutenção da estabilidade numa sociedade multirreligiosa. Da mesma forma é também necessário estabelecer mecanismos consultivos institucionais suscetíveis de fornecer “oportunidades significativas de participação sobre o modo complementar quando … não há representação no seio dos órgãos democráticos eleitos porque a comunidade minoritária não tem a posição crítica necessária para ter impacto nas eleições”.72 Também não devemos esquecer, neste processo, a colaboração da sociedade civil e das ONG, que são, muitas vezes, os mais ativos defensores dos direitos das minorias e implementam programas específicos destinados às comunidades de base. A cooperação institucional com as ONG permite a aquisição de um conhecimento especializado sobre as diferentes questões relacionadas com as minorias e aumenta a capacidade de ação dos órgãos estatais. De facto, a colaboração entre grupos da sociedade civil, associações étnicas ou religiosas, ou autoridades nacionais, pode fazer surgir oportunidades de diálogo e de compreensão entre comunidades e autoridades. Como é que, nesta perspetiva, a UE e os diferentes países parceiros se têm posicionado perante as recomendações vindas da comunidade internacional? Podem as maiorias tornar-se, na nossa sociedade plurirreligiosa, e graças a esta participação, um elemento de coesão social? 2. Governação, não discriminação e minorias religiosas na UE A UE é uma organização política dotada de um governo policêntrico a múltiplos níveis. Engloba todo um leque de culturas, de línguas, de memórias coletivas, de costumes, etc., que contribuem para formar uma sociedade heterogénea e diversificada. É por isso que, para além da complexidade do processo de decisão das instituições, podemos observar em ação, na maior parte dos casos, um modelo de governo mais competitivo e mais dinâmico do que acontece nos
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sistemas nacionais, uma vez que o processo de negociação tem uma grande importância na elaboração de certas decisões legislativas. Esta configuração oferece aos grupos organizados, ou aos lóbis, uma maior capacidade de acesso às decisões e às políticas da UE, e influência sobre elas, mesmo se isso dá lugar a algumas suspeições perante a assim chamada responsabilidade democrática. É por isso que, há mais de dez anos, a UE instaurou um dos principais objetivos estratégicos: a reforma da sua governação.73 De que forma, então, têm sido propostos modelos de governação vis-à-vis as minorias religiosas? Um dos mais importantes objetivos do Direito Supranacional e Internacional é, talvez, a proteção das pessoas que se encontram, por razões estruturais, perante descriminações no quadro do Direito Nacional dos diferentes países. De facto, o Direito da União Europeia comporta um conjunto de disposições protegendo as pessoas membros de uma minoria. É necessário, também, constatar a ausência de uma política global da UE em matéria de proteção das minorias pelo Direito, porque não tem a competência requerida para harmonizar as legislações relativas à gestão da diversidade. Com efeito, os Estados membros são autónomos relativamente à UE quanto aos mecanismos essenciais para aplicar a proteção dos direitos fundamentais, situação explicitamente inscrita no artigo 51 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que reconhece, na matéria, o princípio da subsidiariedade. No entanto, a adoção do artigo 19 do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia testemunha o reconhecimento crescente de que goza a necessidade de elaborar uma abordagem coerente e integrada da luta contra as discriminações. Eis porque a UE, a fim de reforçar o princípio da não-discriminação e na base do antigo artigo 13 do Tratado, adotou, em Conselho, uma série de diretivas.74 Tendo em vista o tema da minha exposição, vou consagrar, agora, a parte seguinte à diretiva 2000/78/EC, que trata da criação de um quadro geral a favor da igualdade de tratamento, em matéria de emprego e de trabalho, fazendo referência à não-discriminação por motivos de religião ou de crença nos locais de trabalho. Isso vai-me permitir fazer uma breve observação sobre o sistema de governo apelando a ser integrada nas legislações nacionais. Trata-se do primeiro texto regulamentar da União Europeia fazendo expressa referência à proteção do direito à liberdade religiosa dos indivíduos e das comunidades apenas aplicado ao mundo do trabalho. Esta Diretiva não procura diretamente proteger o exercício do direito fundamental à liberdade religiosa porque não contém uma regulação autónoma deste direito fundamen-
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tal no quadro do sistema jurídico europeu, para além da possível tomada em consideração, como princípio geral, devendo ser protegido pelos tribunais. Ele contém simplesmente uma proteção suplementar deste direito fundamental. Como podemos ver, a ausência de uma aplicação direta dos direitos contidos na Carta demonstra que não existe nenhuma legislação uniforme, mas que, pelo menos, a política de harmonização, visando proteger as pessoas que fazem parte de minorias, repousa sobre um modelo de governo com diversos atores. Em primeiro lugar, é apoiada por diferentes instituições da UE, como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a rede de especialistas independentes sobre os direitos fundamentais da UE e o mediador europeu – todos motores da atividade legislativa e órgãos encarregues de acompanhar e aconselhar em matéria de desenvolvimento, de segurança e de proteção dos direitos fundamentais. Mas a Diretiva faz também referência à intervenção de um certo número de atores sociais no desenvolvimento e na aplicação das regras do Direito que isso configura. Trata-se de um modelo de governo no seio do qual elementos, vindos quer do setor público quer do privado, tomam parte no combate contra a discriminação. É necessário que neste diálogo com os atores sociais seja reconhecido como essencial o papel das diferentes confissões religiosas, detentoras do direito fundamental que é a liberdade religiosa, tornando-se também nos representantes legítimos dos seus fiéis nos territórios em que estão estabelecidos. As diferentes confissões tornam-se pontos de referência em numerosos países desde que se trate de regular o fenómeno religioso, seja qual for a atitude de cada país para com este fenómeno – falamos de países membros da UE como a França, a Grécia, a Espanha, a Itália, Portugal ou a Alemanha. Se bem que cada um deles esteja comprometido com o quadro geral comunitário, regulamentam de formas diferentes as suas relações com os grupos religiosos, o que pesa, e muito, no tratamento das minorias nesses países. A UE, no entanto, tem compreendido bem a necessidade de avançar para a consolidação de um Direito anti-discriminatório. É por isso que a Comissão adotou, em 2008, uma proposta de Diretiva para a implementação do princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de religião ou de crença, de handicap, de idade ou de orientação sexual. Este projeto introduziu um novo conjunto de conceitos (como, por exemplo, o da discriminação múltipla), tem explicitamente estabelecido a religião, como exceção, à proibição de toda a discriminação e apela aos Estados-membros para aplicar organismos nacionais que garantam, protejam e promovam a igualdade de tratamento.
Governação, não discriminação e minorias religiosas
Há um exemplo suplementar de modelo do governo no qual as minorias gozarão de uma maior proteção contra as discriminações e terão direito a uma participação mais ativa, coisa recordada por ocasião do último Fórum sobre as questões relativas às minorias, que teve lugar em Genebra em novembro de 2013, e que apresentou nos seus projetos de recomendação que “as instituições nacionais dos Direitos do Homem deveriam desenvolver os seus conhecimentos sobre a diversidade religiosa nos Estados e velar, ativamente, para que as dificuldades que os grupos religiosos sentem sejam tidas em conta na sua ação, especialmente, estabelecendo, onde necessário, um grupo especializado e aplicando as diretivas sobre as questões sobre as minorias religiosas, por exemplo, à intensão dos empregadores. Eles deveriam promover e garantir a representação da diversidade religiosa nos seus próprios secretariados e no seio do seu pessoal”.75 Contudo, como já fiz notar no princípio do meu artigo, os mecanismos de uma participação efetiva das minorias não se limitam aos processos de representação institucional e é muitas vezes necessário criar mecanismos consultivos. “São necessárias medidas positivas para garantir a consulta e a participação de todas as minorias religiosas a todos os níveis da sociedade. A presença dessas minorias nos órgãos consultivos e decisores contribui para garantir que os seus pontos de vista, os seus problemas e as suas preocupações são tidas em conta”,76 chegando a uma integração maior destes grupos e, por fim, a um grau mais elevado de coesão social. Os conselhos consultivos sobre a liberdade religiosa instaurados em Espanha, em 1981, e em Portugal, em 2001, são um exemplo. O conselho consultivo espanhol sobre a liberdade religiosa acaba de ser, recentemente, modificado,77 com o aumento do número de confissões religiosas que nele tomam parte como membros de pleno direito (os de raízes antigas e quatro outros representantes) assim como com a extensão das suas funções. É evidente que a presença de minorias religiosas no seio de um corpo consultivo desta natureza é necessária para assegurar que as suas necessidades sejam escutadas pelo governo e para que cada vez que uma legislação é adotada, as suas especificidades religiosas sejam tidas em conta. Estas medidas, contudo, não bastam, se não se quer falar de uma participação efetiva das minorias nas tomadas de decisão. Um outro pilar essencial que repousa na promoção do diálogo inter-religioso e na sua institucionalização é requerido. Esta ideia foi apresentada, em 2013, no Fórum sobre as questões relativas às minorias, onde foi afirmado que “os Estados deveriam encarar a criação, ou facilitar a criação de instituições nacionais ou regionais visando e
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encorajando o diálogo interconfessional, e os projetos de promoção de uma cultura de compreensão e o espírito de tolerância. A criação de instituições nacionais e locais, oficiais ou não, assim como de instâncias de diálogo onde os representantes dos grupos religiosos se encontrem regularmente para discutir problemas comuns, deveria ser encorajada”78 e ser objeto de uma promoção a partir do nível comunitário. No quadro de tais iniciativas “é necessário favorecer o potencial dos chefes religiosos e dos dirigentes políticos no que respeita à contribuição e à edificação de sociedades tolerantes e abertas a todos, e lançar e apoiar tais esforços e atividades”,79 sem contudo esquecer o papel que as mulheres e os jovens podem desempenhar. Dois exemplos de boas práticas na matéria merecem ser apresentadas: “Marseille Espérance”, em França, e o Grupo de Trabalho Permanente das Religiões em Espanha. A primeira vem de uma iniciativa comunitária apoiada pelo Presidente da Câmara de Marselha. É um caso-tipo de iniciativa positiva, concebida para criar o diálogo e para ajudar a evitar as tensões entre grupos de confissões diferentes, tensões que podem surgir, e, uma vez despoletadas, podem degenerar em violência. Os dirigentes judeus, cristãos, budistas e muçulmanos reúnem-se regularmente com as autoridades municipais para partilharem os seus pontos de vista e manter relações de qualidade entre as suas diferentes comunidades. Fundado em 1989, em resposta ao desenvolvimento da violência urbana, este diálogo promove a compreensão intercomunitária através de atividades – simpósios interconfessionais, por exemplo. Uma experiência do mesmo tipo surgiu em Barcelona com o Grupo de Trabalho Permanente das Religiões em Espanha. Trata-se de um grupo constituído pela Igreja Católica que é a mais numerosa, e as minorias religiosas presentes na região: Judeus, Cristãos, Muçulmanos e Budistas. Tem como funções aconselhar a comunidade e as autoridades locais sobre a gestão do fenómeno religioso assim como promover uma cultura de paz e de tolerância entre as diferentes religiões que a compõem. Está previsto promover esta forma de trabalhar para outras regiões do nosso território, a fim de que os grupos assim formados trabalhem em rede e se coordenem. Estes exemplos levam-nos ao fim da minha exposição, quando falei de governação como modo de governo permitindo a integração política dos diferentes grupos a fim de alcançar a sua integração social, porque é através da participação política do indivíduo que a sua comunidade se torna participante do projeto nacional. Uma vez determinado o quadro jurídico que deverá garantir e proteger o direito dos indivíduos e dos grupos à liberdade religiosa, será necessário desen-
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volvê-lo para que a igualdade e a não-discriminação dessas pessoas se tornem tangíveis. A realidade das coisas mostra-nos que em tal processo é preciso contar com os diferentes atores sociais competentes, se se quer conferir ao aludido projeto toda a sua legitimidade. Não se trata de dar voz a todo o crente ou a todo o grupo religioso que pretenda ter esse direito, mas de formular mecanismos e sistemas de representação que permita que a grande maioria de entre eles seja representada e se faça ouvir. A promoção do fenómeno associativo no seio das minorias assim como entre elas e a vontade de lhes conceder uma plena visibilidade podem ser uma das formas de o fazer, eis porque é necessário o reconhecimento das minorias pelo Estado. Mas há muitas outras formas de proceder, tais como os acordos de cooperação realizados em Espanha, na Itália, na Alemanha, ou em Portugal; ou a criação de órgãos de controlo e de supervisão da aplicação dos direitos fundamentais, assim como corpos consultivos em que se encontra representada a parte da sociedade civil ocupada com a regulação do fenómeno religioso; promoção e o desenvolvimento do trabalho das ONG ativas junto destes grupos; por fim, a promoção do diálogo inter-religioso como meio de prevenir a violência e assegurar a integração das diferentes minorias. Trata-se, portanto, de elaborar um modelo de governo aplicando-o à gestão do fenómeno religioso e no qual os atores sociais possam verdadeiramente tomar parte das decisões que os afetam. É através de uma participação ativa que se conseguirá inculcar o sentido de responsabilidade social e da apropriação coletiva. É assim que o cidadão não será apenas um consumidor, ocupado em fazer valer os seus direitos, mas poderá tomar consciência do facto de estar ligado pelos direitos e deveres enunciados tanto nas convenções internacionais sobre os Direitos do Homem, como nos direitos europeus nacionais. É agindo dessa forma que se atingirá o objetivo da coesão social. 64. Este texto foi extraído de uma apresentação na Conferência Internacional “À luz do Édito de Milão (313-2013): Liberdade religiosa e minorias religiosas – entre o equilíbrio e o desafio”, organizada pelo Instituto dos Direitos do Homem da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid e pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (Madrid, 17 de janeiro de 2014). 65. Professor na Universidade da Estremadura, Badajoz, Espanha e antigo deão da Faculdade de Direito desta Universidade. Recentemente, o professor J.R. Granados foi nomeado diretor-adjunto para as relações sobre as religiões do Ministério da Justiça para o Reino de Espanha. 66. A/RES/47/135. 67. Assim o indica a Srª Gay McDougall no Documento de base estabelecido pela Especialista independente sobre as questões relativas às minorias. Gay McDougall, sobre as minorias e a participação
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política efetiva, apresentado ao Conselho dos Direitos do Homem por ocasião do Fórum sobre as questões relativas às minorias, 2009. Ver A/HRC/FMI/2009/3, p. 7. 68. Conselho dos Direitos do Homem, Observação geral nº 25 (1996), parag. 12. 69. A/HRC/FMI/2009/3, pp. 8 e 9. 70. A/67/293. 71. Idem, p. 9. 72. Idem. 73. Preocupada com estas questões, a Comissão Europeia publicou a 25 de julho de 2001. “O Livro Branco do Governo Europeu” [COM (2001) 428 final – Jornal Oficial C 287 de 12-10-2001]. 74. Ver Diretivas 2000/43, 2000/78, 2002/73 e 2004/113/CE. 75. A/HRC/FMI/2013/3, p. 6. 76. Idem, p. 7. 77. Ver Decreto Real 932/2013, 29 de novembro, BOE, dezembro de 2013. 78. A/HRC/FMI/2013/3, p. 10. 79. Idem.
A responsabilidade social das empresas multinacionais na hora dos desafios da mundialização: abrir a caixa de Pandora
Susan Kerr 80 A responsabilidade social das multinacionais e a liberdade religiosa Este artigo baseia-se nas obras sobre a Responsabilidade Social das Empresas (SER), a fim de se debruçar sobre a tendência atual defendida pela Business and Religious Freedom Foundation (RFBF), o Pacto Mundial das Nações Unidas (2014) e autores como Clark & Snyder (2014), segundo a qual as empresas deveriam utilizar o seu RSE81 a fim de defender e promover a liberdade de religião e de convicção, em vários dos domínios habituais das suas atividades. Assim como numerosos atores têm encorajado as multinacionais a interessarem-se pelo seu impacto sobre os Direitos do Homem e em promover os Direitos do Homem na sua RSE possamos advogar de forma específica pela RSE ligada à liberdade de religião ou de convicção. As empresas aplicam, cada vez mais, a “diligência razoável” no que respeita às suas práticas ligadas aos Direitos do Homem na aplicação das normas internacionais sobre a RSE.82 Na minha opinião, é, por consequência, essencial que as empresas tenham em conta o grau de liberdade de religião ou de convicção das minorias numa região, no momento em que se comprometem com programas da RSE com as comunidades locais e apoiam projetos favorecendo esta liberdade. Quando as empresas trabalham em zonas onde as tensões são exacerbadas, a sua atividade pode inconscientemente perpetuar ou favorecer comportamentos sociais que excluem as minorias religiosas ou demonstrem discriminação contra elas, embora as empresas possam ter um impacto positivo. Com efeito, as empresas exercendo a sua RSE têm ao mesmo tempo apaziguado e exacerbado os problemas do mundo em desenvolvimento, uma vez que algumas oferecem programas da RSE visando a emancipação, dificultando
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(in)diretamente o desenvolvimento duradouro ou os Direitos do Homem (Rasche, 2009:194; Goulbourne, 2003; International Alert, 2005; Cannon, 1994; 42: Banerjee, 2007:145). É por isso importante que elas possam identificar as estruturas e os comportamentos, os fatores de evolução e de emancipação. Dada a retrospetiva de que dispomos sobre as iniciativas e os escritos juntando liberdade de religião ou de convicção e a RSE, uma análise exaustiva das suas interações seria prematura, restando um grande trabalho de fundo para realizar.83 Portanto, neste artigo, sintetizo as fontes documentais, descrevendo os desafios postos à RSE e às minorias religiosas, a fim de salientar os pontos que as empresas desejariam considerar tendo em conta a criação e a aplicação de programas da RSE ligados à liberdade de religião ou de convicção. Esta lista não é, bem entendido, exaustiva, uma vez que a prática determinará que fatores são ou deveriam ser importantes segundo os diversos contextos. O que é a RSE? A RSE como domínio de pesquisa tem falta de um paradigma científico de base à maneira de Thomas Kuhn com uma descrição dominante que reconciliaria as tensões conceptuais entre as descrições normativas das responsabilidades sociais das empresas, o campo de ação da RSE e o funcionamento dos negócios (Lockett e out., 2006:133; Crane e out., 2008:4-7; Melé, 2008). Outros conceitos conexos e abordagens da RSE podem ser utilizados de forma intercambiável para descrever as suas diferentes facetas.84 Assim, as empresas dispõem de uma certa flexibilidade a fim de conceber uma RSE conforme os seus interesses, mesmo se a RSE está em constante (re) definição em função das suas relações dialéticas com as partes envolvidas. Com efeito, as práticas das multinacionais negam, reproduzem e transformam o status quo (Kerr, 2013). Em conclusão, se o mundo dos negócios leva a RSE a novos setores de atividade, a própria natureza e as normas que caracterizam este fenómeno mudam. O facto de que o Global Compact das Nações Unidas (Pacto Mundial) (2014) tenha recentemente publicado um relatório sobre a liberdade religiosa ou de convicção mostra que isto se torna ao nível internacional numa verdadeira subcategoria da RSE ligada aos Direitos do Homem. Porque se preocupa a RSE com a liberdade de religião ou de convicção em particular? A liberdade de religião ou de convicção, como direito inscrito no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, é relativamente novo vindo
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à cena da RSE. A sua aparição está ligada à emergência de outras tendências internacionais. Apresentá-las-ei brevemente uma vez que fazem parte do contexto no qual este novo tipo de RSE surgiu. De uma forma geral, seria um erro negligenciar a influência e as consequências da mundialização, mecanismo quase omnipresente, sobre a mudança da RSE.85 A mundialização tem tido consequências positivas sobre as empresas no momento em que as capacidades governamentais de numerosos países em desenvolvimento diminuíram, o que leva a textos argumentativos recentes sobre a RSE defendendo que as empresas têm um papel cada vez mais vasto a desempenhar (Sklair & Miller, 2010:474). Por outro lado, as novas guerras de redes internas86 em pano de fundo, frequentemente caracterizadas por uma violência etnocultural que se concentra em fatores tais como a identidade religiosa (Kymlicka, 1996), a mundialização tem também estado ligada a um crescendo do fundamentalismo religioso. Com efeito, os movimentos fundamentalistas tentam rejeitar as múltiplas identidades propostas pela mundialização, tentando “impor a sua identidade ‘fabricada’ como identidade tradicional ou aceitável” (Bengoa, 2000:12), como os militantes do Daesh no Iraque ou Boko Haram na Nigéria. Este fundamentalismo vai contra uma sociedade pluralista no seio da qual crentes de diferentes confissões podem coexistir como cidadãos iguais. Além disso, uma vez que países que exercem uma ativa discriminação para com certas comunidades religiosas (por exemplo o Mianmar e o Vietname) se abrem, cada vez mais, ao comércio (Rogers, 2014; CSW, 2014), as multinacionais que decidem gradualmente continuar a operar e a criar riquezas nesses países que violam os Direitos do Homem – mesmo se o objetivo é tentar uma mudança progressiva – vão ter de aplicar a obrigação de vigilância para evitar tornarem-se cúmplices. Onde poderá conduzir a RSE sobre a liberdade de religião ou de convicção? Na minha opinião, o principal objetivo da RSE em relação aos desafios dos Direitos do Homem é a emancipação do ser humano. Desde Bhaskar, emancipar-se pode significar desembaraçar-se de obstáculos que oprimem uma comunidade a fim de permitir o livre desenvolvimento de cada membro da sociedade como condição prévia ao livre progresso de todos (Bhaskar, 1993). Esta ideia de envolvimento a longo prazo a fim de ajudar uma comunidade a desenvolver-se de forma “duradoura” tem sido incorporada nos programas e nas brochuras da RSE. Transportando este conceito na linguagem da liberdade de religião ou de
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convicção, Seiple (2012:98) afirma que “a liberdade religiosa duradoura é protegida pela lei e é culturalmente aceite escolher, mudar, partilhar ou rejeitar uma crença seja qual for a sua natureza, incluindo a religiosa, e levar estas crenças ao debate público”. Trata-se aqui de uma visão de direitos cívicos completos para todos, uma liberdade positiva e não negativa, o que Fredrik Barth chama uma estrutura da interação que permite a persistência de diferenças culturais. Como diz Longva (2012), a melhor prova da sua não aplicação é privar um grupo dos direitos do restante da sociedade envolvente. Atingir um modelo duradouro da liberdade de religião ou de convicção implica destacar-se dos atuais modelos de discriminação e de desigualdade, e a criar novas estruturas. A análise da rentabilidade Como se executassem um “rito de passagem”, os defensores da RSE para a liberdade religiosa ou de convicção mostraram que respeitam a necessidades de as empresas aumentarem os seus benefícios, a sua rentabilidade, e melhorarem as relações públicas. Recorreram à análise da rentabilidade que prova que investir na liberdade de religião ou de convicção pode beneficiar, ao mesmo tempo, as empresas e a sociedade, sem pôr em perigo o cerne da sua atividade. Trata-se de um argumento de peso utilizado na documentação sobre a RSE para que as empresas recorram a dispensas discricionárias a fim de ajudar as partes envolvidas na situação (Porter & Kramer, 2002:257; Dunfee, 2008:346,347; Martin Curran, 2005; Frynas, 2008:278; Mazurkiewicz, 2004:6,7). Os argumentos comerciais em favor de despensas da RSE para a liberdade de religião ou de convicção são convincentes. Hylton e outros (2008) demonstram que as leis que atacam a religião diminuem o crescimento económico e estão indelevelmente associadas à desigualdade. Contudo, as investigações empíricas de Grim e outros (2014) mostram que a liberdade de religião ou de convicção contribui para melhores resultados económicos, como sugere a teoria económica das religiões (Grim & Finke, 2007). No plano macroeconómico, eles identificam uma relação positiva entre a competitividade económica global e a liberdade de religião ou de convicção, como provam os países em que os governos impõem menos restrições religiosas e que encontram poucas hostilidades sociais ligadas à religião. Notam, ainda, uma outra correlação: a instabilidade pode ter uma influência negativa sobre a estabilidade dos contratos, sobre as atividades das empresas e fazer baixar as oportunidades em matéria de investimento.
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Pontos de reflexão para as empresas Vou apresentar seguidamente cinco pontos que as multinacionais deveriam ter em conta, se se envolvem numa aplicação da RSE junto das minorias religiosas nas comunidades onde operam. 1. A natureza volátil das minorias religiosas complica a sua classificação e, portanto, a sua identificação. As minorias religiosas podem ser definidas como um grupo cujo comportamento religioso difere do da maioria (Bengoa, 2000). Contudo, uma minoria pode ter coexistido, desde há muito tempo, entre outros como nações no seio de um Estado ou ter chegado através da imigração. Pode ter, ou não, um país de origem.87 Além disso, a existência de uma minoria não é estática e evolui com o decorrer do tempo. Pode ter sido anteriormente maioritária (ou vir a ser) ou constituir uma maioria algures. A sua origem histórica e a sua incorporação na sociedade modelam as suas instituições coletivas as suas identidades e aspirações (Kymlicka, 1996), de forma a que dois grupos podem não ser exatamente idênticos. A relação da minoria com a sociedade evolui numa relação dialética com os outros grupos sociais. Num sentido do “Eu e Tu” Buberiano, o olhar do outro define a identidade de uma minoria e deveria evoluir sem, contudo, ser assimilada. Com efeito, as minorias podem, apesar disso, partilhar numerosos valores e práticas de culto com as maiorias. Embora a religião possa ter uma clara falta de classificação social de uma minoria, isso não é simples, porque as identidades são dinâmicas, alteram-se, cruzam-se e são, por vezes, de uma certa maneira, porosas, podendo os indivíduos pertencer a outros grupos na sociedade. Os fatores religiosos não devem ser considerados de forma isolada; a classe, o poder económico, as políticas nacionais e regionais podem igualmente influenciar o capital social e o domínio social de uma minoria (Longva, 2012). 2. Reconhecer ou favorecer minorias pode ser politicamente embaraçador ou prejudicial; é por isso que uma bordagem única da RSE sobre a liberdade de religião ou de convicção não será, sem dúvida, coroada de sucesso. A RSE comporta um aspeto político no sentido em que ele sublinha as lacunas sociais que os governos, nos diferentes níveis, não cumpriram. No mesmo espírito, o facto de recorrer à RSE para promover as liberdades fundamentais das minorias (oprimidos) sendo moralmente responsável, implica que os Estados (dominantes) falhem no seu papel fundamental de defesa dos Direitos do Homem e dos seus cidadãos.
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Por um lado, alguns Estados podem promover ativamente políticas de inclusão com mais ou menos sucesso e apreciar o apoio das multinacionais. Por outro lado, alguns Estados podem ter as suas próprias razões para encorajar ou facilitar a perseguição interna das minorias religiosas. As minorias religiosas podem-se sentir culturalmente próximas de um país, mas não politicamente; os seus laços com a diáspora ou com os seus correligionários no estrangeiro podem levantar suspeitas, levando os governos nacionais a pôr em causa a sua lealdade. Assim, as redes transnacionais podem determinar as políticas nacionais para com as minorias (Longva, 2012:16). Além deste não reconhecimento, uma elite política pode, por exemplo, proceder a uma limpeza étnica ou a um genocídio, à assimilação coerciva, à discriminação económica, à segregação, à negação de outros direitos políticos, a exercer a discriminação através de uma regulamentação social focalizada ou satisfazer os interesses de grupos religiosos estabelecidos a fim de beneficiar do seu apoio através de subsídios financeiros, garantias constitucionais ou outros privilégios. As eventuais consequências sociais ou políticas negativas a longo termo aparecem, talvez secundárias, em relação à sua capacidade de conservar o poder, no imediato. Contudo, como Hylton e outros (2008:7) notam, uma vez que as relações negativas entre a Igreja e o Estado são estabelecidas, os processos governamentais são bem mais fáceis de corromper por favorecer certos grupos, em relação a outros, na atribuição de cargos para distorcer as leis e forçar a sua aplicação. A discriminação e a marginalização estão estreitamente ligadas à pobreza das minorias, particularmente nos países em via de desenvolvimento, o que pode depois excluí-los da sociedade mundializada e exacerbar as diferenças étnicas, raciais, religiosas e as hostilidades sociais (Bengoa, 2000, 7 e 8). É difícil parar este tipo de engrenagem porque as religiões dominantes podem sentir-se ameaçadas pelas preocupações crescentes sobre os direitos das minorias e desencadear repercussões (Durham, 2011). As minorias religiosas podem sofrer simultaneamente violências estruturais e físicas, mas também praticá-las. A literatura que retrata apenas as minorias como vítimas dá a impressão errada de que elas não fazem parte da sociedade, cometem o erro humano de se apegarem a um aspeto do problema sem o ver na sua globalidade. Qualquer que seja a sua parte de responsabilidade nos problemas que as minorias enfrentam, frequentemente respondem imitando a minoria e participam reforçando as fronteiras identitárias, (re)produzindo comportamentos de exclusão mútua que podem envenenar um conflito, se não for controlado (Longva, 2012). Isso complica a tarefa daqueles que ten-
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tam identificar as causas da violência; não só os mecanismos de causalidade que permitem ou impedem a violência diferente, mas também algumas forças causais podem permanecer inativas num contexto, enquanto noutro contexto provocam sérias violações dos Direitos do Homem. 3. As empresas deveriam evitar as relações assimétricas As multinacionais deveriam lidar com as expectativas das comunidades para conseguirem os objetivos dos programas da RSE e evitar o assistencialismo. Estes desafios afetam todas as atividades ligadas à RSE e devem ser tidos em conta por ocasião das consultas iniciais comunitárias, antes do início das atividades. Com efeito, a RSE não é a panaceia naquilo que respeita aos problemas estruturais recorrentes da sociedade. As multinacionais têm lutado para conseguirem realizar projetos de desenvolvimento duradouro. É, portanto, pouco provável, que consigam aplicar a liberdade de religião ou de convicção duradoura de hoje em diante. A este propósito, quaisquer que sejam as intensões de uma empresa, a atomicidade elitista e egocêntrica88 e as universalidades abstratas89 podem predominar em determinado país. A presença de multinacionais e a riqueza que elas geram podem contribuir para fazer prosperar os interesses de uma elite local ou impedir a mudança, encorajando então as relações assimétricas de dependências. Neste espírito, a liberdade religiosa internacional, como a RSE (ver Fleming & Jones, 2013), pode ser considerada (com toda a razão) como fazendo parte de um projeto imperialista ocidental. Se os governos deixam as multinacionais agir na sua ausência, as transformações dos setores público/privados, que isso implica, ultrapassam as questões sobre as formas emergentes de neocorporativismo e a partilha de poder onde não há contas a prestar (Holmqvist, 2009; Banerjee, 2001). Implementando as suas práticas, as multinacionais não devem começar a revolucionar tudo do dia para a noite, devem antes envolver-se com as comunidades num processo interativo e progressivo, evitando impor estruturas estrangeiras. O contexto social é inevitavelmente influenciado por um exame consciente e minucioso de certas convicções e a aceitação inconsciente de outras; a prática é, portando, determinada pelos totems e pelos tabus. Se não se reconhecem as normas culturais e sociais aceites, impor soluções modernas pode erodir e não aumentar o capital social. Assim, as empresas devem ter em conta estas normas, a fim de renunciar a programas que podem aparecer
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onerosos e ilegítimos (Cleaver, 2001:34). Eis porque as multinacionais devem integrar grupos obstrucionistas e obter o seu apoio porque, de outra forma, eles tentarão manter um status quo, contornando os constrangimentos institucionais (Rajan & Zingales, 2001). 4. Uma abordagem positivista é inadaptada Bem entendido, não se pode deixar particulares decidirem acerca do interesse público; no entanto, os industriais talvez não tenham os conhecimentos, as competências ou as aptidões necessárias para gerir as questões sociais (Martin Curran, 2005; Frynas, 2009; Lee, 2006). Os engenheiros preferem habitualmente acompanhar projetos técnicos com resultados quantificáveis e podem passar ao lado de certos fatores intangíveis. Isso significa que, se algumas consultas entre as empresas e as comunidades locais são antes de mais qualitativas, muitas outras resumem-se a listas de requisitos ao nível local sem ir mais longe na discussão dos desafios ao desenvolvimento. Isso conduz a programas custosos, mas ineficazes (Frynas, 2009; 2005). 5. Encontrar parceiros locais adequados para as iniciativas da RSE Perante as suscetibilidades eventuais das minorias religiosas e de outros grupos, é preciso vigiar para compreender e identificar os indivíduos que representam as suas opiniões, e convidá-los a tomar parte nas consultas para que nenhum grupo se sinta excluído. É preciso, igualmente, ter em consideração o subcontrato de uma parte do trabalho a parceiros locais. Não só alguns subcontratantes poderiam cometer atos contrários à ética, mas a comunidade local deve ser levada a confiar neles (Halme e outros, 2009; Haltsonen e outros, 2007:48). Parceiros preciosos podem vir da sociedade civil (por exemplo, as ONG e as associações locais que têm a experiência do terreno) para definir e pôr em ação os programas da RSE, aplicando a sua experiência na gestão do risco, uma legitimidade no seio da sociedade e a sua boa reputação.90 Com efeito, as multinacionais que pedem para ser guiadas podem, por vezes, evitar represálias (Kourula, 2009:399; Teegan e outros, 2004:475). No entanto, as ONG têm igualmente os seus próprios interesses. Por exemplo, alguns grupos fazem-se passar por ONG para conseguirem dinheiro. Outros defendem os seus próprios interesses em detrimento do bem comum (Kerr, 2013). Em conclusão, a liberdade de religião ou de convicção constitui um novo domínio apaixonante para a RSE, mas comporta a sua porção de desafios a
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ultrapassar. As empresas deveriam lançar-se, mas conservando presente as diferentes sensibilidades, com os programas concebidos sob medida, se querem fazer a diferença ao longo do tempo. 80. Susan Kerr possui um doutoramento em ciências da paz (peace studies) pela Universidade de Bradford. Os seus estudos baseiam-se nos fatores que influenciam a RSE das multinacionais do setor petrolífero da Colômbia e da Venezuela. Obteve, anteriormente, um Mestrado em ciências políticas, orientação de relações internacionais na Universidade Livre de Bruxelas e um Mestrado em línguas e culturas europeias na Universidade de Edimburgo. É membro da International Association for Critical Realism (IACR). Após uma experiência no Parlamento Europeu, presentemente trabalha como Advogada Europeia na Christian Solidarity Worldwide (CSW) e representa esta organização como membro coordenador da Plataforma Europeia sobre a Intolerância Religiosa e a Discriminação (EPRID). 81. No quadro do presente artigo, refiro-me unicamente à RSE que não está estritamente ligada aos assuntos assim como às ações das multinacionais perante as ações externas nas comunidades locais. 82. Ver Taylor (2012) para um estudo interessante das normas internacionais. 83. O objetivo deste artigo é abrir novas perspetivas sobre o assunto que serão depois estudadas pelo mundo dos negócios, os decisores políticos e os universitários, não pretendo ter exposto nem completa nem perfeitamente todas as facetas desta temática complexa. Com efeito, isso não seria possível no quadro de um artigo desta edição especial sobre as minorias religiosas. Para aqueles que desejam saber mais, envio uma lista de obras de referência que desenvolvem as ideias apresentadas no presente artigo. 84. Entre os quais: i) Corporate Citizenship põe em evidência a implicação das empresas na esfera pública (Birch, 2001; Matten & Crane, 2005); ii), Sustainable Business para quem a prosperidade do mundo dos negócios, das pessoas e do ambiente estão ligados (Gladwin e outros, 1995; Ramus & Montiel 2005); iii), Triple Bottom Line apresenta a passagem das empresas de um objetivo financeiro único até incluir os desempenhos sociais e ambientais (Gray & Milne, 2002), iv) Corporate Social Responsiveness concentra-se na forma como as empresas assumem as suas responsabilidades para com as partes interessadas (Vercic & Grunig, 2000), v) Corporate Philanthropy descreve a incapacidade dos beneficiários em aplicar a RSE (L’Etang, 1994; Porter & Kramer, 2002), vi) Stakeholder Tkeory parte do princípio de que os valores fazem parte integrante dos assuntos (Freeman e outros, 2004; Donaldson & Preston, 1995), vii) Corporate Social Performance, sobre a correlação dos princípios, políticos, programas socialmente responsáveis, os processos de reatividade e os resultados observáveis nas relações sociais das empresas (Wood, 1991; Sethi, 1975), viii) Corporate Governance, quando as empresas ultrapassam os mínimos requeridos (Schwab, 2008 : 110), e ix) Social Entrepreneurship, sobre a transformação das ideias social e ecologicamente responsáveis em produtos ou serviços (Schwab, 2008:114). 85. Por Globalização entende-se por um lado um conjunto de teorias que se interconectam no plano dialético e por outro das reais transformações materiais (Fairclough, 2010:452). 86. Estas guerras são reconhecíveis: pela ausência ou pela fraqueza das Instituições do Estado ou a sua natureza predadora; a emergência de novos centros de autoridade imbrincados uns nos outros; um aumento da pobreza; e a luta pelos recursos (Ver: Duffield, 2005:16; Rubin e outros, 2006:6; Themnér &Wallensteen, 2012; Kaldor, 2005). 87. A expressão povo indígena não tem sido, ainda, aplicado a uma minoria religiosas mas é reconhecido que isso poderia alterar a autodeterminação por motivos religiosos (Longva, 2012:9).
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88. Um egocentrismo que não tem em conta a relação de um ser com o resto da Humanidade. 89. Justificar uma ação que pretende atingir um objetivo dissimulado. 90. Segundo Kourula (2009:395), a sociedade civil influencia as políticas das empresas e envolve-se com elas: i) em parcerias estratégicas ou acordos de cooperação; ii) em projetos comuns; iii) na cooperação no domínio da pesquisa ou de contratos; iv) na certificação; v) propondo aos empregados trabalho voluntário; vi) no apadrinhamento; vii) nos inquéritos; viii) nos debates; e ix) no diálogo.
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Iwao Munakata 92 I. Prefácio – Encorajamento para a compreensão, a tolerância e o respeito em matéria de liberdade de religião ou de convicção Há fundamentalmente duas categorias de problemas na promoção da eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação derivadas da religião e da convicção. O primeiro diz respeito ao processo social no qual os valores, originalmente altruístas e tolerantes, proclamados pelos fundadores das religiões ou convicções, se tornam, com os tempos, intolerantes e discriminatórios. O fenómeno social destas transformações de valor foi tratado de uma forma tradicional no quadro das ciências sociais, especialmente entre os sociólogos interessados na conceção e na socialização dos valores religiosos e dos diversos pensamentos de situação transcendente. Numerosos investigadores têm tentado aclarar os modelos destas flutuações de valor. A segunda categoria que coloca um problema situa-se na esfera dos interesses práticos e empíricos, e, sobretudo, em saber como eliminar atualmente as tensões e as diversas crises sociais resultantes da intolerância e de atitudes e ações discriminatórias. Consequentemente, neste estudo a abordagem e as propostas apresentam-se a dois níveis: analítica e prática. II. Intolerância e discriminação como consequências sociais imprevistas da “religião ou convicção” 1. O primordial objetivo da religião, ou da convicção, consiste em salvar a Humanidade do sofrimento e da angústia na vida quotidiana. O valor fundamental e universal sublinhado pelos fundadores religiosos e ideológicos é o altruísmo. Um paradoxo fundamental na história humana é que estas religiões ou crenças têm muitas vezes contribuído para consequências sociais conduzindo à penetração da intolerância e da discriminação contrárias às intensões dos fundadores. 2. Para eliminar estes paradoxos, a exortação moral não é suficiente. As causas da intolerância e da discriminação sociais e psicológicas devem ser elu-
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cidadas. O estudo destas consequências imprevistas pertence, em grande parte, ao domínio da ciência social. 3. Por conseguinte, o sociólogo, através da sua pesquisa interdisciplinar, deve estudar este processo social extremamente complexo no qual os modelos de valor altruísta proclamados na origem pelos fundadores das religiões ou convicções são transformados, com o tempo, em valores imprevistos e contraditórios de intolerância e de discriminação. 4. Três exemplos de transformações sociais de valor são apresentados aqui como matéria para discussão neste Seminário: a) Os valores da religião ou convicção tornam-se valores de grupo social Quando os ensinos religiosos ou os valores de convicção se infiltram e se integram na vida quotidiana de um grupo social particular – étnico, regional ou nacional – os valores religiosos ou ideológicos tendem a determinar a função social da identificação da solidariedade de um grupo como estando oposta a um grupo exterior. Não há qualquer dúvida de que se estes valores religiosos ou ideológicos devem ser preservados, também devem estar intimamente associados e devem ser praticados ritualmente na vida quotidiana daqueles que creem nesses valores ou os defendem. Contudo, o facto crucial é o seguinte: logo que a tensão se manifeste nas relações entre grupos, os valores da religião ou da convicção, transformando a sua qualidade original, tornam-se no valor social que reforça a solidariedade no seio do grupo demonstrando a coesão exclusiva. Em geral, quando a tensão entre grupos se intensifica, a importância primordial dos valores de envolvimento das pessoas orienta-se para os cuidados mais imediatos dos interesses particulares ao seu grupo. Nestas circunstâncias, os valores e as atitudes altruístas do seu sistema religioso ou ideológico desaparecem. Além disso, quando esta rivalidade entre os grupos atinge um ponto extremo, cada um deles começa a amplificar os valores de religião ou convicção a fim de santificar a identidade do seu próprio grupo. E, legitimando ideologicamente a ação do grupo, o comportamento militante e agressivo que prevalece manifesta-se no último patamar destas lutas entre grupos como “guerras santas” entre os grupos que possuem, aos seus próprios olhos, uma identidade de grupo sacralizada. Assim, os valores de religião ou de convicção altruístas, tolerantes na origem, são invertidos nos modos de valores opostos de intolerância e de discriminação. Os valores “sagrados” tornam-se instrumentos ou no objetivo de um grupo secular.
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b. O segundo modelo de transformação de valor: os valores de religião ou de convicção numa função política ou ideológica O segundo modelo de transformação de valor desenvolve-se em circunstâncias sociais, ou a diferenciação funcional de ordem nacional não foi ainda materializada como sistema social. Em consequência, as funções religiosas tendem a ser difusas na esfera das funções políticas. Neste sistema social, os chefes políticos assumem, simultaneamente, o papel de um chefe religioso. Noutras situações, a autoridade religiosa sanciona e legitima a autoridade do chefe político. Em contrapartida, como sinal de reconhecimento, a instituição religiosa receberá uma proteção e prerrogativas particulares da parte da autoridade política. Nestas circunstâncias, onde a religião ou os valores da convicção se tornam instrumentos de função política, o valor primordial da religião e da convicção é transformado e torna-se na “pólvora para o canhão” ideológico nas lutas para tomar o poder entre os grupos políticos. A autonomia funcional dos valores da religião ou de convicção perde-se. As ações intolerantes e discriminatórias exercidas pelos grupos políticos são involuntariamente exaltadas e legitimadas por entre os valores da religião ou de convicção. Os resultados destes valores de religião e de convicção, numa função política e ideológica, são a “sacralização” da razão de ser do próprio corpo político. Porque, para preservar a expansão do seu poder, e também para proteger os seus interesses diretos, o grupo político ou poder utiliza os valores religiosos e ideológicos para os seus objetivos seculares e mundiais. c. O terceiro modelo de transformação de valor: a institucionalização dos valores religiosos ou ideológicos No processo de desenvolvimento das organizações de religião ou de convicção, o seu modelo de valor original inevitavelmente institucionaliza-se. O ensino religioso ou ideológico e as atividades nas primeiras etapas serão uma “aventura do espírito” mais do que uma “regra de segurança”. Contudo, os fundadores de religião ou de movimentos similares de crença tornam-se, com o tempo, gradualmente formalistas; assim como começa a alterar-se a pureza de intensões dos crentes. Estas organizações, que tinham sido estabelecidas com ideais universais, tornaram-se numa instituição social. Os membros começam a procurar a satisfação na segurança através de estruturas institucionais, mais do que se consagrando a atividades altruístas, os chefes dessas organizações procuram, ainda mais, uma satisfação na sua sede de poder e na sua posse de um estatuto social respeitável. O anseio de fazer carreira, o rigorismo burocrático e o conservantis-
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mo oficial tendem a dominar a consciência dos membros. Uma atitude defensiva em relação aos seus interesses diretos e pelo seu estatuto social demonstra-se um comportamento característico dos seus membros. Em consequência, tornam-se muito mais dependentes de regulamentos institucionais prosaicos. Assim, no processo de institucionalização, os ideais e os valores dos fundadores são absorvidos e desaparecem nos formalismos prosaicos. Uma vez que existe uma antinomia inerente entre os ensinos carismáticos supra empíricos e os regulamentos prosaicos, a institucionalização permite a possibilidade de enfraquecer o conteúdo original dos valores da religião e da convicção. Estes valores religiosos e ideológicos transformam-se, muitas vezes, em institucionalização. Sobre esta organização superelaborada aparece aquilo que se chama uma “muda” necessária. Através do processo de estabelecimento de uma mensagem religiosa ou ideológica definida e o desenvolvimento do rigorismo legal e da pureza prosaica, os valores altruístas e tolerantes, proclamados na origem pelos fundadores, são transformados em valores exclusivamente discriminatórios e intolerantes. Este processo de transformação dos modelos de valor tem sido mencionado no passado pelos sociólogos, incluindo Max Weber, sob o nome de “banalização do carisma”. III. Programa para a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação Seguindo um programa que tem em vista a eliminação da intolerância e da discriminação baseada na religião ou na convicção, devem ser estudados os seguintes pontos, baseados nos elementos mencionados no capítulo precedente: 1. Projeto de estudo sobre os valores centrais: a redescoberta dos modelos de valores fundamentais religiosos e ideológicos Como estudo de caso preliminar neste programa, os verdadeiros ensinos dos fundadores de religião ou de convicção devem ser redescobertos e reconhecidos objetivamente libertando-os de opiniões partidárias e de preconceitos. Na base do seu pano de fundo cultural e social, o símbolo e os modelos rituais religiosos e ideológicos têm sido expressos de diferentes formas. Contudo, parece assaz provável que esses ensinos religiosos e os seus sistemas de convicções contenham, em profundidade, valores nucleares comuns, uma vez que emanam de fontes de valores similares, tais como as sensibilidades altruístas e ascéticas, existindo como valores a priori e igualmente como um último desejo para libertar o espírito humano das angústias e dos sofrimentos deste mundo. Assim, portanto, o objetivo principal deste estudo é encontrar modelos
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de valores autênticos partilhados pelas diferentes religiões ou convicções para além das suas mitologias particulares, os seus dogmas, crenças, símbolos rituais e pontos de vista universais. A principal razão que presidiu à preparação e à execução deste estudo dos valores é a convicção de que a redescoberta dos valores comuns fornecerá uma base fundamental sobre a qual se possa estabelecer um programa em favor da eliminação da intolerância e da discriminação baseadas na religião ou na convicção. É importante que neste projeto de estudo, tratando dos problemas que surgissem no domínio dos sistemas inter-religiosos ou inter-convicções, a autonomia e o “princípio mútuo da não ingerência” sejam estritamente observados. Não é senão pelo consenso e pelo acordo entre os participantes das diferentes religiões ou convicções sobre o objetivo e o método que os valores fundamentais podem ser encontrados. 2. Estudo das transformações de valor: A análise do processo social que tende a produzir transformações de valor imprevistas O segundo tema no estudo deste programa está fixado no processo social e histórico complexo pelo qual o verdadeiro centro de valor das religiões ou das convicções prolifera e se cristaliza em instituições, elas mesmas compostas de diferentes valores, símbolos e ritos particulares. É importante reconhecer que uma antinomia inevitável existe entre “espontaneidade criadora e formalismo prosaico” e “altruísmo autêntico e egoísmo coletivo”. Estes paradoxos existentes no processo de institucionalização estão, de facto, socialmente bem estabelecidos. Síndromas socialmente negativos, como a intolerância e a discriminação, são, por consequência, largamente considerados como sendo o produto do paradoxo social intrínseco da institucionalização e da tensão ou de conflitos entre grupos. Assim, clarificações precisas são indispensáveis para quebrar estas barreiras que se encontram na condição sociocultural paradoxal. 3. Estudo de casos de intolerância e discriminação: A análise das condições sociais e culturais que têm provocado atitudes e ações inconscientes de intolerância ou de discriminação baseadas nas religiões ou nas convicções É difícil começar o estudo por casos concretos. Contudo, um estudo objetivo de processos sociais passados, que suscitaram reações de intolerância e de discriminação pelas interações entre grupos, contém manifestamente um valor importante para clarificar as causas sociais latentes e invisíveis da intolerância ou da discriminação. No entanto, mesmo se o projeto de estudar casos encontra diversas barreiras, deveria, contudo, ser feito com a maior energia.
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Escusado será dizer que este estudo de casos deve ser efetuado com uma estrita objetividade. A intervenção de pontos de vista partidários ou de preconceito é de evitar neste estudo. Os participantes de um tal grupo de investigação devem ser escolhidos de forma a apresentar a objetividade da análise e a neutralidade da interpretação. Se estes estudos de casos concretos forem realizados com sucesso, poderemos descobrir a direção geral da abordagem possível a fim de eliminar a intolerância e a discriminação como fenómeno social noutros domínios. 4. Estudo de modelos de coexistência pacífica e de cooperação entre diferentes organizações religiosas e ideológicas As organizações religiosas ou ideológicas que proclamam o valor absoluto dos seus credos tendem a provocar atitudes e ações farisaicas e exclusivas. A convicção excessivamente rígida do valor das suas orientações chega, por fim, a uma dicotomia que tende a dividir as outras religiões e convicções em dois grupos: os fiéis, dignos de confiança “eleitos”, enquanto nos grupos opostos estão os infiéis que devem ser tratados com desconfiança, “pagãos”. Tais valores de justiça própria no seio de grupos religiosos ou ideológicos envolvem ações militantes agressivas contra os outros e produzem, frequentemente, sérias tensões e confrontações entre grupos. Além disso, a sua influência pode tomar a forma de modelo de expansão unilateral e centralizador. Se esta orientação exclusiva é mantida pelas organizações religiosas ou ideológicas, pode conduzir, como subproduto das suas crenças e ações, à intolerância e à discriminação. Em consequência, para eliminar a intolerância e a discriminação, deve ser tomada em consideração uma mudança fundamental no sentido e na abordagem da “propagação da fé”. O modelo de propagação deveria ser alterado de “afirmação unilateral” em “recetividade e bênção”, em vez de afirmar a sua crença unilateralmente, perante os outros, deveriam ser praticadas ações altruístas para favorecer a comunicação das crenças recíprocas. Deveria ser empreendido um estudo sobre a possibilidade de descobrir novas normas sobre a propagação da fé, que se pode exercer numa atmosfera social de coexistência pacífica e de cooperação entre diferentes religiões ou convicções. 5. O estabelecimento de um Seminário para um estudo de base do programa e de outros controlos catárticos tem em vista eliminar a intolerância e a discriminação Os pontos indicados nas outras secções precedentes sugerem a necessidade de estabelecer um grupo de trabalho composto de especialistas internacionais
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nos domínios mencionados e de representantes de organizações religiosas e ideológicas. A fim de cumprir o programa estabelecido, este Seminário deveria ser patrocinado por uma organização das Nações Unidas e mantido no quadro dos princípios e das regras aceites por todos os participantes. A condição do sucesso deste Seminário é o funcionamento democrático. Além da organização de diferentes programas de estudo, o Seminário poderia assumir o papel de fornecer informações objetivas sobre as religiões e as convicções existentes para a publicação e a produção de material adequado. No passado, a marca do verdadeiro conhecimento das religiões e das convicções suscitou numerosas imagens parciais e por categorias. A intolerância e a discriminação foram muitas vezes provocadas por estas imagens falsificadas. Para remediar tais reações negativas, é indispensável um esforço sério para publicar material impresso ou produzir material audiovisual para aprofundar uma compreensão mútua no seio das diferentes religiões e convicções. Ainda que um tal material apresente a origem e o desenvolvimento histórico das diferentes religiões e convicções, a redação deveria orientar-se, particularmente, para a redescoberta e para o reconhecimento dos verdadeiros valores comuns originalmente proclamados pelos fundadores destas diversas religiões e convicções. 91. Artigo publicado na revista C&L, nº 30, 1985. 92. Professor na faculdade de literatura de Sophia, Japão.
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CAPÍTULO
4 Religiões e Liberdade Religiosa como Agentes para a Paz e para a Segurança
As religiões–incendiárias do ódio ou bombeiros da paz?93 – 1ª Parte
Günther Gebhardt 94 A expressão “pregador do ódio” desde há alguns anos faz parte do vocabulário corrente. Designa aquele que utiliza o seu papel religioso preponderante para suscitar o ódio e a violência contra os membros de outras religiões. As motivações religiosas desempenham, certamente, um papel em numerosos atos terroristas, mas a violência motivada pela religião não começou com os atentados terroristas destes últimos anos, e apresenta-se, também, sob diversas formas. Desde há algum tempo, voltamos a interrogar-nos – sobretudo no que diz respeito ao Islão – sobre a relação entre religião e política, religião e violência, e perguntamo-nos também se as religiões são capazes de viver em paz. Têm aparecido medos e novos espetros. Contudo, não se trata de forma alguma aqui de um problema puramente islâmico – uma tal opinião conteria já em si o germe do ódio e da violência – uma vez que todas as religiões registam surtos de violência! Na Índia, extremistas Hindus matam Muçulmanos e Cristãos. No Sri Lanka, também o Budismo, embora seja reputado como sendo muito pacífico, deslizar para o fanatismo devido às ações dos nacionalistas Sinhaleses. Nesse país, Hindus e Cristãos Tamil envolvem-se em deploráveis atos de violência. Também não devemos esquecer que a Cristandade foi manchada com sangue durante certos períodos da História e que, mesmo hoje, ainda pode recorrer à violência. Assim, a guerra do Iraque e as suas consequências são, frequentemente, apresentadas com uma manifestação do “choque de civilizações”; tanto mais que a Administração Bush lhe deu uma conotação de fundamentalismo cristão: como se Deus tivesse tornado os Estados Unidos responsáveis por dividir o mundo entre Bem e Mal e por lutar contra o assim chamado Mal até à sua erradicação. Como explicar o facto de a religião ainda ser uma das causas da violência e que os crentes podem contribuir para a paz de uma forma mais eficiente? Teria a ideia de uma ética global, exemplo de um consenso moral baseado em alguns valores morais, normas e comportamentos, um papel a desempenhar?
As religiões-incendiárias do ódio ou bombeiros da paz?
Ouvimos falar sobre a exploração da religião para propósitos políticos. A religião pode, em qualquer altura, reacender a chama dos conflitos cujas causas são completamente diferentes: políticas, sociais, económicas, etc.. As guerras na anterior Jugoslávia nos anos de 1990 são uma boa ilustração das formas estranhas e (oh!) tão eficazes em que as diferenças religiosas foram usadas em conflitos de interesses étnicos e políticos. Mas, antes de nos precipitarmos para esta tese de exploração, devíamos perguntar a nós próprios se as religiões são, realmente, amantes da paz ou não, e se os políticos sem escrúpulos e fanáticos cegos não os estão a explorar por motivos pessoais. Se esse for o caso, isso quer, então, dizer que têm consigo os primeiros elementos da disposição para a violência e que não são “inocentes” como tal. No seu livro Die Gewalt der Frommen,95 o psicólogo indiano Sudhir Kakar aborda a psicologia dos conflitos étnicos e religiosos. Ele analisa o conflito entre os radicais Hindus e Muçulmanos na Índia em particular. Chega à seguinte observação: “Para ser honesto, os conceitos que as religiões têm sobre o paraíso refletiram sempre o sonho do Homem: ver-se livre da violência. Mas esta representação apôs-se sempre à realidade, de acordo com a qual é inegável que em todas as religiões é necessária a violência para impor os objetivos religiosos.96 Esta infindável contradição transformou a história das religiões e a Humanidade numa tragédia. I. Religiões – “incendiárias” do ódio 1. Profundidade e fanatismo Por que razão chegamos a instrumentalizar a religião de uma forma tão terrível? Porque as convicções religiosas podem facilmente misturar um qualquer objetivo e dar-lhe uma profundidade particular e uma dimensão sagrada. A fé constitui, para inúmeras pessoas, um marco na vida: fornece respostas e procura, igualmente, um sentimento de segurança. Chega-se, por vezes, a manipular as pessoas, de tal forma que deixam de considerar um conflito político ou social como tal, mas mais como um combate, no qual os valores fundamentais da vida e do próprio Deus estão em jogo; atribuem-lhe, assim, a um problema puramente material, uma dimensão espiritual e “fanatizam-no”. Se “Deus está connosco” logicamente não pode estar com os outros. Portanto, aqueles que estão contra nós pertencem ao “Reino do Mal”, ou ainda, ao “Eixo do Mal”. Em consequência, a nossa guerra é comandada por Deus, e todos os meios são bons para vencer o Mal. Acrescentar uma dimensão religiosa e moral a conflitos puramente políticos, e contribuir assim para espalhar a visão simplista de um
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mundo em que tudo é preto, ou tudo é branco, sem cinzentos, nem nuances, constitui uma real ameaça à paz. Desde logo, não nos devemos admirar de que as piores crueldades sejam, precisamente, perpetradas em nome da religião, nem que os dirigentes políticos e os demagogos menos religiosos se sirvam da religião para atingirem os seus objetivos políticos. Também poderíamos mencionar aqui o culto dos mártires e os ataques suicidas; estes tornaram-se quase num fenómeno de massas, particularmente no Iraque. Sacrificar a vida por uma ideia, quer seja religiosa ou não, também pode representar uma forma de fanatismo num caso isolado, mas este ato torna-se nobre, se apenas toca o perpetrador. Esses mártires, como foi o caso do teólogo protestante Dietriche Bonhoeffer, na Alemanha nazi, e do bispo Católico Oscar Romero, em El Salvador, são considerados, com justiça, exemplos admiráveis, porque, ao contrário de outros, morreram por pessoas, embora fossem, eles próprios, não violentos. Mas o propósito do sacrifício pode desvirtuar-se em algumas pessoas: já não é uma mera questão de perder a própria vida, mas também de causar outras mortes, se possível, como parte de um grande plano em nome de Deus juntamente com toda a terminologia e todo o simbolismo religioso. Os mártires tornam-se perpetradores de ataques suicidas ou “kamikaze”. Incidentalmente, a etimologia desta palavra é interessante porque está ligada à religião: na verdade, “kami” representa, em Japonês Shinto, o conceito de divindade, e “kamikaze” significa “vento divino”. Mas deve ser salientado que todos os perpetradores de ataques suicidas não se baseiam na cultura japonesa ou em interpretações extremistas e perversas do Islão. No Sri Lanka, na sua luta contra o governo central que é marioritariamente Singalês, os Tamil Tigers fizeram um apelo a milhares de jovens perpetradores de ataques suicidas, entre os quais figuram muitas mulheres. Estes atos também são motivados e adornados com a religião, tanto Hindu como Católica. Assim, é óbvio que é muito fácil explorar a religião para criar violência contra outros, não apenas a nível coletivo mas também a nível individual. 2. As religiões como componentes da violência cultural Nos seus trabalhos de investigação sobre as estratégias da paz, Johan Galtung, depois de doze anos, estabeleceu uma diferença entre a violência direta e a violência estrutural. A violência “direta” ou “pessoal” é exercida por pessoas identificáveis contra outras pessoas. A “violência estrutural” é gerada pelas circunstâncias; tem causas estruturais. A injustiça da economia mundial poderia, por exemplo, constituir uma forma de violência estrutural. As religiões
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têm recorrido sempre a estes dois tipos de violência. Ainda hoje, não é raro encontrar, em certas comunidades religiosas, formas de violência estrutural, por exemplo, contra as mulheres. No início da década de 1990, Johan Galtung introduziu a ideia de uma terceira dimensão da violência: a violência cultural. Trata-se, segundo ele, de “aspetos da cultura, da esfera simbólica da nossa existência – expressas pela religião e pela ideologia, pela língua, pela arte, pela ciência empírica e formal (a lógica e a matemática) – que podem ser utilizados para legitimar a violência direta ou estrutural”.97 3. Os aspetos “duros” e “suaves” das religiões Certamente, nenhuma religião pode ser considerada espontaneamente como a religião da paz, mas, por outro lado, também não é justo denegrir as religiões qualificando-as, sistematicamente, como violentas. Com efeito, elas não são blocos monolíticos imutáveis, mas correntes vivas, suscetíveis de evoluir no decurso da História, de oferecer diversas facetas, e pode haver diferentes fluxos na corrente. Johan Galtung aproximou-se da verdade colocando toda a sua atenção na relação entre religião e violência. Ele observou os elementos “duros” e os elementos “suaves” de cada religião e qualificou os primeiros como “religião pervertida” e os segundos como “verdadeira religião”.98 Segundo ele, os elementos duros de uma religião são todas as doutrinas, as atitudes e as estruturas que levam à rejeição e à exclusão do outro. O lado suave representa os aspetos que encorajam a generosidade, a abertura e o acolhimento aos outros. Johan Galtung pensa que estes mecanismos estão em estreita relação com a ideia que cada confissão faz de Deus. Este pode ser transcendente – Deus é completamente diferente comparado com o Homem – ou imanente – Deus está em cada um de nós. Bem evidentemente, alguns tipos de religiões têm mais tendência a representar um ou outro. De facto, diz-se muitas vezes que as que são monoteístas, devido à sua conceção de um Deus único excluindo todos os outros, seriam mais inclinadas à violência do que as que admitem uma pluralidade de divindades. Mas é preciso não nos determos em tais categorias esquemáticas. Acima de tudo devemos compreender que em todas as religiões existem noções de transcendência e de imanência, tal como elementos duros e suaves. Por exemplo, nas religiões proféticas monoteístas representadas pelos Judeus, pelos Cristãos, pelos Muçulmanos e pelos Siques, um dos princípios fundamentais exige que Deus seja o Deus de toda a Criação, de todos os homens e de todos os povos. Todos, em geral, creem na imanência de Deus. De outra forma, como
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poderia dizer-se no islão: “Deus está mais próximo de nós do que a nossa veia jugular”? Mas em todas as religiões encontramos correntes místicas para quem o divino é a verdade situada no mais profundo do Homem e que estão, portanto, convencidas de que todos os humanos estão profundamente unidos. Por fim, podemos encontrar nas religiões ditas místicas, como o Budismo – que não conhece nenhuma representação de Deus – e o Hinduísmo, elementos duros que excluem os outros quando alguns de entre eles se identificam, como sistema, a um grupo étnico oposto a um outro grupo, como é o caso do Sri Lanka e da Índia. 4. Deter a verdade ou procurá-la A religião reivindica a busca da “Verdade” respeitante à última realidade, Deus, o sentido da vida e o Universo. As três grandes confissões proféticas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, têm consignado as suas verdades, precisamente, nas suas Escrituras. Mas os problemas surgem quando uma religião pretende ser a única a possuir toda a verdade – exclusivismo – e que, por isso, obriga os seus adeptos a converter os outros, recorrendo, no pior dos casos, à coerção e à violência – universalização. Embarcar na missão de levar os outros a aderir à sua própria religião (aquilo a que se chama tradicionalmente “proselitismo”) pode igualmente levantar dificuldades, sobretudo se se é agressivo quando se pretende convencer. Tais conceções da verdade repousam num grave mal-entendido. Com efeito, todas as religiões pretendem – com razão – que só Deus possui a verdade, e que nós, seres humanos, não podemos atingir senão ínfimas parcelas. Pode, portanto, deduzir-se que todas permitem às pessoas aproximar-se da verdade, sabendo que esta se situa para além de cada uma delas. Ninguém possui a verdade. Pelo contrário, todos os crentes, seja qual for a sua confissão, deveriam considerar-se como um conjunto de peregrinos em busca da verdade. Isso teria repercussões não negligenciáveis sobre o comportamento de uns para com os outros. O pacifista belga Paul Lévy escreveu que os “detentores da verdade” se reconhecem na atitude agressiva que têm para com os outros, assim como os crentes estariam, como investigadores da verdade, desde logo dispostos a reconhecer os caminhos que os outros seguem para chegar à verdade, a respeitá-los e a inspirar-se neles, continuando a seguir o caminho, ao qual se sentem ligados. Aproximamo-nos da paz quando a compreensão estática da verdade dá progressivamente lugar a uma conceção mais dinâmica. As manifestações agressivas de uma religião não dependem, unicamente, de certos conteúdos cheios de violência, mas essencialmente da forma de acreditar dos adeptos. Os fundamentalistas não são perigosos por veicularem mensagens
As religiões-incendiárias do ódio ou bombeiros da paz?
fundamentais – pode haver fundamentalistas pacifistas, preferem mais sacrificar-se do que fazer mal a outrem – mas porque são rígidos e convencidos de serem os únicos detentores da verdade. 5. A memória coletiva de um grupo A memória de acontecimentos trágicos da História não integrados pode, numa situação de conflito, aumentar a tendência para a violência. Por exemplo, não há qualquer dúvida de que as Cruzadas, a Colonização europeia e o domínio contínuo da política económica ocidental constituem traumatismos históricos, que originam em numerosas sociedades árabes, o terreno fértil para o ódio, que grupos extremistas aproveitam para transformar em atos violentos. A guerra do Balcãs é o exemplo tipo da forma como as tensões religiosas baseadas na História podem ressurgir num período de conflito político, incitam à recusa do diálogo e conduzem, por fim, à mais brutal violência. Seiscentos anos depois evoca-se ainda e sempre a recordação da batalha de Kosovo Polje (Campo dos Melros), perdida em 1389 pelos Sérvios cristãos contra os Turcos muçulmanos, para justificar hoje os medos e a separação entre Sérvios ortodoxos e Bósnios muçulmanos. Outro exemplo ainda mais concreto: a ideia que um bom número de Europeus faz hoje dos Turcos tem a sua origem consciente e inconscientemente nos conflitos dos séculos XVI e XVII. O espetro dos Turcos na batalha de Viena em 1683 é, admitamos ou não, uma razão para explicar que, trezentos anos depois, os Turcos muçulmanos encontram ainda por vezes dificuldades em praticar a sua religião nos nossos países da Europa Ocidental, como que temendo uma nova “conquista islâmica” da nossa sociedade. Estas velhas recordações não motivarão, em parte, e de forma subjacente, o facto de que a União Europeia teme ver os Turcos iniciar a “batalha de Bruxelas” e de que a adesão da Turquia encontre tantos obstáculos? Assim, para atingir a paz entre as diferentes religiões, seria necessário que cada uma começasse por se “curar das suas recordações” ou, dito de outra forma, que elas ultrapassassem os traumatismos do passado: esta é a condição prévia, essencial, no caminho que permitirá desenraizar a violência. 6. O medo da perda de identidade Também se pode explicar a tendência para a violência, tanto individual como coletiva, no domínio religioso pelo medo de ver a sua identidade ameaçada, ou mesmo de a perder. Os movimentos migratórios e a multiplicação das deslocações têm trazido uma grande diversidade às religiões presentes nos
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nossos países. Este pluralismo é muitas vezes visto pelos crentes fiéis como uma ameaça e um perigo à sua doutrina, porque põe em questão as suas próprias certezas. A minha religião não é a única possível? Poderia eu escolher outra? Mas então qual é o bom caminho? Uma tal incerteza corre o risco de provocar um sentimento de pânico. A única forma de garantir a sua identidade seria então rejeitar a causa desta tensão: as outras religiões. Contudo, a identidade de cada um deveria, em primeiro lugar, reforçar-se, delimitar-se, confrontar-se com outras identidades. Mas sentir que a sua identidade está ameaçada aumenta, sensivelmente, a propensão para a violência e é com razão que o escritor libanês Amin Maalouf, no seu livro epónimo,99 fala de “identidades assassinas”. No decorrer dos séculos, as Igrejas Cristãs – tal como outras correntes religiosas – têm reforçado, teologicamente, os limites que as separam de outras religiões. Acreditam que não podem salvaguardar a sua identidade, senão opondo-se. Não agir como os ditos pagãos, tal era essencialmente a definição da cristandade. Hoje, devemos mudar a nossa conceção de identidade: quer se trate de um indivíduo, quer de uma coletividade, de um povo, de uma nação, ou de uma comunidade religiosa, a identidade não pode, atualmente, ser vista senão como identidade plural. Isso implica, por um lado, que não se pode apreender a sua própria identidade sem a ver na sua relação com, e não contra, a dos outros. Nos nossos dias, é precisamente no seio deste pluralismo que se forja a identidade do ser humano. É, portanto, necessário passar de uma identidade definida por limites para uma identidade através da sua relação com os outros. Pierre Claverie, o bispo católico de Oram, na Argélia, assassinado pelos terroristas no dia 1 de agosto de 1996, formulou de forma notável, a sua visão da relação e da dinâmica entre identidade e verdade, por ter, ele próprio, vivido e sofrido sob as tensões cristãs e muçulmanas. Eis como ele testemunha da sua experiência: “Descobrir o outro (…) deixar-se afeiçoar pelo outro, isso não significa perder a sua identidade, rejeitar os seus valores, isso quer dizer conceber uma Humanidade plural e que, desde que pretendamos (…) possuir a verdade ou falar em nome da Humanidade, caímos no totalitarismo e na exclusão. Ninguém possui a verdade, cada um procura-a. Há, certamente, verdades objetivas, mas que nos ultrapassam a todos e às quais não se pode aceder senão num longo caminho e recompondo, pouco a pouco, essa verdade, respigando nas outras culturas, nos outros tipos da Humanidade, o que os outros também adquiriram, procurando no seu próprio caminho para a verdade. Eu sou crente, creio que há um Deus, mas não tenho a pretensão de possuir Deus, nem por Jesus que m’O revelou, nem pelos dogmas
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da minha fé. Não se possui Deus. Não se possui a verdade e tenho necessidade da verdade dos outros.”100 Contudo, seria verdadeiramente partidário e injusto, na nossa busca do aspeto “violência” da religião e dos índices que explicam o seu papel, esquecer, ou mesmo minimizar, o seu lado “benéfico”. As religiões não são apenas incendiárias do ódio, elas são também “bombeiros da paz”. 93. Extratos de um artigo publicado em 2007. 94. Conselheiro especial para a Fundação da Ética Planetária e vice-presidente de “Religiões para a paz (RfP)/Europa”, Tübingen, Alemanha. 95. NT. “Colours of Violence”. 96. Sudhir Kakar, Die Gewalt der Frommn. Zur Psycologie religiôser und ethnishcer Konflikt, Beck, Munique, 1997, p. 297. 97. Johan Galtung “Violência Cultural” in Journal of Peace Research, vol. 27, nº3, 1990, pp. 291-305, cit. p. 291. 98. Ver Johan Galtung, “Religious hard and soft”, in Cross Currents, vol. 47, nº 4, Nova Iorque, inverno 1997-98. 99. Ver Amin Maalouf, Les Identités meurtrières, Grasset, Paris, 1998. 100. Pierre Claverie, “Humanité plurielle”, in Le Monde, 4,5 de agosto de 1996, p. 10 http://www. ada.asso.dz/Histoire/Claviere/humanite.htmn.
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Os direitos religiosos, a identidade étnica e a liberdade religiosa numa perspetiva ecuménica e internacional101 1ª Parte
James E. Wood Jr.102 A liberdade religiosa – ainda que não seja em parte alguma uma realidade total – é um fenómeno cuja emergência é relativamente recente. O conceito, no entanto, tem uma história longa e variada. Ela é um dos ensinos das grandes religiões do mundo, se bem que a admissão geral seja pouco representativa da própria história dessas religiões, cuja marca distintiva não foi tolerância, mas sim o seu oposto, numa desprezível ignorância de qualquer noção de liberdade religiosa. Repetimos: a característica dominante da história da religião como um todo – e da pretensão à autenticidade de cada grupo de fé, em particular – não é certamente a tolerância! No coração de cada religião, há uma afirmação de unicidade ou superioridade específica, mesmo no caso em que aquele que faz tal reivindicação se mostra exclusivo e sincrético na sua profissão de fé. No entanto, vemos que, a partir da Antiguidade, levantaram-se vozes contra a intolerância e em favor da liberdade religiosa. Assim, nos primeiros ensinos do Hinduísmo, o fanatismo religioso para com os seguidores de diferentes religiões e o seu corolário, a perseguição, foram expressamente condenados. Uma das afirmações básicas do Hinduísmo é que “há uma só fé, mas os sábios referem-se-lhe sob nomes diferentes”. Saddartha Gautama, fundador do Budismo, encorajou os seus seguidores a não terem ressentimento contra aqueles que o denegriam porque, segundo ele, “agindo assim é a vocês mesmos que fazem mal”! Voltemo-nos agora para o islão. O seu livro sagrado, o Alcorão, é categórico em matéria de liberdade de consciência: “Não compulsão na religião”, afirma ele;
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e exorta ainda os seus seguidores a “não insultar os deuses que os incrédulos adorarem e quem eles adoram”. No Judaísmo, além disso, os escritos talmúdicos recomendam o respeito mais claro e mais firme para com outras religiões. O falecido rabino Heschel Abraham, igualmente reverenciado por Judeus e Cristãos, gostava de dizer: “A voz de Deus exprime-se em vários idiomas.” A despeito de uma história que durante mais de um milénio se tem distinguido pela intolerância e perseguição contra os Judeus e dissidentes, prontamente marcados como heréticos, à cristandade, não faltaram vozes que se levantaram em favor da liberdade religiosa. Sem dúvida, essas vozes são muitas vezes elevadas em reação à discriminação religiosa e à perseguição; mas muitas vezes, também, têm expressado a opinião daqueles para quem a liberdade religiosa era a própria essência da verdadeira religião. Assim, no II século d.C., um dos Pais da Igreja, Justino Mártir, resumiu esse pensamento na fórmula lapidar: “Nada é mais contrário à religião do que a coerção.” Mais tarde, numa época de severa perseguição, Tertuliano, um outro Pai da Igreja, declarou: “Não é da natureza da religião ganhar adeptos pela força, porque a crença religiosa é uma questão de livre escolha.” Posteriormente, infelizmente, este homem tornou-se num defensor feroz da mais estrita ortodoxia cristã, e deixou de defender esse ponto de vista. Um século mais tarde, Lactâncio, retórico latino e uma autoridade no Cristianismo, por sua vez afirmava: “Nada mais do que a religião é uma questão de livre arbítrio, e não se pode exigir a ninguém que preste culto a quem ele não quer adorar. Sem dúvida, um tal indivíduo poderia, no caso, pretender crer, mas não pode forçar a sua vontade de o fazer realmente.” Naturalmente, houve grupos dissidentes, como os Donatistas, que não conseguiram obter o apoio das autoridades civis para triunfar sobre os seus adversários, tornaram-se nos defensores da liberdade religiosa logo que eles mesmos foram confrontados com a perseguição. Em plena Idade Média, quando se procurou em vão encontrar qualquer vestígio de liberdade religiosa em toda a Europa, Marsílio de Pádua (século XIV) declarou-se eloquentemente contra a coação em assuntos de fé, declarando tal processo totalmente alheio à natureza da verdadeira religião e acrescentando que as convicções resultantes da fé são, na essência, espontâneas. “Nada do que é espiritual”, escrevia ele, “pode contribuir para a salvação eterna (…), se se obtém pela força”. Como outros antes dele, Marsílio tinha abraçado a causa da liberdade religiosa porque era para ele uma questão de princípio, e que considerava como uma componente essencial da verdadeira religião. No mesmo contexto,
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um tributo especial deve ser prestado aos Anabatistas, que foram os campeões da livre vontade no que diz respeito à religião e ao seu corolário: a separação da Igreja e do Estado. A mensagem anabatista em favor da liberdade religiosa foi pregada no seguimento de uma adesão livremente consentida ao Evangelho. “Uma tal atitude”, professavam esses crentes, “era a condição sine qua non da existência da verdadeira Igreja”. Opunham-se, portanto, à pressão religiosa. Um dos seus autores, Balthasar Hubmaier, declarou, a esse propósito: “Não serão os nossos atos e muito menos a espada ou a fogueira que convencerão um Turco ou um herético, mas apenas a paciência e a oração. Também deveríamos, com a mesma paciência, esperar que se exerça o julgamento de Deus.” Para a sua corajosa tomada de posição, corajosa e decidida, os Anabatistas contribuíram grandemente para fazer da liberdade de consciência o próprio fundamento da liberdade religiosa. Historicamente falando, os apelos em favor desta liberdade e dos direitos que lhe estão ligados provieram antes de todos os dissidentes religiosos, daqueles que tinham sido rejeitados ou que eram perseguidos por causa da sua fé. Se bem que a liberdade religiosa tenha sido defendida durante muito tempo por indivíduos isolados e por grupos dissidentes que a desejavam, pelo menos para si próprios, jamais foi reconhecida antes dos tempos modernos, e, nos nossos dias, na maior parte dos países do Globo, está longe de ser uma realidade. Não foi senão após a Segunda Guerra Mundial que foi reconhecida como postulado oficial da legislação internacional. Se bem que os maiores progressos realizados no mundo moderno em relação à liberdade religiosa não tenham sido fruto de confissões de fé, de concílios ou de sínodos religiosos, mas de Constituições, de corpos legislativos e de tribunais, criou-se um largo consenso, tanto a partir da legislação constitucional, como internacional e das próprias tradições religiosas, para defender os direitos e a liberdade inerentes à religião. Reconhece--se, hoje, de uma forma cada vez mais geral, que a liberdade religiosa significa pelos menos isto: “o direito próprio de toda a pessoa aderir – em público, ou em privado – a uma confissão religiosa que a sua consciência dita; de adorar Deus ou de não O adorar, conforme o seu nível de compreensão ou das suas preferências; de dar publicamente testemunho da sua fé – incluindo de fazer proselitismo e de mudar de religião – e tudo sem ter de temer represálias, discriminação religiosa ou restrições dos seus direitos cívicos por causa da fé que pratica.” Gradualmente, a liberdade religiosa tem, portanto, chegado a ser considerada como um envolvimento axiomático universal que nações e confissões de fé subscrevem.
Os direitos religiosos, a identidade étnica e a liberdade religiosa
II Este reconhecimento crescente do direito à liberdade religiosa – parcialmente favorecido pelos assaltos diretos de ideologias políticas hostis à religião e pela expansão mundial do Cristianismo, que se introduziu em numerosos territórios onde os Cristãos representavam anteriormente ínfimas minorias – resultou numa larga aceitação ecuménica da liberdade religiosa pelas diferentes Igrejas. Mais de um decénio antes da Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas, uma conferência ecuménica de importância histórica teve lugar na Universidade de Oxford, em 1938, sobre o tema: “A Igreja, a sociedade e o Estado.” Oito condições consideradas primordiais para que haja liberdade religiosa foram então enunciadas; foram consideradas “indispensáveis (…) para o cumprimento do dever essencial da Igreja”. Seis meses mais tarde, sob os auspícios do Conselho Missionário Mundial, uma outra conferência se desenrolou em Madrasta, na Índia. Reuniu quatrocentos e sessenta e um delegados, vindos de sessenta e nove países ou territórios. A atenção dos seus participantes foi de novo atraída para “o direito mínimo à liberdade religiosa para a obtenção da qual a Igreja deveria trabalhar obstinadamente”. Um dos sete volumes de relatórios redigidos após esta conferência foi inteiramente consagrado às relações Igreja/Estado. Em Amesterdão, em 1947, por ocasião da primeira Assembleia do Conselho Mundial das Igrejas, a liberdade religiosa foi colocada na ordem do dia de uma forma que não podia ser mais concreta, sob a forma de um documento intitulado: “Declaração sobre a liberdade religiosa.” A Assembleia convidou as Igrejas a “apoiar qualquer iniciativa tendente a obter, no quadro de uma carta internacional dos Direitos do Homem, a garantia de que a liberdade de religião e de consciência seria salvaguardada de forma adequada”, esta salvaguarda incluía “o direito para todos os seres humanos de permanecerem unidos a uma fé ou de mudar, de a manifestarem pelo culto e pelas práticas, de ensinar aos seus semelhantes e de os persuadir a aceitarem-na; e, por fim, de decidir o género de educação religiosa que possa, ou não, beneficiar os seus filhos”. A Declaração afirmava, por outro lado, que a liberdade religiosa era “um elemento essencial da boa ordem internacional” e que, por conseguinte, os Cristãos consideravam esta questão como um problema mundial, para a resolução total do qual prestariam a máxima atenção. “Reivindicando esta liberdade”, precisava ainda a Declaração, “os delegados não pediam para os Cristãos nenhum privilégio que fosse recusado aos adeptos de outras confissões religiosas, ou a quem quer que seja”.
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Em matéria de liberdade religiosa, a Declaração sobre a liberdade religiosa do Conselho Ecuménico das Igrejas (CEI) definiu quatro direitos fundamentais que deveriam “ser reconhecidos e concedidos a todos, sem distinção de raça, de cor, de sexo, de língua ou de religião”, e isso da seguinte forma: “1) Toda a pessoa tem o direito de decidir da sua própria fé e do seu próprio credo; 2) Toda a pessoa é livre de manifestar as suas convicções religiosas pelo culto, pelo ensino ou pelas práticas, e de apresentar, abertamente, as consequências que podem ter as suas convicções sobre as relações sociais ou políticas no interior da comunidade; 3) Toda a pessoa tem o direito de se associar a outros indivíduos e de se organizar tendo em vista praticar a sua religião; 4) Toda a organização religiosa constituída ou mantida por ações de acordo com os direitos individuais é livre de decidir quais serão os regulamentos e as atividades que contribuirão para a realização dos objetivos propostos.” Adotada por unanimidade, a Declaração de Amesterdão marca uma etapa importante na história da liberdade religiosa. Foi consideravelmente facilitada a adoção final, pelas Nações Unidas, da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, vários meses depois da sua proclamação. As Assembleias ulteriores do CEI não só consolidaram a Declaração de Amesterdão, mas ainda reforçaram o apoio deste organismo à causa da liberdade religiosa. Em 1961, em Nova Deli, na terceira destas Assembleias, esta mesma liberdade foi declarada um “direito fundamental” de todo o ser humano em qualquer lugar. “A liberdade de manifestar a sua religião, ou a sua convicção, em público ou em privado, só ou em comum”, precisou a Assembleia, “é indispensável à expressão da liberdade interior. A liberdade religiosa”, acrescentou ela, “compreende também, o direito de adorar em público ou em privado, de ensinar e de pregar, de praticar a sua religião ou as suas convicções por palavras e atos, de celebrar atos e de observar ritos em público e em privado e, por fim, de mudar de religião ou de convicção segundo a sua vontade, sem que daí resultem prejuízos sociais, económicos ou políticos”. A Assembleia de Nova Deli sublinhou, igualmente, que a liberdade religiosa não era apenas um dos direitos fundamentais do Homem, mas que estava estreitamente ligada a todos os outros direitos dos indivíduos. A Declaração de Nova Deli, tal como a anterior, de Amesterdão, foi adotada por unanimidade. O CEI continua a interessar-se ativamente, tanto no domínio teórico, como no plano prático, não só em tudo o que diga respeito à liberdade religiosa, mas também com os problemas da identidade étnica e os Direitos do Homem. Para retomar estes termos, “a dignidade humana é (…) inerente a todo o indivíduo.
Os direitos religiosos, a identidade étnica e a liberdade religiosa
Os Direitos do Homem não constituem um fim em si mesmos, mas representam as condições a preencher para atingir a dignidade humana”. Em 1974, o relatório de Saint Pölten formulou estes direitos em seis pontos: 1) O direito de gozar de todas as garantias fundamentais da existência. 2) Os direitos à autodeterminação e à identidade cultural, assim como os direitos das minorias. 3) O direito a participar na tomada de decisões no interior da comunidade. 4) O direito à dissidência. 5) O direito à dignidade da pessoa. 6) O direito à liberdade religiosa. Os textos e as declarações do CEI, que enunciam sem embargo os princípios da liberdade religiosa, constituem os documentos internacionais, os mais diretos, e aqueles cujo impacto é maior relativamente aos Direitos do Homem, à identidade étnica e à liberdade de consciência; eles representam, portanto, uma das contribuições maiores do movimento ecuménico cristão aos progressos realizados nestes três domínios. O reconhecimento da liberdade religiosa pela Igreja Católica Romana, por ocasião do Concílio Vaticano II, permanece um capítulo significativo da História da longa luta que, no mundo ocidental, tem oposto a liberdade e a religião. Tornada pública em 7 de dezembro de 1965, a “Declaração sobre a liberdade religiosa” (Dignitatis Humanae Personae) foi a primeira encíclica papal redigida especialmente em favor desta liberdade. Ela representa, em consequência, um passo decisivo dado nesta direção pela Igreja Católica Romana. Este documento confirma o direito sagrado e natural para todo o indivíduo à liberdade religiosa: “Este sínodo do Vaticano (…) declara que o direito à liberdade religiosa tem como fundamento a própria dignidade humana, tal como a Palavra revelada de Deus e a razão nos dão a conhecer.” A encíclica, que tem como subtítulo: “Do direito das pessoas e das comunidades à liberdade social e civil no domínio religioso” precisa, além disso, que “ninguém deveria ser forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir de acordo com as diretivas que ela lhe dita”. Por este documento, a Igreja Católica Romana reconhece, ao mesmo tempo, o direito natural à liberdade religiosa coletiva e à liberdade religiosa individual. “As comunidades religiosas”, declara o texto do Vaticano II, “têm o direito de não serem impedidas de ensinar e de, publicamente, testemunharem da sua
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fé, seja por escrito seja oralmente (…) e de fazerem salientar, livremente, o valor particular das suas doutrinas distintivas, quando se trate de fazer reinar a ordem na sociedade e de orientar positivamente a atividade humana no seu conjunto”. Os fundamentos favoráveis à liberdade religiosa, que derivam de uma grande variedade de tradições religiosas, têm contribuído, substancialmente, para o reconhecimento desta liberdade assim como para a legislação nacional e internacional. Pode, com efeito, dizer-se, parafraseando as observações do desaparecido O. Frederick Nolde, confirmadas posteriormente pelos documentos emanados do governo dos Estados Unidos: “Uma influência cristã de envergadura internacional desempenhou um papel determinante quando se atua para tomar as mais vastas disposições tendo em vista introduzir, finalmente, as noções a respeito dos Direitos do Homem e das liberdades humanas fundamentais na Carta (das Nações Unidas).” Como mostra a evidência da obra recente e bem documentada de Robert Traer, Faith in Human Rights, o apoio crescente concedido a estes direitos pelas religiões tradicionais de todo o mundo, assim como os que emanam de humanistas seculares, permite esperar um fim feliz ao combate que se trava ainda em vista de assegurar um sólido apoio legal aos direitos religiosos assim como à identidade étnica e à liberdade religiosa. 101. Texto apresentado em Budapeste, Hungria, a 17 de maio de 1992, por ocasião do Colóquio Internacional sobre os Direitos Religiosos, a Identidade Étnica e a Liberdade Religiosa. 102. Presidente da International Academy for Freedom of Religion and Belief, professor na Universidade Baylor, diretor do jornal Curch and State, Estados Unidos.
Declaração sobre o papel da religião na promoção de uma cultura de paz103
Unesco Nós, participantes da reunião sobre “A contribuição das religiões para a cultura da paz”, organizada pela UNESCO e pelo Centro Unesco da Catalunha, que teve lugar em Barcelona de 12 a 18 de dezembro de 1994; Profundamente preocupados com a situação atual no mundo, em particular pelo recrudescimento dos conflitos armados e da violência, da pobreza, da injustiça social e das estruturas de opressão; Reconhecendo que a religião é importante na existência humana; Declaramos: O nosso mundo 1. Vivemos num mundo em que o isoladamento já não é possível. Vivemos numa época caracterizada por uma mobilidade dos povos e por uma mistura de culturas sem precedentes. Somos todos interdependentes e temos uma responsabilidade comum, à qual não nos podemos subtrair, no que concerne ao bem-estar do mundo inteiro. 2. Estamos perante uma crise que poderia levar ao suicídio da espécie humana ou provocar um novo despertar e suscitar uma nova esperança. Estamos persuadidos de que a paz pode ser instaurada. Sabemos que a religião não é apenas remédio para todos os males da Humanidade, mas tem um papel indispensável a desempenhar neste período crítico. 3. Estamos conscientes da diversidade cultural e religiosa no mundo. Cada cultura representa, em si mesma, um universo sem, contudo, se fechar sobre si mesma. As culturas dão às religiões a sua língua e as religiões dão um sentido último a cada cultura. Sem reconhecimento
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do pluralismo e sem respeito pela diversidade, não poderia haver paz. Lutamos pela harmonia que está no próprio coração da paz. 4. Sabemos que a cultura é uma forma de ver o mundo e de nele viver. Isso significa que é preciso cultivar os valores e as formas de vida que refletem a visão do mundo de cada cultura. Nem a paz, nem a religião podem, portanto, reduzir-se a um conceito único e rígido, assim como o conjunto da experiência humana não pode ser expressa por uma só língua. 5. Para certas culturas, a religião é um modo de vida que impregna toda a atividade humana. Noutras culturas ainda, as religiões são instituições que afirmam trazer a salvação. 6. As religiões têm contribuído para a paz no mundo, mas também têm dado lugar à divisão, ao ódio e à guerra. As pessoas religiosas têm muito frequentemente traído os ideais elevados que elas próprias pregam. Acreditamos que é preciso apelar a atos sinceros de arrependimento e de perdão mútuo, pessoal tanto a título como coletivo, uns para com os outros, para com a Humanidade em geral e para com a Terra e todos os seres vivos. A paz 7. A paz supõe que o amor, a compaixão, a dignidade humana e a justiça social sejam plenamente conservadas. 8. A paz implica a consciência de que todos somos interdependentes e ligados uns aos outros. Somos individual e coletivamente responsáveis pelo bem comum, incluindo o bem-estar das gerações futuras. 9. A paz exige que respeitemos a Terra e a vida sob todas as suas formas, em particular a vida humana. A nossa consciência moral quer que fixemos limites à tecnologia. Deveríamos centrar os nossos esforços na eliminação do consumismo e no melhorar da qualidade de vida. 10. A paz é um caminho – um processo sem fim. O nosso envolvimento 11. Deveríamos estar em paz connosco mesmos; esforçarmo-nos por adquirir esta paz interior pela meditação e a elevação espiritual e ao cultivar uma espiritualidade que se manifesta nos atos. 12. Comprometemo-nos em manter e consolidar o lar e a família como berço da paz.
Declaração sobre o papel da religião na promoção de uma cultura de paz
Nos nossos lares e nas nossas famílias, nas nossas comunidades, nações e no conjunto do mundo. 13. Comprometemo-nos em regular os conflitos ou em fazê-los evoluir sem recorrer à violência, a preveni-los através da educação e do exercício da justiça. 14. Comprometemo-nos em trabalhar para a redução das disparidades económicas escandalosas, entre grupos humanos, e a lutar contra outras manifestações de violência e ameaças à paz, tais como o desperdício dos recursos, a extrema pobreza, o racismo, todas as formas de terrorismo, a indiferença, a corrupção e a criminalidade. 15. Comprometemo-nos em nos desfazermos de todas as formas de descriminação, de colonialismo, de exploração e de domínio, e a promover instituições baseadas na partilha de responsabilidades e na participação. Os direitos do Homem, e especialmente a liberdade religiosa e os direitos das minorias devem ser respeitados. 16. Comprometemo-nos em garantir a educação verdadeiramente humana para todos. Consideramos a educação para a paz, para a liberdade e para os Direitos do Homem, assim como a educação religiosa, como meios privilegiados para promover a abertura ao outro e à tolerância. 17. Comprometemo-nos em favor de uma sociedade civil ciosa de justiça, em matéria de ambiente como no domínio social. Tal empresa começa no plano local e progride aos níveis nacional e transnacional. 18. Comprometemo-nos em trabalhar para um mundo sem armas e a desmantelar a indústria da guerra. A nossa responsabilidade religiosa 19. As nossas comunidades baseadas na fé têm a responsabilidade de exaltar uma conduta imbuída de justiça, de compaixão, de espírito de partilha, de caridade, de solidariedade e de amor, incitando, cada um, a escolher a via da liberdade e da responsabilidade. As religiões devem ser uma fonte de energia construtiva. 20. Permaneceremos atentos ao facto de que as nossas religiões não devem identificar-se com os poderes políticos, económicos ou sociais, de forma a conservar as mãos livres para promover a justiça e a paz. Não esqueceremos que os regimes políticos confessionais podem falsear gravemente os valores religiosos e causar sérios prejuízos à sociedade. Devemos evitar confundir zelo religioso com fanatismo.
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21. Favoreceremos a paz, combatendo as tendências dos indivíduos e das comunidades, considerando, ou mesmo ensinando, que eles são por natureza superiores aos outros. Apreciamos e louvamos aqueles que querem estabelecer a paz pela não-violência. Renegamos aqueles que matam em nome da religião. 22. Encorajamos o diálogo e a harmonia entre as religiões como entre aqueles que pertencem a uma mesma religião, reconhecendo e respeitando a procura da verdade e a sabedoria fora da religião. Estabelecemos um diálogo com todos, esforçando-nos para uma fraternidade sincera ao longo da nossa peregrinação terrestre. O nosso apelo 23. Crescendo na nossa fé, edificaremos uma cultura da paz baseada na não-violência, na tolerância, no diálogo, na compreensão mútua e na justiça. Apelamos às instituições da nossa sociedade civil, às organizações do sistema das Nações Unidas, aos governos, às organizações governamentais e não governamentais, às empresas e aos media para reforçarem o seu envolvimento em favor da paz e para prestarem atenção aos gritos das vítimas e dos necessitados. Apelamos às diferentes tradições religiosas e culturais para unirem os seus esforços para este fim e a cooperar connosco para propagar a mensagem da paz. 103. Artigo publicado em C&L Nº 50, 1995, p. 85.
A especificidade da liberdade religiosa em relação com as outras liberdades do espírito104
Mons. Roland Minnerath 105 Uma das condições requeridas para garantir eficazmente o direito à liberdade religiosa nos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais é o ter em conta a especificidade do fenómeno religioso em relação com as outras abordagens do espírito. A este respeito, é preciso reconhecer que os textos normativos106 ainda conservam definições redutoras da religião que remontam às tentativas de recuperar esta última a outras formas de atividades da mente e atribuir, na melhor das hipóteses, um lugar na esfera privada ou um papel secundário para a sociedade. A menos que ela seja considerada simplesmente como um epifenómeno destinado a desaparecer sob os golpes da propaganda antirreligiosa, também definida como uma exigência da liberdade de consciência.107 É assim que os textos colocam, correntemente, no mesmo plano, a liberdade de consciência, de pensamento, de religião e de convicção. A religião é assemelhada a “uma qualquer convicção” no Preâmbulo da Declaração de 1981. Quanto ao artigo primeiro do projeto da Convenção aprovado em 1967, depois abandonado, vai justamente estabelecer que “a expressão ‘religião ou convicção’ engloba as convicções teístas, não teístas e ateias”. A inadequação desta assimilação aparece quando se lê, por exemplo, que as “convicções” – portanto não religiosas e mesmo ateias – também se exprimem no ato de culto.108 Certamente, a consciência, o pensamento, a religião e a crença não religiosa reenviam todos para a esfera da interioridade do indivíduo, mas os procedimentos próprios de cada uma dessas atividades são específicos. Em particular, a religião nunca é uma atividade puramente interna, individual e subjetiva. Parece, portanto, necessário, em textos que visam garantir a liberdade destas quatro abordagens, consagrar a cada um deles os desenvolvimentos requeridos pela respetiva natureza. Em vez de permanecer prisioneiro de uma abordagem filosófica, uma religião a priori redutora, o legislador deverá examinar a fenomenologia das religiões que estuda estas últimas comparativamente, para se concentrar no que
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elas mesmas dizem de si próprias. A fenomenologia das religiões mostra que a abordagem religiosa não é o mesmo que, por exemplo, a filosofia ou a ética, ou mesmo a teologia. Também não é uma atividade pré ou antirracional. A religião não se compreende a partir da não-religião. A religião implica a aceitação de toda a pessoa (consciência, pensamento, sentimento) para uma realidade que a transcende e que pode ser designada como a “Todo Outro”, o “Sagrado”, a Transcendência, e que é o Deus que Se autor revela através das religiões monoteístas.109 Trata-se sempre de uma relação da pessoa com o Além, da experiência sensorial, com a qual se situa numa relação de dependência. Existencialmente, o homem religioso tira da sua relação com este horizonte último o fundamento absoluto de todas as dimensões do ser pessoal e social, e envolve a sua pessoa nesta relação. A religião fornece à consciência uma instância suprema situada fora de si mesma, no entanto estando presente nela, instância que é o garante supremo da própria consciência, porque escapa ao poder do Homem. O homem religioso adere aos conteúdos da fé e das regras de conduta que lhe são prescritos e que não se lhe compete mudar. O ato religioso, é ao mesmo tempo, pessoal e social. Aderir a uma religião é entrar na comunidade religiosa onde é transmitida a tradição do seu fundador. Cada comunidade religiosa tem uma vida pública visível com os seus ritos, o seu culto, os seus templos, os seus ministros, a sua organização, o seu compromisso social. A liberdade religiosa é a liberdade de pertencer a uma comunidade religiosa. Também cada comunidade tem o direito de ser reconhecida pelo legislador na sua própria estrutura organizacional, seja ela local, nacional ou supranacional. As religiões universais não se confundem com uma cultura nem com a história de um determinado povo. Elas transcendem as diversas culturas e enriquecem-nas. A redução concetual da religião à categoria de opinião subjetiva e privada levará à sua eliminação da cultura e do dinamismo da vida pública. As comunidades religiosas são parceiras de pleno direito da vida social. Pela sua natureza, as religiões oferecem uma visão integral da origem, do significado e do destino final do Homem e da História e, portanto, fornecem um quadro de referência e fundamentos últimos aos valores assimilados pela cultura e vividos nas sociedades. O Estado não pode ao mesmo tempo, sem se contradizer, proclamar a liberdade religiosa e identificar-se com uma ideologia ateísta ou impor uma legislação religiosa aos cidadãos com outro credo ou outras convicções … a
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responsabilidade própria do Estado em matéria religiosa é garantir que os direitos dos indivíduos e das comunidades religiosas são respeitados e que os abusos cometidos em nome da liberdade religiosa mal compreendida são reprimidos. Constatam-se tais abusos nas práticas de determinadas seitas, em particular formas de proselitismo, que envolvem a propagação de doutrinas e o recrutamento de novos seguidores de maneiras que não respeitam a liberdade de consciência e a dignidade das pessoas, ou ignoram as leis que protegem os menores. É claro que o Estado deve dar o exemplo, evitando praticar qualquer forma de proselitismo legal. A consideração do fenómeno religioso e dos seus direitos na sociedade não prejudica outras liberdades – de consciência, de pensamento e de convicção não religiosa –, que o Estado também tem o dever de garantir e os cidadãos de respeitar. Bem ao contrário, a liberdade de abordagem religiosa, que procede do mais íntimo da consciência e afirma a existência de normas transcendentes, é a garantia mais segura de outras liberdades do espírito. Na tentativa de reduzir a religião às outras formas de atividades do espírito, o Estado, que também proclama os Direitos do Homem, privar-se-ia do fundamento absoluto correspondente a esses mesmos direitos na consciência dos crentes. O edifício dos Direitos do Homem é frágil, enquanto permanece no poder do Homem – neste caso, no poder do Estado. Estes direitos não são plenamente assegurados apenas se, na mente dos cidadãos e dos governantes, eles forem inalienáveis, anteriores ao Estado que não pode dispor deles a seu bel prazer, e com base numa antropologia da transcendência. Só a religião pode dar, aos valores que implicam o reconhecimento da dignidade humana, um fundamento que não pode ser obtido através de qualquer outro poder. Certamente não se trata de pedir ao Estado o direito de adotar as crenças religiosas específicas que sustentam a antropologia da transcendência, mas que reconheça que as comunidades religiosas existem na sociedade, e que retiram da sua fé religiosa todas as justificações fundamentais dos valores dos Direitos do Homem. Sem convicção religiosa é impossível basear os Direitos do Homem sobre uma base diferente da tautologia. Reconhecer as comunidades religiosas por aquilo que elas são, é reconhecer forças espirituais capazes de defender a intangibilidade dos valores sobre os quais edificar o Estado de direito e a sociedade autenticamente livre. 104. Artigo publicado na revista C&L nº 40, de 1990 (edição francesa). 105. Professor na Universidade de Estrasburgo, França. 106. Ver Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), artigo 18; Convenção (Europeia)
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da Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), artigo 9; Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (1960), artigo 18; ata final de Helsínquia (1975), princípio VII; Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção (1981). Preâmbulo; Artigo primeiro. 107. Ver As Constituições sucessivas da URSS de 5 de dezembro de 1936, artigo 24 e de 7 de outubro de 1977, artigo 52. 108. Ver Declaração Universal (1948), artigo primeiro; Declaração (1981), artigo primeiro. 109. Pode remeter-se para as obras clássicas de R. Otto, Das Heilige, 1917, Munique, 1958 (30); G. Van Der Leeuw, Der Primitieve Mensch in der religie, Griningue, 1937; M. Eliade, Traité d’histoire des religions, Paris 1949; Histoire des croyances et des idées religieuses, 4 vol., Paris, 1968; M. Scheler, Das Ewigeim Menshen, 1922.
CAPÍTULO
5 Tolerância a Favor da Diversidade, um Caminho para a Liberdade Religiosa – Ganhando a guerra das ideias –
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Ganhar a guerra das ideias no mundo árabe: Um ponto de vista dos Emiratos Árabes Unidos110
S. Exª. O Embaixador Saif Ghobash 111 Os ministros dos Negócios Estrangeiros de todo o mundo reuniram-se em Paris para decidir os meios de vencer a organização Estado Islâmico no Iraque e no Oriente. Ora a intervenção armada não é senão um pequeno elemento da estratégia requerida, porque o EI é, antes de mais, um movimento ideológico que vai buscar a sua força aos combatentes e simpatizantes que recruta por todo o mundo árabe e fora dele. Como se poderá, então, vencê-lo no plano ideológico? Embora sendo o Embaixador dos Emiratos Árabes Unidos em Moscovo, sou, antes de mais, um liberal, no sentido amplo e positivo dessa palavra; em segundo lugar, um Árabe, e, em terceiro lugar, um indivíduo. É desta forma que gostaria que me escutassem: como o pensador liberal, consciencioso, e como pessoa, não tanto como representante oficial. A razão pela qual abordo hoje este assunto – fá-lo-ei também no futuro e noutros ambientes – é que estou, como muitos outros, horrorizado com a violência demonstrada pelo EI em nome do Islão e em nome dos Árabes. O EI massacra aqueles que o criticam, muitos dos quais membros da comunidade sunita que ele pretende defender, curiosamente, e com arrogância, reclama o direito de reinar sobre todos os Muçulmanos por todo o mundo. Persegue as minorias que todo o Muçulmano honesto deve amar e proteger. E não está só nesta matéria, uma vez que outros movimentos islamitas têm feito, mais ou menos, a mesma coisa. Entre eles, é preciso incluir a Irmandade Muçulmana, e insistirei neste ponto ao longo de toda esta apresentação. A maior parte da cobertura mediática das reações suscitadas pelo EI focaliza-se na mobilização, pelo Ocidente e dos seus aliados, de uma coligação visando vencê-lo militarmente e eliminar os terroristas em que ele se apoia. Mas no espírito dos meus correligionários muçulmanos, o EI é ainda mais perigoso por ser considerado um modelo. É o modelo ao qual se podem agregar seja qual for
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a substância e é sob este ângulo que o EI deve, acima de tudo, ser combatido. É neste sentido que farei cinco propostas. Esta lista não pretende ser exaustiva. Não me debruço sobre as medidas a tomar para impedir indivíduos de financiar o EI e não vou enunciar medidas económicas e políticas, tais como concessões a fazer à maioria árabe sunita do Iraque, ou políticas para reduzir o desemprego. Na minha opinião, não é que tais medidas não tenham importância, mas porque outras pessoas estão melhor colocadas do que eu para as discutir. Portanto, aquilo de que vou falar é do debate ideológico no seio do mundo árabe e da forma de ele se poder voltar contra o EI e outros Islamitas. Este debate deve, antes de mais, desenrolar-se entre os Árabes em termos que estes últimos compreendam. Preocupar-nos se a sociedade ocidental ou os media vão gostar do que dizemos distrai-nos de falar uns com os outros. O que nos impede de dialogar é o receio de que a sociedade, ou os media ocidentais, quererão ouvir o que dizemos. Quando falamos de Islamitas moderados ou de democracia islâmica, é frequentemente claro que não falamos uns com os outros, mas com pessoas que imaginamos estar em Washington. Estes não são – em todo o caso ainda – conceitos coerentes e não estão colocados à cabeça da lista das prioridades. Assim, como Muçulmano Sunita, isto é, bem diferente de Islamita Sunita, quais são os assuntos que me preocupam? Eu, e muitos dos meus compatriotas, estou profundamente inquieto a propósito das seguintes questões: 1. 2. 3. 4.
O nosso estado moral A violência no seio da nossa sociedade árabe muçulmana Os nossos dirigentes teológicos O papel dos leigos e das pessoas de boa vontade na nova orientação na via seguida pelos mundos árabe e muçulmano 5. O emprego da economia Estes cinco temas – que se podem, também, enunciar como segue: moralidade, tolerância, moderação religiosa, inclusão e bom governo (o que preferiria chamar tecnologia política) – são cruciais desde logo porque se trata de minar a atração dos movimentos islamitas militantes tais como o EI e a Irmandade Muçulmana. Deveríamos: 1. Mostrar que mesmo que eles digam que vão tornar os Muçulmanos mais virtuosos, esses movimentos não o farão. O seu programa de moralidade
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forçada e de normas religiosas impostas é não apenas negar toda a lógica, mas ainda só pode levar ao fracasso. 2. Sublinhar que a violência e a intolerância do seu programa estão em total oposição com o que foi o califado histórico e que não passa de um projeto redutor da história do Islão. 3. Abordar as questões do clero muçulmano que se apoia nos extremistas e dá à sua violência o selo da sua aprovação ou não os integrar nas suas funções pastorais para Muçulmanos do século XXI. 4. Refletir sobre a forma de guiar as nossas sociedades: questionar qual é o melhor caminho para um futuro melhor com um Estado e uma segurança inclusiva para todos os cidadãos. 5. Finalmente, mostrar que ser governado por Islamitas é ser mal governado. E se eles governam mal, não é apenas por causa da sua inexperiência, mas porque a sua ideologia os impede de governar bem. “A resposta é o Islão! Qual é a pergunta? Os Islamitas gostam de dizer que “a resposta é o Islão”, divisa promulgada pela Irmandade Muçulmana assim como os movimentos militantes xiitas do Iraque. Muitos são os que, entre nós, têm perguntado qual era a pergunta. O Islão é a nossa religião e exerce uma poderosa e profunda influência nas nossas vidas. Para muitos entre nós, é a resposta às nossas necessidades espirituais e existenciais. Contudo, estamos na obrigação de a rejeitar quando se apresenta numa versão retificada e instrumentalizada pelos Islamitas, ferramenta promocional da sua sede de poder. Uma forma de travar esta versão do islão consiste em perguntar em que é que ele é a resposta a questões precisas e em que o é particularmente quando ele se encontra nas mãos dessas pessoas. E a explicação fornecida pelos Islamitas não passa nunca de vagas garantias de que tudo irá bem quando o islão for posto em prática. Ora isso nem sempre responde à questão de saber como tal ou tal problema, puramente técnico, ou administrativo ou biológico, ou social, seria resolvido graças à piedade. Parece, de facto, que servir-se desta forma da nossa religião se volta contra ela, porque a nossa religião está centrada, por essência, na dimensão ética, moral e espiritual. Decidir uma política em matéria de fundos de pensões não depende do domínio religioso, nem o desenvolvimento económico depende dele diretamente. Haverá certos aspetos éticos que é necessário ter em conta – princípios de honestidade, de equidade, de justiça – mas é excessivo dizer que há uma resposta islâmica para essas questões, porque a verdade é que se podem apresentar numerosas respostas.
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Magoa-me o facto de se citar frequentemente a corrupção como um dos vícios que serão erradicados pela aplicação do islão, sob o governo dos Islamitas. Dizem-nos que se encontrarão, então, pessoas piedosas nos postos de responsabilidade e que isso porá fim à corrupção. Isto é mais apresentar desejos por realidades. Porque não tentar antes adotar procedimentos administrativos provados e testados, que garantirão uma transparência suficiente para que a corrupção seja muito mais difícil de encontrar? O que me inquieta, é que entendemos muito pouco da nossa grande religião. Embora o nosso texto sagrado e os nossos princípios morais possam ser orientados para a regeneração pessoal, preferimos exigir deles que transformem aqueles que mostram a sua piedade em seres de uma infalível moralidade. Contudo, é mais fácil, e mais rápido, criar sistemas administrativos que cumpram esta função, sem cuidar do valor moral do funcionário e prestar um melhor serviço aos nossos cidadãos. Aquilo que também me inquieta é ver os nobres objetivos da religião utilizados para justificar os meios que caracterizam o mal e a cobardia. Por exemplo, ela é usada para glorificar a violência, o que o EI não cessa de propagandear. Além disso, pode servir para dissimular um outro género de violência – a violência da subordinação, da corrupção e da exploração. Trata-se, também, de um género de violência psicológica com que nos afligimos mutuamente quando nos impomos, uns aos outros, normas religiosas, até vigiar o estado mental de cada um, numa busca frenética da menor fraqueza moral. Tolerância contra violência O EI e outros movimentos praticam uma leitura errónea e seletiva da história do Islão, quando pretendem ser os sucessores modernos dos primeiros Muçulmanos – e não se sabem dotar da força da sua reivindicação. Concentremo-nos durante alguns instantes no EI. Se bem que este grupo como assim a Irmandade Muçulmana seja ambos movimentos islamitas fundamentalmente hostis ao tipo de sociedade árabe que desejo ver, o EI é, para mim, uma maior fonte de preocupação do que a Irmandade Muçulmana, porque estes últimos são uma organização mais próxima de uma seita, um género de fraternidade dotada de todos os tipos de teste e de demonstrações de lealdade absoluta para com uma direção religiosa e administrativa. A hierarquia moderna não encontra nenhum reflexo da antiga história do islão, é um sistema fechado, atolado na sua própria mitologia, na sua própria conceção do mundo. O EI, por sua vez, é um sistema aberto. Violento na sua própria natureza, apela aos elementos básicos da história muçulmana. A sua intenção é reprodu-
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zir o avanço do Islão ao fio da espada através de toda a região – numa espécie de reiteração da história do século VII. É uma abordagem que fascina por fazer apelo a numerosas referências comuns a todos os Muçulmanos. Apropria-se das formas da antiga história islâmica de uma forma que muitos dos Muçulmanos, eu incluído, sabem identificar. O EI quer recordar a época dos califas assim como as batalhas durante as quais os primeiros Muçulmanos provaram a si mesmos e sacrificaram-se a si mesmos para vencer os inimigos do Islão. É por apelarem a este desejo de reproduzir esses acontecimentos que se situa o seu verdadeiro perigo. O EI tem apresentado e imposto como referência um discurso enganador e unidimensional que exerce, infelizmente, uma vasta influência na nossa região. Esta influência enraíza-se na pressão de instituições que recusam examinar e reexaminar as implicações de crenças mal compreendidas da nossa religião, da nossa história, das nossas sociedades atuais e dos meios que nos podem permitir melhorar os nossos caminhos. E é aí que nós, outros Muçulmanos Sunitas, devemos colocar, a nós próprios, algumas questões cruciais: por que razão a forma de um Estado islâmico e a proclamação de um califado produzem tal entusiasmo junto de algumas populações nas redes sociais? Sabem essas pessoas qual é o objeto do seu entusiasmo? Compreendem elas a diferença que há entre a forma – um proclamado califado – e a substância – os crimes cometidos quotidianamente em nome da nossa bem-amada religião? Dão-se conta de que o EI lhes cortará a cabeça, se estiverem sob a sua autoridade? Conhecem elas, bem, a história do que se passou no tempo do verdadeiro califado? Diz-se que o califa Yazid consagrava os seus serões a longas e amigáveis discussões com o seu ministro cristão, posteriormente canonizado, ou que o califa al-Mansûr pedia conselhos a astrónomos hindus antes de escolher o momento de colocar a primeira pedra de Bagdad. O dito Estado Islâmico é uma perversão da História – sem ser, contudo, uma proposta totalmente exógena. O conjunto dos seus atos e o conjunto das referências às quais ele reenvia são muito bem conhecidas, pelo menos no mundo árabe, e é aqui que se torna particularmente perigoso. É aí que as nossas autoridades religiosas devem intervir e elaborar textos suscetíveis de atrair uma nova geração de jovens árabes muçulmanos. Abordemos agora a questão destas autoridades religiosas, do seu comportamento e das suas modalidades de constituição.
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A necessidade de uma nova liderança religiosa Creio na liberdade de palavra: aliás, não estou eu a usá-la neste instante? Contudo, ela tem limites. Os dirigentes religiosos que pretendem, de facto, falar em nome de Deus, dispõem de um grande poder quando se trata de influenciar as mentalidades, em particular o espírito daqueles a quem não se ensinou a pensar por si mesmos. Não é, na minha opinião, razoável que um dignitário religioso tendo a autoridade de um Yousouf al-Qaradawi, que vive no Qatar e é muito influente junto da Irmandade Muçulmana, possa ter o direito de dizer, como o fez em 2009, que Hitler “(tinha) posto (os Judeus) no seu lugar” e que “na próxima vez será às mãos dos crentes”. Na Síria, e mesmo se com toda a evidência o regime de Assad cometeu uma abundância de atos horríveis contra o povo sírio, esses dignitários, aqueles que têm encorajado a violência cruel de grupos islamitas tais como o EI, têm prestado um mau serviço ao mundo árabe e à Humanidade. No entanto, é possível que seja por causa da sua própria insegurança que esses dignitários deem a sua bênção a esses grupos. E, talvez, por sua vez, essa insegurança derive da sua aparente incapacidade para afrontar as questões postas pela modernidade, pelas telecomunicações e pela mundialização. Um dos problemas-chave próprio dos textos narrativos da Irmandade Muçulmana e do EI vem do facto de que são representantes unidimensionais, desconectados e redutores da história do Islão e do mundo moderno. Mas é precisamente por isso que eles seduzem jovens muçulmanos que perderam toda a ligação existencial. Se as nossas autoridades religiosas tradicionais são incapazes de reconhecer que o seu controlo do texto do Islão, no espírito da nossa juventude, está a ponto de lhes escapar, é então aos leigos e às pessoas de boa vontade que cabe tomar o testemunho. Devemos hoje refletir em termos de estruturas e instituições islâmicas suscetíveis de dar uma melhor resposta às necessidades existenciais das pessoas e questionarmo-nos como é que podem ser postos ao serviço do povo em vez de ver como o povo pode ser posto ao serviço das suas aspirações à glória. Precisamos de dirigentes religiosos que deem prova de preocupação pelo bem-estar de cada indivíduo da sua comunidade, de dirigentes religiosos que reflitam sobre o mundo moderno, que compreendam as ciências políticas e económicas, que sejam versados em ciências sociais, que falem diversas línguas e que vejam os jovens muçulmanos, sejam eles Árabes ou não, como pessoas a educar e de quem é preciso cuidar e não como carne para canhão para um assalto islamita contra a modernidade.
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Democracia ou inclusão? Não concebo a democracia como uma resposta aos Islamitas e preferiria salientar a noção de inclusão pelas seguintes razões: Quando vimos as manifestações da Praça Tahir, em 2011, e as feitas contra Bem Ali na Tunísia, assim como os levantamentos contra Kadhafi na Líbia, muitos dos meus amigos e eu próprio quisemos acreditar. Quis acreditar, como a imprensa ocidental, que estes movimentos de protesto eram a expressão de nobres aspirações do povo árabe, o florescer de uma exigência de liberdade para os oprimidos da região e do fim da exclusão dos Árabes da História. Escrevi um texto em 2014 e constatamos agora que a Tunísia não tem estabilidade, embora a questão do controlo de um governo pelo Islamismo permanece irresolúvel. A Líbia está com grandes problemas, com a proliferação de armas e de milícias que ameaçam a unidade do Estado. O Egito viveu o seu “não golpe” e mergulhou numa luta entre uma visão do mundo ideológico islamita e um outro cuja ambição é bem mais inclusiva. O Iémen já não faz parte dos grandes títulos nestes dias, mas a sua economia está muito mal e diversos conflitos de fraca intensidade continuam a fazer rasgões no tecido do país. Quanto à Síria, é a vergonha do mundo árabe, com mais de 200 000 mortos (isto em 2014) numa guerra civil brutal e sem piedade cuja mutação originou o espetro de extremismos religiosos tão violentos que os radicais dominam um território cada vez mais vasto. O que é que derrapou? Em primeiro lugar a democracia pode, a despeito das suas virtudes, tornar-se causa de divisão – e isto muito mais ainda quando se junta ao Islamismo. Compreender que vencer eleições não quer dizer que a minoria não tem nenhum papel a desempenhar, que já não tem direitos: eis o que pode ser um verdadeiro enigma para os noviços em termos de democracia. Numerosos são os Islamitas prontos a acolher de boa vontade o processo eleitoral quando se baseia no conceito de que todos somos Muçulmanos, formando sociedades muçulmanas e que, consequentemente, são os partidos mais muçulmanos que vão vencer. E ganhar outra vez e outra vez e outra vez. O interesse de conceber sistemas políticos que sejam autenticamente justos e estáveis é que eles impliquem a expressão de princípios mais vastos e mais profundos, tais como a proteção de todos – vencedores e vencidos, maiorias e minorias, homens e mulheres – para que permaneça possível uma mudança, e que as pessoas possam continuar a viver em paz e em segurança, quaisquer que sejam as suas convicções religiosas e pessoais.
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Os Islamitas que venceram as eleições no Egito e no Iraque não estavam dispostos a fazer tais concessões. Ora, a nossa sociedade está ainda dividida por linhas de fratura regional, tribal, étnica e religiosa, de numerosas minorias. Perante a ameaça de estar em vista um poder arbitrário, muitos deles estão prontos a bater-se quando são confrontados com a eventualidade da democracia, tal como lutaram contra qualquer mudança suscetível de ameaçar a sua liberdade. Não é por acaso que o EI nasceu no Iraque, que calha de ser uma democracia precisamente deste tipo – gerado por Islamitas xiitas. Aqueles que tiram proveito da divisão de um país com base em linhas religiosas e podem depois fazer apelo aos votos dos seus correligionários, não têm nenhum interesse em tratar todos os cidadãos em pé de igualdade, seja qual for a sua religião. É, em parte, por causa dos movimentos islamitas que a democracia vai ser tão difícil de se aplicar no mundo árabe. Há também uma outra causa, a da ausência de instituições que se podem elevar acima da política partidária. Logo que um país, tal como o Iraque, ou cada ministro, desde que entre em funções, expulse os funcionários trocando-os pelos seus próprios partidários, os ganhos de uma eleição tomam, então, uma outra intensidade. Dadas as realidades sociais, culturais e educativas na nossa parte do mundo, muitos de nós reconhecemos que a introdução da democracia eleitoral, que deve preceder o desenvolvimento de instituições eficazes e imparciais, arrisca-se a exacerbar as divisões tribais e sectárias. Nos EAU, mesmo um voto organizado para qualquer coisa de aparentemente tão anódina como um concurso regional de poesia desenrola-se, muitas vezes, segundo clivagens tribais. O que não quer dizer que não conheçamos nunca os processos democráticos de estilo ocidental, mas simplesmente que evoluções súbitas nas relações no seio da sociedade estão cheias de perigos. Os Islamitas, por outro lado, exigem que todos obedeçamos às alegações de um vago “guia espiritual” e do seu lacaio astucioso no assunto. O Islão é a resposta para todas as questões – e tenho de sublinhar este “TODAS as questões” – e o mensageiro dessas respostas é alguém cuja infalibilidade jamais seria questionada. O que acontece quando tal movimento é eleito? Como se pode esperar que ele abandone o poder pacificamente? Quando é que se viu, pela última vez, um movimento, que se considera como depositário do Direito Divino de governar, dar lugar a uma oposição, digamos, descrente? O desafio consiste, portanto, em encontrar a forma de incluir todos os cidadãos e dar-lhes voz, sem correr o risco de romper o tecido social.
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Bom governo, tecnologia e perguntas sem restrições Quereria abordar a questão de um bom governo: como criar empregos e segurança? Evocarei o assunto, desde logo, sob o ângulo da tecnologia. Em matéria de tecnologia, a história do mundo árabe e islâmico não é nada menos do que ilustre. O mundo muçulmano produziu alguns notáveis êxitos tecnológicos, quer seja no domínio das matemáticas, da astronomia, da geografia ou da medicina. Os movimentos islamitas atuais não mostram tanta abertura de espírito. Aceitam voluntariamente os produtos de alta tecnologia, mas rejeitam as premissas, a partir das quais é elaborada esta tecnologia. Estamos numa busca incessante do passado puro e idealizado, onde a ética, a moralidade e o caminho que leva a Deus foram sendo claramente delimitados, e onde as boas escolhas seriam sempre evidentes. Dar lugar a um ambiente que permitirá a nossa maturidade tecnológica implica que nos abramos e questionemos. O melhor questionamento é aquele que é livre. Como os nossos mestres teológicos ainda não estão prontos a fazer face às intrigantes questões que são postas pela ciência e pela modernidade, preferem proferir sentenças contra o questionamento, mas aceitando o seu resultado. É assim que recebemos injunções contra a inovação e a invenção, contra a importação de ideias estranhas e exógenas. Qual é o campo de aplicação destas injunções? Quem decide os seus limites? Na realidade, estas injunções podem, em teoria, ser de alcance limitado, mas a forma como são entendidas pelos diferentes grupos no mundo muçulmano é menos seletiva. Há um ponto que devo sublinhar dado ser tão essencial para o futuro do mundo árabe. A tecnologia é o produto de questionamento e depende da criação de um espaço livre de questionamento. Sem liberdade de questionar, de pôr em dúvida e de testar, somos inaptos para criar. Contudo, o questionamento não pode estar confinado aos domínios autorizados pelo poder religioso. É um processo pronto a escapar à palmatória do seu mestre – tal como o radicalismo faz. Ora, os limites a que se sujeitam por causa da injunção religiosa, impostos pelos ideólogos da religião, são mais estritos do que requeridos pela censura política. Será que estes esforços visando limitar a nossa interação com o mundo “imoral” do questionamento nos permitirão escapar do mal? Certamente não. Somos, de facto, duplamente penalizados. Desde logo, isso coloca-nos numa posição tal, que acabamos por constatar que as nossas vidas são produzidas e manipuladas pelos desígnios de outros povos em matéria de tecnologia.
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Depois, isso priva-nos da capacidade de criarmos, nós mesmos, esta tecnologia. Desejamos o produto, mas rejeitamos os princípios que deram lugar à sua criação. O guia espiritual da Irmandade Muçulmana decidiu, recentemente, que Deus tinha criado o Ocidente para fornecer a tecnologia aos Muçulmanos e que nós, por isso, não temos nenhuma necessidade de produzir algo que seja nosso. Esta abordagem da questão é, em última análise, incoerente. Parece, portanto, que quando se trata de uma invenção ocidental, não temos de suportar o fardo moral das consequências do produto em questão. Nós somos, meramente, o objeto fraco e enfraquecido. Parece lógico que esta abordagem apenas fará crescer as tensões no seio do mundo árabe e muçulmano, entre aqueles que persistem, absolutamente, em recuar no tempo e os que estão no presente, tensões que se refletem na luta entre o radicalismo e o pensamento progressista, e entre os que querem que o tempo pare e os que reconhecem que a vida consiste em dominar a mudança. Não se trata de um assunto moral, mas da simples lógica de existências opostas. Como fiz para a tecnologia material, abordarei brevemente o assunto da tecnologia política. Estão, certamente, interessados em saber que o tempo que eu passei na Rússia não foi inútil. Longe disso. Afastado da política do meu país, aproveitei o privilégio de deixar o meu espírito vaguear. Os Russos fazem, muitas vezes, referência, nos seus discursos públicos, às tecnologias políticas, o que o Ocidente entende como um eufemismo de “manipulação política”. Pode ser, ou não, esse o caso, mas isso levou-me a refletir sobre os sistemas políticos em termos de sistemas intencionais – entendo por isso sistemas cuja intenção é produzir certos resultados. Assim, mais do que repartir os países do mundo de acordo com o seu sistema político – seja democrático ou autoritário – classifiquei-os antes em função dos resultados que tinham a possibilidade (ou, em certos casos, que garantiam) de produzir. Deste facto, uma das interpretações plausíveis dos afrontamentos da Praça Tahir é que os manifestantes exigiam uma mudança política – a queda de Moubarak, eleições democráticas, a vitória dos jovens sobre os velhos. Segundo uma outra interpretação destes acontecimentos, os manifestantes reclamavam: 1. justiça social, 2. o fim da corrupção e 3. empregos. O que eles obtiveram foi a Irmandade Muçulmana. Fiquei intrigado pelo entusiasmo apresentado pela Irmandade Muçulmana egípcia na sua procura do poder político, por ocasião das eleições presidenciais em
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2012. Não cheguei, simplesmente, a compreender o que eles queriam fazer desse poder em caso de vitória. Já gozavam de um formidável poder social e cultural, graças ao seu discurso cativante, se bem que redutor e vago, segundo o qual o Islão é a resposta para todos os problemas postos aos indivíduos e às nações. Para melhor compreender isso, devo debruçar-me sobre a plataforma eleitoral de Morsi e comparei-a com a dos outros partidos. Eis a minha leitura do programa da Irmandade Muçulmana. Eles queriam: 1. Retificar o estado moral dos Egípcios desde logo, e de outros povos em seguida. 2. Aplicar a charia ou a lei islâmica. 3. Erradicar a corrupção. 4. Assegurar a justiça social – tão vagamente definida. Como se proporiam eles realizar esses objetivos? O estado moral iria ser retificado graças à piedade individual, a charia seria aplicada por um parlamento piedoso, a corrupção erradicada pela piedade dos funcionários e a justiça social decorreria de uma piedade global e generalizada. Isto não é uma caricatura da sua abordagem. É a herança de anos durante os quais se manteve que o Islão é a resposta. Não há preocupação com as suas modalidades e não se refletiu por que razão a piedade, a charia, a oração, a devoção e todo o leque de práticas religiosas que formam o eixo da nossa vida de Muçulmanos se iriam traduzir em excelência administrativa e económica. A excelência moral, talvez, mas no quadro de um Estado em que a economia era um fracasso e onde os serviços públicos são desastrosos. Em conclusão, se a piedade e uma conduta santa desempenham um papel-chave nas nossas vidas de Muçulmanos, elas não são nem sistema nem tecnologias de governo. O modelo EAU Depois de ter examinado os cinco temas que é necessário enfatizar na luta contra o Islamismo radical, gostaria de me expressar sobre o que se passa no meu país e o seu sistema. Por ocasião dos acontecimentos da Primavera Árabe, e os fortes apelos para uma democratização, onde teve lugar uma islamização imediata, muitos nos EAU pusemo-nos a seguinte questão: seria razoável arriscar ou sacrificar o que construímos até então por uma democracia idealizada ou um Estado Islâmico, um contra o outro, podendo desencadear as forças destruidoras que sabemos existir em nós?
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Duas razões me levaram a esta interrogação: 1. Ao estabelecermos os Emiratos, os nossos dirigentes ultrapassaram divisões e antagonismos profundamente enraizados na cultura tribal e nómada. Estas características da nossa sociedade estão sempre subjacentes. É um traço comum a todas as sociedades árabes. O facto de termos ultrapassado estes obstáculos – a desconfiança e a competição pelos recursos limitados – e de termos construído, na nossa região, um êxito económico, merece ser saudado. Houve um tempo em que teríamos podido, nos Emiratos, ser o que a Líbia é hoje – uma zona de guerra entregue às milícias, aos Islamitas, aos contrabandistas e aos terroristas. Mas nós, aqui nos EAU, representamos o produto de uma judiciosa compreensão do que se encontra no coração do nosso ser histórico tribal e do que podemos vir a ser. Modificar o nosso sistema por uma reorganização radical das relações existentes corre o grande risco de levar as pessoas a cair nos seus tradicionais hábitos, os da família, da tribo, do sangue, em detrimento da coesão social, que é o que temos hoje. 2. Sabemos também o que se passou nos países do mundo árabe, um após outro: os extremistas são mais aptos para se apoderarem do poder do que os moderados que se fiam num sistema de adaptação. Mais do que optar por uma abordagem radical e revolucionária, escolhemos descobrir o nosso próprio potencial e revelarmos a nós mesmos aquilo que já existe. Irei mais longe, sugerindo que os elementos-chave do sistema dos EAU podem estar na base de desenvolvimentos positivos noutros locais do mundo árabe. Para explicar porquê, é necessário voltar aos cinco temas abordados no início desta intervenção: a moralidade, a tolerância, a moderação, a inclusão e a tecnologia. Primeiramente, diria que em oposição à obsessão implacável e muitas vezes hipócrita dos Islamitas sobre a virtude moral, estamos conscientes da fraqueza humana. Enquanto impomos a nós mesmos normas elevadas, admitimos que a perfeição só pode ser atribuída a Alá e não aos humanos. Há, entre nós, uma importante disposição a perdoar os erros e a avançar, o que se traduz pela ascensão de uma classe empresarial no seio da juventude dos Emiratos assim como para a abordagem indulgente da conduta moral de outrem. Acreditamos que estas questões derivam de uma escolha individual. Não nos livramos da caça às bruxas em nome da moral. Em segundo lugar, os governantes dos EAU são Muçulmanos tolerantes e incontestavelmente não Islamitas. O Islamita supõe que tem razão e que os outros estão mal. O presidente e fundador dos EAU, S.A. Sheikh Zayed,
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que Deus conserve em paz a sua alma, exprimiu, claramente, a sua oposição a movimentos como o EI: “Vemos nos nossos dias, à nossa volta, homens violentos que pretendem falar em nome do Islão. Eles não têm nada a ver com o Islão. Porque são apóstatas e criminosos”. Ele rejeitava, também, o programa da Irmandade Muçulmana. Nos anos 1970, teve um encontro com os seus dirigentes e recusou a sua proposta de abrirem o escritório em Abu Dhabi, capital dos EAU. Quando lhe perguntaram a razão, respondeu: “Se vocês são a Irmandade Muçulmana, o que somos nós então?” Na nossa abordagem, todos são incluídos – conquanto incluam outros. Este elemento-chave traduz-se na noção conjunta de tolerância. Se estamos inclinados a cometer um engano, não excluindo aqueles que são diferentes, a nossa conduta exprime-se através de uma profunda tolerância e aceitação de outros grupos étnicos e de outras confissões. Há nos EAU mais de 190 nacionalidades e mais de 70 igrejas. As mesquitas estão cheias e as igrejas também. Em terceiro lugar, os EAU lutam para eliminar o ódio e o extremismo religioso, exercendo um controlo rigoroso sobre o conteúdo dos sermões do clero. O país é também a sede do Centro Internacional da Excelência Contra o Extremismo Violento (“Hedayah”), em Abu Dhabi, organismo que se consagra ao desenvolvimento das capacidades e às mudanças sobre as práticas exemplares em matéria de luta contra toda a forma de extremismo violento. E a fim de promover desde logo a paz nas comunidades muçulmanas, os EAU anunciaram, a 19 de julho de 2014, a fundação do Conselho Muçulmano dos Anciãos, assembleia independente e internacional de eruditos de diferentes países muçulmanos, que se dedicam a promover os valores e as práticas de tolerância, que são o próprio coração da nossa fé. Em quarto lugar, o nosso sistema é movido tanto pelo consenso, como pela liderança. Os EAU não são dotados de mecanismos explicitamente democráticos, que dariam lugar a procedimentos formais do voto e da expressão de opiniões. Mais importante, no entanto, o país dispõe de mecanismos sociais e de plataformas para o debate, a análise, a pesquisa de opinião, o teste das ideias e a formação de consensos. Estes processos não apareceram imediatamente aos olhos dos estrangeiros, mas estão bem presentes e têm a sua importância. À medida que progredimos, haverá, inegavelmente, necessidade de desenvolver e afinar ainda estes sistemas indigitados de comunicação social e política. Isso será feito, feito por nós. O consenso está associado à liderança. No passado, os chefes das tribos e da região eram homens que tinham provado a sua aptidão natural para o comando. É graças à combinação do consenso comunitário e de uma liderança forte e
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decidida, que avançamos como sociedade. E é como sociedade que fazemos face à incerteza do futuro, não como uma fonte de ansiedade e para afastar a autocrítica, mas muito mais como um desafio e com determinação. Em quinto lugar, não tememos a teologia. Focamo-nos na efetividade, segundo modalidades que permitam ser medidas no bem-estar do nosso povo. Isso significa que nos concentramos nas inovações da tecnologia política, tais como: 1. O Estado de Direito. 2. Sistemas judiciais eficazes. 3. A eficácia administrativa, avaliada, encorajada e recompensada pelo Estado. 4. Um sistema escolar e uma vasta educação. 5. Um sistema de saúde adequado e que funcione. 6. Companhias aéreas ligando-nos ao mundo. 7. O Estado como fornecedor de plataforma. 8. Uma economia aberta aos investimentos estrangeiros e libertando-se da dependência do petróleo. Tais são alguns dos elementos-chave que explicam o êxito dos EAU nestes últimos quarenta anos. O primeiro passo envolve uma liderança com a visão do que é possível, e a etapa seguinte é o trabalho fundamental de construir e reforçar a confiança entre os membros da sociedade que desempenham nela um papel-chave. Não seria de subestimar este trabalho de pôr em ação a confiança mútua. Queremos que os nossos irmãos árabes adotem a mesma abordagem que nós seguimos, isto é, etapa a etapa, reafirmando sempre, e demonstrando sem cessar, a boa vontade que deve presidir entre todos nós. Em direção a um novo mundo árabe Na minha análise, avancei provisoriamente a ideia de que estamos no mundo árabe expostos a uma gama de fundamentalismos, de conceções rígidas e de noções preconceituosas do que são as pessoas e do que devem vir a ser. São estes dogmas que nos afastam hoje do trabalho de desenvolvimento das nossas sociedades, e que, ao mesmo tempo, nos seduzem com utopias imediatas, que podemos desejar, mas na direção das quais é necessário trabalhar. O EI é a prova de que, no seio do Islamismo Sunita, todos necessitávamos de reconhecer que há e que é preciso que haja diferentes interpretações, e que os leigos de boa vontade são obrigados a participar e a entrar na liça. É preciso
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que arranquemos o Islão do abraço da violência. O EI traveste todos os valores em que cremos e sabemos que são abraçados pelo Islão. Por fim, gostaria de vos deixar estas três reflexões: 1. Nos Emiratos Árabes Unidos, acreditamos do fundo do coração que o mundo árabe tem a capacidade e os conhecimentos requeridos para traçar um caminho de produtividade intelectual e económico, e que a violência é o meio menos eficaz para realizar o que a maioria silenciosa deseja: um mundo árabe em paz consigo mesmo e confiante da sua posição no seio da comunidade das nações. 2. A maior parte dos jovens árabes prefere o nosso modelo ao dos Islamitas. Um inquérito feito à juventude árabe em 2014 mostrou – e não pela primeira vez – que quando se lhe pergunta que país deveria ser imitado pelo seu, os jovens árabes citam os EAU mais do que qualquer outra nação – mais do que os Estados Unidos ou o Reino Unido, mais do que a Turquia ou o Irão. 3. Nós, Muçulmanos, e em particular as comunidades muçulmanas do mundo árabe, temos em nós a capacidade de reformular a nossa abordagem, quer se trate de nós mesmos ou do resto do mundo, e de partilhar com todos a beleza da nossa grande religião. Obrigado. 110. O problema do EI (Estado Islâmico) organizado no Iraque e na Síria não se coloca apenas no plano regional, mas também no plano internacional, pois afeta os Cristãos, as minorias religiosas, bem como a vida e a segurança de povoações inocentes. 111. Estamos a publicar este artigo porque a Consciência & Liberdade aprecia a permissão recebida de S. Exª. O Embaixador Saif Ghobash para imprimir o artigo na nossa revista. Notas importantes: 1. Este artigo foi originalmente publicado pelo Foreign Policy Research Institute of Philadelphia. 2. O Embaixador Ghobash é Embaixador dos Emiratos Árabes Unidos na Rússia. Este artigo é baseado na sua preleção de 17 de setembro no SEI Center for Advanced Studies in Management na Faculdade Wharton de Gestão da Universidade de Pensilvânia.
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A liberdade religiosa na época da globalização e do pós-modernismo: a questão do proselitismo112 1ª parte
Silvio Ferrari 113 O Problema O proselitismo está a tornar-se cada vez mais impopular tanto nos ambientes teológicos como nos jurídicos.114 No plano teológico tem sido sublinhada a incompatibilidade intrínseca do ecumenismo e do proselitismo entre as confissões religiosas cristãs (Sabra, 29-31) e tem sido posta em discussão a correção do proselitismo voltado para os membros das religiões não cristãs (Robeck, 6); a nível jurídico têm sido apresentadas algumas dúvidas acerca da inclusão do proselitismo no ambiente da liberdade religiosa (documento ECC; La sfida dei proselitismo, 1995, nn. 15-17; Lapidoth, 460). Tradicionalmente, o proselitismo tem sido considerado como uma expressão do direito de manifestar a própria religião ou convicção no ensino, na prática, no culto e nos ritos religiosos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 18; ICCPR art. 18). Por vezes, porém, isso tem sido considerado também, como uma violação dos direitos à privacidade e à identidade religiosa (ICCPR, art. 17 e 19) ou ao direito de “ser deixado só”. Uma certa desconfiança em relação ao proselitismo está, além disso, ligada à crescente tendência de excluir toda a referência aberta ao direito de mudar de religião pelas normas internacionais sobre a liberdade religiosa: na realidade, esta tendência é motivada também pelo desejo de evitar uma aprovação, indireta ou tácita, do proselitismo (Hirsch, 411-415; Evans, 191,192,196; Garay, 9-11). Naturalmente não está em discussão o recurso a atividades ilegítimas, que têm sido sempre condenadas. Mas o debate está agora a descolar-se das formas ilegítimas de proselitismo como tal: é-nos perguntado se o proselitismo, mesmo no caso em que seja corretamente praticado, deve ser proibido ou pelo menos limitado (Hirsch, 415ss, que considera a área religiosa um âmbito “semiprivado” e proíbe a intromissão nele das atividades proselitistas; Lerner 559, o qual afirma que a proteção das identidades comunitárias ou coletivas é uma legítima limitação do proselitismo; Message,
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59, que exclui o proselitismo intra-cristão; Robeck, 2, sobre os pedidos de fixar limites geográficos ou culturais de proselitismo). Este processo não é certamente novo, mas nos últimos anos tem adquirido mais vigor. Algumas reflexões podem servir para compreender melhor esta recente mudança. Os dados fundamentais: pertença, mudança de religião e proselitismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islão115 O exame da problemática relacionada com o proselitismo deve ter em conta a maneira como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão concebem o ingresso e a saída da comunidade por parte dos fiéis. Estas três religiões não entendem do mesmo modo a pertença religiosa e, por conseguinte, também consideram de forma diferente o proselitismo. O tema já foi explorado por alguns estudiosos (por exemplo, Morris, 238-245, que distingue entre comunidade de assentimento – o modelo cristão – por um lado – e comunidade de descendência – o modelo hebraico – por outro). Em relação ao proselitismo, a diferença mais importante ocorre nas religiões em que a fé é considerada essencialmente como uma relação pessoal com Deus e as religiões em que a ênfase é posta na comunidade, que provê o indispensável contexto espiritual e social em que se alimenta a fé do indivíduo (Kerr, 19). Sob este ponto de vista é possível traçar um arco que vai das Igrejas Protestantes à comunidade muçulmana, passando pela Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa e a comunidade hebraica ortodoxa. Esta classificação (e a distinção de fundo em que se apoia) não está isenta de limitações, dado que estaria colocada num contexto em que, em grande parte, é tido em conta o habitat histórico e cultural em que se desenvolveu cada religião. Vale, porém, a pena sujeitá-la a uma verificação, analisando, antes de mais, o modo como uma pessoa passa a fazer parte de uma comunidade religiosa. Todas as religiões admitem a conversão, mas algumas baseiam-se na transmissão da fé pelo nascimento (islão e hebraísmo; cf. Pearl, 121ss; Encyclopaedia Judaica. “Jew”, 24,25), ao passo que outras (Cristianismo) requerem um batismo, ou seja, um ato “voluntário” de aceitação da fé. No interior das confissões cristãs subsistem, por outro lado, importantes diferenças. Quanto ao batismo dos recém-nascidos (que é praxe habitual da Igreja Católica e das Igrejas Ortodoxas), o termo “voluntário” tem certamente um significado mais débil do que no caso do batismo dos adultos (requerido, entre outros, pelos Adventistas do Sétimo Dia e pelos Batistas). Além disso, ao passo que a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas ligam diretamente o batismo à pertença à Igreja, as comunidades evangélicas e outras comunidades protestantes acentuam,
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sobretudo, o empenho da pessoa em seguir os mandamentos e Cristo (Nichols, 597; Oxford Dictionary, “Infant Baptism”, 832).116 O exame do modo como se consente a uma pessoa que abandone a sua comunidade religiosa oferece a possibilidade de controlar os resultados a que conduziu esta primeira análise. Segundo o Direito Islâmico, a apostasia é punida com a morte (Mayer, 149 ss; Sachedina, 53 ss; Rahman 134). Com base na Lei hebraica, a apostasia é tecnicamente impossível: o Hebreu nascido de mãe hebreia, ou a pessoa devidamente convertida ao Judaísmo, não pode mudar de religião (Encyclopaedia Judaica, “Apostasy” 212). O mesmo se pode dizer do Cristão Católico: a apostasia não liberta das obrigações assumidas com o batismo (Naz, 649) ainda que o novo Código do Direito Canónico tenha parecido a alguns como sendo menos rigoroso nesta matéria (Valdrini e ou. 207). Pelo contrário, no caso dos Adventistas do Sétimo Dia, das Igrejas Livres e de outros grupos protestantes, a saída da Igreja liberta de toda a obrigação aquele que dela tinha feito parte (Encyclopedia of Christianity, “Church Membership”, 549 e 550). Em síntese, as religiões que privilegiam a componente individual da relação entre a pessoa e Deus tendem a considerar o ingresso nelas e a saída da comunidade religiosa como uma questão de escolha individual, ao passo que as religiões que sublinham, sobretudo, a componente comunitária desta relação, são inclinadas a conceber a pertença ao grupo religioso, como algo que ultrapassa a decisão individual. De um modo geral, as religiões do primeiro tipo têm tido menos problemas em se adaptarem à modernidade.117 Em particular, têm podido aceitar o conceito de liberdade religiosa que se tem estado a configurar no Ocidente nos últimos séculos, caracterizado pela supremacia da consciência individual, pelo direito de mudar livremente a própria filiação religiosa e por uma avaliação, não negativa, do proselitismo corretamente praticado (sobre a escolha individual como característica da modernidade, cf. Berger, 1-31). Estas anotações ajudam a compreender o motivo por que são raras as leis especificamente anti-proselitistas nos países de maioria protestante e católica (ainda que, por vezes, sejam postos alguns limites às atividades das “seitas”; mas trata-se de um fenómeno diferente de uma limitação geral do proselitismo). Pelo contrário, encontram-se leis contra o proselitismo na Grécia118 e na Ucrânia (Biddulph), em Israel119 e em muitos países muçulmanos;120 ou seja, onde as componentes comunitárias da religião são mais fortes, também se expressa de modos diferentes: no Islão, através do conceito do ummah, que é ao mesmo tempo comunidade política, social e religiosa (Al-Ahsan), no Judaísmo através do conceito de “povo eleito”, e, na Cristandade Ortodoxa, através do conceito de igreja local (Habib, 22).
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Estas últimas observações evidenciam uma segunda distinção entre dois tipos de religião que foram identificados: as religiões “comunitárias” entendem a relação entre sociedade religiosa e sociedade civil mais estreita do que as religiões “individuais”. Algumas referências à lei hebraica, à lei muçulmana e ao Direito Canónico Católico (que constitui, com o Direito Canónico Ortodoxo, um dos conjuntos normativos mais extensos e compreensivos de todo o mundo cristão) confirmam esta conclusão. Basta abrir um manual de Direito Hebraico ou Islâmico para se ter a certeza de que a área coberta por estes dois sistemas jurídicos é muito mais ampla do que a do próprio Direito Canónico. Só que o Direito Hebraico e o Islâmico constituem um corpus detalhado do Direito Teocrático que governa todos os aspetos da vida religiosa e civil (Romney Wegner, 29; Englard [1987], 191; Dorff, 1333; Falf, 84; Schacht,1; Hassan, 94): ao passo que o Direito Canónico se limita, sobretudo, ao primeiro destes aspetos – a vida religiosa – e aos aspetos que interessam à organização da Igreja (David, 473). À mesma conclusão se chega também com respeito à Lei divina, ou seja, ao núcleo central e imutável dos três sistemas jurídicos: as normas do Direito Divino Hebraico ou Islâmico não só são mais extensas e analíticas do que as contidas no Direito Canónico, mas, diferentemente destas últimas, elas regulam matérias tanto religiosas como seculares. Esta intromissão do Direito Hebraico e Islâmico nas matérias profanas torna muito difícil a separação entre o Estado e a religião.121 Moshe Silberg, considerando um aspeto que diz respeito, tanto ao Judaísmo como ao Islão (cf. Hassan, 93; Anderson [1957], 487 e 488), afirma que “o célebre e cativante conselho ‘dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ é uma novidade introduzida pela escola do Cristianismo. O Judaísmo não reconhece a existência da ‘coisa de César’” (Silberg, 321). Por isso, conclui Englard, o Direito Religioso Hebraico (halakah) “não estabelece nenhuma distinção funcional entre as matérias profanas, deixadas quase exclusivamente à autoridade política e as matérias que respeitam ao bem-estar da alma, e por isso pertença dos órgãos religiosos [...] Os assuntos puramente humanos são parte integrante da halakah do mesmo modo que os assuntos que dizem respeito às relações do homem com a divindade” (Englard [1975], 24). Como reconhece o mesmo Englard (assim como muitos outros: por exemplo, Maoz, 242; Falk [1980], 84; Falk [1981], 9-24), estamos bem longe do Direito Canónico e do ensino da Igreja Católica – fundados sobre a distinção entre a religião e a política, entre a Igreja e o Estado – mas não tão longe da doutrina da Igreja Ortodoxa, se bem que, neste caso, a vizinhança da Igreja e do Estado se funda num contexto teológico e histórico, diferente do hebraico e islâmico, como se verá no próximo parágrafo.
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As orientações que foram descritas em relação à pertença religiosa, à mudança de religião e às relações entre a Igreja e o Estado fazem parte de tradições seculares. Influenciaram sempre as relações inter-religiosas e as relações entre a Igreja e o Estado, mas a sua importância cresceu recentemente devido à influência de alguns novos fatores. Passando por alto os que, embora relevantes, são mais gerais – a “desprivatização” da religião (Casanova), a recuperação da sua importância na cena geopolítica ( Johnston e Sampson), as ligações entre religião e nacionalismo ( Jurgensmeyer, Ferrari, Nationalism), por um lado, e religião e blocos culturais (Huntington), por outro, etc. – convém focar a atenção sobre dois elementos que têm um impacto direto sobre o proselitismo. São eles: a) o despertamento das Igrejas Ortodoxas depois da queda do Comunismo e o fortalecimento do conceito de religião nacional (e da consequente dicotomia entre igrejas nacionais e organizações estrangeiras), que antes se limitava à Grécia;122 b) a difusão do “fundamentalismo” islâmico com o consequente fortalecimento das normas que limitam as atividades missionárias e sancionam a apostasia da fé muçulmana. Finalmente, merece ser mencionado um último elemento de conflito, que vai tomando corpo, e que necessita, cada vez mais, de ser tido em conta: o desencontro entre a liberdade de religião (e proselitismo), por um lado, e a proteção das comunidades indígenas, por outro.123 Globalização e Cristandade Ortodoxa Uma das razões que explicam o fortalecimento da imagem negativa do proselitismo é a perda do equilíbrio entre os grupos religiosos “individuais” e os grupos religiosos “comunitários” provocada pelas transformações operadas no mundo islâmico e ortodoxo a que se fez referência no fim do parágrafo precedente. Partindo do segundo caso, estudos recentes sobre a globalização124 oferecem uma válida grelha de análises para avaliar as repercussões que este fenómeno teve sobre a Igreja Ortodoxa. Incrementando as relações entre diversas culturas e identidades, a globalização provoca a sua relativização e põe em evidência que os diferentes modelos de vida são, em grande parte, construções humanas (Featherstone, 8; Beyer, 2). Ao mesmo tempo, culturas e identidades específicas não entram em relação num plano de igualdade; na realidade, devido à globalização, as culturas e identidades mais fortes têm maiores oportunidades de difundir os seus valores no resto do mundo (Ahamed e Dounan, 3). Sobre este ponto de vista, a globalização é considerada por alguns estudiosos (ainda que a preço de certa simplificação)125 como a tentativa de estender as instituições e os valores
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“modernos” do Ocidente ao resto “pré-moderno” do mundo (Beyer, 8; Ahmed, 98, ss). Este processo pode minar as culturas e identidades mais débeis, mas pode também contribuir para revitalizar aquelas que, entre elas, são capazes de resistir à globalização, fazendo alavanca de um conjunto de valores específicos (Aslam, 98). Em toda a Europa central e oriental, a queda do Comunismo deixou um vazio de valores e de ideais que rapidamente foi preenchido com os ideais, os valores e o “estilo de vida” prevalecentes no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos. A desorientação, que inevitavelmente acompanhou este processo, desencadeou uma reação voltada para a redescoberta de valores alternativos baseados na tradição “local”. Por meio da oferta destes valores, as religiões – especialmente as que estão ligadas com as culturas e identidades particulares nas quais se desenvolveram e que contribuíram para as formar – podem recuperar uma posição de primária importância. É o caso da religião Ortodoxa. As igrejas Ortodoxas na Rússia e nos Balcãs desempenharam um papel preeminente na salvaguarda da identidade cultural daquelas populações durante a dominação mongólica e otomana (Artz, 427; Perenditis, 231-246). A teologia ortodoxa desenvolveu uma conceção particularmente forte da igreja local, segundo a qual a identificação da fé com um determinado povo e uma determinada cultura é a lógica consequência da incarnação (Habib, 22). A autocefalia das igrejas permitiu que transpusessem agilmente este conceito também no campo jurídico e organizativo (Nichols, 622). O princípio “uma igreja, um território” é um princípio familiar do Direito Canónico Ortodoxo. A ideia da Igreja nacional está baseada neste princípio e nele se baseia também – vindo mais diretamente ao tema deste artigo – a exigência de que o proselitismo das outras Igrejas Cristãs não seja dirigido contra a ortodoxia, mas antes canalizado através da Igreja Ortodoxa, para a ajudar, no espírito de testemunho comum de Cristo, a recuperar os “próprios” fiéis perdidos (Volf, 26 citando o patriarca Aleixo II de Moscovo; Nichóls, 629, 634, 646). Não admira pois que, após a queda do muro de Berlim, se tenha estabelecido, muito facilmente, uma ligação entre alguns grupos políticos que se opõem a toda a influência cultural e económica estrangeira e uma parte importante da Igreja Ortodoxa, na Rússia e nos Balcãs, estando tanto aquelas como esta persuadidas de que a defesa da religião é também a defesa da cultura e da identidade “local” (Berman, 301, que sublinha o caráter étnico da Igreja Ortodoxa; Biddulph, 337, com referência à situação na Ucrânia; Kokosalakis, 22 ss). A mensagem do metropolita Cirilo de Smolensco e Kaliningrado à Conferência sobre a “Missão ao Mundo e Evangelização” (novembro de
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1996), do Conselho Mundial das Igrejas, é um claro exemplo desta ligação: “O proselitismo não é uma atividade estritamente religiosa, derivado de uma errada conceção do mandato missionário. O proselitismo é uma verdadeira e autêntica invasão por parte de outra cultura, que, embora cristã, se desenvolve segundo as suas próprias leis, e possui a sua própria história e tradição” (Nichols, 645, sobre o recurso a análogos argumentos por parte da hierarquia católica na América do Sul, cf. Robeck, 4 e 5). Nesta perspetiva, o proselitismo ameaça não só a fé religiosa, mas também a “saúde espiritual da nação, o futuro da pátria e a preservação do seu caráter originário” (Artz, 422, citando uma declaração do patriarca de Moscovo, 1997); (cf. também Nichols, 648, 650), para quem o problema já não é apenas religioso, mas também moral e cultural. Isto autoriza a Igreja a fazer apelo ao Estado, de acordo com a conceção “sinfónica” ortodoxa das relações entre a Igreja e o Estado, segundo a qual a Igreja oferece ao Estado os valores morais e o Estado assegura à Igreja a manutenção material. Os governos da Europa Central e Oriental – bem conscientes do facto de que a Igreja Ortodoxa (ou, em certos países, a Igreja Católica)126 é uma das poucas instituições à altura de preencher o vazio ideológico deixado pela queda do Comunismo – ofereceram de boa vontade um tal apoio: nestes casos, a oposição ao proselitismo “estrangeiro” transformou-se, facilmente, num ponto de síntese que reúne a religião e a cultura na luta contra a globalização. Estas observações não dizem respeito apenas à Igreja Ortodoxa. É interessante notar como o estudo conduzido por Artz sobre o proselitismo e a comunidade muçulmana na Rússia concluiu com a afirmação de que “o Islão e a ortodoxia russa (...) têm em comum muito mais do que um e outra têm em comum com a forma individualista ocidental do Cristianismo” (Artz, 474). Esta conclusão é confirmada pelo texto (sucessivamente modificado neste ponto) das primeiras versões da Lei russa (1997) sobre a liberdade de consciência e sobre as associações religiosas, onde se mencionavam o Islão, o Budismo e o Judaísmo, mas não o Cristianismo (i.e. o Cristianismo não ortodoxo), que ficava aparentemente relegado para o grupo anónimo das “outras religiões tradicionalmente existentes na Federação Russa” (Artz 423). 112. Extratos do artigo publicado na revista Consciência e Liberdade nº 11, de 2001, p. 9. 113. Professor na Universidade de Milão, Itália. 114. Neste artigo o termo “proselitismo” é usado sem a conotação negativa que lhe tem sido dado recentemente: em vez disso, utiliza-se a expressão “proselitismo impróprio”. Sobre a variação do termo “proselitismo” (que confirma as tendências teológicas e jurídicas mencionadas no texto), ver Larnet, p. 490 e Nichols p. 566.
A liberdade religiosa na época da globalização
115. Não disponho dos conhecimentos necessários para tratar o argumento em relação a outras religiões, mas é sabido que os respetivos direitos de mudar de religião e de fazer proselitismo são assuntos quentes no Budismo e no Hinduísmo. Ver, por exemplo, as limitações à mudança de religião previstas na Constituição do Nepal, país onde prevalece o Budismo (art. 19:1) 116. Estas diferenças na conceção de pertença à comunidade religiosa refletem-se na noção de cristão “de nome” e curiosamente no proselitismo que certos grupos religiosos consideram legítimo quando é praticado pelos Cristãos junto de outros Cristãos pertencentes apenas “de nome” a uma confissão diferente. Ver Robeck, 7. 117. O termo “modernidade” é utilizado neste contexto em aplicação aos princípios e aos valores que são impostos no Ocidente a partir da Luzes. 118. Art. 13.2 da Constituição e Lei 1672/1939. Sobre a sua interpretação ver, Marinos. 119. A Penal Law Amendement, Lei 5738/1977 não interdita toda a forma de proselitismo (como faz o art. 13.2 da Constituição grega) mas apenas a solicitação para mudar de religião, através da oferta de dinheiro ou de vantagens materiais. Ver Lerner, pp. 20 e 21. 120. Segundo o Direito Islâmico, não é permitido ao d’himmi fazer proselitismo (Artz [1996], p. 414; é necessário recordar, contudo, que, durante muito tempo, uma regra análoga aplicava-se também aos não-Cristãos nos países cristãos. Sobre as restrições impostas ao proselitismo nos países muçulmanos, ver Stahnke, pp. 267, 276, 283-284, 307-310. 121. Esta última afirmação também se aplica a alguns países de tradição cristã, como a Inglaterra e as nações escandinavas. Mas, neste caso, a frágil separação entre religião e Estado não depende de uma frágil separação entre religião e sociedade (ver Baubérot, p. 29, 39), como acontece em Israel e em numerosos países muçulmanos. Pelo contrário, a Inglaterra e os países escandinavos têm conhecido um profundo processo de secularização. 122. Em todo o caso, no interior da “Europa Livre”, como já assinalámos, nos países escandinavos e na Grã-Bretanha, existem Igrejas nacionais, mas estas não penetram na sociedade e na cultura com a mesma intensidade que a Igreja Ortodoxa na Grécia (Bauberot, pp. 29, 30). 123. Ver infra. 124. O termo “globalização” designa o desenvolvimento rápido da tecnologia das comunicações e o crescimento simultâneo da transmissão dos conhecimentos e das informações, que permitem atingir facilmente mesmo as regiões mais distantes do Globo, pondo fim, virtualmente, à comunidade isolada (Aslan, p. 98; Ahmed e Donnan, p. 1). Num plano diferente, mas não menos importante, os movimentos das populações (trabalhadores emigrantes, refugiados, etc.) têm favorecido, também eles, as relações entre pessoas de diferentes culturas (Ahmed e Donnan, pp. 4-7; Donnan, p. 11). Sobre este assunto, ver igualmente os estudos publicados no número 1/1999 da revista Il Mulino. 125. É necessário sublinhar, com efeito, que mesmo a cultura dominante é influenciada pela globalização (Beyer, p. 9), mas não é possível sintetizar de uma forma adequada um argumento tão completo. 126. As concordatas assinadas recentemente entre a Santa Sé e alguns países da Europa Central (Croácia, Hungria, Polónia; outros estão ainda em fase de negociação) podem ser consideradas como um sinal de vontade de estes governos apoiarem a Igreja Católica (Ferrari/ I concordati, pp. 176-178).
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A vocação para aceitar a diferença127 Jacques Doukhan 128 O princípio “conhece-te a ti mesmo”, posto pelos filósofos antigos como a abordagem fundamental do homem que pensa, revela já esta preocupação eterna do Homem perante si mesmo: quem sou eu? Os critérios da psicologia, da sociologia, os mecanismos revelados pelo estudo da psicologia etc., não conseguem resolver este mistério. O Homem põe perante si sempre a mesma questão. As suas respostas têm sido múltiplas, moldadas, como sempre, pela sua experiência pessoal, subjetivas porque tiradas da sua própria observação, da sua própria compreensão das coisas. Desde as primeiras linhas, a Bíblia esforça-se para oferecer a sua própria definição; reduzindo todas as “especulações”, fornece àquele que a consulta a fórmula de si mesma numa revelação do exterior como a informação objetiva por excelência e leva-o a uma conceção do Homem em que a forte lição de tolerância está implícita, porque o considera o assunto de uma vocação cuja essência é acima de tudo a aceitar a diferença. Num primeiro momento, abordaremos o aspeto técnico da questão, analisando a fórmula bíblica e o seu texto, em si mesmo; depois, numa segunda etapa, procuraremos compreender os significados no plano da existência. I. O paradoxo de “o homem à imagem de Deus” À questão “o que é o homem”, a Bíblia responde (Génesis 1:26) através de uma fórmula lapidar que o define em relação a Deus, beçalmokidmouto, que se traduz, geralmente, pela expressão “à sua imagem e semelhança”, mas que mais literalmente significa “na sua sombra, como na sua forma”. A expressão “como a sua forma” depois de “na sua sombra” não indica uma sucessão. Se fosse o caso, seria, certamente, precedida de vaw, conjunção de coordenação de rigor. Marca mais uma espécie de aposição, como para deixar bem vincada a simultaneidade das duas operações: Adão estava na “sombra” de Deus, e é como na Sua forma. Encontramos esta mesma fórmula estranha mais adiante. Trata-se do capítulo cinco, justamente numa genealogia, ou seja, uma passagem que se coloca
A vocação para aceitar a diferença
na mesma categoria literária.129 Na introdução, anuncia-se o género literário – é um toldoth (uma genealogia). Por outras palavras, na toldoth de Adão, que deveríamos relembrar, decalcando sobre as expressões do capítulo primeiro, ele foi criado “à imagem de Deus”. A passagem do capítulo cinco apresenta-se, portanto, como uma espécie de repetição do capítulo primeiro, de acordo com o procedimento clássico na literatura hebraica, do paralelismo. Do que se trata, de facto, é da sequela do homem, do seu prolongamento. Imediatamente, o autor sente a necessidade de fornecer a fórmula desta nova “criação”, que, neste momento, tem como tema o próprio homem, segundo o processo de procriação: o homem “criado”, bidmoutokeçalmo,130 na sua forma como a sua sombra, isto é, por uma operação inversa à da criação de Deus, sublinhando, dessa forma, a diferença fundamental existente entre os dois modos de criação beçalmokidmouto (na sua sombra, como na sua forma), bidmoutokeçalmo (na sua forma como a sua sombra). Os dois hemistíquios deste paralelismo quiástico correspondem para se aclararem mutuamente, sendo o seu papel o fazer salientar a oposição destes dois relacionamentos: Deus/homem e Homem/homem. A relação Deus/homem define-se como se segue: O homem foi criado na “sombra de Deus” e, consequentemente, como a Sua forma. É evidente, com efeito, que todo o “objeto” modelado no campo da sombra deve sair esculpido nos limites do desenho deste, para evocar corretamente a forma do assunto da sombra. Porque moldado na sombra de Deus, Adão apresentava um mesmo “perfil”. O homem tira a substância da sua natureza, não de Deus, mas da que acaba por não ser Deus, ou seja, a Sua sombra. Assim, criado perante Deus, mas fora d’Ele – é-Lhe semelhante. Este paradoxo, o Israelita podia compreender, porque lhe era, concretamente, sugerido pela “parábola” da sombra. Este verso coloca-nos perante uma outra dificuldade. Se Deus criou o homem “como a Sua forma”, como é que Ele criou a Sua forma? Podemos compreender, assim, que Deus deve ter criado a Sua forma com o único fim de criar o homem. Deus, de alguma forma, limitou-Se, uma vez que agiu de modo a permitir ao outro, o homem, existir. Para criar a Sua forma, Deus teve de Se limitar. Assim, para criar o homem, Deus tem de Se limitar. Isto significa que Deus criou o homem segundo o mesmo processo que a criação da sombra, isto é, a limitação, o Tsimtsoum, dirá
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a Cabala. Bidmouto (na Sua forma) encaixa-se, perfeitamente, no que estava implicado no primeiro elemento do paralelismo, belçamo (na Sua sombra), no sentido em que sublinha, ele também, a importância do fator “alteridade” na criação do homem. A relação Homem/homem define-se assim: O filho é gerado “na forma” do seu progenitor e, de igual modo, como sua sombra. Se damos à preposição “à” o mesmo sentido que à do hemistíquio da relação Deus/homem, ou seja, um locativo, somos forçados a admitir que o nosso verso faz alusão ao que constitui a “forma” humana por excelência, isto é, o corpo no qual se efetuar a dita geração. Mas o processo desta criação humana é-nos descrita por referência ao fenómeno da sombra, isto é, com a ajuda de um “elemento” exterior àquele que o transmite. Não foi assim que Eva, a primeira mãe, realizou a sua primeira gestação: “Formei um homem com a ajuda do Eterno”?131 Não é a sombra a conjugação do sol e do objeto? Portanto, assim, se a criança é da mesma natureza do seu procriador, uma vez que foi concebida da sua carne, na sua forma, a sua conceção é de uma manifestação superior. A criança, contudo, não é a sombra. A comparação coloca-se, simplesmente, no plano do processo de geração e não ao nível da criação. Em resumo: 1. Deus criou a partir daquilo que Ele não é – na Sua sombra, belçamo. O homem gera a partir daquilo que ele é – na sua forma, bidmouto. 2. Deus, para criar, deve limitar-Se como (para) a Sua forma, kidmouto. Como pela Sua sombra, kelçamo, para procriar o homem deve ultrapassar-se, focando-se no infinito. Tal como a geração procede da substância da natureza humana, também a criação traz à existência aquilo que não é o Criador. É provavelmente para sublinhar a oposição fundamental destes dois modos de conceção que a Bíblia escolheu o modo literário do paralelismo quiástico, fazendo ressaltar melhor, pelo jogo do contraste, como o homem é criado por Deus, fora d’Ele, distinto d’Ele e, por consequência, “diferente”. II. As implicações existenciais Deus teria podido criar o homem ex-divino como uma espécie de emanação de Si próprio. Mas Deus correu o risco e criou o homem ex-nihilo, isto é, fora de Si mesmo. Desde então existe a religião, aventura que faz afrontarem-se dois seres
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em que a presença de um não pode senão anular a do outro, tanto eles se opõem. Aceitar esta diferença implica um modo inteiro de ser e pensar que precisa de ser revelado, a fim de perceber as razões por detrás de tal ousadia da parte de Deus. Isso supõe, desde logo, a liberdade. Liberdade através do respeito pelo outro, bem como através do respeito por si mesmo, realizando-se. Respeitar o outro significa reconhecer a existência de todo um campo que não nos pertence, que nos escapa; é renunciar aos direitos de escrutínio e de julgamento. O escrutínio horizontal exclui o vertical, e seria perigoso confundir os dois planos. É provavelmente a estas mesmas noções que o Maharal de Praga132 se referia quando refletia sobre a “imanência das coisas”. Maharal, diz André Neher,133 “explora o mundo como se o absoluto estivesse num desvio. O que é horizontal abre-se perante ele com recursos próprios, as suas riquezas que não devem tributo a nenhuma dimensão vertical”. Assim, tudo o que concerne ao bem, ao amor ao próximo, por exemplo, não deveria, em caso algum, referir-se a Deus. Não se pode amar o homem por causa de Deus, com medo de chegar ao escândalo das Cruzadas. O facto de amar o meu próximo não tem nada a ver com ninguém mais, e, certamente, não tem nada que ver com a Divindade. É o que pensa Simone Weil, quando declara que “Deus não está presente, mesmo se é invocado, onde os infelizes são apenas uma ocasião para fazer o bem, mesmo se eles são amados por isso… É por isso que expressões como amar o próximo em Deus, por Deus, são expressões enganadoras e equivocadas… Há momentos em que pensar em Deus nos separa d’Ele”.134 Por outro lado, a relativa vertical é incompatível com a horizontal: quando Deus me fala, seria inconveniente, até mesmo pernicioso, introduzir um olhar horizontal. A minha relação com Deus não tem nada a ver com o meu próximo. Permitir um tal estado de coisas, é dar lugar aos crimes da Inquisição. Respeitar o outro significa igualmente colocar-lhe um ponto de interrogação, não para o encerrar na fórmula dogmática ou psicológica; é, por fim, permitir-lhe ser ele mesmo, no que tem de mais misterioso, e, por conseguinte, mesmo de mais chocante. Falhando isso, o outro será uma espécie de “alter-ego” tranquilizador cujas mínimas reações eu pudesse prever. É por isto, comenta o psiquiatra Henri Baruk, que a lei especial dita de Kiliam, relativa à “distinção dos géneros”, segue imediatamente a prescrição “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18 e 19), como para a matizar no sentido de um aviso contra o que ele chama um “imperialismo espiritual”, o qual consiste precisamente em colocar a semelhança e a uniformidade como critério de amor e de amizade.135 Ora, para ser livre, o outro tem necessidade da nossa “fé”, daquele tipo que ousa não compreender, do tipo que “espera”.
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A liberdade é, também, o respeito por si mesmo na coragem de se assumir na sua diferença. É ela, sobretudo, que suscitará o afrontamento, porque apelará à resistência. Cada um dos parceiros antagonistas afirmar-se-á face ao outro, em virtude da sua própria diferença e disputará com ele. Porque é uma preguiça do espírito, até mesmo uma cobardia de tudo consentir. É mais fácil ser o outro, o eco, do que ser-se verdadeiramente aquilo que se é. A revolta é o sinal da diferença e por isso legítima. A diferença garante, por fim, o diálogo; sem ele não será mais do que um monólogo ou uma repetição, um eco. O diálogo desenvolve-se, com efeito, sobre a oposição. Para que possam dialogar é necessário que os participantes sejam antagonistas, um contra o outro. O Hebreu compreendeu isto, desde logo, uma vez que é de negued, contra, que faz derivar o termo que exprime, fundamentalmente, a noção do diálogo haguid, que significa dizer, falar, responder. E quanto mais preencherem esta condição do contra, mais terão possibilidades de se encontrar; tanto isto é verdade que as linhas paralelas jamais se encontram. O respeito pela diferença assegurará, por fim, o sucesso do diálogo no que, implicando a liberdade, ele será capaz de dar a este o seu verdadeiro caráter, sem o qual seria chamado a tornar-se, senão “a confissão”, pelo menos a “demagogia”.136 Apenas esta liberdade preservará este vazio, este silêncio,137 que, permitindo o verdadeiro discurso, o qual não sendo eco, é livre e responsável por ser ele mesmo; porque a palavra não se pode pronunciar senão no deserto.138 Assumir a diferença é exigir a liberdade, para ti, para o outro, e, assim, preparar o caminho para o diálogo é também confrontares-te com aquilo que te anula, é, portando, arriscar; vocação difícil, mas, de facto, a única para a qual foste criado. 127. Artigo publicado na revista C&L nº 8, 1974 (edição francesa). 128. Doutor em estudos hebraicos. 129. Por diversas razões de ordem estilística, que ultrapassam o quadro do nosso propósito, o capítulo primeiro tem sido, geralmente, classificado sob a mesma rubrica (P) que o capítulo 5, e apresenta, com efeito, todas as características literárias de genealogia. 130. Ver Génesis 5:3. 131. Génesis 4:1. 132. Teólogo judeu do século XVI. 133. André Nehet, Le Puits de l’exil, p. 43. 134. Simone Weil, Attente de Dieu, pp.137 e 138. 135. Henri Baruk, Civilisation hebraïque et Science de l’homme, pp. 94 e 95. 136. André Nehet, L’exil de la parole, p. 104. 137. Max Picard, Le monde du silence, p. 8 e seg. 138. Terá a língua hebraica, desta forma, sentido que parece unir etimologicamente os dois termos de palavra (davar) e o deserto (midbar)?
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W. Cole Durham Jr.140 I. Introdução Sinto-me extremamente reconhecido aos organizadores por poder participar neste Simpósio. Muitos de entre nós assistimos, igualmente, a uma conferência similar em Kiev, em setembro de 2014, e apresento aqui os meus cumprimentos a Yvan Platthy e aos seus colaboradores, assim como à Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) por terem prosseguido numa ação, que se transformará, assim o espero, em tradição. A minha única mágoa é a amplitude do tema sobre o qual deve centrar o meu discurso: “Os papéis distintos da Igreja e do Estado.” Estou certo de que experimentarão um certo alívio entendendo que não tenho a intenção de cobrir todo o assunto de forma exaustiva. Prefiro, com efeito, proceder a algumas observações gerais sobre os papéis no que eles têm de verdadeiramente diferente e em comum, e sobre os princípios que podem guiar a sua interação por vezes delicada. Neste quadro, apresentarei em seguida comentários mais detalhados sobre o que considero como sendo os problemas concretos que se colocam por toda a Europa Central e do Leste. (…) II. Perspetivas a propósito dos papéis distintos da Igreja e do Estado 1. A abordagem jurisdicional de uma separação da Igreja e do Estado Esta história141 é a expressão de um espírito democrático na forma como ela celebra a sabedoria popular. Mas podemos, também, considerá-la como uma metáfora com diferentes interpretações da célebre observação de Jesus a propósito da obrigação de pagar impostos aos Romanos. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”142 No decurso dos séculos, geralmente, tem-se pensado que a resposta era de natureza jurisdicional. A linha traçada no solo representa uma fronteira entre as respetivas competências da Igreja e do Estado. Utilizam-se outras metáforas para descrever esta linha. Pensar-se-á, por exemplo, na famosa doutrina das “duas espadas”, enunciada, pela primeira vez, pelo
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papa Gelásio I nos finais do século V, que proclamava que existem duas espadas “pelas quais o mundo é essencialmente governado, a autoridade sagrada do clero e o poder real”.143 Na época moderna temos a imagem que permaneceu célebre, de Thomas Jefferson, que falava de “um muro de separação” entre a Igreja e o Estado.144 Como o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, contudo, tem notado, já não é muito claro no nosso mundo complexo, se o muro em questão é um muro direito ou se se parece mais com os famosos muros serpenteantes que Jefferson tinha concebido para alguns edifícios que construiu. Na sua Carta sobre a Tolerância, o filósofo John Locke exprimia o seu pensamento, também, em termos jurisdicionais na sua formulação que se tornou clássica dos distintos papéis da Igreja e do Estado. Locke argumentava que era vital “estabelecer uma distinção muito clara entre os assuntos respeitantes ao governo civil e os que se prendem com a religião”.145 Segundo ele, “todas as jurisdições dos magistrados apenas têm poder (…) sobre os assuntos civis (a saber a vida, a liberdade, a posse de coisas exteriores, tais como dinheiro, terras, casas, móveis, etc.) e (…) todo o poder, direito e autoridade de natureza civil devem limitar-se e ter em conta o único cuidado de defender essas coisas; e que não podem, nem devem, de forma alguma, ser estendidos à salvação das almas”. A moderna noção relativamente vaga da “separação da Igreja e do Estado” é ela, também, uma metáfora sugerindo uma tal abordagem jurisdicional. 2. Proteção das esferas da autonomia onde os interesses do Estado e os interesses religiosos se confundem Com o surgimento do Estado previdência e a sua influência crescente sobre todos os aspetos da vida, ganhámos o hábito de ver as relações entre as instituições eclesiásticas e as do Estado um pouco como o segundo Cajun, aquele que queria desenhar um círculo sobre uma roda. A liberdade religiosa concebe-se em termos de “círculos, ou esferas de autonomia”, sobre as quais não se pode interferir senão no caso em que os interesses maiores do Estado não podem ser defendidos de forma menos penosa.146 Isso leva-nos a dizer que os atuais textos de referência, no plano internacional, tais como a Convenção Europeia, reconhecem que os direitos ligados à liberdade religiosa podem ser limitados, nos casos correspondentes, globalmente, ao papel do poder civil como Locke o entende. Como diz a Convenção Europeia, estas restrições devem basear-se nos interesses legítimos do Estado e ter como objetivo proteger a segurança da ordem pública, a saúde, a moral e os direitos de terceiros.147 Contudo, a legisla-
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ção internacional em vigor admite que, no contexto das nações modernas, estes interesses estão bem omnipresentes, pelo que basta, para proteger a liberdade religiosa, apenas limitar a ação do Estado aos interesses civis, considerados, desde Locke até à Convenção Europeia, como justificativos da sua intervenção. Pelo contrário, é preciso vigiar para que as restrições colocadas pelo Estado à liberdade religiosa não sejam possíveis senão se “são prescritas pela lei e necessárias numa sociedade democrática”, porque a proteção dos interesses civis facilmente pode levar a uma ingerência na esfera da autonomia religiosa. O Tribunal de Estrasburgo interpretou esta noção no sentido em que o impedimento de um direito deve ser motivado por “uma necessidade social premente” e na proporção do objetivo a alcançar. Nos sistemas jurídicos modernos, o critério da “proporcionalidade” é crucial, quando se trata de determinar se a ação do Estado é legítima quando invade a liberdade religiosa. É necessário notar que, se bem que a esfera da liberdade definida por esta abordagem seja mais limitada, as proteções asseguradas são, quanto a elas, muito mais fortes quando o Estado decide intervir perante atos ditados por motivos religiosos. Damos aqui alguns exemplos: toda a restrição sobre a liberdade religiosa – quer se trate de disposições ligadas à concessão inicial de um estatuto de personalidade jurídica a uma Igreja, dos regulamentos fiscais que permitem transferir fundos oferecidos pelos crentes de uma tradição religiosa a uma outra, da aplicação de regulamentos de saúde, do recurso aos critérios de homologação para as escolas privadas, dos regulamentos que se referem à evangelização, etc. – não é aceitável senão se é “prescrita pela lei” e “necessária numa sociedade democrática”. Todos estes tipos de regulamentos se relacionam com interesses civis, nos quais Locke teria visto assuntos convenientes a uma regulamentação por parte do Estado. Desde então, a História tem-nos mostrado que é preciso mais para proteger a liberdade. É vital aplicar restrições a uma legislação feita pelas maiorias às medidas burocráticas, para assegurar que as minorias religiosas são protegidas e não veem os seus direitos limitados senão na medida requerida pelo Estado, correspondente ao critério da proporcionalidade. Através do conceito de esfera de autonomia, reconhece-se que não se pode dar uma resposta satisfatória sobre o que é de César e o que é de Deus, estabelecendo uma lista dos papéis distintos das instituições eclesiásticas e do Estado. A Igreja e o Estado têm interesses que se chocam, e a religião será marginalizada, se apenas possui um raio de ação sobre os assuntos cedidos pelo Estado. Além disso, como se compreende nas sociedades democráticas modernas, a ação do Estado apenas pode ser justificada, se ela constitui o
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método menos restritivo ou o menos constrangedor para promover o interesse público em questão. Se o objetivo procurado pelo Estado pode ser atingido, aceitando igualmente certas práticas e convicções religiosas, dever-se-á escolher a abordagem menos pressionante. Em muitas situações, poder-se-á, por exemplo, conceder às Igrejas exceções apropriadas ou restringindo o campo de aplicação do regulamento em questão. Considerar-se-á a importância prática da um regulamento. Nas sociedades modernas, os problemas com que os grupos religiosos se confrontam não são, na maioria das vezes, derivados de uma perseguição deliberada, mas de uma medida legislativa, ou administrativa, adaptada ao grande público, e que não põe um problema específico a alguns pequenos grupos religiosos senão porque eles têm convicções particulares. Podem, por exemplo, ter um outro dia de repouso ou devem usar vestes diferentes. Raramente é “necessário numa sociedade democrática” recusar ter em conta tais convicções. Para haver um tratamento realmente equitativo em tais contextos não é necessário que todos atuem da mesma maneira, mas é necessário respeitar as diferenças em presença entre os membros de confissões diferentes. 3. Os riscos da cegueira secular: a preferência injustificada dada às perspetivas seculares A terceira abordagem, o bilhete atirado ao ar para ver se Deus o agarra, corresponde ao ambiente secular da nossa época. Num mundo assim secularizado, como o nosso, é fácil dar o seu acordo superficial à liberdade religiosa e à importância da religião na sociedade, mas também esquecer de fornecer as proteções eficazes logo que se poderiam tornar importunas. O problema é, desde logo, muitas vezes que as pessoas encarregues de aplicar os regulamentos seculares razoáveis em si não compreendem como trabalhar as comunidades religiosas e o que é essencial ao seu funcionamento. Tivemos, recentemente, um exemplo nos Estados Unidos com o Exército da Salvação, que realizou um dos mais eficazes programas do país contra o alcoolismo. Depois da desintoxicação, os alcoólicos são colocados num quadro de vida em que são controlados vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas e onde são postos a efetuar diferentes tarefas não especializadas, tais como recolha de roupa usada para ações de caridade. Recentemente, um inspetor do trabalho, muito zeloso, acusou o Exército da Salvação de infringir as leis sobre o salário mínimo. É inútil dizer que todo o programa se afundaria, se se tivesse
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de pagar a esses alcoólicos convalescentes, que nem sempre são os melhores trabalhadores, em função do tempo de trabalho e das horas suplementares, além de que se trata, de facto, de um programa de trabalho terapêutico. Felizmente, neste caso, a razão prevaleceu e foi encontrado um compromisso. Infelizmente, nem sempre é isso o que acontece. Muitas vezes, a cegueira secular, combinada com a insensibilidade da burocracia, pode efetivamente paralisar a capacidade das comunidades religiosas em dar a sua contribuição onde a sociedade contemporânea tem necessidade dela. A solução do problema seria aplicar o critério da proporcionalidade a sério e não o manipular, para dar uma importância injustificada aos interesses seculares do Estado. Penso que este foi o segundo Cajun, mais do que o terceiro, que era o mais sábio. (…) III. Considerações práticas sobre os papéis distintos da Igreja e do Estado Guardando na memória a argumentação teórica desenvolvida até hoje, gostaria de tecer alguns comentários sobre os problemas postos pela declaração final proposta durante esta conferência. (…) Não intervenção em matéria de convicções Um dos axiomas da liberdade religiosa é que o Estado não deve intervir nas questões de convicções religiosas. Não deve exercer influência sobre o culto ou a doutrina. Ora, é assaz típico ver questões de organização no seio da Igreja repercutir-se sobre as questões de doutrina. Esta é uma das razões pelas quais é essencial que o Estado não intervenha nos assuntos internos de uma Igreja, incluindo para determinar quem deve ser contratado ao nível do clero e dos empregados da Igreja. Um outro ponto importante é que estas questões valem, igualmente, para as questões do ecumenismo. O Estado tem um interesse legítimo em ver desenvolver-se o diálogo e a cooperação entre as Igrejas, mas não lhe cabe decidir se elas devem procurar ou não formar uma organização única. Numerosas Igrejas pensam que isto seria uma boa coisa e acham que seria muito bom para elas. Em contrapartida, outras são ciosamente opositoras de uma tal unificação e convém respeitar essas convicções religiosas separatistas. Além disso, embora o Estado possa ter um interesse legítimo em limitar a politização excessiva da religião, é vital não esquecer que as instituições religiosas têm o direito de se exprimir sobre os temas ligados às questões de consciência. Ora, não se deve privar, nem os indivíduos, nem as instituições,
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do direito à liberdade de expressão, simplesmente porque são religiosas. Em todo o caso, os direitos combinados da liberdade religiosa e da liberdade de expressão deveriam garantir às opiniões religiosas uma maior proteção do que um discurso puramente político. Da mesma forma convém respeitar o direito de partilhar convicções através da evangelização. Em numerosas tradições religiosas, a obrigação de partilhar as suas convicções religiosas corresponde a um profundo imperativo religioso. Dizer a tais crentes que podem beneficiar da liberdade religiosa, desde que não pratiquem a evangelização, é como dizer a um Católico que pode praticar o culto que deseja, na condição de não o comunicar. Adaptação às religiões Tendo em conta o princípio da proporcionalidade mencionado atrás, é necessário fazer todos os esforços requeridos para tornar possíveis as práticas correspondentes às convicções religiosas sinceras. Convém respeitar as festas religiosas e os dias de repouso. É preciso privilegiar o compromisso em torno das necessidades religiosas, mesmo que, para isso, seja necessário autorizar exceções às leis ordinárias, a menos que essas leis não reflitam os interesses maiores “necessários numa sociedade democrática”. É importante notar que este princípio se estende às leis que conferem um estatuto jurídico às Igrejas. No atual mundo jurídico, a liberdade religiosa é sensivelmente limitada, se não se tem acesso a um qualquer estatuto jurídico. Conforme os princípios reconhecidos na Declaração de Helsínquia, os países deveriam fornecer às organizações religiosas o acesso a um estatuto de personalidade jurídica ou ao reconhecimento legal, concedendo-lhes a possibilidade de adquirir bens, de assinar contratos e de construir locais de culto sem dificuldades nem atrasos. Pode justificar-se demonstrar circunspeção quando se trata de conceder vantagens públicas importantes, ou de apoiar uma Igreja sob a forma de isenções fiscais ou de subvenções, enquanto esse controlo não toma formas discriminatórias. A concessão de uma personalidade jurídica também não deve dar lugar a um fenómeno de exclusão ou de discriminação perante comunidades religiosas mais restritas. Com efeito, não é “necessário numa sociedade democrática” proceder a uma aplicação restritiva das leis sobre a concessão deste estatuto. Conclusão A liberdade religiosa é um dos grandes tesouros culturais da sociedade democrática moderna. A sua aplicação contribui para reduzir as inumeráveis
Os papéis distintos da Igreja e do Estado
fontes de sofrimentos provocados, desde a noite dos tempos, pela intolerância e pelas perseguições religiosas. Além disso, se Tocqueville tem razão, a proteção da liberdade religiosa é um dos papéis críticos que podem ser desempenhados pelo Estado para promover indiretamente o desabrochar da sociedade civil. A expansão da liberdade religiosa é uma das maiores realizações destes últimos anos na Europa Central e de Leste, mas não continua menos um valor fundamental ameaçado por diversas razões. A minha esperança é que o trabalho que efetuamos aqui sirva para a consolidar. 139. Extratos de um artigo publicado na revista C&L, nº 53, 1997 (edição francesa). 140. W. Cole Durham Jr. é professor de Direito na Universidade Susa Young Gates, e diretor do Centro Internacional de Estudos de Direito e de Religião na Young University’s J. Clark Lay School. É presidente do Consórcio Internacional de Estudos de Direito e de Religião. É igualmente presidente co Consórcio Internacional de Estudos de Direito e Religião. E também coeditor-chefe do Journal of Law and Religion de Oxford. J. Cole Durham Jr. é diplomado do Harvard College e pela Harvard Law School. 141. A História conta que três Cajuns tendo encontrado uma nota de 100 dólares discutiram sobre o que fazer com ela. E passando diante de uma igreja sentiram um peso na consciência. Era preciso dar um pouco a Deus. A questão era saber o quanto. Um sugeriu fazer um risco no chão e atirar a nota ao ar. Se ela caísse do lado da igreja, era para Deus. Senão, era para eles. O segundo propôs fazer a mesma coisa, mas com um círculo. O terceiro teve uma ideia melhor: “Atira-se a nota ao ar e, se Deus a quisesse, pois bem, que a agarrasse.” 142. Mateus 22:20 e 21. 143. Ver Harold J. Berman, Law and Revolution: The Transformation of the Western Legal Tradition, 92, 1983. 144. Joel Hanson Comment, Jefferson and the Church-State Wall. A Historical Examination of the Man and the Metaphor, 1978, BYUL. Rev. 645. 145. John Locke, Une lettre sur la tolérance, primeira publicação em 1689. Library of the Liberal Arts, Macmillan Publishing Co. Nova Iorque, 1950. 146. Ver Shebert c. Verner, 374 US (1963); Wisconsin c. Yoder, 406 us (1972). O critério de “interesse maior do Estado” foi sensivelmente enfraquecido pela decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no processo do Tribunal de Trabalho contra Smith, 494 US 872 (1990), mas reencontrou grande parte da sua força no Religious Freedom Restoration Act, 42 USC, par. 2000 bb a 2000 bb-4 (Sup. V, 1993). 147. Artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 4 de novembro de 1950 UNTS 213:322, que entrou em vigor a 3 de setembro de 1953, emendada pelo Protocolo nº 3, que entrou em vigor a 21 de setembro de 1970, e pelo Protocolo nº 5, que entrou em vigor a 21 de dezembro de 1971.
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Socialismo e Cristianismo148 Nicolas Berdyaev 149 Coletivismo (…) O velho coletivismo russo tem sido sempre inimigo da cultura, oposto ao princípio pessoal; sempre nos tem empurrado para baixo, impedidos de sair para a luz e as perspetivas mundiais. Paralisou o nosso sentido de responsabilidade. O coletivismo não era, contudo, um facto novo. Vinha da nossa vida antiga, como uma sobrevivência do naturalismo primitivo. Tem sido, muitas vezes, confundido com a “colegialidade” espiritual, a fraternidade de um tipo superior. Assim, tem-se idealizado a nossa “comunidade” com outras manifestações análogas da vida russa. Este coletivismo representa, também, uma atitude negativa relativamente ao direito que é confundido com a moral. Ateísmo A ambição de criar a perfeição social abstrata é uma impostura ateia. A experiência de um paraíso na Terra tem levado sempre a um inferno, ao ódio, à exterminação mútua, à violência e à orgia. Foi assim na época da Reforma, quando os Anabatistas fundaram a Nova Jerusalém. O Homem não tem o direito de ser um naïf e um sonhador em matéria social, e não deve dar rédea solta ao seu sentimentalismo. (…) Vocês desejam submeter ao sufrágio universal de antanho e apresentar perante o tribunal do bem-estar humano, compreensível a todos durante a efémera vida terrestre. Mas também ignoram o amor do próximo, do ser vivo, com a sua carne e o seu sangue, do ser concreto. Para vocês, o Homem não é mais um próximo, mas uma abstração. Apenas o Cristianismo conhece o amor do próximo, que o liga ao amor de Deus. (…) O próprio Cristo ensinou a dar a César o que pertence a César, mas proibia de lhe dar o que era de Deus. Cristo reconheceu a esfera autónoma do reino de César e a sua importância para o Reino de Deus. E vocês querem empobrecer o reino de Deus, extraindo definitivamente um grande domínio com uma vida independente, e, pelo vosso maximalismo, reduzindo-a às suas mínimas dimensões. (…) O mundo antigo, antes do Cristianismo, não conhecia fronteiras estatais. Era incapaz de distinções; o divino dissolvia-se nele através da natureza e da
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necessidade natural e não era limitado pela verdade divina. Havia uma necessidade natural que não era limitada pela verdade divina. Tinha uma necessidade natural que limitava o caos bestial, mas o problema da limitação do próprio Estado não podia colocar-se perante a consciência do mundo antigo. Todos os povos desta época aspiravam a criar uma força poderosa, capaz de dominar os elementos caóticos para ultrapassar o animal. Este poder era iluminado pela consciência religiosa da época. Nas grandes monarquias do Oriente atribuía-se ao poder real um sentido divino. Eram-lhe concedidas as honras devidas aos deuses. César e Deus (…) No mundo cristão, o Estado já não pode pretender possuir o Homem por inteiro, o seu poder não se estende à profundidade, à sua vida espiritual, que pertence apenas à Igreja. A preocupação do Estado é apenas com a proteção do Homem. Não regula senão as relações exteriores deste. Certamente, no mundo cristão, ele ultrapassa, muitas vezes os seus limites e intervém num domínio que não é o seu, exercendo pressão sobre a alma. Mas este é o seu pecado, quando se desvia do seu caminho. Espiritualmente, o Estado está limitado para sempre, e os direitos infinitos da alma humana são reconhecidos. Isso é também verdade para as monarquias autocráticas que não são apoiadas pela sociedade nem por grupos sociais, mas pela Igreja e pelos direitos da alma. Contudo, quando a autocracia sai do quadro nacional e histórico de monarquia esclarecida pela religião, mas não divinizada, e que tende a deificar César, traduz a verdade de Cristo e envolve-se na via do culto do Homem-deus. Esta tendência tem sido sempre mais forte no Oriente, em Bizâncio e na Rússia, do que no Ocidente. Aí, no seio do Catolicismo, o limite do poder, do reino de César, tem sido reconhecido e estabelecido de uma forma particularmente clara. De Roma, o culto de César torna-se na sua pátria, no Ocidente. O próprio Ocidente tem tido um sentimento mais forte sobre os Direitos do Homem. E todos vós que renegaram o Cristianismo, que esqueceram a vossa pátria espiritual, exigem que o Homem seja livre e que o poder exercido sobre ele pelo Estado seja limitado, sem saber o que justifica que ele o seja. Perderam a consciência religiosa dos vossos pais e têm apresentado uma expressão travestida, sem força e secularizada para uma bem antiga verdade cristã. A Igreja Cristã e a revelação da filiação divina do Homem são a fonte de toda a limitação às pretensões do Estado e de toda a afirmação dos Direitos do Homem. (…) A vossa fé exclusiva no futuro é ímpia, falsa e monstruosa. Esse futurismo é o vosso pecado fundamental – despedaça, pulveriza o ser histórico e cósmico integral.
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Direitos do Homem (…) Tendo esquecido os Direitos do Homem, também omitiram que a Declaração dos Direitos do Homem deveria estar ligada às suas obrigações. A via que leva a destacar os Direitos do Homem e os seus deveres não vos conduziu para o bem. O vosso liberalismo desviou-se e degenerou. Os direitos, como as obrigações, têm como origem e semelhança a natureza humana com a de Deus. Se o Homem é apenas um reflexo do meio natural e social, o reflexo de condições exteriores, um filho da necessidade, não possui nem direito nem obrigação sagrada, apenas tem interesses e pretensões. Os Direitos do Homem pressupõem os de Deus. E são, desde logo, os direitos de Deus no Homem, os do divino nele, a sua imagem e a sua filiação divinas. Se o Homem tem direitos infinitos, é unicamente porque tem um espírito infinito e penetra, pela sua profundidade, na realidade divina. A pessoa do Homem não é suficiente por si mesma. Ele assume a realidade de Deus e os valores divinos. Será que seria possível proclamar os direitos sagrados do Homem se ele não passasse de um animal aperfeiçoado e disciplinado, uma espécie de poeira na qual num instante a vida foi iluminada? Os Direitos do Homem, devem ter um fundamento ontológico, eles têm, como postulado, o ser da alma humana na eternidade, e também o que ultrapassa infinitamente esta alma, o ser de Deus. Haverá sempre um conflito entre o desejo sem fim da liberdade, e o da diferença. A sede da igualdade constituirá sempre o perigo mais terrível para a liberdade humana – ela levanta-se contra os Direitos do Homem e contra os de Deus. Liberdade (…) Vocês, liberais e socialistas positivistas, dificilmente entenderão todo o aspeto trágico deste problema. A liberdade e a igualdade são incompatíveis. A liberdade é, antes de tudo, o direito à diferença. A igualdade é, desde logo, um atentado à liberdade e uma limitação desta. A liberdade de um ser vivo, e não de um ponto matemático, realiza-se por uma distinção quantitativa, por uma elevação, pelo direito de aumentar as dimensões e o valor da vida. A liberdade é a função de um conteúdo qualificativo da vida, tem todo o direito de se elevar. Hoje, o socialismo entra no mundo com ambições religiosas, deseja ser “tudo em tudo”, exige para si mesmo uma atitude de natureza religiosa. A religião do socialismo revolucionário aceita as três tentações que Cristo tinha rejeitado no deserto e é, sobre elas, que deseja criar o seu reino. Deseja transformar as pedras em pão, assegurar a saúde por um milagre social, afirmar o reino deste
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mundo. Consiste em organizar a Humanidade na Terra, sem Deus e contra Deus. É o que Dostoïevski tinha profeticamente compreendido. O socialismo é a construção da Torre de Babel. Completa o trabalho começado pela democracia, a saber: nacionalizar definitivamente a vida humana, excluindo todas as forças sobre-humanas e divinas do mistério; quer apoderar-se da vida humana ainda mais vasta e profundamente do que a democracia; pretende criar uma nova vida em toda a sua plenitude e integridade. Foi a espada e não a paz que Cristo trouxe ao mundo. Dividiu os homens segundo o espírito. O socialismo também traz o gládio, mas divide os homens segundo a sua situação económica, não reconhecendo a existência do espírito. Não admite a existência do Homem, substitui-o por categorias económicas. A religião do socialismo é homicida. Começa por negar a filiação divina do Homem. Na sua base, há a experiência não de um filho, mas de um escravo revoltado, o ressentimento de uma vexação subjacente. Aquele que saiu da argila quer tornar-se num deus. Fraternidade (…) Vocês confundem, de uma forma fatal, fraternidade e agrupamento de interesses económicos. No vosso reino, nunca, um grande nunca, o Homem se tornará num irmão para o Homem. Não passará de um “camarada”. O que é que esse termo pode ter de comum com o de “irmão”? Toda a diferença entre o socialismo e o Cristianismo comporta a que há entre camarada e irmão. No seu irmão, o irmão venera o Homem, a imagem e a semelhança de Deus; une-se a ele como a um filho do mesmo pai. A fraternidade supõe uma paternidade comum. Aqueles que ignoram o pai e que o recusam, não podem ser irmãos. O camarada respeita o seu camarada, não o homem, mas a classe, a categoria económica. (…) Não pode haver no mundo nada mais assustador do que a virtude obrigatória. Em nome da dignidade, da liberdade e da natureza superior do Homem, é necessário deixar-lhe uma certa liberdade de pecar, da escolha entre o bem e o mal. Vocês começam por socializar o espírito humano, o que mata a pessoa. A religião socialista está baseada numa negação da imortalidade e sobre uma revolta contra a ordem divina do mundo. Dostoïevski tinha compreendido, perfeitamente, que isso era uma consequência. Também o socialismo contém uma tal avidez da parte dos mortais, uma tal sede da vida terrestre. Quão vulgares e disformes são todas as vossas utopias! Elas representam o extremo do espírito “pequeno burguês”. Uma mentira espiritual está na base dos vossos sonhos. Através dos vossos sonhos tóxicos, querem sufocar em vocês mesmos o horror da morte; e conseguirão uma imortalidade artificial. A utopia social
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matou em vocês o sentimento religioso. Tornou anémica a vossa consciência e o sentido da vida, fechou-vos para a eternidade. O Estado (…) o Estado socialista não é um Estado secular, como o democrático; é um Estado sacral. A partir do seu próprio princípio, não pode ser tolerante nem reconhecer nenhuma liberdade; não admite os direitos senão os dos que confessam a ortodoxia socialista; assemelha-se a um Estado teocrático autoritário. O socialismo professa uma fé messiânica: o proletariado é a classe messias. Uma hierarquia especial, o partido comunista, centralizado ao extremo e detentor de um poder ditatorial, é o guardião da “ideia” messiânica do proletariado. 148. Artigo publicado na revista C&L, nº 20, de 1980 (edição francesa). Extratos da obra “Da desigualdade”, Edições l’Âge d’Homme, Lausanne – Paris. 149. Nicolas Berdyaev 1874-1948, filósofo russo, Cristão Ortodoxo. Favorável à revolução socialista, no entanto, passou duas vezes pela prisão. Em 1920, foi nomeado professor na Universidade de Moscovo. Em 1922 foi expulso da URSS como “adversário ideológico do Comunismo”. Na encruzilhada da Ortodoxia e do Ocidente cristão, do humanismo ateu e da experiência espiritual, Berdyaev tenta promover a liberdade de espírito e um Cristianismo renovado. Enfatiza a pessoa, a liberdade, o caráter religioso de toda a criação autêntica.
CAPÍTULO
6 Direitos do Homem, Liberdade Religiosa e Liberdade de Expressão
Declaração oficial da 28ª sessão do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas150 Os princípios fundamentais da União Europeia
Federica Mogherini 151 Sr. Presidente, Sr. Alto Comissário, minhas Senhoras e meus Senhores, É uma honra para mim poder dirigir-me a este Conselho neste primeiro ano do meu mandato como Alto Representante da União Europeia. O objetivo da minha presença aqui é recordar que a União Europeia apoiou firmemente este Conselho desde os seus inícios, porque ele encarna os princípios que constituem os próprios fundamentos da União Europeia: os direitos do Homem, as liberdades fundamentais, a solidariedade e a justiça. Baseados na nossa própria e dolorosa História, cremos que a verdade, a reconciliação, a justiça, a responsabilidade, assim como a cultura dos Direitos do Homem profundamente enraizados em nós, são as características das sociedades pacíficas. Eis porque estamos envolvidos em manter os Direitos do Homem no coração da nossa política estrangeira, particularmente perante as múltiplas crises a que o mundo deve fazer face, hoje. Temos obrigações para com as vítimas – brutalizadas, oprimidas e as sem voz – de levar estes abusos e estas violações dos Direitos do Homem ao exame consciencioso da comunidade internacional. Aqui, em Genebra, devemos fazer todo o possível para impedir estas violações dos Direitos do Homem e estes abusos e de reagir perante eles. Devemos combater a discriminação e a violência persistentes e devemos fazê-lo em conjunto. Numerosas crises figuram na ordem do dia do Conselho. Não as citarei todas, mas permitam-me mencionar algumas:
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– Na Ucrânia: as perdas em vidas humanas provocadas por este conflito são assombrosas: quase 6000 pessoas morreram e mais do dobro ficaram feridas. Devemos trabalhar para uma solução política viável que aborde também as consequências humanas deste conflito. Devemos fazer face às violações dos Direitos do Homem e aos abusos sistemáticos, que estão bem registados pelo Gabinete do Alto Comissariado, incluindo a perseguição e intimidação da comunidade tártara da Crimeia e as tentativas contínuas de limitar a liberdade de expressão dos media. Deveria conceder-se aos atores internacionais dos Direitos do Homem um pleno acesso, sem nenhuma restrição, ao conjunto do território da Ucrânia, incluindo a Crimeia e Sebastopol. O respeito pelos Direitos do Homem e a lei humanitária internacional são os fatores-chave para favorecer a paz e a estabilidade, e constitui um princípio diretor para a União Europeia. É por isso que encorajamos as duas partes do conflito entre Israel e a Palestina a respeitar estes princípios e a absterem-se de tomar decisões que poderiam sabotar as perspetivas de paz e a viabilidade de uma solução acautelando dois Estados distintos. Neste contexto, gostaria de repetir a minha preocupação com a expansão contínua dos colonatos israelitas que, perante a lei internacional, são ilegais, e apelar às duas partes para colaborarem plenamente com os mecanismos dos Direitos do Homem das Nações Unidas. – No Iraque/Síria e na África do Norte, as atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico/Daesh e outras organizações terroristas não podem permanecer impunes. Ao mesmo tempo, as graves violações cometidas contra a população civil pelo regime de Bashar al-Assad exigem que se peçam contas e que se ponha fim à impunidade. Devemos conservar isto em mente, procurando soluções políticas para a situação na Síria e no Iraque. Defendemos que o trabalho realizado pelos diferentes mecanismos garanta o respeito pelo princípio da responsabilidade das Nações Unidas, considerando-o como uma importante contribuição para a busca de uma solução política duradoura. Devemos eliminar os espaços nos quais prevalece a impunidade, porque eles se enchem rapidamente de dissabores e de problemas. São precisamente estes sentimentos explorados pelos extremistas, com a sua brutalidade e o seu desprezo total pelos direitos universais, que estamos encarregados de proteger. Ao mesmo tempo devemos redobrar os esforços para procurar as pessoas que poderiam ser vulneráveis perante o discurso radical do extremismo violento. Se queremos acabar com o círculo vicioso da violência e dos abusos dos Direitos do Homem, também nos devemos ocupar das causas que estão na sua raiz e vigiar a aplicação de todos os Direitos do Homem.
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Devemos combater a marginalização, a discriminação e a intolerância e agir em favor da igualdade. O Conselho dos Direitos do Homem não é apenas um local onde as violações dos Direitos do Homem e os abusos devem ser denunciados. Deve ser, antes de mais, uma plataforma internacional para o diálogo e para a colaboração. A Revue p Périodique Universelle é um exemplo de um instrumento favorecendo a colaboração e com a qual a União Europeia está profundamente envolvida. É importante que todos os países colaborem com as Nações Unidas nos problemas dos Direitos do Homem, uma vez que todos temos a ganhar da interação com o Conselho sob todas as formas. Eis porque encorajamos todos os nossos parceiros a colaborar com ele. Há numerosos casos nos quais a União Europeia, através do gabinete do Alto Comissário, colabora, mão na mão, com países específicos, para os ajudar a fazer face aos desafios que encontram nos seus esforços para formar sociedades verdadeiramente democráticas. O nosso representante especial para os Direitos do Homem, Stravos Lambrinidis, desempenha um papel-chave neste domínio. Sr. Presidente, Sr. Alto Comissário, minhas Senhoras e meus Senhores Há outros atores importantes que não devemos esquecer: neles se incluem os organismos da sociedade civil e os defensores dos direitos humanos. Temos assistido a tentativas de toda a ordem para limitar a sua capacidade de agir e tornar os governos responsáveis. Este é um sério passo atrás, e uma ameaça direta à liberdade de opinião e de expressão. Casos recentes e trágicos de intimidação, de perseguição e tratamentos desumanos contra jornalistas, internautas e outros elementos dos media são sinais de alarme para todos, para nos levar a tomar medidas para garantir a sua segurança e a sua liberdade. A nossa reação à intimidação e às ameaças deve ser firme e imediata; mas também deve ser acompanhada da nossa disponibilidade para o diálogo, para a educação, para a promoção do pluralismo e do respeito pela liberdade de religião e de crença. Acreditamos que uma estabilidade e uma segurança a longo termo podem funcionar a par com o respeito pelos Direitos do Homem e as liberdades. A estabilidade não pode existir sem um sistema justo, um compromisso sério para uma boa administração, a autoridade da lei e a luta contra a corrupção. Permitam-me, também, expressar a nossa firmeza em abolir a pena de morte; na nossa opinião, regressar às execuções capitais face ao crescimento da
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criminalidade ou das atividades terroristas não é nem uma reposta apropriada nem uma reação eficaz. A Europa está confrontada com imensos desafios, e nós temo-nos envolvido em fazer-lhes face de uma forma respeitadora dos Direitos do Homem. Um dos maiores desafios é a imigração. Já declarei, numerosas vezes, que é necessário pôr fim à perda de vidas humanas no Mediterrâneo. Com os meus colegas responsáveis pelos assuntos internos e a imigração, insistimos numa maior colaboração entre os Estados-membros da União Europeia para encontrar soluções políticas e fiáveis e evitar outras tragédias que custam a vida a tantas vítimas inocentes. Os migrantes que arriscam a sua vida para atingir a Europa são, geralmente, levados pelo mais total desespero provocado pela extrema pobreza, pelos conflitos e pelo abuso dos Direitos do Homem no seu país de origem. Nós redobramos os esforços para apoiar o trabalho do Alto Comissário para os Refugiados das Nações Unidas, e, porque é nosso dever coletivo responder às necessidades dos refugiados e dos que pedem asilo, para assegurar que são bem acolhidos nas nossas sociedades e para proteger os direitos humanos de todos os migrantes. É um teste da solidariedade e da responsabilidade partilhada sobre a qual foi construída a União Europeia. Sr. Presidente, Sr. Alto Comissário, minhas Senhoras e meus Senhores, Compreender todas estas interdependências deve mobilizar-nos ainda mais para apoiar os esforços do Secretário-Geral da Nações Unidas para uma abordagem verdadeiramente transformadora e global da erradicação da pobreza e de um desenvolvimento duradouro, este ano. Acreditamos que uma abordagem baseada nos direitos ao desenvolvimento e à igualdade dos sexos é a chave para a nossa ordem do dia após 2015. 2015 foi, também, o 20º aniversário da Declaração de Pequim e o 15º aniversário da adoção da Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É, para nós, uma ocasião única de apoiar as Nações Unidas no seu trabalho em favor do avanço da igualdade dos sexos, e da valorização das mulheres e das jovens. A este respeito espero, com impaciência, poder participar, em Nova Iorque, na 59ª sessão da Comissão das Nações Unidas sobre o estatuto das mulheres. A observação da lei internacional, incluindo os Direitos do Homem, faz parte da solução e não constitui um obstáculo a esta solução. A abordagem que
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adotamos para resolver as crises e as ameaças deve resistir ao exame exigente do Conselho. Estabilidade contra democracia, ou segurança contra direitos humanos, são falsos dilemas. Para concluir, permitam-me sublinhar uma vez mais, o forte envolvimento da União Europeia com as diferentes instâncias pelo respeito pelos Direitos do Homem e com os mecanismos das Nações Unidas, e prestar homenagem ao sr. Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem e a sua equipa, pelo seu infatigável trabalho. Muito obrigada. 150. Pode consultar-se em inglês no sítio: http://eeas.europa.eu/delegations/un_geneva/press_ corner/all_news/news/2015/20150303_mog_en.htm. 151. Alto Representante para os Assuntos Estrangeiros e a Política de Segurança, vice-presidente da Comissão Europeia.
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Sr. Presidente, sr. Alto Comissário, Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores, Quando a barbárie absurda do terrorismo nos fere, são os nossos valores que são postos à prova. Sentimo-nos ultrajados, perplexos, com o coração ferido; e a nossa primeira reação é, muitas vezes, procurar a nossa vingança, encontrar alguém contra quem dirigir a nossa cólera. Contudo, uma diferença fundamental, entre nós e os terroristas, é que nós não nos deixamos guiar pelos nossos instintos mais primitivos. Durante algum tempo, em janeiro, todos éramos Charlie, por solidariedade com as vítimas deste horrível crime cometido em Paris. Um mês mais tarde, o mundo manifestou a sua solidariedade com as vítimas de uma agressão similar em Copenhaga. As numerosas horas de trabalho intenso que esperam este Conselho nas próximas semanas deverão desenrolar-se neste mesmo estado de espírito, e com uma preocupação permanente de solidariedade para com as vítimas das violações dos Direitos do Homem em todo o mundo. Eis porque, hoje, uma vez que tenho a honra de me dirigir a este Conselho, no início da sua 28ª sessão, eu não sou apenas Charlie; eu sou todo o indivíduo a quem recusaram os seus direitos humanos. Eu sou essa vítima da tortura numa prisão síria. Eu sou essa jovem raptada e abusada por Boko Haram. Eu sou esta mulher cristã que perdeu a sua família na loucura criminosa do Daesh, no Iraque. Eu sou esta criança de Gaza deslocada por causa de um conflito. Eu sou este tártaro da Crimeia perseguido pelas autoridades russas.
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Eu sou este civil que se abriga dos tiros de artilharia em Debaltseve, na Ucrânia. Eu sou este ativista político arbitrariamente detido numa prisão, no Bahrain. Eu sou o trabalhador imigrado no Qatar que arrisca a sua vida por causa das condições de trabalho perigosas. Eu sou esta pessoa que pertence à comunidade LGBTI no Irão, que espera para ser enforcada. Eu sou o jovem do Sul do Sudão raptado e forçado a combater numa guerra civil extremamente violenta. Eu sou esta jovem da Somália que teve de fugir do seu lar, à procura da paz, e que foi violada pelos soldados. Eu sou este Rohingya, apátrida, perseguido no Mianmar. Sou este escravo nos pavorosos campos de prisioneiros políticos na Coreia do Norte. Sou esta vítima da guerra civil que procura a verdade e a justiça no Sri Lanka. Sou este homem que espera a sua execução na Bielorrússia. Sou este Judeu, vítima das ações de extremistas. Sou este ativista dos direitos humanos, agredido por ter criticado o seu governo. Sou esta jovem a quem foi recusado o direito de decidir acerca do seu corpo. Sou esta criança que não tem acesso à educação. Sou este imigrante que não é tratado dignamente. Dirijo-me a este Conselho dos Direitos do Homem para o fazer tomar consciência do meu caso e pedir-lhe que os meus carrascos sejam tidos como responsáveis. É pungente saber que poderia ter continuado a lista de vítimas sobre as quais devemos concentrar a nossa atenção. Para que esta lista esteja completa, teria de privar todos os outros oradores do seu direito à palavra. Penso que muitos, entre nós, nestes dias, se levantam de manhã com o sentimento de que o nosso mundo, como o Sr. Alto Comissário para os Direitos do Homem tão eloquentemente se exprimiu, caminha para um futuro mais incerto e imprevisível do que nunca. As Nações Unidas representam – para o melhor ou para o pior – a nossa melhor oportunidade para orientar o futuro indisciplinado num lugar melhor para a crescente população mundial. O Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas desempenha, aí, um papel cada vez mais essencial. Este Conselho cumpre o seu trabalho num mundo em plena mutação, no qual a nossa compreensão habitual de um transgressor dos Direitos do Homem é posta em questão, porque os atores, não estatais, ganham cada vez mais importância. Para a vítima, violação e abuso são a mesma coisa, quer o culpado faça parte de um regime bárbaro ou de um gang de criminosos terroristas. A comunidade internacional, por ocasião da sessão especial reunida no ano passado sobre o problema do Iraque, tendo em conta abusos cometidos pelo denominado Estado Islâmico, lançou uma mensagem poderosa e unida:
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ninguém implicado neste conflito está acima da autoridade e da lei e não pode fugir à justiça. Boko Haram é um outro ator não Estado, cruel e sem escrúpulos, que, sem explicações nem objetivos claramente expressos, assassina e rapta inocentes. Não devemos permitir que continue a fazê-lo. Estas violações selvagens da lei humanitária internacional dos Direitos do Homem e da dignidade humana devem cessar. Os culpados deverão responder pelos seus atos. O governo da Nigéria deve assumir a sua inteira responsabilidade para proteger os seus cidadãos e, se necessário, reclamar um apoio internacional para combater esses terroristas. Sr. Presidente, Muitas vezes se tem criticado o Conselho dos Direitos do Homem pelos desacordos internos entre os seus membros; mas, na minha opinião, esta crítica repousa sobre uma má compreensão do próprio conceito do Conselho dos Direitos do Homem. A força deste Conselho reside no facto de a composição refletir a paisagem política mundial e, por conseguinte, também, os desacordos mundiais. É justamente da sua composição que o Conselho dos Direitos do Homem recebe a sua credibilidade. É a tribuna na qual o mundo se reúne para discutir problemas que são complicados para todos nós. E é aí que encontramos, juntos, as soluções. A iniciativa sobre a Convenção Contra a Tortura (CTI) lançada recentemente por um período de dez anos pelo meu governo, conjuntamente com os governos do Chile, do Gana, da Indonésia e de Marrocos, tem como objetivo, precisamente, neste espírito, encontrarmos juntos soluções; soluções para promover a retificação universal e uma melhor aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura; soluções para assegurar o respeito pela interdição absoluta da tortura – um dos direitos fundamentais das pessoas; soluções, de facto, destinadas a assegurar que as autoridades governamentais não façam um mau uso do seu poder sobre os indivíduos, em situações nas quais o indivíduo não pode escapar. Sr. Presidente, Procuramos a força e a direção nos valores que nos unem como seres humanos em todo o mundo e que constituem o fundamento deste Conselho. Em lugar da anarquia, da intolerância e da barbárie, insistimos, mesmo nas horas
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mais sombrias da nossa História, na autoridade da lei, na compreensão mútua e na compaixão humana. Recordamo-nos de que o efeito do terrorismo não depende senão da nossa reação. A nossa tenaz insistência nos valores fundamentais é a nossa melhor arma contra o terrorismo. Se reagirmos, tomando medidas de segurança que interferem com a autoridade da lei e sobre as liberdades fundamentais dos nossos cidadãos; ou professando uma retórica que generaliza e diaboliza uma minoria entre nós; ou limitando a nossa liberdade de expressão sob o efeito do medo; os terroristas terão ganho. É nossa obrigação coletiva que nos asseguremos de que isso jamais aconteça. Sr. Presidente, muito obrigado. 152. http://fngeneve.um.dk/en/aboutus/statements/newsdisplaypage/?newsid=f5d05171-a3ba-47a8-a678-405d5595b5b4. 153. Ministro dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca.
A União Europeia: Defesa da Universalidade dos Direitos do Homem Pleiteando em favor de um espaço para a sociedade civil154
Embaixador Peter Sørensen155 “Os Direitos do Homem permanecem no coração da política estrangeira da União Europeia, sobretudo em vista das múltiplas crises às quais o mundo deve fazer face, hoje. Estas crises causam consideráveis sofrimentos humanos e violações flagrantes dos Direitos fundamentais do Homem. Nós, em Genebra, temos a responsabilidade de fazer face a estas violações e a esses abusos.” “Quer seja a Síria, a Ucrânia, a República Popular Democrática da Coreia ou o Sudão, a comunidade internacional deve assegurar-se de que aqueles que cometem essas violações e abusos, sistemáticos, e mesmo em certos casos crimes contra a Humanidade, deverão responder pelos seus atos.” “Devemos, também, permanecer vigilantes perante os atos de intolerância e de violência baseados na religião ou na crença, dirigidos contra indivíduos, em todas as partes do mundo. Eis porque a União Europeia tomou a iniciativa de resoluções que promovam a liberdade de religião ou de crença, insistindo na importância de facilitar o diálogo, a compreensão e a tolerância.” Peter Sørensen, Embaixador. Exprimindo o apoio, de longa data, da União Europeia concedido à obra dos defensores dos Direitos do Homem, a campanha #idefend, organizada pela delegação da União Europeia – em colaboração com o gabinete do Alto Comissário dos Direitos do Homem (HCDH), as missões permanentes do Brasil, das Repúblicas Populares Democráticas da Coreia e da Tunísia – promoveu a importância do envolvimento da sociedade civil e tomou posição firme e publicamente contra as tentativas de limitar o espaço da sociedade civil. O forte envolvimento da União Europeia nos fóruns multilaterais dos Direitos do Homem tem sido sublinhado, pela participação, perante o
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Embaixador Peter Sørensen
Conselho, de Federica Mogherini, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Segurança Política, de Stavros Lambrinidis, representante especial da União Europeia para os Direitos do Homem, e de uma delegação do subcomité do Parlamento Europeu para os Direitos do Homem dirigido pela sua presidente, Elena Valenciano. A União Europeia centrou a sua reflexão, entre outros, sobre os seguintes problemas e situações sobre os Direitos do Homem – Extratos: Myanmar/Birmânia: A União Europeia apresentou uma resolução equilibrada que saúda as reformas políticas, económicas e democráticas feitas neste país, chamando a atenção, ao mesmo tempo, para os desafios que permanecem, entre outros, o espaço democrático para a sociedade civil, os direitos das pessoas pertencentes a minorias, e a situação nas regiões afetadas por conflitos. República Popular Democrática da Coreia: Uma resolução tomada por iniciativa do Japão e da União Europeia sobre a terrível situação dos Direitos do Homem nesse país foi adotada por uma esmagadora maioria do Conselho dos Direitos do Homem. Esta resolução aborda os problemas persistentes dos Direitos do Homem e reafirma o seu apelo, dirigido ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, a encarar uma apresentação da situação, perante o Tribunal Penal Internacional. Síria: Os enormes abusos e as violações dos Direitos do Homem devem terminar. A União Europeia tem, portanto, mantido uma resolução condenando a deterioração grave e contínua dos Direitos do Homem e da situação humanitária no interior da República Árabe Síria (…), reafirmando a obrigação de prestar contas e de pôr fim à impunidade. Ucrânia: A situação dos Direitos do Homem na Ucrânia Oriental e na Crimeia permanece muito inquietante. Uma declaração inter-regional apelando a todas as partes para implementarem os acordos de Minsk encontrou um vasto apoio. Sul do Sudão: A União Europeia está profundamente preocupada com os relatórios constantes de graves violações dos Direitos do Homem e pelas ameaças permanentes à sociedade civil e ao espaço político no Sul do Sudão. Liberdade de religião ou de crença: A União Europeia concede uma alta prioridade à liberdade de religião ou de crença. A resolução deste ano, tomada por iniciativa da União Europeia, insiste no papel desempenhado pela liberdade de religião ou de crença e pela liberdade de expressão no combate contra todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na crença. Adotando esta resolução, o Conselho dos Direitos do Homem encoraja,
A União Europeia: Defesa da Universalidade dos Direitos do Homem
vivamente, os representantes e os chefes dos governos em todos os setores da sociedade a exprimirem-se quando esses direitos são violados. Direitos da criança: A resolução anual tomada por iniciativa da União Europeia e do Grupo de Estados da América Latina e do Mar das Caraíbas (GRULAC), que se foca no investimento em favor das crianças, teve um vasto apoio. Esta resolução exige dos Estados que tenham em conta os direitos das crianças, ao implementarem políticas nacionais sobre a saúde, a educação ou a proteção social. Convida, também, a colaboração internacional a apoiar os esforços nacionais. 154. http://eu-un.europa.eu/articles/en/article_16265_en.htm. 155. Embaixador e chefe da delegação da União Europeia nas Nações Unidas em Genebra.
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Conclusão do relatório sobre a luta contra a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando algumas pessoas, por causa da sua religião ou da sua convicção.156 O príncipe Ra’ad Zeid al-Hussein157 O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem recebeu 15 respostas à nota verbal enviada conforme o parágrafo 12 da resolução 25/34 do Conselho dos Direitos do Homem, na qual o Conselho convidou os Estados-membros a fornecer informações. Os Estados que responderam evocaram, de uma forma geral, as medidas que tinham sido tomadas para aplicar as disposições dos parágrafos 7 e 8 da resolução. O Alto Comissário convida os Estados a pedirem informações mais específicas, contudo, sobre um número limitado de disposições específicas da resolução. As informações fornecidas pelos Estados sobre as medidas que adotam para aplicar o Plano de ação descrito nos parágrafos 7 e 8 da resolução atrás citada mostram que se trata, essencialmente, de medidas de política geral ou de medidas jurídicas, e que muitos entre eles inscrevem a proteção contra a discriminação baseada na religião, ou nas convicções, nas Constituições nacionais, nos códigos penais e nas leis e nos regulamentos civis. Um certo número de Estados empenha-se a lutar contra os crimes motivados pelo ódio no plano nacional. A promoção do incitamento ao ódio é, para a maior parte, criminalizada e frequentemente proibida por vários motivos, incluindo religião e convicção. Os Estados têm também sublinhado que era importante proteger a liberdade de expressão e de opinião, para garantir a igualdade e para lutar contra a intolerância religiosa.
Conclusão do relatório sobre a luta contra a Intolerância
Os Estados têm indicado estar a lutar contra o extremismo e a radicalização, que conduz muitas vezes à violência e à realização de crimes motivados pelo ódio, através de programas de coesão e de inserção sociais e de medidas de polícia e segurança, muitas vezes conjugadas com um diálogo e uma interação com as comunidades locais e os jovens, assim como à recolha de dados e monitorizá-los. Um certo número de Estados tem indicado ter posto em prática estratégias ou planos para lutar contra o extremismo e a radicalização. Quase todos os Estados, que têm fornecido informações, têm implementado uma ou outra forma de comunicação e de consulta entre as comunidades e os grupos religiosos e as autoridades governamentais. Os Estados têm apresentado numerosos exemplos concretos de redes, de órgãos de comunicação ou de fóruns entre instituições públicas e as comunidades, ou grupos religiosos; alguns salientam as questões de polícia e segurança, outros usando fóruns de troca de impressões. Os Estados lutam contra a intolerância e a estigmatização, os estereótipos negativos e a discriminação, em particular, através de campanhas de sensibilização e de medidas educativas. Também financiam projetos locais e nacionais, visando promover um reforço das capacidades, a coesão social e o diálogo interconfessional e o aumento da participação das comunidades e dos grupos religiosos. A maior parte dos Estados tem indicado que a liberdade de religião e o pluralismo religioso estavam assegurados nos seus países e que os membros das comunidades e dos grupos religiosos eram capazes de praticar a sua religião e de contribuir abertamente para a sociedade em condições de igualdade. A liberdade religiosa está frequentemente garantida ao nível constitucional, de acordo com a legislação. Diversos Estados têm evocado o seu quadro jurídico e as modificações realizadas para o melhorar, que permitem a prática individual da religião, e enquadram o funcionamento da gestão das comunidades e das associações religiosas. Os agentes do Estado e outros funcionários seguem formações sobre os Direitos do Homem, a tolerância, a não-discriminação e a prevenção de estereótipos; é o caso, em particular, da força pública e dos serviços da polícia e de segurança, em certos países. Alguns Estados têm indicado que não tinha sido assinalado, no país, qualquer caso de segregação religiosa. Alguns Estados têm indicado medidas no plano nacional e internacional para lutar contra o incitamento ao ódio, à xenofobia e à intolerância que lhe está associada na Internet, e para reforçar o papel dos media na luta contra os discursos de ódio, a xenofobia e a intolerância que lhe está associada, especialmente na Internet. Os Estados têm geralmente indicado que a Internet era um meio
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de difusão dos discursos de ódio, mas que era também utilizada para tratar de questões ligadas à discriminação baseada na religião ou nas convicções, porque constitui um espaço de troca de expressões, de diálogo, de educação, de gestão do saber e de partilha de informação nas redes, no setor da segurança e nas comunidades. 156. Consultável sob o nº A/HRC/47 no site (em francês) http://www.ohchr.org/EN/ HRBodies/HRC/RegularSessions/Session28/Pages/ListReports.aspx. Luta contra a intolerância, os estereótipos negativos, a estigmatização, a discriminação, o incitamento à violência e a violência visando algumas pessoas, por causa da sua religião ou da sua convicção – Relatório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem, pp. 101-109. 157. Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem.
Extrato do relatório sobre a liberdade de religião ou de crença e a violência em nome da religião Heiner Bielefeldt Conselho dos Direitos do Homem Vigésima oitava sessão Ponto da ordem do dia Promoção e proteção de todos os Direitos do Homem: civis, políticos, económicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao desenvolvimento Relatório do Relator Especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, Heiner Bielefeldt Resumo A violência cometida “em nome da religião”, isto é, sob o fundamento ou sob o pretexto de princípios religiosos, pode dar lugar a violações massivas dos Direitos do Homem, incluindo a liberdade de religião ou de convicção. No presente relatório, o Relator Especial começa por apresentar uma tipologia das diferentes formas de violência cometidas em nome da religião. Depois examina as causas profundas e os fatores que estão na origem desta violência. A mensagem principal que daí ressalta é que a violência em nome da religião não deveria ser entendida como um fenómeno “natural” de atos de agressão coletivos que supostamente refletem hostilidades sectárias existentes desde tempos imemoriais, mas mais como um fenómeno geralmente ligado a fatores e a atores contemporâneos, incluindo a situação política. O Relator Especial recomenda que todas as partes envolvidas, especialmente os Estados, as comunidades religiosas, os promotores de iniciativas de diálogo entre as religiões, as organizações da sociedade civil e os representantes dos media, tomem medidas para travar e depois erradicar o flagelo da violência cometida em nome da religião.
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A. Um fenómeno complexo 3. A violência cometida em nome da religião, ou seja, na base ou no pretexto de princípios religiosos,158 é um fenómeno complexo que existe em diferentes partes do mundo. A brutalidade que caracteriza as manifestações de violência muitas vezes deixa os espectadores sem palavras. Se, em alguns países, a violência em nome da religião é um fenómeno local ou regional, os atos terroristas cometidos a fim de dar tal ou tal mensagem ao mundo multiplicaram-se nos últimos anos. Estes atos bárbaros, à primeira vista “arcaicos”, parecem ser “encenados” de forma cínica para satisfazer o voyeurismo dos meios de comunicação modernos, o que acrescenta ainda outra dimensão ao sofrimento e à humilhação das vítimas e dos seus familiares. 4. A violência em nome da religião pode manifestar-se de formas diferentes: ataques a indivíduos ou comunidades, violência intercomunal, atentados suicidas, terrorismo, repressão das políticas ou leis discriminatórias e outros tipos de comportamento violento. Também pode inscrever-se, a longo prazo, ou numa situação de status e dar origem a formas de violência estrutural justificadas em nome da religião. Os autores dessa violência incluem diferentes tipos de atores não estatais, mas também dos órgãos do Estado, ou, muitas vezes, uma combinação dos dois. Em alguns países, grupos armados invocam a religião para justificar atrocidades, como massacres, execuções extrajudiciais e sumárias, desaparecimentos, atos de tortura, violências sexuais, de ataques indiscriminados contra civis, expulsões em massa, práticas de redução à escravatura ou aniquilação sistemática de determinadas comunidades. Noutros países, grupos de autodefesa assediam as minorias religiosas, profanam os seus cemitérios e lugares de culto, confiscam as suas terras e propriedades, ameaçando a sua segurança. 5. O principal problema que surge em alguns países é a incapacidade do Estado de lutar contra o terrorismo ou a violência dos atores não estatais, enquanto, noutros países, os órgãos do Estado apoiam esta violência, direta ou indiretamente, por exemplo, incentivando o ódio contra as minorias religiosas, ou fazendo vista grossa sobre atos que promovem a cultura da impunidade. Violações dos Direitos do Homem podem, igualmente, ser cometidas diretamente pelo aparelho do próprio Estado, por exemplo, quando um governo recorre a repressão violenta a fim de “defender” uma religião de Estado ou hegemonias religiosas contra supostas ameaças da parte de concorrentes religiosos ou dissidentes internos. A implicação do Estado na violência cometida
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em nome da religião manifesta-se assim, de diversas formas, que vão desde a inação a formas indiretas de cumplicidade ou políticas deliberadas de discriminação religiosa, culminando até, por vezes, em violência formal ou orquestração sistemática de tal violência pelo Estado. 6. A violência em nome da religião visa, particularmente, dissidentes religiosos, os membros de minorias religiosas ou de pessoas convertidas a outras religiões.159 As pessoas suspeitas de ameaçar a coesão nacional também são alvos frequentes da violência e da intolerância. Os atos de violência também tendem a aumentar onde as religiões têm o estatuto de religião “oficial” ou “de Estado” e quando uma religião é usada para definir a identidade nacional. Além disso, grupos de autodefesa, às vezes com o apoio das forças da ordem, agridem fisicamente as pessoas, especialmente as mulheres, cujos estilos de vida são considerados “contrários aos bons costumes” do ponto de vista de alguns códigos religiosos legalistas. 7. No entanto, a violência em nome da religião também pode afetar os seguidores da mesma religião, ou mesmo os da religião maioritária, em cujo nome esses atos são cometidos. Aqueles que lutam para fazer ouvir as vozes de moderação ou criticam a exploração da sua religião para justificar a violência correm um risco acrescido de ser acusados de “traição” ou de “blasfémia”, e suportar represálias. 8. A relação entre a violência e a liberdade de religião ou crença é evidente, uma vez que a violência, em nome da religião, está na origem de um grande número de violações particularmente graves deste direito fundamental, geralmente cometidas em paralelo com outras violações dos direitos humanos. Pela sua natureza, a liberdade de religião ou crença, como um direito fundamental, protege os seres humanos mais do que as religiões. Assim, antes de iniciar uma avaliação do pluralismo religioso, é importante ver como os próprios homens concebem as coisas, sabendo que estas conceções podem ser bastante variadas. (…) Conclusões e recomendações 83. A violência cometida em nome da religião não ocorre acidentalmente, como as catástrofes naturais, e não devem ser interpretadas como a consequência inevitável de guerras religiosas, que remontam, por assim
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dizer, a séculos ou milénios, dando assim a impressão de que não teriam nada que ver com a responsabilidade dos diferentes atores em causa. É importante ir além das atitudes fatalistas que muitas vezes resultam de descrições simplistas do fenómeno. A violência cometida em nome da religião não está enraizada em antagonismos religiosos aparentemente “perpétuos”, mas geralmente é causada por atores e fatores contemporâneos, incluindo circunstâncias políticas, que são um terreno fértil para as sementes do ódio. 84. Seria errado, ao analisar o problema, colocar o foco apenas na religião, mas também seria simplista de mais reduzir as motivações religiosas a simples “pretextos” para os crimes violentos cometidos em seu nome. O que é necessário, é compreender exaustivamente os vários fatores da origem da violência cometida em nome da religião. Esses fatores são, geralmente, a falta de confiança no Estado de direito e no funcionamento correto das instituições públicas; as interpretações estreitas e polarizantes das tradições religiosas, que podem causar um processo de fragmentação social com repercussões negativas importantes nas relações sociais; as políticas deliberadas de exclusão, muitas vezes acompanhadas de políticas de promoção de uma definição restritiva da identidade nacional, e outros fatores; assim como a negação e a impunidade para com flagrantes violações dos direitos humanos e do Direito Internacional Humanitário. 85. Apenas uma análise exaustiva das causas profundas dos problemas permite compreender que uma responsabilidade conjunta incumbe a uma ampla gama de atores na luta contra a violência cometida em nome da religião. Sendo assim, o Relator Especial formula as seguintes recomendações, tendo em vista as diversas partes interessadas. A. Recomendações visando todas as partes interessadas 86. Os representantes do Estado, as comunidades religiosas, as organizações da sociedade civil, os media e outras partes interessadas devem rejeitar e condenar rápida, claramente e de forma audível todos os atos de violência cometidos em nome da religião e o incitamento à violência e à discriminação relacionados na lei e na prática, a fim de lutar contra a
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cultura do silêncio que existe em alguns países. Eles devem agir rapidamente, e em conjunto, para prevenir a violência e pôr-lhe fim. 87. A condenação pública da violência em nome da religião deve ser baseada numa análise suficientemente detalhada do problema, incluindo as suas causas sistémicas. 88. As diferentes partes interessadas devem trabalhar juntas para conter e erradicar a violência em nome da religião, explorando criativamente o espaço que ocupam e o seu respetivo potencial. Também devem cooperar para neutralizar todas as possíveis tentativas de radicalização de combatentes estrangeiros que voltaram para os seus países de origem. B. Recomendações tendo em vista diferentes instituições do Estado 89. Os Estados têm a responsabilidade de proteger as suas populações, quer sejam nacionais ou não, do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e dos crimes contra a Humanidade, bem como do incitamento para cometer esses crimes. 90. A obrigação dos Estados de agir rapidamente para acabar com os atos de violência cometidos em nome da religião contra pessoas, grupos ou locais de culto. A luta contra a cultura do silêncio, onde quer que exista, deve ser uma prioridade, e os autores e os cúmplices de atos de violência devem ser levados à justiça. 91. Os Estados devem preservar a memória de todos os grupos da população e as comunidades religiosas, em particular, nomeadamente através da promoção e da proteção dos arquivos nacionais, dos museus e dos memoriais. 92. Os Estados devem respeitar a liberdade de religião e de crença, bem como todos os outros direitos humanos, ao tomar medidas para conter e combater a violência cometida em nome da religião. 93. Qualquer legislação que torne “ilegal” a existência de certas comunidades religiosas num país, deve ser revogada.
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94. Os Estados devem revogar as leis contra a blasfémia ou a conversão e quaisquer outras disposições discriminatórias do direito penal, incluindo as que se baseiam em leis religiosas. 95. Os Estados devem fornecer dados ventilados sobre a violência cometida dentro das suas respetivas jurisdições, incluindo qualquer motivação religiosa de tais atos. 96. Para ser percebido como um fiador credível da liberdade de religião ou crença, para todos, o Estado não se deve identificar exclusivamente com uma religião ou uma crença particular em detrimento da igualdade de tratamento dos seguidores de outras religiões. Todos os critérios de exclusão devem ser substituídos por um quadro institucional abrangente, no qual a diversidade religiosa pode florescer sem discriminação e sem medo. 97. A legislação para lutar contra a discriminação deve proteger a legalidade de todos no exercício dos Direitos do Homem, para além de clivagens religiosas ou sectárias, e prevenir, ou eliminar, divisões na sociedade. Os Estados devem, em especial, tomar medidas para assegurar que os direitos de todos sejam protegidos e que todos se sintam seguros dentro das suas respetivas religiões ou crenças. 98. Em estreita consulta com todas as partes interessadas, os Estados devem elaborar planos de ação nacionais para a prevenção da violência em nome da religião, bem como outras formas de perseguição religiosa realizadas por órgãos estatais ou não estatais. 99. Os livros escolares não devem conter estereótipos negativos ou preconceitos que podem atiçar a discriminação ou a hostilidade para com um ou outro grupo, incluindo os seguidores de certas religiões ou crenças. 100. Os Estados devem utilizar todos os meios disponíveis, incluindo a educação e a sensibilização da comunidade, para promover uma cultura de respeito, de não-discriminação e de valorização da diversidade em toda a sociedade.
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101. Os Direitos Humanos nacionais são convidados a participar ativamente no Plano de Ação de Rabat sobre a interdição do incitamento ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência, e desenvolver estratégias tendo em vista eliminar as causas profundas da violência cometida em nome da religião. 102. Os Estados devem abster-se de atiçar o extremismo religioso violento noutros países. C. Recomendações visando as comunidades religiosas 103. Quando as comunidades religiosas e os seus líderes se ocupam de um ato de violência cometido em nome da sua religião, devem considerar, entre outras coisas, as motivações religiosas que muitas vezes surgem a partir de interpretações estreitas, polarizadores e patriarcais tradições religiosas. 104. Em situações em que pode ser perigoso denunciar a violência, companheiros crentes, que vivam em ambientes políticos mais seguros, devem emprestar as suas vozes e condenar, claramente, a violência cometida em nome da sua religião. 105. As comunidades religiosas e os líderes devem promover a empatia, o respeito, a não-discriminação e a apreciação pela diversidade. Devem contestar as reivindicações de autenticidade dos extremistas religiosos, mostrando que as suas opiniões refletem a ignorância das mensagens de caridade fundamentais em tradições religiosas. Além disso, devem partilhar com os outros as suas crenças sobre a importância do respeito pelos direitos dos outros, e contribuir para que os direitos de todos sejam respeitados. 106. As comunidades religiosas devem sentir-se encorajadas a lançar iniciativas de comunicação e de cooperação entre as religiões, incluindo a criação de conselhos inter-religiosos. Uma larga representação, incluindo um equilíbrio entre os géneros e a participação de várias gerações, pode permitir que mais pessoas participem ativamente nestas iniciativas.
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D. Recomendações visando organizações da sociedade civil 107. As organizações da sociedade civil devem continuar a recolher informações sobre a situação dos Direitos do Homem e ajudar as pessoas que foram vítimas de intimidação, assegurando o acompanhamento dos seus respetivos casos. 108. As conclusões das organizações da sociedade civil deveriam, de forma mais sistemática, preencher uma função de alerta, particularmente em situações instáveis. 109. A sociedade civil deve continuar a desempenhar um papel para combater a cultura do silêncio perante a violência cometida em nome da religião, e, assim, enviar um sinal de solidariedade para com as pessoas e os grupos-alvo. 110. Organizações baseadas na fé e da sociedade civil secular devem trabalhar em conjunto, em particular através da criação de plataformas comuns, e assim mostrar que um compromisso com os Direitos do Homem pode criar solidariedade além de todas as divisões religiosas, culturais ou filosóficas. 111. Os defensores dos Direitos do Homem que trabalham em situações perigosas merecem especial atenção e apoio das redes encarregadas de os defender. E. Recomendações para os media 112. Em estreita colaboração com as organizações da sociedade civil, representantes dos media devem defender a sua independência, o seu profissionalismo e a sua integridade, e falar dos incidentes violentos, das suas diversas causas e circunstâncias políticas, à sua volta. 113. Os meios de comunicação devem contribuir para uma cultura de debate público essencial, para contrariar os rumores hostis e as histórias assustadoras, e estes últimos devem ser objeto de um reexame público, ou de narrativas contrárias, para impedir que degenerem em verdadeiras teorias da conspiração.
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114. A pesquisa diligente dos factos é o antídoto mais eficaz contra campanhas mediáticas hostis para com as minorias religiosas ou outros grupos. O apuramento dos factos pode também incluir uma análise pública do trauma histórico coletivo. 115. Os meios de comunicação podem ajudar a restaurar a faculdade de empatia, fazendo com que os membros de grupos vítimas de discriminação sistemática tomem consciência de que longe de serem “estrangeiros”, alimentam de facto medos, esperanças e sentimentos muito semelhantes. F. Recomendações visando a comunidade internacional 116. Recorda-se à comunidade internacional a sua responsabilidade de ajudar os Estados no cumprimento da sua responsabilidade de proteger as suas populações contra o genocídio, os crimes de guerra, a limpeza étnica e os crimes contra a Humanidade, e reforçar as suas capacidades nesta área, como o indicam as conclusões da Cimeira Mundial de 2005. 117. Os mecanismos dos Direitos do Homem, incluindo os procedimentos especiais, os órgãos convencionais e o Exame Periódico Universal são encorajados a abordar a questão da violência em nome da religião e do papel do Estado neste tipo de violência. 118. A comunidade internacional deveria considerar os Estados e grupos armados não estatais responsáveis pelos seus atos e torná-los conscientes das suas obrigações perante o Direito Internacional, incluindo os Direitos do Homem, o direito humanitário, o Direito Penal e o direito dos refugiados. http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session28/Pages/ListReports.aspx. 158. Em contrapartida, a violência exercida “por causa da religião ou da convicção” está baseada na filiação religiosa da vítima (ver A/HRC/13/40, par. 33). 159. Consulte A / 67/303, para. 15.
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Recomendação 1202 (1993) sobre a tolerância religiosa numa sociedade democrática160 Conselho da Europa Assembleia Parlamentar 1. A Assembleia já adotou vários textos sobre temas conexos e recorda, em particular, a Recomendação 963 (1983) sobre os meios culturais e educativos de reduzir a violência, a Resolução 885 (1987) sobre a contribuição judaica para a cultura europeia, a Recomendação 1086 (1988) sobre a situação das igrejas e das liberdades religiosas no Leste da Europa, a Recomendação 1162 (1991) sobre a contribuição da civilização islâmica para a cultura e a Recomendação 1178 (1992) sobre seitas e novos movimentos religiosos. 2. E também vale a pena mencionar a audiência de tolerância religiosa, organizada pela Comissão da Cultura e da Educação, em Jerusalém, a 17 e 18 de março de 1992, e o Simpósio comemorativo do 500º aniversário da chegada dos refugiados judeus à Turquia, que foi realizada a 17 de setembro de 1992, em Istambul. 3. A religião fornece ao indivíduo uma relação enriquecedora consigo mesmo, com o seu Deus, com o mundo exterior e com a sociedade em que vive. 4. Mobilidade na Europa e os movimentos migratórios para a Europa sempre resultaram no encontro de diferentes visões do mundo, crenças religiosas e conceções de existência. 5. Esta reunião entre as diferentes crenças religiosas pode levar à compreensão e maior enriquecimento mútuo, mas também pode reforçar o separatismo e incentivar o fundamentalismo. 6. A Europa Ocidental preparou um modelo de democracia secular no seio do qual uma variedade de crenças religiosas é, em princípio, tolerada. A História tem mostrado, porém, que tal tolerância é também possível sob um regime religioso (por exemplo, a de Árabes em Espanha e do Império Otomano).
Recomendação 1202 (1993) sobre a tolerância religiosa
7. O ressurgimento da xenofobia, do racismo e da intolerância religiosa em muitos países é preocupante. 8. A religião muitas vezes reforça, ou é usada para reforçar, os conflitos internacionais, sociais e das minorias nacionais. 9. Na Europa de hoje, existe uma clara crise de valores (ou melhor, uma ausência de valores). A pura sociedade de mercado tem-se revelado como inadequada, como foi o Comunismo para o bem-estar individual e a responsabilidade social. O recurso à religião como uma alternativa, no entanto, deve ser conciliado com os princípios de democracia e os Direitos do Homem. 11. Dadas as tendências sociais atuais e futuras e os princípios de natureza a originar a tolerância e o respeito mútuo entre os seguidores de uma outra crença ou dos não crentes, cada ser humano é considerado como a criação do Deus único e é só como tal que pode pretender a mesma dignidade e os mesmos direitos, independentemente das suas convicções. 12. A questão da tolerância religiosa deve conduzir a uma reflexão mais aprofundada. Convém incitar as três religiões monoteístas a colocarem a ênfase mais sobre os valores morais fundamentais da tolerância, por essência, semelhantes. 13. A história europeia mostra que a coexistência de Judeus, Cristãos e Islâmicos, quando se baseia no respeito e na tolerância mútuos, contribui para a prosperidade das nações. 14. Devemos reafirmar a importância universal da liberdade religiosa consagrada no Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e garantida no artigo 9 da Convenção Europeia sobre os Direitos Homem. Esta liberdade está enraizada na dignidade do ser humano, e a sua implementação supõe a instauração de uma sociedade livre e democrática. 15. O Estado laico não deve impor quaisquer obrigações religiosas aos seus cidadãos. Deve, também, incentivar o respeito de todas as comunidades religiosas reconhecidas e facilitar as suas relações com a sociedade como um todo.
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Assembleia Parlamentar
16. A Assembleia recomenda ao Conselho de Ministros que convide os governos dos Estados-Membros, a Comunidade Europeia e as autoridades e organizações competentes: Proteções jurídicas e as suas aplicações i. A garantir a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de culto, com especial referência para os direitos contidos no parágrafo 10 da Recomendação 1086 (1988) da Assembleia. ii. A ser flexível na aceitação de diferentes práticas religiosas (em termos de vestuário, alimentos e observância de dias santos, por exemplo). Educação e intercâmbios iii. A garantir que os estudos sobre as religiões e a moral figuram nos programas escolares, e esforçar-se por obter uma apresentação diferenciada e cuidadosa das religiões nos livros escolares (incluindo livros de História) e a fim de melhorar e aprofundar o conhecimento das diferentes religiões. iv. A enfatizar que o conhecimento da própria religião, ou os seus próprios princípios éticos, é um pré-requisito para a verdadeira tolerância e também pode servir como um baluarte contra a indiferença ou os preconceitos. v. A organizar uma “conferência do manual escolar da História das Religiões”, que reúna uma seleção representativa de teólogos, historiadores e filósofos, para preparar textos de base, documentos e comentários para os estabelecimentos escolares. vi. A garantir que as ideias e as ações de indivíduos que vivem diferentes obediências religiosas, sejam colocadas perante os jovens como exemplos concretos de tolerância religiosa. vii. A facilitar, no quadro da estrutura dos programas para estudantes do ensino secundário, estudantes universitários e outros jovens, reuniões e discussões com pessoas informadas de diferentes crenças existentes. viii. A considerar dotar de meios análogos as escolas religiosas de todas as confissões reconhecidas.
Recomendação 1202 (1993) sobre a tolerância religiosa
Informação e sensibilização ix. A cuidar que os textos religiosos fundamentais e as obras conexas sejam traduzidos e colocados em bibliotecas públicas. x. A realizar projetos culturais relacionados com assuntos religiosos no quadro de programas de promoção da cultura. Pesquisa xi. A facilitar o estabelecimento na Europa de uma rede de institutos de pesquisa responsáveis por: – Reunir, analisar e avaliar a literatura sobre a tolerância religiosa. – Implementar um serviço de informação dotado de uma boa seleção dessas obras. – Organizar workshops e conferências de investigação sobre a tolerância religiosa. – Informar o público de forma competente e autorizada. xii. estimular nas universidades europeias os trabalhos (seminários, cursos de pós-graduação, teses de doutoramento) sobre questões relacionadas com a tolerância religiosa. 160. Texto aprovado pela Assembleia, a 2 de fevereiro de 1993.
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Declaração escrita da AIDLR apresentada ao Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas Liviu Olteanu Este texto é uma tradução do original publicado em Inglês Conselho dos Direitos do Homem Vigésima Oitava Sessão Ponto 3 da ordem do dia Promoção e proteção de todos os Direitos do Homem, civis, políticos, económicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao desenvolvimento Exposição escrita* apresentada pela Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, uma organização não-governamental detentora de um estatuto consultivo especial O Secretário-Geral recebeu a seguinte exposição, distribuída de acordo com a Resolução 1996/3 do Conselho Económico e Social (16 de fevereiro de 2015)
*Exposição escrita, publicada tal e qual, na(s) língua(s) recebida(s), ou pela(s) organização(ões) não governamentais, sem ter sido formalmente revista pelos serviços de edição.
Declaração escrita da AIDLR
Unidos para a liberdade, a paz a segurança e contra a violência e o terrorismo perpetrado em nome da religião - Fórum Congresso Mundial sobre a liberdade I. Felicitações e introdução Sr. Presidente, Antes de mais gostaria de o felicitar, Sr. Joachim Rücker, pela sua eleição para este cargo tão importante como é o de Presidente do Conselho dos Direitos do Homem (CDH). Nono ciclo (2015). Como disse, está “perfeitamente consciente de ter de assumir a obrigação do Conselho de ajudar a promover e a proteger os direitos e as liberdades fundamentais do Homem, que são universais, indivisíveis, ligados, interdependentes e que se reforçam mutuamente”.161 O CDH muito contribui, juntamente com o Alto Comissariado para os Direitos do Homem (OHCHR) para a paz mundial. Além disso, gostaria de expressar todo o meu apreço pelo trabalho do Alto Comissariado para os Direitos do Homem, príncipe Zeid Ra'ad Zeid al-Hussein, pela “prevenção dos direitos humanos, assegurando o cumprimento de todos os Direitos do Homem, promovendo a cooperação internacional para proteger os Direitos do Homem”.162 Como disse Rücker, nós – a AIDLR – estamos profundamente convencidos de que é “vital unir os nossos esforços aos do Alto Comissariado para os Direitos do Homem” e aos de outras organizações, tais como a União Europeia, o Conselho da Europa, a OSCE, a OIC, para promover a paz mundial, o desenvolvimento, a dignidade e a segurança do Homem. Nesta altura em que, para utilizar as palavras do Sr. Zeid, “o mundo está confrontado com um número crescente de crises simultâneas”, estamos convencidos de que “a cooperação entre os atores dos Direitos Humanos, à escala internacional, regional e nacional, é absolutamente necessária para todos nós podermos ter um impacto maior …”.163 O que nos parece fundamental, e em que nos unimos ao Professor Bielefeldt, Relator Especial sobre a Liberdade de Religião ou Convicção, é que “temos necessidade de coordenação entre todas as partes interessadas”. Estou certo de que a energia, a determinação e a sabedoria
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dos Srs. Rücker e Zeid vão permitir unir toda a competência e vontade dos diferentes intervenientes, incluindo a sociedade civil e as ONGs internacionais, para defender os Direitos do Homem para todos, em todos os lugares. Excelências, O meu nome é Liviu Olteanu e sou o Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Agradeço a Vossas Excelências, os representantes permanentes de todo o mundo nas Nações Unidas, por todos os esforços, a fim de defender os Direitos do Homem, para promover a paz e a segurança, para impedir o terrorismo, a discriminação e a perseguição em nome da religião ou em conexão com a liberdade religiosa ou mesmo o direito de se expressar, à escala internacional e regional. A AIDLR condena veementemente todos os atos de violência e terrorismo, discriminação e perseguição de Cristãos, Judeus, Muçulmanos, Budistas, Hindus, Ateus, etc., qualquer que seja o lugar onde ocorre uma tragédia: seja nos Estados Unidos em setembro de 2001, ou mais tarde, em Madrid, em Londres, em Bali ou na Austrália, particularmente nos últimos anos no Iraque e na Síria, no Quénia, no Paquistão, em Paris, em Baca Nigéria, onde foram mortos 2000 Cristãos, ou mesmo na Dinamarca ou na Líbia. Parto do princípio de que todos os participantes da 28ª sessão do CDH, na primavera de 2015, prefeririam saber que o nosso mundo não conheceria mais violência nem terrorismo. Cada pessoa é única, cada vida é importante e deve ser protegida. Estamos muito preocupados por ver como a intolerância e a discriminação atingiram, no século XXI, um grau de gravidade inimaginável e sem precedentes. Estamos convencidos de que o respeito pela dignidade de cada pessoa, a proteção dos Direitos Humanos e do Direito Internacional e da liberdade religiosa, vivida por cada um de acordo com a sua própria consciência, ou mesmo o direito de todos se expressarem livremente, sem medo, deve representar para a comunidade internacional (ONU, UE, COE, OSCE, OIC) não só uma prioridade, mas também uma emergência; o respeito pela vida e pela dignidade de cada pessoa requer vigilância e empatia comum com aqueles que sofrem – crianças, mulheres de qualquer idade, jovens e adultos, independentemente da sua cultura, cor, origem, educação, etc.. Nós amamos a diversidade e a cultura do respeito e devemos fazer tudo para implementar o diálogo intercultural e inter-religioso. A AIDLR adere à resolução 2170 (2014) do Conselho de Segurança da ONU (SC): “Reafirmando que o terrorismo em todas as suas formas, e em todas
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as suas manifestações, constitui uma das ameaças mais graves contra a paz e a segurança internacional”, “Insistindo no facto de que o terrorismo apenas pode ser derrotado pelo apoio e por uma abordagem envolvendo a participação ativa e a colaboração de todos os Estados e organizações internacionais e regionais”. Há uma série de valores universais da Declaração Universal dos Direitos do Homem que goza de uma aceitação internacional: a justiça, a solidariedade, a liberdade e a tolerância. Mas há uma diferença entre a adesão a esses valores e a forma como realmente são vividos. II. Propostas da AIDLR para alcançar uma compreensão autêntica, da liberdade e da paz 1. Insistir no respeito pelas diferenças, das minorias religiosas e na defesa da justiça, da democracia e da lei A defesa da justiça é hoje um desafio. Uma das grandes dificuldades é reconciliar a identidade cultural e o respeito pelas diferenças numa sociedade onde coexistem convicções e culturas. 2. Empregar esforços, tendo em vista objetivos comuns A pedagogia em matéria da paz, do respeito e da não-violência repousa numa educação cheia de esperança e no crescimento da liberdade. 3. Evitar princípios e divergências que se prestem à confusão Os Direitos do Homem foram distorcidos para servir princípios que se prestam a confusão e são interpretados com base em ideologias individualistas e arbitrárias. 4. Dignidade, diferenciação e direitos morais e fundamentais Ser uma pessoa é o que dá ao Homem a sua dignidade específica e o facto de não ser permutável por dinheiro. Os seres humanos são todos diferentes: pela comunidade política a que pertencem, pela sua religião, pela sua origem cultural, a par de inumeráveis fatores que fazem deles pessoas por inteiro. 5. Multiculturalismo e saber viver na diferença O multiculturalismo exige que seja ensinado COMO viver com as diferenças. Todos precisamos de desenvolver uma compreensão mais profunda das ideias religiosas e filosóficas de outras culturas. A AIDLR pede insistentemente
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a instauração de uma educação intercultural. É necessário estabelecer comunicação e interação entre todas as culturas sem apagar a identidade específica de cada uma delas. 6. Tomar medidas judiciosas em matéria de comunicação e interação entre as culturas e as religiões É fácil acreditar que se é tolerante, pelo facto de sermos indiferentes. Se eu não conheço os pensamentos, as emoções e as esperanças do outro, não posso conhecê-lo ou respeitá-lo. Os homens podem alegrar-se por existirem juntos na sua igualdade e nas suas diferenças e enriquecer-se mutuamente com essas diferenças. De acordo com um comunicado da UNESCO: se quisermos paz, devemos lembrar-nos de que: * As comunidades religiosas têm de assumir a responsabilidade pela adoção de atitudes caracterizadas pela sabedoria, pela compaixão, pelo caminho da partilha, pela caridade, pela solidariedade e pelo amor. Devem inspirar-se umas às outras no caminho da liberdade e da responsabilidade. As religiões devem ser uma fonte de energia criativa. * Devemos partir do princípio de que as religiões não devem ser identificadas com qualquer poder político, económico ou social para se poder ser livre de agir para a justiça e para a paz. * Devemos promover a paz, opondo-nos a quaisquer tentativas da parte de indivíduos, de comunidades e de religiões que poderiam pensar, ou até mesmo ensinar, que eles são inerentemente superiores aos outros. * Temos de promover o diálogo e a harmonia entre as religiões e dentro de cada religião. * Enquanto enraizados na nossa fé, queremos construir uma cultura de paz baseada na não-violência, na tolerância, no diálogo, na compreensão mútua e na justiça… Apelamos às diferentes religiões e tradições culturais para unirem as suas forças e contribuírem connosco para espalhar a mensagem de paz. A AIDLR pede insistentemente à comunidade internacional, aos países muçulmanos, a todas as delegações da ONU, às ONG internacionais, que condenem fortemente o ódio religioso, a intolerância, qualquer tipo de discriminação religiosa, de perseguição, de terrorismo e de crimes contra os Cristãos, Judeus, Muçulmanos e outras comunidades religiosas e minorias religiosas.
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A AIDLR pede insistentemente à comunidade internacional para agir com urgência, com firmeza e concertação. A AIDLR insiste na necessidade de uma empatia internacional face às crises pelas quais passa o Outro, seja ele qual for. As grandes audiências tendem a olhar mais concretamente para as suas crises nacionais. III. Fórum Mundial sobre a liberdade e a tolerância Excelências, A AIDLR deseja organizar aqui em Genebra, na ONU, um FÓRUM/ CONGRESSO MUNDIAL SOBRE A LIBERDADE E A TOLERÂNCIA. Queremos insistir na necessidade da cooperação e da coordenação para desenvolver um novo horizonte contra qualquer tipo de violência e de terrorismo e promover o diálogo intercultural, a situação das minorias religiosas, a segurança e a paz. Agradecemos às delegações da ONU e aos outros organismos internacionais e especialistas dos Direitos do Homem e da liberdade religiosa pelo seu apoio e gostaria de convidar todas as delegações das Nações Unidas para se juntarem a nós como parceiros e copatrocinadores, fornecendo apoio político a este Fórum Mundial sobre a tolerância, que vamos organizar na medida do possível em maio ou junho deste ano, com os responsáveis políticos da ONU, da UE, do Conselho da Europa, da OSCE, da OCI, e com uma forte participação de universitários, de diplomatas, de homens políticos, de responsáveis e de participantes vindos da sociedade civil. A AIDLR já organizou manifestações internacionais na universidade Complutense em Madrid, em janeiro de 2014, e por ocasião da 26ª sessão do CDH, com participantes nacionais e internacionais. Desta forma, queremos e podemos contribuir para criar um mundo de paz para todos nós, e para as gerações futuras. Obrigado, Senhor Presidente. Obrigado, Excelências. 161. http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplyNews.aspx?NewsID=15423&LangID=E#sthash.MLm3BamY.dpuf. 162. http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=48064#.VOQcGsZDbUQ. 163. http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=15563&LangID=E#sthash.meTKFmBn.dpuf.
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Declaração oral apresentada pela AIDLR na 28ª sessão do Conselho dos Direitos do Homem, da ONU, no quadro debate geral Liviu Olteanu Senhor Presidente do Conselho dos Direitos do Homem da ONU, Senhor Alto Comissário das Nações Unidas dos Direitos do Homem, Senhor Relator Especial sobre a Liberdade de Religião ou Crença, Excelências, Minhas Senhoras e meus Senhores, Quero começar por felicitar o Senhor Joachim Rücker, pela sua eleição como Presidente da CDH para 2015, e desejo endereçar a si, a toda a sua equipa e a todos os membros do CDH os meus votos de sucesso, em nome dos Direitos do Homem. Também quero felicitar o príncipe Zeid Ra'ad Zeid al-Hussein, pela sua nomeação como Alto Comissário dos Direitos do Homem das Nações Unidas e pelo excelente trabalho que está a realizar à escala mundial, e gostaria de expressar o meu apreço ao Relator Especial pelo seu relatório, uma fonte de informação clara e bem orientada, que destaca a complexidade da questão da violência em nome da religião, proporcionando boas recomendações. Nesta sala (XX) do Palácio das Nações Unidas, representantes eminentes de muitos países – Ministros dos Negócios Estrangeiros e Embaixadores – deram contribuições específicas e valiosas no início da 28ª sessão do CDH (02-06/03/2015), incluindo no que se refere à violência e ao terrorismo em nome da religião. Hoje ainda pudemos ouvir S. Excelências em intervenções extremamente interessantes e de uma grande pertinência. Os intervenientes colocaram a ênfase sobre a perseguição sofrida por minorias, o surgimento do EI, do Boko Haram e sobre a sua ideologia e os atos de extremismo e de terrorismo violento em nome da religião. Todos os oradores
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reiteraram o seu compromisso em ajudar a combater o terrorismo e garantir, ao mesmo tempo, o respeito pelos Direitos do Homem. Alguns países, como a Alemanha, a Áustria, a Letónia, a Eslovénia, o Reino Unido, a Suécia, o Japão, os Camarões, os Estados Unidos ou ainda a UE, descreveram a realidade atual em termos de Direitos do Homem com expressões como: tempos difíceis, violência e crueldade inaudita, ameaças e atrocidades, brutalidade, vítimas de crime, o extremismo, o radicalismo, violações dos Direitos do Homem, perseguição das minorias, e mencionaram os países nos quais se produzem graves violações dos Direitos do Homem: Síria, Iraque, Nigéria, Sudão, Coreia do Norte, Sudão do Sul, Ucrânia, etc.. As nossas felicitações vão para todas as missões da ONU, que, na sua argumentação, se pronunciaram claramente contra qualquer ameaça, discriminação, violência e terrorismo e em favor da tolerância, da cultura do diálogo, da dignidade do ser humano, da liberdade religiosa e da liberdade de expressão. Segundo a Alemanha: “Devemos questionar-nos criticamente como um tal pensamento medieval foi capaz de recuperar o terreno no início do século XXI e precisamos de trazer 'respostas claras e inequívocas'.” A Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Federica Mogherini: “A resposta que damos deve ser firme e resoluta, mas também deve ir com uma atitude de diálogo com educação, a promoção do pluralismo e o respeito pela liberdade de religião e crença.” A Noruega: “O mundo deve velar pelo respeito do direito fundamental à liberdade de expressão e liberdade de religião, deve proteger as minorias e combater todas as formas de discriminação e deve opor-se a qualquer tentativa de recuperar os valores ditos tradicionais ou religiosos para justificar a discriminação.” A Bélgica: A liberdade de expressão, dos media, de religião ou convicção é a resposta ao extremismo e à radicalização. A Santa Sé: O respeito pela dignidade de cada ser humano. A Irlanda: “A comunidade internacional deve fazer face às ameaças globais que se apresentam na hora atual sobre os Direitos do Homem, através de um envolvimento comum que será enraizado nos valores do pluralismo, da tolerância, da igualdade, da justiça e, acima de tudo, do reconhecimento da universalidade dos Direitos do Homem.” A Tunísia: “A prática religiosa fora de todo o extremismo e do radicalismo, reconhecendo a liberdade de convicção e de consciência, os valores da moderação e da tolerância.”
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A Suíça: “A tolerância e a aceitação da diferença dão a sua força à nossa sociedade aberta e liberal.” A Polónia: “A liberdade de expressão não deve ser invocada para entravar outros direitos do Homem, incluindo a liberdade de religião. A cultura do diálogo deve prevalecer.” A Sérvia: “A ascensão do terrorismo, a intolerância religiosa, o discurso de ódio, as restrições à liberdade de expressão mostraram claramente como é necessária uma cooperação global reforçada”. A Finlândia: “Devemos mostrar tolerância zero contra o racismo, o antissemitismo e a islamofobia.” A República Checa: “O medo nunca deve levar a renunciar à liberdade de expressão … ou de religião e convicção.” A Arménia: “É urgente que a comunidade internacional se concentre sobre o assunto e atue.” A OCI: “É necessário lutar contra a violência e a discriminação baseada na religião, tornando-se também na prioridade da comunidade internacional.” O Reino Unido: “O conjunto dos desafios com os quais todos nós somos confrontados à escala mundial: a perseguição das minorias no mundo, o surgimento do EI e a sua terrível ideologia extremista violenta.” Portugal: “É também essencial garantir a liberdade de religião e convicção e combater todas as formas de discriminação e intolerância religiosa.” O Qatar: “O terrorismo é um ato que não deriva de qualquer religião e que é rejeitado por todas as grandes culturas e princípios da Humanidade.” A Roménia: “A ação da comunidade internacional é mais do que nunca necessária. O nosso primeiro objetivo deve ser o de proteger e defender o povo em nome da paz e de uma vida digna.” A Espanha: “As sociedades devem lembrar-se de que a universalidade dos Direitos do Homem tem colocado o Homem no centro de todos os esforços.” Os Estados Unidos: “O Conselho dos Direitos do Homem poderia desempenhar um papel crucial no desenvolvimento da resposta global a dar a situações em que as violações dos Direitos do Homem atingiram dimensões surpreendentes.” A Dinamarca: “Todos nós somos Charlie em solidariedade para com as vítimas de um crime horrível em Paris … ou as vítimas de um ataque similar em Copenhaga.” Mas é preciso acrescentar: no 11 de setembro, todos nós éramos Americanos, e em 2004 ou 2007, fomos todos os habitantes de Madrid,
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Londres, Bali ou da Austrália. Nos últimos anos, temos sentido e ainda sentimos empatia e solidariedade para com as vítimas da Síria e do Iraque, das vítimas do Quénia, das crianças mortas no Paquistão, com Baca Nigéria, onde 2000 pessoas foram mortas no mesmo período dos acontecimentos de Paris; com as vítimas da Líbia e da Ucrânia, etc.. De acordo com o Relator Especial sobre a Liberdade de Religião ou Convicção, Heiner Bielefeldt, “o principal problema, num certo número de países, tem sido o fracasso do Estado em combater o terrorismo e a violência, que são, de facto, os atores civis, enquanto alguns organismos estatais noutros países apoiam tal violência direta ou indiretamente, por exemplo, instigando o ódio contra as minorias religiosas ou tolerando a violência. As vítimas de violência vêm de todas as religiões ou convicção e incluem membros das principais comunidades 'tradicionais', mas também de seguidores de pequenos ou novos movimentos religiosos e que são muitas vezes estigmatizados como 'seitas'. O flagelo da violência em nome da religião torna essencial uma ação concertada por parte dos Estados, das comunidades religiosas e de fé, das iniciativas inter-religiosas, da sociedade civil e dos meios para conter e, finalmente, jugular este fenómeno. Os atos de violência não podem ser atribuídos à religião em si mesma ou a qualquer religião específica. É da maior importância superar a tradição do silêncio face aos ataques violentos.” A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa está profundamente convencida de que os atores públicos, os responsáveis religiosos, os professores e a sociedade civil devem pronunciar-se, em alto e bom som, contra todos os atos de violência cometidos em nome da religião, não só nas sessões de CDH (28e, 29e, 30e), mas sempre que a violência irrompa em qualquer lugar e que todos os intervenientes devem promover a tolerância, o respeito pela diversidade e a empatia não só quando a tragédia se dá no nosso país, mas também em outros lugares no mundo. “A liberdade de religião ou convicção não pode prosperar sem liberdade de expressão e a liberdade de expressão não é possível sem potenciais limites. Pode haver situações em que o Estado deve impor restrições para proteger certas minorias contra sugestões de ódio religioso que incitem à discriminação, à hostilidade ou à violência”, disse o Relator Especial, Heiner Bielefeldt, no seu relatório. A este respeito, o historiador britânico Timothy Garden Ash lembra que “a liberdade de expressão não é o meio de todos poderem dizer o que quer que seja, em qualquer lugar, quando lhes apetecer e lembra como este debate pode ser explosivo. O respeito pelos outros, que vivem juntos em paz, envolve
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a criação dos seus próprios limites, e estar ciente do que pode ser dito ou não em público”.164 Na verdade, é absolutamente necessário que o Estado se veja na obrigação de proteger o direito fundamental da liberdade de religião ou crença, e liberdade de expressão para todos. Ao mesmo tempo, tendo o desejo de construir uma sociedade pacífica, unida pelo respeito mútuo e pela tolerância, estou convencido de que a família, a escola, a religião desempenham um papel importante sobre a formação e a educação das crianças, dos jovens e dos adultos e que a influência dos líderes religiosos é predominante. O melhor antídoto contra o discurso de ódio é claramente um maior número de discursos num espírito de apoio e respeito. O Príncipe Zeid, Alto Comissário para os Direitos do Homem da ONU, sublinha o ponto seguinte: “O mundo precisa de um Alto Comissário para os Direitos do Homem que seja forte, resistente e capaz de agir rapidamente para evitar violações dos Direitos do Homem ou reagir quando isso ocorre … Numa época de crescente preocupação em todo o mundo, acho que as pessoas têm uma necessidade urgente de uma liderança orientada pela reflexão, à altura dos desafios que enfrentamos.” Fórum Mundial sobre a liberdade Sr. Presidente, A AIDLR sente-se honrada por se poder juntar à nobre assembleia do CDH e pronuncia-se, resolutamente, a favor da defesa dos Direitos do Homem, incluindo os relacionados com a liberdade de religião, de consciência e de expressão, e a promoção desses direitos por meio da educação, e a formação, a aprendizagem do respeito pela diversidade, organização ou participação em eventos internacionais. A AIDLR propõe, também, por ocasião dos 70 anos da Carta das Nações Unidas (1945-2015) eventos internacionais sobre os Direitos do Homem e uma coordenação eficaz de todos os atores no mundo – à escala internacional, nacional e regional – na luta contra todas as formas de discriminação, violência e terrorismo em nome da religião, que afetam sobretudo as minorias religiosas, e também pede às missões da ONU que concedam grande apoio e recursos suficientes para o trabalho do Relator Especial sobre a Liberdade de Religião ou Convicção, o Professor Heiner Bielefeldt. Gostaria ainda de colocar uma questão ao Alto Comissariado para os Direitos do Homem e ao Relator Especial sobre a Liberdade de Religião ou
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Convicção: Senhor Alto Comissário para os Direitos do Homem, príncipe Zeid, Professor Bielefeldt, não pensam que as organizações da sociedade civil, as ONG, não deviam estar acantonadas num papel de recolher informações sobre situação dos Direitos do Homem ou superar uma cultura do silêncio, mas que também deveriam ser encorajadas no seu papel de mediadoras e artesãs da paz, convidadas a colaborar com os governos, desfrutando de apoio político (até mesmo copatrocinadores) por ocasião das manifestações sobre os Direitos do Homem, o que permitiria promover o papel da sociedade civil na cena internacional? Obrigado, Sr. Presidente. 164. Yael Ohana, editor, T-Kit Youth transforming conflict, Conselho da Europa e Comissão Europeia, 2012, reeditado em 2014 pelas edições do Conselho da Europa, Estrasburgo, p. 23.
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As Nações Unidas asseguram-se do apoio dos chefes religiosos e dos jovens nos seus esforços contra o extremismo violento165 Ban Ki-moon Esta semana, a ordem do dia das Nações Unidas foi sobre o mau uso da religião para atrair os jovens para o terrorismo e o extremismo violento. Chefes religiosos e jovens de todo o mundo participaram neste evento.166 “Numa época em que vemos tanta divisão e tanto ódio, quero reunir as pessoas sob a bandeira das Nações Unidas para explorar as melhores maneiras para responder a este facto”, declarou na quarta-feira o Secretário-Geral Ban Ki-moon, a mais de uma dúzia de líderes religiosos que participaram do evento, representando o Budismo, o Cristianismo, o Islão, o Judaísmo, e outras religiões. Este encontro de dois dias, intitulado “Promover a tolerância e a reconciliação: para encorajar sociedades pacíficas e inclusivas e lutar contra o extremismo violento”, era também dirigido pelo presidente da Assembleia-Geral, Sam Kutesa, e Nassir Abdulaziz al-Nasser, Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança de Civilizações. “Estou preocupado com a falta de empatia do nosso mundo de hoje. As pessoas desviam os olhos do que acontece aos outros”, observou Ban Ki-moon. “Não devemos perder de vista a nossa humanidade comum, nem o nosso dever comum de reagir.” Dirigindo-se aos representantes dos Estados-membros e das religiões do mundo, Ban destacou que as Nações Unidas, que celebram o seu 70º aniversário, nasceram das cinzas da Segunda Guerra Mundial para apoiar a dignidade e o valor humano, a tolerância e a igualdade. Mas esses valores “são desprezados pelo terrorismo e os extremistas violentos desejosos de impor as suas visões deformadas e ideologias falidas”, continuou o Secretário-Geral. “Não é a religião que é a causa da violência; são as pessoas”, sublinhou Ban Ki-moon, fazendo especificamente referência às atrocidades cometidas pelo Daesh, o Boko Haram, Al Shahaab e Al Qaeda.
As Nações Unidas asseguram-se do apoio dos chefes religiosos
Os atos racistas e os discursos de ódio também são exemplos de extremismo violento e de preconceitos contra qualquer pessoa que tenha uma fé, uma História e uma cultura diferentes. “Eu apelo à vossa sabedoria e à vossa direção”, declarou Ban aos líderes religiosos, enfatizando que estão na linha de frente nas suas comunidades, e que podem ver em ação as forças da radicalização e da intolerância. “Peço-vos que usem a vossa influência espiritual e moral para contrariar o seu discurso, tomando partido pela moderação e pela compreensão mútuas”, acrescentou Ban. Também observou que “esperamos dos nossos líderes religiosos que sejam corajosos e que advirtam os seus seguidores logo que se apercebam de algo moralmente errado”. O Secretário-Geral declarou que no final deste ano iria apresentar um Plano de Ação das Nações Unidas para a Prevenção do extremismo e que se tinha também comprometido em formar um comité consultivo de líderes religiosos e outros, sobre como promover o diálogo como um antídoto para as tensões sectárias. “Devemos perguntar-nos: O que é que atrai na ideologia extremista?”, disse ele, interrogando-se sobre o apelo do extremismo violento, para recrutar especialmente jovens, mas também, cada vez mais, mulheres. Na quinta-feira, o Conselho de Segurança abordou esta questão com vista a um papel que os jovens podem desempenhar para combater o extremismo violento e promover a paz. Os debates do Conselho foram presididos pelo príncipe Al Hussein Bin Abdullah II da Jordânia, que, com 20 anos, se tornou na pessoa mais jovem a presidir uma reunião do Conselho de Segurança. É a Jordânia que atualmente detém a presidência rotativa do Conselho de Segurança. “Como jovens, que são mais sensíveis à situação atual e às suas consequências, também podem exercer a maior influência sobre o presente e o futuro”, declarou o príncipe herdeiro no seu discurso de abertura, alegando ser ele próprio “um jovem que faz parte desta geração”. Ressaltou que, se os jovens são muitas vezes considerados como um segmento marginalizado da sociedade, eles são realmente um grupo-alvo pelo “seu potencial, pela sua confiança em si mesmos e pela sua capacidade de mudar o mundo, que são consideráveis”. O príncipe herdeiro declarou que a comunidade internacional foi lançada “numa corrida para conquistar os corações e as mentes dos jovens, bem como as suas capacidades”, antes de as ideologias das trevas fornecerem uma voz que pode chegar a qualquer ouvido disposto a ouvir.
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Ban Ki-moon
Mais de metade da população mundial é de 30 anos ou menos, a maioria a viver em países em desenvolvimento. A partir dos números fornecidos pelas Nações Unidas, os jovens têm três vezes mais probabilidade do que os adultos de serem confrontados com o desemprego, e 73 milhões de jovens em todo o mundo estão atualmente à procura de um emprego. Fatores como a pobreza, o desemprego e a ausência de educação, especialmente quando combinados com os modernos meios de comunicação, são fatores explorados por combatentes extremistas violentos. No seu discurso, Ban Ki-moon sublinhou que os jovens são o coração da paz e da segurança internacionais, e representam “uma promessa, não uma ameaça”. “Enquanto alguns jovens cometem atos de ódio e violência, a esmagadora maioria deles anseia pela paz, especialmente em situações de conflito”, observou ele. No entanto, os jovens são muitas vezes aqueles que são apontados nos casos de abuso cometidos contra os Direitos do Homem, como as filhas Chibok da Nigéria, os estudantes mortos em Garissa, no Quénia, ou os massacres pelos talibãs em Peshawar, Paquistão. Ban Ki-moon, aprovando a declaração do seu Enviado para a Juventude, Ahmad Alhendawi, que disse que os jovens conduzem à mudança, mas não ocupam o lugar do condutor, declarou que chamava os jovens a terem uma “licença” para conduzir o futuro. “Os jovens sofrem nas linhas de frente da guerra; mas raramente estão nas salas onde se realizam as conversações de paz”, declarou Ban Ki-moon. “Convido os jovens a sentarem-se à mesa das negociações. Eles pagam um alto preço na luta, e merecem contribuir para o processo de cura.” As Nações Unidas elaboram um plano de ação abrangente para prevenir o extremismo violento que pretende envolver e valorizar os jovens. Espera-se que este plano seja apresentado à Assembleia-Geral no final do ano. Este plano foi preparado com o apoio da Equipa especial da luta contra o terrorismo (CTITF, Counter-Terrorisme Implementation, Task Force) e do Centro de Contraterrorismo das Nações Unidas (UNCCT), que faz parte do Departamento de Assuntos Políticos (DPA). O seu diretor, Jehangir Khan, afirmou que a ênfase que foi colocada sobre o contra-terrorismo se orienta, cada vez mais, para uma política de prevenção mais integrada. (Encontram mais detalhes sobre a prevenção do extremismo violento pelas Nações Unidas, no seguinte endereço: http://t.co/fzlLQzW5k6.)
As Nações Unidas asseguram-se do apoio dos chefes religiosos
165. Ver original em Inglês, http://un-dpa.tumblt.com/post/117196340239/un-enlists-faith-leaders-youth-in-its-efforts-to. 166. Acontecimento a 21-22 de abril de 2015, nas Nações Unidas (NY), sobre o tema: “Promoção da tolerância e da reconciliação: favorecer sociedades pacíficas, inclusivas, e lutar contra o extremismo violento.”
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