A difamação das religiões e a liberdade religiosa
CONSCIÊNCIA E
LIBERDADE 2011
CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
A difamação das religiões e a liberdade religiosa
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ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 (0)31 359 1527 E-mail info@aidlr.org - Fax +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Comité de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia da Laicidade na EPHE, Paris, França Bert B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001
Consciência e Liberdade Nº 23 – Ano 2011
Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Sede da Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 315 09 19
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© Novembro/2011 – Consciência e Liberdade Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os Tiragem: 750 exemplares documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos Inscrição na E.R.C. nº 106 816 autores. Não representam neces-sariamente a opinião da Associação Internacional para a Depósito Legal: Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial. ISSN 0874-2405 Execução Gráfica: R olo & Filhos II, S. A. Mafra
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Número 23 – 2011 Editorial A difamação das religiões e a liberdade religiosa . . . . . . 4 Estudos J. Flori Religiões e liberdade religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 A. Poya Abraão: um unificador? A personagem Abraão sob uma perspectiva muçulmana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Dossier A difamação das religiões e a liberdade religiosa . . . 27 Entrevista do embaixador Zamir Akram representante permanente do Paquistão junto das Nações Unidas em Genebra . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 J. Baubérot Liberdade de expressão e religião . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 B. Chelini-Pont A difamação das religiões: um braço de ferro internacional (1999-2009) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Fabrice Desplan Difamação religiosa, estigmatização e normas sociais – quando o Direito europeu toma cada vez mais . conhecimento da complexidade social . . . . . . . . . . . . 60 Silvia Angeletti Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões nos documentos das Nações Unidas . . . . 69 Documentos O novo Relator Especial sobre a Liberdade de Religião e de convicção das Nações Unidas . . . . . . . . . 93 Lutar contra a difamação das religiões (Relatório de 2008 atualizado pelo Centro Europeu para a justiça e dos direitos do homem) . . . . . . . . . . . . 95 Declaração relativa às propostas sobre a difamação das religiões adotada pela IRLA a 3 de setembro de 2009 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
Temos o prazer de informar os nossos leitores de que o sítio da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade religiosa, de que a revista Consciência e Liberdade é o órgão oficial, está à vossa disposição em www.aidlr.org.pt. Para outras línguas, visite o sítio www.aidlr.org.
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Editorial A difamação das religiões e liberdade religiosa Difamação das religiões … liberdade de expressão … liberdade de pensamento, consciência e religião … Estes são termos usados com frequência nos debates actuais sobre direitos humanos. Será que essas noções se excluem mutuamente? São compatíveis? São complementares? A ideia de “difamação” foi oficialmente apresentada à ONU em 1999 pela Organização da Conferência Islâmica. Inicialmente, foi apresentada como “difamação do Islão”. Só mais tarde é que o conceito mais amplo de “difamação das religiões” foi introduzida e a discussão alargada. Nesta edição da Consciência e Liberdade tentamos dar o nosso contributo para este debate, publicando uma série de pontos de vista que representam diferentes abordagens e princípios. As opiniões aqui expressas não reflectem necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Decidimos publicá-los, a fim de ajudar os leitores a formarem a sua própria opinião com base numa riqueza de informação e nos motivos e argumentos que nos foram expressos pelas diferentes partes envolvidas no debate. Em particular, pedimos a vários apoiantes de “difamação da religião”, e a várias entidades que apoiam este conceito para explicar os seus pontos de vista e as suas motivações. Congratulamo-nos com o facto de alguns terem respondido ao nosso convite. Reconhecemos que há problemas reais. Quando, por exemplo, os meios de comunicação são usados de modo imprudente e irresponsável, se não dão uma informação precisa e objectiva; sempre que fazemos um uso abusivo da liberdade de expressão, procurando provocar ou manipular a opinião pública; e cada vez que alguém usa a difusão de ideias para criar uma atmosfera de desconfiança excessiva e animosidade. Também temos de reconhecer que há uma crescente tensão e inquietação em algumas partes do mundo – incluindo a Europa – em relação aos imigrantes, ou, mais precisamente para com os muçulmanos. Muitos fatores têm contribuído para a instalação deste clima: o aumento da visibilidade dessas populações na Europa: o sentimento existente, por vezes, entre os europeus, de que alguns muçulmanos desprezam os valores positivos que levaram a cultura europeia – ou ocidental – a alcançar as suas realizações atuais; e uma análise bastante medíocre da situação dos direitos humanos em alguns países muçulmanos, temem que este desenvolvimento possa levar à islamização da Europa, o que significa que os problemas, tensões e conflitos, cuja resolução tem sido onerosa para a Europa durante os séculos passados, pode muito bem ressurgir. 4
Além disso, devemos entender que esse medo é por vezes criado deliberadamente e explorado por certas entidades políticas para promover as suas posições “justas”, que deixam pouco espaço para a tolerância e a convivência pacífica numa sociedade multicultural. Podemos ainda acrescentar que a natureza virulenta e desproporcionada de certas reclamações de algumas minorias são facilmente catalogadas pela maioria como “tirania das minorias”. Estes são apenas alguns exemplos da complexidade da questão abordada neste número. Elas são o reflexo evidente das diferenças sobre os princípios e os conceitos básicos da dignidade humana e dos direitos humanos. Infelizmente, na verdade, nem todas as partes envolvidas reconhecem a Declaração Universal dos Direitos do Homem e não lhe dão o mesmo significado. Para alguns, é uma emanação e um produto da cultura ocidental ou mesmo “uma expressão secular da tradição judaico-cristã”. As outras culturas têm desenvolvido outras noções de direitos humanos. A questão é saber se esses diferentes conceitos e princípios são compatíveis ou se se excluem mutuamente. Que futuro nos espera? O conceito de “difamação de religiões” parece ter menos apoio nos círculos da Nações Unidas. Mas qual é o significado exato de “difamação das religiões”? Poderão as legítimas reivindicações deste conceito ser abordadas pelos instrumentos legais que limitam a liberdade de expressão? E se a pressão contínua em favor da regulamentação da “difamação das religiões” não faz mais do que aprofundar o fosso entre a cultura ocidental e o mundo islâmico? Não poderíamos encontrar melhores ferramentas para promover e proteger mais eficazmente os direitos humanos? Estas são as perguntas que nos colocamos. A liberdade de expressão não é um direito absoluto, não há dúvida. Mesmo as liberdades de pensamento, consciência e religião não podem ser considerados como direitos absolutos, se estão separados de outros direitos humanos. Temos a convicção que não pode haver uma discussão válida se nem todas as partes envolvidas admitem a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais e se fazem tudo para promover esses princípios e a sua aplicação. Karel Nowak
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Estudos Religiões e liberdade religiosa
Jean Flori* Em muitas regiões do nosso mundo, hoje vemos crescer e tornarem-se comuns as tensões e conflitos, por vezes, massacres e perseguições, que encontram o seu fundamento (ou os seus pretextos) na simples constatação de uma diferença – essa diferença pode ser de cor, de etnia ou de religião. Os Estados nem sempre dispõem de meios para evitar essas tensões, para lhes por fim ou mesmo para as condenar. Pode perguntar-se, por vezes, se alguns deles não as usam e não as incentivam para consolidar o seu poder ou desencorajar qualquer oposição ao seu plano, baseado na intolerância e exclusivismo da maioria dos seus habitantes e favorecem assim o comunitarismo, a derradeira garantia de coesão, infelizmente, com base na exclusão de todos aqueles que não fazem parte desta comunidade. O período que estamos a atravessar, marcado pela amplitude das crises económica, política e social, favorece o uso dessas práticas populistas. É obviamente mais fácil designar as massas populares de “bodes expiatórios” acusadas de serem responsáveis pela crise, do que procurar um remédio. Este fenómeno não é, infelizmente, nem novo nem distante: ele levou, recentemente, ao genocídio no Ruanda e às mortes na Bósnia; em meados do século passado, foi o extermínio de judeus e ciganos pelos nazis; no início do século XX, o massacre dos arménios; um século antes, os índios das Américas e os aborígenes da Austrália, precedido pela escravidão e pelo tráfico generalizado dos negros africanos. Nem é preciso lembrar, no século XVI, as devastações das guerras de religião, nos séculos XIII e XIV, as fogueiras da Inquisição e a perseguição aos “hereges”, a matança das Cruzadas, etc. Em toda esta violência paroxística, as religiões têm muitas vezes desempenhado um papel de liderança. Longe de trazer a paz, alimentaram o ódio e a intolerância, levaram à exclusão e à barbárie. Pode parecer, desde logo, inútil ou ridículo questionar o ideal da liberdade religiosa, da tolerância, do respeito e do secularismo. É necessário, no entanto, para tentar compreender sem desculpa, para liberar “princípios” que devem orientar a conduta dos homens – pelo menos daqueles que lendo esta revista, são dirigidos por pensamentos elevados e não sectários, intolerantes ou fanáticos. 6
Religiões e liberdade religiosa
1. Religião e liberdade – o problema Não podemos deixar de ficar impressionados com a enorme distância entre os ideais e os princípios nobres “oficialmente” professados pela maioria das religiões e filosofias e a realidade vivida “no terreno” pelas populações que afirmam isso. Assim, o Cristianismo, por um lado, o Islão, por outro, declararam-se voluntariamente “religião do amor” a primeira, a “religião da tolerância, amor e paz” a segunda. Paradoxo: em muitos países, se não todos, os seus seguidores enfrentaram-se e ainda hoje se enfrentam, sem cerimónia. Desprezam-se e ignoram-se mutuamente quando não estão envolvidos em perseguições diversas, em massacres, ou até mesmo em assassinatos em massa, em nome destas religiões. Há uma contradição que nós questionamos. Como historiador das mentalidades religiosas da época medieval, e em particular das ideologias da violência, abordarei aqui o estudo deste triste fenómeO “Crac dos Cavaleiros” (Qala’at Al Hosn) é considerado como o castelo melhor conservado da época no sob o ângulo histórico. das Cruzadas. Faz parte do Património Mundial da Esta abordagem “mediavisUNESCO. Foto Wikipedia/Bernard Gagnon. ta” também não é inadaptada tanto quanto se poderia supor pelo estudo das realidades contemporâneas em matéria de comportamento religioso. Com efeito, parece hoje que a maior parte dos habitantes da terra ainda partilham (ou de novo?) formas de sentir, de pensar e de agir que não diferem muito daqueles que se atribuem, geralmente a uma “mentalidade medieval” considerada, sem razão, pelas “elites” ocidentais – que ignorando muitas vezes tudo – como totalmente fora de uso, ultrapassado, até mesmo desaparecido. Isso resulta num novo fosso, fator de incompreensão, que se situa, desta vez, já não tanto ao nível de “atores”, mas de “observadores”. Estes últimos, sociólogos, historiadores, professores, advogados, as elites do jornalismo e de análise política, etc., são, na sua maioria, da cultura ocidental e imbuídos dos seus valores, que consideram universais. Mesmo se não pertencem a esse grupo, geralmente partilham das mesmas ideias e atitudes. No que nos concerne aqui, esses valores são baseados em noções de respeito para com os direitos do homem como pessoa, nomeadamente a liberdade individual e em particular a liberdade de consciência e de culto, o que implica concretamente a liberdade de crer – ou de não crer – de escolher uma religião ou de mudar dela, como é o caso também no campo da política, onde não se tolera muito nos meios “iluminados” a ideia de um partido único, 7
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de um pensamento único imposto a todos os habitantes regidos pelo poder vigente. Esta atitude, que se poderia dizer “humanista”, infelizmente não é compartilhada pela grande maioria da população do mundo. Ainda hoje, como na Idade Média, a maioria das pessoas no nosso mundo vive em condições muito diferentes da nossa, mal adaptados a estes conceitos abstratos. A História ao longo dos séculos tem criado entidades que consideramos mais frequentemente como de ordem política ou económica, mas que são também e sobretudo de ordem social, religiosa, psicológica – em resumo da ordem das “mentalidades”. Apesar dos meios de comunicação modernos (a televisão, a rádio e a internet, que difundem imagens e padrões de consumo muito mais do que ideias – e ideais muito menos), permanece e acentua-se uma clivagem entre o mundo ocidental e o resto do planeta. Por mais de um século, e especialmente nos últimos 30 anos, o individualismo tornou-se de facto a norma nos países ocidentais, pelo menos nos meios ditos “intelectuais”. O resto do mundo, em contrapartida, permanece profundamente encerrado nas estruturas sociais simultaneamente mais estritas e mais coletivas, levando a comportamentos que no Ocidente atribuímos ao “comunitarismo”: estruturas familiares, clãs, tribais, étnicas, religiosas nas quais o indivíduo se funda na massa e toma a sua forma. Para além de uma ínfima parte das suas respetivas populações, esses dois mundos tiveram até hoje relativamente poucos contactos entre eles, por razões geográficas (distância) e cultural (comunicações à distância raras e difíceis). Isto hoje já não é assim porque, por um lado, as fortes correntes migratórias, criadoras de comunidades no exílio recriam ou por vezes reforçam a sua especificidade comunitária; por outro lado, a revolução mediática dissemina por toda a parte informação e desinformação, imagens publicitárias e culturais, ideias e boatos, uma mistura de ciência e de absurdos, pornografia, debates, exposições e falatórios dos blogues e chats na internet, etc. Esses dois fenómenos colocam hoje num contacto artificial populações que, embora partilhem muitos traços culturais comuns impostos pela sociedade de consumo universal (uso da tecnologia moderna, o gosto pela música, roupas ou alimentos), permanecem afastados uns aos outros pela “mentalidade”, abordagem e interpretação dos factos, de que todos têm conhecimento, mas que apreendem de formas, por vezes, opostas. O que foi dito em certa medida esclarece as novas dificuldades que se põem hoje a crescente e inevitável confronto de pessoas que praticam religiões diferentes. Mas nas questões passadas, que já o estudo da História revela (e em particular o conflito entre “Cristianismo” e “Islamismo” na Idade Média – o centro da minha própria pesquisa ao longo dos últimos 30 anos), têm-se juntado na nossa época novas dimensões que intensificam grandemente a sua escala. A intolerância tem crescido no seio dos grandes conjuntos religiosos que até agora se suportavam ou ignoravam. 8
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2. As Dificuldades “históricas” permanentes Perante as múltiplas manifestações de intolerância, perseguição e até mesmo de barbárie cometida em nome de Deus pelas religiões monoteístas – que se reclamam, em última análise, de um mesmo Deus, qualquer que seja o nome que se lhe dê – alguns historiadores de hoje tentam reabilitar o politeísmo. Eles sublinham, por exemplo, que a civilização greco-romana, politeísta, não ficou de modo nenhum chocada com o aparecimento de um novo deus, quase sempre incorporado sem dificuldade na massa dos precedentes. Isso é verdade, mas é também esquecer que o Império Romano perseguiu severamente os cristãos (entre outros), não por eles adorarem um novo deus, mas porque se recusaram a adorar outros deuses, inclusive a pessoa divinizada do imperador. Esta recusa, incompreensível para os pagãos romanos, e especialmente para os imperadores, foi considerada um ato de impiedade, uma negação dos deuses protetores de Roma, portanto, uma forma de incivilidade, de ateísmo e traição. O Estado romano politeísta praticava assim uma tolerância muito discutível para com os monoteístas e uma intolerância radical contra um ateísmo impensável na época, pelo menos no que diz respeito à massa da população. O perigo do totalitarismo religioso, para a liberdade e até mesmo para a vida dos homens, não desapareceu com o triunfo do cristianismo, ou melhor, da Igreja. Perseguidos esporadicamente durante os primeiros três séculos da nossa era, as igrejas cristãs proliferaram após a conversão de Constantino (cerca de 312), graças à proteção imperial. Um século antes, Tertuliano pôde escrever: “O sangue dos cristãos é uma semente de cristãos”. A perspetiva muda completamente num Império Romano que se tornou cristão: ao envolvimento pessoal voluntário e perigoso sucede agora uma adesão proveitosa. O número de adeptos multiplica-se. No entanto, não é certo, pelo menos, que a sua fé ganhe em profundidade. O cristianismo original era claramente pacífico e pacifista, à imitação de Jesus. Pode-se até manter, com alguns argumentos, que alguns dos primeiros cristãos se recusavam, categoricamente, a derramar sangue – incluindo para se defenderem dos seus perseguidores – iam por vezes até ao entregar-se a si mesmos, procurando assim o martírio, esperando que ele concedesse a entrada no paraíso. Fanatismo, sem dúvida, mas que põe em risco a sua própria vida e não a dos outros. A conversão de Constantino mudou as perspetivas. Num império que se tornou “cristão”, a Igreja Romana já não defende a rejeição às armas; tanto mais que no Ocidente o Império é ameaçada por invasores germânicos, a maior parte arianos. Pela sua conversão ao catolicismo por volta do ano 500, o rei franco Clóvis tornou-se o defensor da Igreja Católica. As suas vitórias sobre os alamanos, burgúndos e os visigodos, todos arianos, reforçam a aliança do papado com os reinos formados do desmembramento do Império Romano. Gradualmente, através de etapas sucessivas, a Igreja justifica o uso de armas e valoriza os guerreiros que lutam pela sua causa e protegem o seu 9
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clero e as suas posses. Esta valorização levou a uma verdadeira sacralização de determinadas guerras travadas para proteger a Santa Sé, igrejas e mosteiros, e as populações cristãs ameaçadas por vários inimigos, especialmente os “pagãos” (ou considerados como tal) que invadiram a Europa ocidental: normandos, húngaros e “sarracenos”. Essas invasões e saques que as acompanham causam no Cristianismo uma emoção bem real, amplificado ainda pelo clero, especialmente os monges que são as principais vítimas1. Em meados do século IX, o papado, ameaçado mesmo em Roma pelas invasões muçulmanas, pede ajuda Batismo de Clovis I depois da aos guerreiros do Império Carolíngio e promevitória que ele conseguiu sobre te que aqueles que morrerem nessas batalhas os Alamanos, em 496, em Tolbiac serão recompensados no céu por Deus. (hoje Zülpich), perto de Colónia. Tela do século XV de Mestre A Guerra Justa transforma-se numa guerSaint-Giles. National Gallery, ra santa. No século XI, esta ideia espalhaWashington. Foto Wikipédia -se e generaliza-se no Ocidente. Admite-se que os soldados que morreram de espada na mão lutando para defender o Cristianismo contra os “inimigos de Deus” obtêm as palmas do martírio e, portanto, são recebidos no paraíso. Mil anos depois da morte de Jesus, a revolução doutrinária está realizada: pode desde logo tornar-se um mártir ao morrer pela espada, como nos primeiros tempos, mas desta vez a espada na mão para matar um inimigo diabolizado. A cruzada marca o apogeu desta doutrina, uma vez que convida os cristãos, “para remissão” dos seus pecados, a libertarem a Igreja de Jerusalém das mãos dos muçulmanos que ocuparam a região. A guerra “santa” torna-se “santificante”. O papado generaliza esta doutrina sacralizando qualquer combate travado contra os seus adversários, pagãos, hereges, cismáticos, dissidentes e rivais políticos. A devastação da Inquisição pertence ao mesmo movimento de pensamento. Eles são o resultado da aceitação do uso da violência para defender a sua fé, ou mesmo para a propagar. Esta revolução doutrinária do cristianismo ocidental ocorreu de forma lenta e durou um milénio2. O mesmo não se passa com o Islão. Ao contrário de Jesus, que se manteve radicalmente à parte do poder e rejeitou qualquer recurso à violência e às armas, Maomé foi, ao mesmo tempo, um profeta religioso, um chefe de estado e um guerreiro. Não há no Islão, desde o início, nenhuma relutância em usar armas, e o próprio profeta, segundo a tradição muçulmana autêntica, não hesitou em pregar e dirigir a guerra para lutar e prometeu o paraíso aos mártires caídos em combate pela sua causa3. Embora ele tenha aceite fazer uso da violência, não impediu que o Islão fosse, finalmente, de facto, mais tolerante nos territórios conquistados do que 10
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geralmente tem sido o Ocidente cristão4. Mediante o pagamento de uma taxa de “proteção” e submissão às leis dos vencedores nos seus Estados, judeus e cristãos mantinham o direito de praticar a sua religião, desde que o fizessem sem ostentação ou proselitismo. Uma das razões para essa relativa tolerância é sem dúvida o facto de que a mensagem do Alcorão revelado a Maomé se apresentava como o prolongamento e a restauração da mensagem pregada aos judeus pelos seus profetas e aos cristãos por Jesus. Podemos, grosso modo, comparar a situação na Idade Média, dos judeus e dos cristãos em terras do Islão, à dos judeus no Cristianismo: cidadãos de segunda classe. A sorte dessas populações “sujeitas” e “protegidas” manteve-se apesar de tudo menos mal em terras do Islão do que no Cristianismo, embora não se deve exagerar, como há por vezes a tendência de fazer hoje, a tolerância muçulmanas da época, nomeadamente em Espanha5. Apesar das suas deficiências, a tolerância parece ter sido muito melhor do que aquela que hoje impera em muitos países muçulmanos. 3. As novas condições do nosso tempo A relativa tolerância dos tempos medievais, especialmente em países islâmicos, estava, no entanto, bastante longe daquilo que aspiram agora os defensores da liberdade religiosa nos países mais avançados. E que dizer das manifestações de intolerância que se multiplicam desde há alguns anos em muitos países do mundo, refletindo uma regressão real e séria nesta área? Como explicar essa discrepância entre os nobres ideais dos defensores da liberdade religiosa e o lamentável comportamento que demonstram, na realidade, as massas em tantas áreas? A imprensa ocidental atribui facilmente esta intolerância, este fanatismo, estas atrocidades e estes massacres à revitalização religiosa que se manifesta no mundo, em grande parte devido ao fracasso das ideologias dominantes, tais como o marxismo e o capitalismo, por exemplo. Para evitar o risco de indispor tal ou tal grupo religioso, e uma preocupação óbvia de conformidade com os padrões recorrentes do “politicamente correto”, ele tende a assumir que todas as religiões são iguais, porque todos são intolerantes e acredita que estas manifestações de violência são devidas aos “integristas” ou “fundamentalistas” de cada um deles. Esta afirmação contém alguma verdade: é evidente, de facto, que os crentes “moderados” (que muitas vezes podem ser chamados de “moderadamente crentes”) são menos propensos a intolerância do que os crentes que levam a sério as prescrições da sua religião. Alguns autores vão mais longe e acusam em bloco todas as religiões de serem fundamentalmente intolerantes. Muitas vezes é a posição assumida pelas vítimas da intolerância (por exemplo, Taslima Nasreen) – e podem entendê-las. Isso equivale a admitir que todas as religiões, sem distinção, são fundamentalmente más, em princípio, pelo que, portanto, devem ser lançadas no campo do “mal”, o que não é justo nem sábio. 11
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Por outras palavras, se, sem dúvida, é mau e funesto para a liberdade seguir com rigor uma religião intolerante, também seria completamente absurdo punir pela mesma razão aqueles que se esforçam por aplicar com “integridade” nas suas vidas os preceitos de tolerância e amor ao próximo, se estes preceitos são claramente enunciados na sua religião. O critério de julgamento ou a “triagem” das religiões, filosofias ou correntes de pensamento, não deve repousar na intensidade da devoção de que são objeto, mas antes nos seus objetivos e nos seus princípios. Isso leva então a colocar uma série de perguntas sobre os valores que sustentam algumas das religiões e filosofias de hoje para o povo. – Primeira questão fundamental: Qual pode ser o valor moral de uma religião imposta pela força, coerção, pressão social, o hábito do clã ou as leis de um Estado? Qual pode ser o valor moral de aderir a uma religião, seja ele qual for, se essa adesão não se baseia numa escolha livremente consentida? Ou ainda se essa escolha, apesar de livremente exercida por um fiel num determinado período de sua vida (geralmente na adolescência), não pode ser questionada mais tarde, quando o indivíduo toma pouco a pouco consciência da sua própria existência e deseja confirmar ou alterar a sua orientação? Por outras palavras, uma religião que nega aos seus seguidores, qualquer direito de se separar dela por preferência por outra – ou não escolher nenhuma – não é, em última análise, uma forma de alienação mental? – Segunda questão: Deve o valor de uma religião ser medido em termos da sua notoriedade e do número dos seus seguidores, independentemente dos métodos utilizados para os recrutar? No que diz respeito à liberdade que todos queremos ter, o critério do valor não deve ser o respeito pelo outro, respeito pelo ser humano como tal, numa palavra: o humanismo? Como pode uma religião que diz amar a Deus admitir matar? Como pode ela usar a violência contra os homens para os obrigar a renunciar à sua fé, sob pena de perder a vida? – Terceira questão: liberdade de pensamento, consciência e de culto que sociedades avançadas conseguiram conquistar através de uma luta vigorosa sobre o obscurantismo e a intolerância, com tanto sofrimento e vidas, estará em risco por uma grande complacência para com as religiões intolerantes? Questão delicada, porque são conhecidos lastimáveis precedentes. Os seguidores de uma religião intolerante podem, efetivamente, nos países “livres”, recuperar para si esta frase famosa: “Quando estou em minoria, exijo liberdade em nome dos vossos princípios; onde estou em maioria, recuso-a para vós, em nome dos meus princípios”. Hoje vemos muitos exemplos. Surge, então aqui o problema de reciprocidade. Isto está longe de ser alcançado. No entanto, é um direito da sociedade democrática e avançada, mostrar-se fiel aos seus princípios, mesmo que se receba mau agradecimento. A questão da reciprocidade surgiu já nos tempos medievais. Em 1219, durante a 5ª Cruzada, Francisco de Assis pediu para se encontrar com o sultão Malik al-Kamil, na esperança de o converter. Sendo a pregação interdita em terra do Islão, ele ficou a dever a sua salvação à gentileza (notável para a época) 12
Religiões e liberdade religiosa
do sultão muçulmano. Três anos depois, Thomas de Chobham explicou esta proibição. Ele escreve que muitos clérigos e príncipes, em guerra contra os sarracenos, tinham estabelecido uma trégua e tinha ido procurá-los para lhes pedir para permitirem que os cristãos pregassem entre eles sem correr o risco de morte. Os sarracenos responderam que concederiam sem problemas se os cristãos também permitissem que os muçulmanos fizessem o mesmo junto dos cristãos, livremente. “Os cristãos”, diz o autor, “decidiram que de modo algum permitiriam aos sarracenos que pregassem entre eles. Por isso os cristãos não pregam na terra dos sarracenos7”. É essa proibição de pregar a sua fé na terra do Islão que, em parte, justifica aos seus olhos a intervenção armada: só a cruzada permitia a liberdade de pregação. Esses tempos “obscuros” estão, felizmente, no passado e a pregação do Islão é permitida na maioria dos países com maioria ou cultura cristã. Infelizmente, o contrário não é verdadeiro, o que confirma a regressão encontrada acima e representa um grave problema de reciprocidade. Sem reciprocidade equitativa, a intolerância para com o Islão, até agora contida no Ocidente, arrisca-se a crescer, no âmbito da frustração resultante de uma tal distorção. – Última questão, numa lista longe de ser exaustiva: a liberdade dada à religião nas sociedades democráticas, deveria ser ilimitada? Sabemos que hoje, para dar garantias religiosas e apaziguar os espíritos descontentes por algumas caricaturas ou traços de humor, nem sempre de bom gosto, há aqueles que defendem a proibição … devido a blasfémia. Ela parte de um bom sentimento, mas o inferno, dizem, é pavimentado! Porque o que vai determinar a natureza da “blasfémia”, senão o legislador, na melhor das hipóteses, ou da maioria (nos países democráticos), na pior das hipóteses, o poder de uma minoria ou qualquer ditador à frente dos seus esbirros? O crente judeu que nega que Jesus é o Messias que ele acusou de blasfémia por causa disso? O cristão que não reconhece Maomé como um profeta, será punido por causa disso? E o agnóstico ateu, ou quem rejeita tanto qualquer messianismo como todo o profetismo como mentira patológica, será internado ou “tratado” num hospital psiquiátrico para ser trazido de volta “ao caminho”? Quem não vê que tais derivas conduzem diretamente à ditadura das religiões mais intolerantes? Os países democráticos são os herdeiros do Iluminismo. Eles lutam para manter esta herança e dizer em voz alta, como, por exemplo, Voltaire fez: “Não concordo com o que dizes, mas lutarei pelo teu direito de o dizeres”. Tal atitude é viável fora de uma democracia secular? A questão merece pelo menos ser colocada. * Historiador, Doutor em Filologia e Ciências Humanas, ex-diretor de pesquisa no CNRS (Centro de Estudos Superiores das Civilizações Medievais).
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Jean Flori Notas: 1. Ver João V. Tolan, Les sarrasins: l’Islam dans l’imaginaire européen au Moyen Âge, Aubier-Flammarion, Paris, 2002. 2. Ver Jean Flori, La guerre sainte. La formation de l’idée de croisade dans l’Occident chrétien, AubierFlammarion, Paris, 2001. 3. Ver Mohammed Tabari, Chronique, Mohammed, sceau des prophètes, (trad. H. Zotenberg), Paris, 1980, p. 155-156; Al-Bukhârî, L’authentique tradition musulmane, 36-51, trad. G. H. Bousquet, Sindbad, Paris, 1964, p. 175-178. 4. Ver Jean Flori, Guerre sainte, jihad, croisade. Violence et religion dans le christianisme et l’islam, (coll. Point d’histoire), Seuil, Paris, 2002. 5. Ver sobre este assunto Dominique Urvoy, Pensers d’al-Andalus, Ed. du C.N.R.S., Toulouse, 1991. 6 . Sobre este episódio muito interessante, ver John Tolan, Le saint chez le sultan. La rencontre de François d’Assise et de l’islam. Huit siècles d’interprétation, Seuil, Paris, 2007. 7. Thomas de Chobham, Summa de arte praedicandi, ed. F. Morenzoni, CCCM, n° 82, Turnhout, Brepols, 1988, p. 86
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Abraão: um unificador? O carácter de Abraão sob uma perspetiva muçulmana* Abbas Poya** Além das numerosas influências positivas que se lhes podem reconhecer, a lista dos aspetos negativos das religiões é longa e condenável. “Tantas lutas, conflitos sangrentos, e até mesmo ‘guerras religiosas’ são parte dos seus créditos! Tantos conflitos económico-político-militares têm sido, em parte, provocados, influenciados, inspirados ou – e isto aplica-se igualmente às duas guerras mundiais – legitimados por elas! Numerosos massacres e guerras, não só no Médio Oriente, mas entre o Irão e o Iraque, a Índia e o Paquistão, entre os hindus e os sikhs, budistas cingaleses e os tamiles hinduístas, e há mais tempo, entre os monges budistas e o regime Católico no Vietname, como entre os católicos e os protestantes na Irlanda do Norte, foram e são ainda mais incrivelmente sangrentas, impiedosas, marcadas pelo fanatismo que se baseia na religião!” É a constatação que Hans Küng faz na sua obra fundamental, Weltfrieden durch Religionsfrieden (“A paz mundial através da paz religiosa”), que publicou em 1993, com o seu aluno Karl-Joseph Kuschel. Entretanto, a lista alongou-se de algumas guerras para atos isolados igualmente mortais e destrutivos. Hans Küng explica a lógica que se esconde por detrás de um assassinato sangrento legitimado pela religião: “Se o próprio Deus está ‘connosco’, com a nossa religião, a nossa fé, a nossa nação e o nosso partido, então tudo é permitido contra o partido contrário, que com toda a lógica deve ser o do demónio. Podemos, portanto, em nome de Deus, ferir, queimar, destruir, matar sem remorsos.” Kung e Kuschel sentem-se assim obrigados – e muitos outros com eles – a fazer avançar o projeto comum do “diálogo religioso” em geral e, especificamente, o projeto do “ecumenismo de Abraão” para as três religiões monoteístas – o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão – que têm Abraão como “patriarca comum.” Muitos pensadores e escritores muçulmanos também se envolvem nessa ação. Este tipo de compromisso corresponde ao espírito da época atual, que está imbuído da ideia dos direitos humanos e da tolerância. Lendo Küng, entendemos claramente donde lhe vem a ideia de “ecumenismo de Abraão”, quando ele propõe “(…) ao referir-se à humanidade comum a todos os seres humanos, e formular um critério fundamental universalmente ético, verdadeiramente ecuménico, que assente no humano, a verdadeira humanidade, concretamente, sobre a dignidade humana e os valores fundamentais que lhe estão ligados.” 15
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Trata-se, neste projeto do “ecumenismo de Abraão” e na sua hipótese subjacente (Abraão é o pai espiritual comum às três religiões monoteístas), de fazer um apelo político-religioso e de haver uma ação eficaz junto do público em favor da paz no mundo, isso tem, seguramente, a sua razão de ser. No entanto, ao estudar várias fontes, encontram-se poucas provas válidas mostrando Abraão como uma figura unificadora capaz de levar os membros das três religiões a reconhecerem-se mutuamente ou até mesmo a orar em conjunto. No âmbito deste artigo, baseando-nos em fontes originais, tentaremos esboçar um retrato do patriarca, tal como é apresentado no Corão, na historiografia islâmica e no Islão de ideologia recente. Fá-lo-emos da forma mais autêntica possível, e sem nenhum outro propósito senão definir os limites de um ecumenismo abraâmico e, mais especificamente, para explicar a tentativa de pleitear por uma tolerância mútua ao se referir a Abraão. Algumas repetições no texto são, então, inevitáveis. Trata-se, com efeito, da representação de uma só e mesma pessoa a partir de perspetivas diferentes – corânico, historiográfico e ideológico – com o fim de comparar diferentes imagens “islâmicas” de Abraão para finalmente poder responder à seguinte pergunta: Qual poderia servir de base para um comportamento tolerante? Apresentar uma imagem islâmica representativa e autêntica de Abraão (Ibrahim, em árabe) não é tarefa fácil. No Corão, o seu nome é mencionado 69 vezes. Depois de Moisés (136 vezes), é a figura bíblica mais citada, estatisticamente, mais do que Jesus (26 vezes). No entanto, essas ocorrências aparecem em versos distantes cronologicamente e em ocasiões diferentes, o que não nos dá uma história contínua. Mesmo quando uma Sura completa (a 14ª, por exemplo, que é composta de 52 versos) tem o nome de Abraão, apenas uma pequena parte lhe é verdadeiramente consagrada. No entanto, a literatura especializada tenta há muito tempo reconstruir a personagem com a ajuda das informações contidas no Corão. Torna-se claro que a imagem de Abraão na época de Meca é diferente da de Medina. Enquanto na primeira fase da representação judaico-cristã ele está mais próximo e se apresenta como o pai das três religiões monoteístas e precursor da luta contra os politeístas, no período de Medina, quando surgem conflitos com os judeus, é instrumentalizada e ideologizada como o antepassado do Islão, para o separar do Judaísmo e do Cristianismo, e para justificar as sangrentas batalhas contra os judeus e as mudanças na direção da oração, de Jerusalém para Meca. No presente artigo, nos não iremos debruçar sobre essa diferença entre os versículos corânicos da época de Meca e de Medina. Os muçulmanos, na sua maioria, consideram o Corão, e, portanto, os versos sobre Abraão, como uma unidade sagrada. Portanto, o Corão não pode ser considerado como um fenómeno histórico e ainda menos como uma obra ideológica. Para uma representação completa da personagem Abraão no Islão, é indispensável recorrer aos hadiths, as exegeses do Corão, e sobretudo aos livros que tratam da história dos profetas. Mas é preciso ter cuidado com o 16
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facto de que, nas diferentes obras, são colocadas diferentes ênfases sobre a imagem de Abraão, e que opiniões divergentes são representadas a propósito de questões decisivas. Uma dessas questões litigiosas a que o Corão não dá uma resposta clara é saber qual dos seus filhos – Ismael (em árabe Isma’il) ou Isaac (em árabe Ishaq) – Abraão queria sacrificar a Deus como um símbolo da sua gratidão e devoção. Enquanto at-Tabari (839-923), por exemplo, depois de descrever em detalhe as duas possibilidades, toma uma posição clara pelo sacrifício de Isaac, vindo assim a reforçar os dados do Génesis, o historiador mais tardio Ibn Katir (1301-1373) considera este ponto de vista como decorrente da conceção judaica (isra’iliyyat), que, obviamente, não é coerente com os dados do Corão. No que se segue, vamos, num primeiro tempo, fazer o retrato de Abraão em função dos elementos revelados pelo Corão. Depois, vamos tentar reconstruir a sua personalidade a partir da história islâmica, com o auxílio das crónicas de at-Tabari. Finalmente, na última secção, apresentamos a imagem de Abraão na perspetiva do Islão como uma ideologia. Abraão no Corão Na Sura José (em árabe: Yusuf), em que introduz a história de José e dos seus irmãos, o Corão define-se como o livro que conta “a melhor narrativa” (ahsan al-qisas) (12/3). Depois, é também enfatizado que o Corão contém histórias, especialmente as histórias dos profetas. No entanto, este não é um livro de História. Ele contém a mensagem divina. E as histórias apenas interessam na medida em que servem esta mensagem. No fim da sura, José insiste-se no facto de que a sua história se destina a fazer refletir “as pessoas dotadas de razão” (12/111). No que se refere a Abraão, não podemos esperar dados detalhados no Corão. Tabataba’i, provavelmente o mais famoso exegeta do Corão contemporâneo iraniano, indigna-se porque alguns comentaristas tentam procurar – sem sucesso – quem foram os ancestrais de Abraão ou de onde era. Ele disse que o objetivo deste livro não é contar histórias, mas mostrar às pessoas o caminho de Deus e incentivá-las a segui-lo. Assim, o Corão revela pouco sobre as origens de Abraão, dos seus pais, da sua infância. Apenas o nome do pai é mencionado: Azar. Abraão, porém, define-se muito rapidamente, como “aquele que busca Deus” ou o “verdadeiro crente” (Hanif), em contraste com o seu ambiente e, desde logo, com o pai. Ele não se contenta em anunciar a sua mensagem, toma a iniciativa, viola os projetos do seu povo em questões de fé e demoliu os seus ídolos. Com efeito, aproveitando uma ocasião propícia, sem ser visto pelos idólatras, faz os seus ídolos em pedaços e deixa intacto o maior dentre eles. Quando as pessoas, furiosas e com raiva, começaram a suspeitar dele, ele respondeu: “Não foi senão o maior que fez isso. Perguntem-lhes se eles podem falar!” (21/63). De acordo com o Corão, Abraão entrou em conflito não só com os idólatras, mas também com os adoradores das estrelas. O Corão não se preocupa 17
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aqui com os detalhes de saber se os idólatras e adoradores das estrelas eram dois povos diferentes ou pertenciam à mesma nação. Alguns estudiosos supõem que havia dois povos. O Corão fala deles ao mesmo tempo, da querela que opõe Abraão ao seu pai e ao povo deste último (descrito noutras passagens como uma nação de idólatras) e declarações irónicas de Abraão sobre as estrelas que são tomadas por deuses. A reação suscitada por Abraão e a sua mensagem é agressiva e brutal. Ordena-se que o lancem ao fogo para preservar a honra dos deuses. Neste momento dá-se um milagre e o fogo passou a ser “frio e salvou Abraão” (21/69). O anjo impede Abraão de sacrificar o seu filho. Numa idade avançada, quando Pintura a óleo de Rembrandt, 1835. Museu quase tinha perdido toda a esperança Eritage, S, Petresburgo. Foto Wikipedia de um dia ter filhos, Abraão teve dois Commons filhos, Ismael e Isaac. Mais tarde, com Ismael, construiu a casa santa da “Kaaba” (em árabe: Ka’ba) e introduziu o ritual da peregrinação (em árabe: Hagg). Para seguir uma ordem divina recebida num sonho, quis sacrificar o seu filho. Este estava pronto a obedecer à ordem de Deus. Ambos puseram em ação o que é talvez a pior tragédia de toda a história da literatura da humanidade. No último momento, enquanto os dois protagonistas manifestaram a sua vontade piedosa definitiva de se submeterem à ordem de Deus, a história toma uma outra direção: “E nós resgatámos a criança (isto é, o seu filho, que devia ser sacrificado) por uma oferta considerável” (37/107). Novamente, o Corão não indica claramente se o filho estava destinado ao sacrifício era Ismael ou Isaac ou quem eram as mães. Ele também não explica de que “oferta considerável”se trata. Usando esses episódios da biografia de Abraão, o Corão faz deste “um excelente modelo” (uswa hasana) para os crentes e um “guia” (Imam) para os homens. Teria sido “gentil, compassivo e inclinado ao arrependimento.” Teria reconhecido o “caminho certo” e possuído “a Escritura” divina e foi um “verdadeiro profeta”. Nenhum outro profeta foi tão elogiado no Corão como Abraão. A sura 4, versículo 125, mostra bem a que ponto o elogio que lhe faz o Corão é sem igual e com que intenção retrata Abraão desta forma: “Quem há que tenha uma religião melhor do que aquele que se submete totalmente a Allah, que vive uma vida reta e segue a religião de Abraão, um verdadeiro crente? Allah fez de Abraão um amigo íntimo” (4/125). 18
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O Abraão do Corão também é uma figura-chave na cadeia dos profetas: ele situa-se no início de uma tradição que culmina com Maomé e o Islão. O ponto de convergência evidente ao nível do culto entre o Islão e o Judaísmo era Jerusalém como centro religioso, uma cidade em direção à qual os muçulmanos dirigiram as suas orações durante anos. Este ponto comum foi abandonado durante o segundo ano da Hégira (migração do Profeta e dos seus companheiros de Meca para Medina). Por outro lado, foi Abraão que (com o seu filho) colocou a primeira pedra da Caaba – que representa a direção para a qual os muçulmanos devem orar pela eternidade – e purifica aqueles que vêm para realizar voltas rituais, fazer um retiro espiritual, se inclinam e se prostram (2/125, 127). Foi ainda Abraão, como “muçulmano” (aquele que dá, que voluntariamente se submete a Allah) fez a “Salat (oração). E é a religião de Abraão que Maomé foi chamado a seguir: “Pois que te revelámos: segue a religião de Abraão, o verdadeiro crente (…)” (16/123). Em geral, existe uma semelhança surpreendente entre Abraão e Maomé. Este último é também descrito como um “bom exemplo” (33/21) e um “homem buscando a Deus” (6/79). Ele combate sem trégua os idólatras e faz destruir os seus ídolos. Ele próprio confirmou essa semelhança na história da sua Ascensão. Ele é conduzido por Gabriel por diferentes céus para ser apresentado aos principais profetas, que ele descreveu com precisão. No último céu, ele encontrou Abraão: “E ele me levou ao sétimo céu, onde vi um homem idoso, sentado numa cadeira à porta do paraíso, o qual cada dia envia 70 000 anjos que apenas voltarão no Dia da Ressurreição. Eu nunca tinha visto um homem assim, e Gabriel disse: “Eis o teu pai Abraão!”
O Abraão Histórico A historiografia, ao contrário do Corão, dá muitos detalhes sobre Abraão. Este é, naturalmente, ainda hoje considerado um dos maiores profetas sagrados, mas pode ser entendido também como uma figura histórica, com o objetivo de completar a biografia para preencher as grandes lacunas deixadas pelo Corão. Sem repetir os elementos citados acima provenientes do Corão, iremos, portanto, agora, resumir a apresentação de Abraão, na historiografia islâmica, apoiando-nos principalmente em at-Tabari. Segundo uma certa versão, Abraão nasceu durante o reinado do rei Nimrod, em Babilónia, nas margens do Eufrates. O seu nascimento e a sua infância foram como toda a sua vida – marcada por milagres. Os astrólogos tinham dito a Nimrod que um menino nasceria num determinado momento, que ele iria abandonar a idolatria e destruir os ídolos. O rei deu ordens aos seus homens para matar todos os meninos que nascessem durante este período. Mas apesar da sua vigilância, a mãe de Abraão conseguiu esconder a sua gravidez. Quando sentiu que tinha chegado o momento de dar à luz, entrou numa caverna e deu à luz a Abraão. Ele passou algum tempo na caverna sem ser inquietado. 19
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Abraão saiu do seu esconderijo quando ainda era uma criança pequena. Apesar da sua tenra idade, já conhecia o “caminho certo” profético. Num episódio narrado no Corão, ele rejeita mesmo a ideia de que qualquer estrela pudesse representar uma divindade. Desde o seu primeiro encontro com o seu povo, começou a lutar contra as ideias religiosas da época. Ele vai até discutir com o pai, que inicialmente pensou que ele tinha morrido ao nascer e que se alegrou ainda mais por vê-lo vivo. O pai de Abraão era um infiel que ganhava a vida fazendo e vendendo ídolos. Um dia, as pessoas deixaram a vila para assistir a festas. Sob o pretexto da doença, Abraão ficou em casa e aproveitou a oportunidade para destruir, com um pedaço de ferro, todos os ídolos, com exceção do maior, e amarrada ao pescoço do qual prendeu o instrumento do seu delito. Abraão e as suas opiniões eram tão bem conhecidos por todos, que o acusaram do crime. Ele respondeu com ironia, que o culpado foi o maior dos ídolos, que ficou intacto. Ele fez isso para fazer com que as pessoas compreendessem que os deuses, que são incapazes de falar ou de se defender, não são dignos de ser adorados. Nimrod aproveitou este incidente para ordenar aos seus súbditos para prepararem um grande incêndio e lançar Abraão nele. Aparentemente, este não tinha conseguido que o povo entendesse a sua mensagem, uma vez que não encontrou ninguém para o defender. Após esta experiência dececionante com o seu povo, ele deixou o reino de Nimrod acompanhado pelo seu sobrinho Lot. Depois casou com a sua prima Sara e foi com ela para o Egipto, a terra dos faraós. Faraó tinha ouvido falar da beleza de Sara e ficou muito impressionado quando a viu. Ele perguntou a Abraão qual era o laço de parentesco com ela. Abraão, aparentemente temendo que faraó o mandasse matar para recuperar Sara, afirmou que era sua irmã. Tendo, certamente, um pouco de vergonha perante a sua esposa por ter mentido, procurou justificar-se aos seus olhos, declarando: “Tu és minha irmã nas Escrituras, divinas”. Faraó não pôde, contudo, realizar o seu projeto. Miraculosamente, Sara permaneceu pura. Tendo perdido toda a esperança de um dia engravidar, Sara entregou a sua criada Hagar (em árabe: Hajar) a Abraão para que ele tenha filhos com ela. E Abraão teve não apenas um filho de Agar, Ismael, mas também um filho de Sara, Isaac. Finalmente, ele recebeu ordens para construir, em Meca, a “Casa”, isto é, a Kaaba, na qual “se adorava Deus e onde se lembrava d’Ele”, que fez com o seu filho Ismael. Na literatura, questiona-se, contudo, em que medida Abraão, realmente, construiu a Caaba. Algumas tradições confirmam que ele realmente construiu o edifício com Ismael. Outros afirmam que se trata realmente de um antigo santuário que remonta à época de Adão, e que Abraão apenas tinha concluído as fundações já existentes. Também não se sabe com exatidão como Abraão chegou a Meca. De acordo com um relato, após ter recebido a ordem para construir a casa santa – mas sem saber onde – teria sido levado por Deus para Meca com a ajuda do vento. De acordo com outra 20
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fonte, ele já estava em Meca: na verdade, ao aceder ao pedido de Sara, que queria afastar Ismael e a mãe, Abraão teria conduzido os dois pelo deserto de Meca. Foi então que lhe foi pedido para construir a casa sagrada. Entre os rituais mais importantes do Hadj (ou peregrinação), o A Kaaba, santuário sagrado do Islão. Está no interior da sacrifício está ligado a grande mesquita de Meca (Al-Masjid al-Haram), na Arábia Saudita. É o local de destino da grande peregrinação (Hadj) um dos episódios mais que cada muçulmano deve realizar uma vez na vida se lhe é trágicos da biografia de possível fisica e financeiramente. Foto Wikipedia/Ali Mansuri. Abraão quando ele se preparava para sacrificar o seu filho para provar a sua completa submissão à vontade de Deus. A questão que permanece não resolvida diz respeito ao filho designado para o sacrifício. Foi Ismael ou Isaac? Enquanto entre os muçulmanos de hoje quase todos concordam que foi Ismael, o pai dos árabes e de Maomé, as mais antigas fontes islâmicas defendem frequentemente a opinião contrária. At-Tabari, seguindo o seu hábito, expõe em detalhe os dois pontos de vista. Segundo ele, existem tanto para uma como para a outra posição provas de igual importância, segundo a tradição dos profetas. No entanto, segundo At-Tabari, os dados corânicos fazem claramente pender a balança em favor de Isaac. Com efeito, diz ele, o Corão afirma que era o filho anunciado a Abraão e à sua esposa Sara, quando eles eram muito velhos. Só pode, portanto, tratar-se de Isaac. Em relação ao verso “(E, lembra-te,) quando o teu Senhor pôs Abraão à prova, com certos mandamentos (…)” (2/124), muitas discussões ainda se dão para determinar sobre quais mandamentos Abraão foi provado. Isso pode envolver momentos decisivos da sua vida: quando se tornou claro para ele que uma estrela não pode representar a divindade, quando ele foi sentenciado a ser queimado vivo, a emigração para longe do local do seu nascimento, a decisão de sacrificar o seu filho a Deus, e a circuncisão que teve de fazer em si mesmo e no seu filho. Outras interpretações adicionam rituais detalhados de peregrinação e, por vezes, outros rituais islâmicos. Isso apoia a ideia de que Abraão já estava acostumado à prática dos rituais islâmicos. Abraão sobreviveu à sua mulher Sara e à sua serva Hagar. Casou-se ainda pelo menos uma vez e também teve outros filhos. Morreu com 200 ou 257 anos e foi sepultado ao lado dos seus antepassados, em Hebron. 21
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Abraão ideologizado As ideologias religiosas veiculam a convicção de que Deus está (exclusivamente) ao seu lado e só eles podem legitimamente reivindicar a Verdade. Não é outra a ideologia islâmica pela qual as histórias, as pessoas, a religião e tudo o mais se dividem em duas categorias: ou apoiam as suas ideias, ou são falsas e condenáveis. Da mesma forma, no que se refere a Abraão, o Islão ideologizado não procura distanciar-se dos detalhes da história do profeta, ou mesmo estudar os dados contraditórios sobre ele. As investigações científicas sobre Abraão, que fazem parte da história ou do estudo das religiões, não são nem importantes nem desejáveis. Os ideólogos islâmicos têm os seguintes objetivos: a revolução islâmica, a transformação da sociedade e a “Guerra Santa”. Servem-se, portanto, também de Abraão, e reduzem-no ao papel do lutador abnegado da única causa que consideram justa e verdadeira. Segundo eles, há apenas uma verdade histórica: a que corresponde às suas ideias. E quando os dados históricos não apoiam a sua causa ou as suas teorias é porque, simplesmente, elas são falsas e fabricadas pelo inimigo – uma atitude que tem determinado grandemente a imagem do Islão nestes últimos tempos, tanto nas sociedades islâmicas como fora delas. Um dos ideólogos mais importantes e eloquentes do Islão atual é sem dú-vida o estudioso muçulmano iraniano Ali Shariati (1933-1977), cujos discursos e obras contribuíram de forma determinante para a Revolução Islâmica do Irão (1979) e desperta, ainda hoje, a simpatia e o entusiasmo, não só no Irão, mas em todo o mundo islâmico. Com base em Shariati, iremos mostrar nos exemplos seguintes como Abraão é representado na ideologia islâmica. Na ideologia islâmica, três temas básicos retornam, regularmente, ao abordar o assunto de Abraão: a) O ritual do Hadj, que, como obra de Abraão, é hoje o maior evento do mundo islâmico – a peregrinação a Meca, b) o facto de que Abraão estava disposto a sacrificar o seu filho Ismael para a causa de Deus, c) o chamado de Abraão para se deslocar para o monoteísmo e destruição de ídolos que ele realizou. Esses factos não são considerados apenas como acontecimentos do culto religioso. Eles aparecem também como atos simbólicos, atrás dos quais estão ocultas algumas mensagens políticas. Para Shariati, o ritual da peregrinação é o grande fenómeno do culto islâmico. De todos os rituais religiosos e seculares, o Hadj ocupa, segundo ele, um lugar especial, “como se Deus tivesse colocado na peregrinação tudo o que queria partilhar com o homem”. O coração do cerimonial da peregrinação é sem dúvida, a “Casa” sagrada, a Kaaba. Ela desempenha, por outro lado, um papel inovador como direção para a qual foi orientada a oração. Shariati não vê na decisão do Profeta – no segundo ano da Hégira – de se afastar de Jerusalém para se dirigir à Caaba, uma tentativa de criar um laço de identificação própria do mundo árabe-islâmico. Em vez disso, a Caaba é a característica comum de todas as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo 22
Abraão um unificador? a pessoa de Abraão sob uma perspetiva muçulmana
e Islamismo. Porque a Kaaba não pertence nem aos árabes, nem aos judeus, nem aos cristãos. Ela foi construída por Abraão e, portanto, pertence às três religiões. Com base na particularidade da peregrinação cerimonial, na qual todo muçulmano pode participar, independentemente do seu nome, da sua categoria, da cor da sua pele e da sua origem, independentemente do status e do sexo, Shariati vê o Islão como um apelo à união de todos os homens e de todas as religiões. Nas suas observações, ele tende para uma unidade sob a égide da fé islâmica (que é a sua). Para ele, o Islão restaura a verdadeira mensagem de Abraão e combate as outras religiões, que enganam. Na Hadj, o ritual mais importante, diz ele, é a oferta que permite lembrar a abnegação de Abraão. Esse ato traduz a vontade de se sacrificar e abrir mão de tudo o que se possui. Shariati destaca até que ponto a maneira de pensar e de agir de Abraão são importantes e ricas de ensinamentos para a época atual, e como contribui para as mudanças na sociedade. Porque para Shariati, na história como na sociedade, tudo gira em torno da luta contra a injustiça. Sob essa perspetiva, ele não considera a destruição de ídolos por Abraão como uma mera declaração de guerra contra o politeísmo. Tratava-se, para Abraão, de combater o sistema político e ideologia religiosa que se escondem atrás da idolatria. “A luta contra o politeísmo significa a destruição da base religiosa da discriminação, da opressão e da escravidão no seio da sociedade humana”. Ele esquece-se aqui de que o profeta Abraão era um filho do seu tempo e estava portanto impregnado na cultura tribal: que Ismael era o filho de Hagar, uma escrava oferecida por Sara ao seu marido; que Abraão depois enviou os dois para o deserto, a pedido da sua esposa e que, segundo o Génesis, tinha várias concubinas.
Conclusão A ideologia islâmica não fornece base para uma atitude de compreensão mútua, nem para as diferentes conceções do Islão, nem para as outras convicções religiosas ou não religiosas. O seu Abraão é um personagem irreconciliável, que não suporta nenhuma diversidade, que encarna uma verdade única – a sua – e combate tudo o mais que vê como estranho e condenável. O Islão idealizado realmente representa uma opinião minoritária. É contudo, isso que é percebido na sociedade europeia. A linguagem corânica, inclusive com relação a Abraão, está impregnada de ética. No entanto, distingue-se pela sua “exclusividade”: “Abraão não era nem judeu nem cristão. Ele foi inteiramente sujeito a Alá e não pertencia aos idólatras” (3/67). Embora Kuschel quisesse usar este versículo como prova de que Abraão pertence às três religiões monoteístas e nenhum dos três se deve apropriar dele exclusivamente, o texto mostra bem que os judeus e os cristãos se desviaram da verdadeira mensagem de Abraão e de Maomé e que os seus 23
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seguidores são aqueles que o seguem. Isto é claramente explicado pelo seguinte verso: “Em verdade os homens mais dignos de se reclamarem de Abraão são aqueles que o seguiram (e à sua proclamação na época), assim como este Profeta (Maomé) e os que (com ele) têm a fé. E Alá é o amigo dos crentes” (3/68). Quando se observa Abraão na historiografia, estamos mais à vontade. Abraão é aí retratado como um homem às vezes com seus medos, as suas incertezas e as suas fraquezas. Não é mais do que um homem piedoso à procura de Deus e que não pensa senão em praticar as instruções divinas. Ele mostra aqui e ali emoções e reage a este ou àquele evento, como um homem “normal”. O aspeto dominante do Abraão da historiografia é que ele não oferece uma imagem de uma única peça. Encontram-se constantemente e para quase todas as circunstâncias da sua vida indicações diferentes e até contraditórias. Não se trata apenas de alguns dados que não coincidem com descrições judaico-cristãs. Ao fazer um estudo sério sobre Abraão na historiografia, podemos superar muitas barreiras e obstáculos e cruzar muitas linhas de separação, até agora consideradas tão indestrutíveis entre a imagem de Abraão no Islão e as representações judaico-cristãs. Contudo, a imagem de Abraão tradicionalmente veiculada pelo Islão difere em muitos aspetos, das representações judaico-cristãs. É, contudo, imperativo hoje substituir essa linguagem exclusiva e procurar aceitarmo-nos uns aos outros como o deseja o espírito atual. Este problema foi identificado há muito tempo pelos pensadores progressistas do Islão. Em 1995, o intelectual muçulmano egípcio Nasr Hamid Abu Zayd (1943-2010) foi declarado apóstata e, portanto, fora da lei por especialistas de destaque no Egipto, por causa da sua interpretação moderna do Corão. Teve que ir morar para a Europa. Ele reconheceu que não há no Corão nenhuma indicação clara para confirmar que a democracia e os direitos do homem são conciliáveis com o Islão. No Corão, disse ele, alguns versos apoiam uma posição, e outros, outra. Fez referência a alguns versos contraditórios em que o Corão declara: “Ninguém constranja em religião!” (2/256) e ainda: “Na verdade, a única religião aceite por Alá é o islamismo” (19/03), ou ainda: “E quem quer que deseje outra religião diferente do Islão (em substituição da verdadeira fé) não será aceite (…)” (3/85). Nesta área, os intelectuais muçulmanos iranianos vão ainda mais longe. Abdulkarim Soroush, o mais importante pensador contemporâneo sobre o Islão no Irão, não procura, em primeiro lugar, encontrar no Corão conceitos como os direitos humanos, tolerância e democracia. Ele disse: “A era de interpretação no Irão chegou ao fim. Nenhum reformador usaria o texto do Corão como obra de referência para a democracia”. Ele mesmo argumenta em favor dos direitos humanos, sem se apoiar em textos religiosos ou tradições. Ele utiliza uma linguagem secularizada, para justificar os direitos humanos e parte do princípio de que “o ser humano tem fundamentalmente direitos diferentes dos religiosos. Ele tem direitos, simplesmente, como ser humano”. 24
A difamação das religiões: um braço de ferro internacional (1999-2009)
O reconhecimento mútuo como um pré-requisito absoluto para “o ecumenismo de Abraão” é um fenómeno moderno que se baseia na ideia da tolerância e dos direitos humanos. Iremos mal ao colocarmos as premissas na biografia de um homem que viveu há milhares de anos, mas se isto é o objeto da reivindicação exclusiva de cada uma das diferentes partes, é certo que nunca a alcançaremos. Lembrar Abraão como um grande profeta, respeitado por todas as partes interessadas pode, no entanto, contribuir para um clima de confiança, pelo menos entre as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. * Este artigo é um resumo. O texto original (incluindo notas de rodapé) pode ser visto no nosso site www. aidlr/deutsch/Gewissen und Freiheit/ (nota do autor). ** Assistente de Pesquisa do Instituto de Estudos Orientais da Universidade de Friburgo em Breisgau, na Alemanha.
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DOSSIER A difamação de religiões e liberdade religiosa Entrevista com o Embaixador Zamir Akram, Representante Permanente do Paquistão nas Nações Unidas em Genebra, realizado pela revista Consciência e Liberdade em agosto de 2010 Pergunta: O conceito de “difamação das religiões” tem sido objeto de discussão nas Nações Unidas, nos últimos dez anos. No entanto, muitas pessoas na Europa não entendem o significado. Pode explicar o que é isso? Quais são as razões por detrás desta iniciativa? Qual é o seu objetivo – ou objetivos? Resposta: Este conceito não é novo. Estamos a trabalhá-lo há mais de dez anos. Em 1999 e 2000, na época da Comissão de Direitos do Homem, resoluções sobre a luta contra a difamação de religiões foram adotadas por consenso. Foi apenas após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 que o conceito tem encontrado a oposição de alguns países ocidentais. Desde então, tivemos que submeter o assunto à votação. Que ideia é que está por detrás dessa resolução? O que é que motiva os nossos esforços? É uma consequência dos ataques contra os muçulmanos e o Islão. Outras religiões também têm sido objeto de ataques e críticas, mas em certas partes do mundo ocidental procura-se atacar particularmente o
Islão, as pessoas que ele venera, o Profeta Maomé (que a Paz esteja sobre ele!) e os membros da sua família. Tudo isso, para criar condições em que a discriminação torna a prática da religião muçulmana mais difícil e, o que é mais perigoso, para incentivar os atos de violência contra os muçulmanos – como vimos na Alemanha, França, Itália e noutros países ocidentais. Hoje, a islamofobia é uma realidade – como os estereótipos negativos que circulam sobre os muçulmanos – e parece ser aceite pelos liberais na Europa. Temos provas claras. Por exemplo, o político holandês Geert Wilders usou a sua campanha política para mostrar o Islão como uma religião que prega a violência. Ele compara o Corão, o nosso livro sagrado, a Mein Kampf de Hitler. Isso é o que significa para nós a difamação do Islão. Outro exemplo é a publicação na Dinamarca de caricaturas do Profeta Maomé (a paz esteja sobre ele!) que apresentam os muçulmanos como um povo violento. Na Suíça também, 27
Entrevista com o Embaixador Zamir Akram
Embaixador Zamir Akram
o partido populista fez campanha contra a construção de minaretes. Nos seus cartazes, podem ver-se minaretes em forma de mísseis. Na verdade, toda a campanha atacava os muçulmanos e as suas crenças. E depois há o caso da recusa em emitir a licença para a construção de mesquitas ou a proibição da compra de terrenos para servirem de cemitérios muçulmanos. Estes são os sintomas de um estado de espírito que queremos combater. Se tolerarmos a difamação do Islão, isso poderá levar à discriminação dos muçulmanos: eis o nosso argumento. Queremos proteger os muçulmanos e as suas comunidades dos ataques contra eles próprios e contra os seus lugares de culto. É também do interesse dos países ocidentais compreender que as suas
sociedades não são homogéneas. O número de muçulmanos aumenta em vários países europeus. Estes países não têm nenhuma vantagem em criar um ambiente em que essas populações tenham a sensação de ser uma minoria vítima de discriminação e privada dos seus direitos. Isso só poderia resultar em tensões e tumultos. É por isso que acreditamos que os países europeus fariam bem em admitir que há um problema. Nos Estados Unidos, onde também existe uma importante comunidade muçulmana, esta ou é considerada como tendo um “perfil terrorista” ou é suspeita de terrorismo. Se alguém tiver um nome que soa a muçulmano, é imediatamente assinalado e colocado sob vigilância especial. Estes elementos não facilitam a paz e a harmonia na sociedade multiétnica, 28
A Difamação das Religiões e a liberdade religiosa
multicultural e multi-religiosa. P: Os Problemas e mal-entendidos situam-se, talvez, antes de mais ao nível da linguagem. É geralmente entendido como “declarações difamatórias” as declarações falsas, erróneas, enganadoras. Mesmo quando alguém usa palavras desagradáveis sobre mim, se ele puder provar que as suas acusações são baseadas em factos, não podemos considerar a sua intervenção como “difamatória”. Quem pode julgar se uma declaração a propósito de uma religião – que é um fenómeno tão complexo – é verdade ou não, especialmente quando as diferentes religiões têm opiniões diferentes sobre princípios fundamentais? R: Para nós, não há nenhum problema. Basta ler o Corão. Este é o livro em que acreditamos. Acreditamos também que é a palavra de Deus. Não é assim tão difícil de provar o que ele diz e aquilo que ele não diz. Se se pretende que o Corão ensina a violência, então devemos especificar onde é que ela é mencionada. Podemos mostrar numerosas passagens em que este livro prega a paz, a fraternidade, a tolerância e o perdão: esta é a mensagem do Corão. Nenhuma religião – quer seja o Islamismo, o Cristianismo, o Judaísmo ou o Hinduísmo – ensina a violência ou diz: “Vai matar alguém”. Portanto, se alguém quer dizer outra coisa sobre o Islão, que o demonstre a partir do Corão. É claro que ele pode ter várias interpretações. No seio do Islão, há duas correntes principais: os xiitas e os sunitas. Há também diferentes abordagens, tais como wahhabismo e o
sufismo. Existem várias escolas de pensamento, diferentes perceções do Islão, mas isso não é o problema. Se alguém apresenta o Islão como uma má religião que preconiza a violência, como é que chegou a essa conclusão? Que nos mostre onde o Corão ensina isso. P: Um outro problema deriva do conceito de “difamação das religiões” tentando proteger ideias e não pessoas, e sobretudo não indivíduos. Isso parece estar em oposição direta com o valor essencial e o conceito que está na base dos direitos do Homem, de acordo com a Declaração Universal. O conceito de “difamação das religiões” é visto como uma ferramenta das maiorias para oprimir as minorias. R: O conceito dos direitos do Homem é dinâmico. Não é estático e, portanto, pode evoluir. À medida que a humanidade progride, ele identifica os problemas a tratar. No século XVIII, a discriminação racial e a escravidão não eram considerados como questões relacionados com os direitos do Homem. Os filósofos do Iluminismo que avançaram com os ideais dos direitos humanos – especialmente aquele que diz que todos os seres humanos nascem com direitos iguais – não viam a escravatura na América Latina como um problema. Admitiam a discriminação racial. Mesmo as igrejas cristãs, em geral, não se lhe opuseram, embora a Bíblia ensine que todos os seres humanos foram feitos pelo mesmo Criador. Os cristãos, em geral, também toleraram o apartheid na África do Sul durante muitos anos. 29
Entrevista com o Embaixador Zamir Akram
Mas a compreensão dos direitos do Homem evoluiu e, agora, todo o mundo está de acordo em reconhecer que a discriminação racial é algo de errado. E hoje são muitos os que, mesmo na Europa, reconhecem que a discriminação baseada na religião – especialmente a discriminação para com os muçulmanos – é uma nova forma de discriminação racial. Nós não podemos ver os conceitos de direitos humanos e o Direito, como elementos estáticos. Naturalmente eles evoluem de forma natural, constantemente, como a sociedade. Muitas das nossas resoluções sobre a difamação das religiões foram aprovadas por unanimidade. Outras foram votadas por maioria. Nós estamos prontos para trabalhar com os nossos parceiros a fim de estabelecer novas normas para lidar com estas questões. Além disso, nos direitos do Homem, não é apenas questão de indivíduos, mas também de ideias e de factos históricos. Na Europa de hoje, negar o Holocausto é visto como um crime. O Holocausto não é contudo um “indivíduo”, é um facto histórico. Mas é um crime negá-lo. Por que não considerar também o insulto à religião dos outros como crime? Devemos distinguir entre, por um lado, as observações e a crítica e, por outro, o insulto, e denegrir deliberadamente uma religião com intenção de causar um impacto negativo sobre os seus membros. É necessário estabelecer a diferença. Não nos opomos à crítica. Nós, muçulmanos, criticamo-nos a nós mesmos. Fazemos isso por várias razões e
porque temos diferentes correntes de pensamento. Isto não é um problema para nós. Mas parece-me que as minhas convicções não devem ser objeto de insultos deliberados visando ferir-me. É por isso que normas internacionais – como por exemplo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, nos artigos 19 e 20 – reconhecem que a liberdade de expressão deve ser submetida a certas restrições. Recentemente, por ocasião da Conferência de Durban, o presidente iraniano, Ahmadinejad provocou uma polémica quando disse no seu discurso que o Holocausto não podia ser provado. É a sua opinião e tem o direito de dizer isso. Mas testemunhámos a reação de muitas delegações: deixaram a sala. Na Europa, pode-se dizer o que se quiser sobre o Islão, mas nada contra o Holocausto. Se fizer isso, pode ser levado ao tribunal e lançado na cadeia. Dois pesos, duas medidas. Porquê? P: O conceito de “difamação das religiões” parece abolir o conceito e o ideal de “liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, na medida em que não protege esta liberdade, mas mais o lado “intocável” de uma religião ou das religiões? O que pode representar uma religião? Quem poderia ser a parte ofendida? R: Segundo o Direito Internacional (artigos 19 e 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos), existem restrições à liberdade de expressão, que podem ser aplicadas se o exercício dessa liberdade leva à violência ou à discriminação. 30
A Difamação das Religiões e a liberdade religiosa
Nesse caso, poderia ou deveria ser proibida. Se a difamação do Islão é autorizada, e isso leva à violência ou discriminação, então deve aplicar-se o Direito Internacional. Quais foram as consequências da publicação das caricaturas do profeta Maomé na Dinamarca? Em várias partes do mundo muçulmano, houve motins e as embaixadas da Dinamarca foram atacadas. Na Alemanha, mulheres que usam o “hijab” foram agredidas. Na Itália, e noutros lugares, restaurantes que servem comida “halal” foram alvejados. Pessoas viram recusada a permissão para abrir um restaurante “halal”. Ora “halal” quer dizer a mesma coisa do que “kosher”. Por que não se aplicam também restrições aos restaurantes kosher? “Liberdade de expressão” não pode e não deve significar a liberdade de criar um ambiente em que as pessoas estão sujeitas a discriminação, violência e ataques. É assim que nós interpretamos os artigos 19 e 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Como disse anteriormente, nós não somos contra as críticas, mas opomo-nos aos insultos intencionais, à difamação e ao denegrir deliberado do Islão e dos muçulmanos. Quando algo representa um valor importante para um muçulmano e ele acredita firmemente nisso, se é insultado voluntariamente sobre isso sem qualquer provocação da sua parte, então isso deve ter consequências. Num debate intelectual, podem estar em desacordo com o ensino do Islão ou com a história islâmica, podem ter uma qualquer opinião sobre isso, isso
não é um insulto. O insulto deliberado, a distorção, ou a estigmatização são outra coisa completamente diferente. Se, por exemplo, como na campanha contra minaretes, se utilizaram cartazes representando minaretes em forma de mísseis, qual é a mensagem? Dar a impressão de que o Islão é uma religião violenta, e isso com um objetivo bem definido. Noutra campanha, o mesmo partido político suíço usou os símbolos da ovelha branca e da ovelha negra. A mensagem era igualmente clara: o racismo deliberado. Era o mesmo com a representação dos minaretes, estas últimas simbolizando o muçulmanos. É importante para a Europa no seu todo, e não apenas para os muçulmanos que aí vivem: se permitirmos que os movimentos políticos utilizem argumentos e métodos semelhantes, no fim de contas, submetemo-nos a esses partidos e ao seu programa. Já o vimos na Holanda. O partido do sr. Wilders pode influenciar a legislação contra as minorias. Observamos uma tendência semelhante em França, com todas essas proibições sobre o uso do véu ou lenço. Acontecimentos de natureza semelhante já tiveram lugar na Europa, no passado – e degeneraram. Não é do interesse da Europa repetir os mesmos erros. No passado, visavam os judeus e outras minorias. Hoje, são os muçulmanos. Os países europeus devem analisar connosco estas questões, porque isso é do seu próprio interesse. P: Alguns temem que a constante pressão a favor da “difamação de religiões” apenas sirva para alar31
Entrevista com o Embaixador Zamir Akram
gar o fosso entre o conceito “ocidental” tradicional dos direitos do Homem e o mundo islâmico. Isso pode tornar mais real e tangível o “choque de civilizações”. Será que o conceito de difamação das religiões acaba por trazer mais mal do que bem? Será que não criará mais dificuldades do que as que poderá resolver? R: Desde logo, os direitos humanos não são apenas um conceito “ocidental”. O Islão e outras culturas “orientais” têm os seus próprios conceitos de direitos humanos. Não precisamos de aprender com o “Ocidente” neste domínio. No Islão, há leis e tradições que mostram até que ponto os direitos humanos são importantes. Da mesma forma, noutros sistemas “orientais”, os conceitos de direitos humanos aparecem claramente. Não são, portanto, uma invenção do mundo “ocidental”. Depois, o “choque de civilizações” é precisamente o que queremos evitar. Estamos a tentar abrir os olhos dos nossos parceiros europeus para que tomem consciência dessa ameaça. O “choque” já ocorreu. A nossa iniciativa põe em evidência as nossas preocupações sobre os temas a abordar. Nós não o usamos para fustigar o “Ocidente”. Quem ler atentamente as resoluções que propomos vai encontrar diversos parágrafos sobre a necessidade de diálogo entre as civilizações, a necessidade de respeitar a diversidade – étnica, cultural e religiosa linguística e religiosa. Não consideramos esta iniciativa como um meio de provocar o “choque”, mas sim como uma forma de construir uma ponte entre duas margens.
P: Neste contexto, surge a questão da “universalidade” dos direitos do Homem. São eles universais? A Declaração do Cairo sobre direitos humanos no Islão não menciona a “liberdade de pensamento, consciência e de religião”. Parece também que a “liberdade religiosa” é entendida e aplicada de forma diferente em alguns países islâmicos? R: Os direitos fundamentais do homem são universais e aplicáveis em todo o mundo. Certamente que há, em alguns lugares, dois pesos, duas medidas, mas são as sociedades, os governos ou os indivíduos que devem ser censurados. Na realidade, o Islão não fala de “direitos humanos universais” mais do que o Cristianismo ou o Judaísmo. Se os cristãos e judeus lessem o Corão, descobririam que a nossa mensagem é idêntica, e acreditamos que esta mensagem vem da mesma fonte. Portanto, não nos consideramos diferentes deles neste domínio. De acordo com o Corão, não deve haver qualquer coerção na religião: o indivíduo pode escolher qualquer religião. Mas se pensa escolher o Islão, tenha cuidado porque não poderá voltar atrás na sua escolha. No passado, quando o Islão se propagou, muitas pessoas se tornaram muçulmanos só para colher os benefícios sem realmente acreditarem nele. Há países, sociedades e governos que não reconhecem o direito à liberdade de religião, mas isso não muda a posição do Islão. Hoje, alguns países estão dispostos a aceitar alguns aspetos deste direito, mas não todos. Há obstáculos, mas estes obstácu32
A Difamação das Religiões e a liberdade religiosa
los existem de ambos os lados. O importante é que os países, inclusive o meu, aderem tanto à Declaração Universal como à Declaração do Cairo. Estamos empenhados em ambos, e muitos países muçulmanos estão no mesmo caso. P: Outro termo é usado agora: “islamofobia”. Ainda aqui pode haver, antes de mais, um problema linguístico, uma vez que o sufixo “fobia” remete para um distúrbio de ordem psicológica, e não para uma questão que pode ser resolvida ao nível legal. No entanto, a islamofobia é tratada como um medo irracional e sem fundamento dos muçulmanos ou do Islão. De facto, alguns europeus dizem que não têm medo dos muçulmanos, mas sim da “Revolução islâmica”. R: Para nós, a “islamofobia” é o equivalente do “anti-semitismo”. Houve – e provavelmente ainda hoje existe – um preconceito contra os judeus, assim como existe um preconceito contra os muçulmanos. É dessa forma que vemos as coisas.
No que se refere à “Revolução islâmica”, o que é que entendemos por isso? O que aconteceu no Irão foi uma revolução política. A sua base ideológica derivava do ensino islâmico porque o Ayatola a conduzia, mas foi, na realidade um assunto essencialmente político. Pode ocorrer toda a sorte de revoluções: comunistas, como na Rússia ou na China, ou socialistas como em Cuba. As revoluções ocorrem por causa das condições sociais, políticas e económicas de uma dada sociedade. Os seus fundamentos ideológicos variam, mas no coração de cada um delas encontra-se um sentimento de injustiça, de direitos violados e de discriminação – são estas as razões que levam as pessoas a levantarem-se contra uma ordem estabelecida injusta. Se os muçulmanos são tratados de forma injusta, provavelmente reagirão – nós vemos exemplos na Palestina e em Caxemira. Se não ajudarmos as forças moderadas a conseguirem vencer, mais cedo ou mais tarde vamos ter de lidar com os extremistas. Vê-se bem o que isso pode causar em várias regiões do mundo.
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Liberdade de expressão e religião Jean Baubérot* Tal como a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de expressão é uma conquista extremamente valiosa da democracia, que pode ser explorada como um álibi para cobrir fins muito menos nobres. Em França, a liberdade de expressão pública – cujo ideal tinha sido formulado no decurso do século XVII e desenvolvido pelo Iluminismo – foi essencialmente concretizado nos anos de 1880 pela legislação liberal (liberdade de imprensa, liberdade de reunião, etc.) ao mesmo tempo que se instaurava a laicidade. Duas questões merecem atenção: Deve a religião reclamar uma protecção especial perante a liberdade de expressão? O problema da liberdade de expressão coloca-se hoje em condições idênticas às dos séculos XVIII e XIX? Vamos começar pela segunda: Convidado a participar num programa de televisão sobre as caricaturas de Maomé, o filósofo canadiano Daniel Weinstock, teve de esclarecer a sua posição antes de chegar ao palco. À pergunta: “Havia o direito de publicar tais caricaturas?” respondeu essencialmente isto: Sim e não. Sim, porque é parte da liberdade de expressão. Não, porque é um exercício irresponsável
dessa liberdade. A resposta foi considerada muito complexa, e Daniel Weinstock foi excluído do painel, o qual não reuniu senão os que eram a favor e os que eram contra. Esse tipo de exclusão tem sido muitas vezes feita a propósito de outros tópicos, especialmente do que se chamou o “lenço”. Isso significa que se formou um verdadeiro clericalismo mediático, que, em nome de uma pseudo simplificação, impede que certos pontos de vista participem no debate público. Como a igualdade formal pode ocultar discriminações, a liberdade de expressão formal pode ser invocada, de forma a esconder as exclusões perante essa liberdade. O equilíbrio do poder, o poder do dinheiro, as pressões de todos os tipos, como “pressões mediáticas” constituem verdadeiras ameaças à real liberdade de expressão das diversas correntes de opinião. Examinemos agora a primeira: as religiões não devem reivindicar um estatuto especial perante a liberdade de expressão, porque o que é sagrado para eles não o é para aqueles que não partilham das suas crenças. A crítica da religião é parte do debate público e a liberdade de crer e tentar convencer através do proselitismo tem como 34
Liberdade de expressão e de religião
contrapartida a liberdade de não acreditar e tentar convencer de que não devemos acreditar. A religião deve fazer parte do Direito Comum (é isso a laicidade). A partir daqui podem-se verificar três coisas: A liberdade de expressão não é absoluta. As leis impõem limites à sua manifestação. Estes limites podem aliás ser objecto de debates e, por vezes, ser diferentes entre países e entre as instâncias nacionais e internacionais. Assim, a França foi condenada por duas vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violação da liberdade de expressão, a propósito de assuntos que (especificamente) estavam relacionados com a religião (deliberação altamente controversa, considerada difamatória em França, mas não pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sobre a associação anti-seita ADFI e sobre uma encíclica de João Paulo II). Isso aconteceu na mesma época das caricaturas! No entanto, nestes dois casos, nenhum jornal reproduziu os textos em questão. Defesa de geometria muito variável da liberdade de expressão! Além das decisões judiciais, Daniel Weinstock levanta com justiça a questão do exercício responsável da liberdade de expressão. Nós não somos obrigados a utilizar totalmente
Manifestação de 11 de fevereiro de 2006 em Paris contra a publicação das caricaturas de Maomé. Foto Wikimedia Commomns/David Monniaux
as liberdades de que devemos legitimamente poder dispor (e que se podem legitimamente reivindicar). Assim, para as caricaturas, devemos pensar noutras caricaturas também excessivas sobre personalidades não-religiosas: caricaturas representando, por exemplo, Jaurès como um traidor à pátria, ou agindo como se, de facto, De Gaulle e Pétain estivessem de acordo durante a II Guerra Mundial e partilhassem as tarefas. Será que tais caricaturas não levantam alguma celeuma entre os gaullistas ou socialistas? Os defensores patenteados da liberdade de expressão na área da religião, também se mostram motivados para a defender neste caso? Seria interessante interrogar-se, sobre isto, para 35
Jean Baubérot
totalmente truncadas de Maxime Rodison e que isso devia ser denunciado. A liberdade de expressão é total e deve articular-se com outros valores ou exigências, incluindo o de veracidade, pertinência e da inteligência. Recusar julgar a inteligência ou a estupidez de uma ideia, sob o pretexto da liberdade de expressão, não leva senão a caucionar a banalização generalizada que, por causa do simplismo privilegiado pelos meios de comunicação de massa, ameaça as sociedades modernas, tanto como os atentados à liberdade de expressão.
refletir sobre o exercício responsável da liberdade de expressão, para além dos aspectos legais da questão. A Liberdade de expressão não deve ser uma máscara para tornar o seu próprio objetivo incriticável e um álibi para a absolutizar. Todos devem manter o seu espírito crítico, e não o abandonar a pretexto de defender a liberdade de expressão. Devemos, em cada caso, julgar o valor do argumento. Assim, o facto de Robert Redeker1 ter recebido uma ameaça de morte de um indivíduo não muda o facto de que ele tinha feito citações
* Presidente Honorário da École Pratique des Hautes Études en Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia do secularismo na EPHE, Paris, França. NOTA: 1. O texto de R. Redeker, intitulado “O que deve fazer o mundo livre, perante as intimidações islâmicas?”, publicado por Le Figaro a 19 de setembro de 2006, levou ao confisco do jornal pelas autoridades tunisinas e egípcias. Neste artigo, o autor cita – parcialmente, parece – extratos de um artigo da Encyclopedia Universalis assinado pelo historiador, sociólogo e orientalista Maxime Rodison (1915-2004) de que se serve para apoiar a sua crítica ao Islão. (NRLR)
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Difamação das religiões: um braço de ferro internacional (1999-2009) Blandine Chelini-Pont * sibilidade religiosa, para evitar o grave problema do outono de 2005, em volta das caricaturas de Maomé. Estas foram publicadas pela primeira vez num diário dinamarquês e depois replicado noutros jornais europeus, incluindo o semanário satírico francês Charlie Hebdo, após o choque dos atentados de Londres de Julho de 2005. Para alguns grupos de defesa dos direitos humanos, como a Federação Internacional dos Direitos Humanos, em Helsínquia1, ou para os Estados muçulmanos, como a Organização da Conferência Islâmica Mundial (OCI)2, este caso pôs claramente em evidência aquilo que eles tinham vindo a alegar há muito tempo, a saber, a discriminação patente das populações muçulmanas na Europa e a imagem deformada que os médias se compraziam em dar deles e da sua religião3. Mas para os comentadores e as opiniões públicas dos países europeus, foi como um golpe montado, uma manifestação tangível do activismo dos fundamentalistas muçulmanos contra a democracia e o seu valor supremo: a liberdade de expressão. A Organização da Conferência Islâmica, um grupo de Estados no seio da Comissão de Direitos Humanos na ONU – em março de
O respeito pelas crenças religiosas é um direito difícil de introduzir nas democracias que colocam em pé de igualdade a liberdade de expressão e de opinião e a liberdade de consciência e de crença. Ao mesmo tempo, a exigência do pluralismo necessita de encontrar os meios de convivência simultaneamente pacífica e tolerante entre os crentes ou não crentes que vivem numa sociedade democrática. Vários Estados da Europa têm legislação que proibe e reprime (mais ou menos) a blasfémia e a injúria de carácter religioso. Mas muito poucos desses crimes foram cometidos nos últimos anos, e as legislações europeias concentraram-se noutras questões mais “consistentes” como o negacionismo, assim como o racismo e a discriminação motivadas pela pertença religiosa. Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem produziu jurisprudência equilibrada, em função das circunstâncias nacionais e que, espera-se, venha a moderar os excessos da liberdade de expressão quando os sentimentos religiosos das pessoas são particularmente afectados. Contudo, o conjunto não parece ter construído um “uso” democrático e mediático suficientes sobre as questões do respeito pela sen37
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2006 tornou-se o Conselho dos Direitos Humanos (CDH) – lançou-se, desde 1999, na luta contra a “difamação das religiões, especialmente do Islão”, ovni jurídico que abrange ao mesmo tempo a blasfémia, a violação do sentimento religioso, o incitamento ao ódio racial ou ainda a discriminação social e jurídica com base na religião. A OCI obteve através de resoluções, tanto da Conselho dos Direitos do Homem como da Assembleia Geral da ONU, a condenação deste conjunto, intitulado “difamação do Islão” antes do caso das caricaturas. Sempre sob a iniciativa da OCI, a acção da ONU intensificou-se depois do assunto aludido, com a proposta de uma penalização efectiva da “difamação das religiões” com base no artigo 20 (2) do Pacto Internacional das Nações Unidas relativo aos Direitos Civis e Políticos (1966): “Toda a apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua um incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência deve ser proibido por lei.” Esta reivindicação de penalização levou, em 2008, ao projeto de uma convenção internacional sobre o assunto, projeto rapidamente abandonado. Vamos examinar a atividade militante da OCI as resoluções e as ações que este grupo de Estados tem obtido junto da ONU, especialmente após o assunto das caricaturas de 2005, e ver que levaram exatamente à reação inversa do que ela esperava por parte das opiniões e dos Estados de direito ocidental. Os média têm, realmente, abalado o espetro do crime de blasfémia, e exigiu que ele desaparece em países de direito onde ainda existe,
enquanto que a OCI pediu justamente o contrário, isto é, a sua reativação. Os mesmos média criticaram o regresso da censura religiosa e têm defendido, com o apoio da opinião pública, a liberdade de expressão como um berço da democracia em perigo. O bloco dos governos da Europa e da América do Norte recusaram votar as resoluções da ONU, iniciadas pela OCI e avançar para as suas reivindicações. A definição legal de “difamação”, “discriminação” e “racismo” foi retrabalhado para especificar as inconsistências na lógica normativa dos direitos humanos, de qualquer “difamação de religiões”5. O Conselho da Europa, através da sua Assembleia Parlamentar, elaborou um contra-fogo muito teórico para se opor a esta ideia de “difamação de religiões”, ou qualquer tentativa de restringir os pontos de vista opostos quanto ao conteúdo de uma religião quando essas opiniões não são um insulto intencional, um incentivo específico para a discriminação ou o incitamento ao ódio, violência ou pior ainda. Os média franceses, por exemplo, têm defendido a liberdade de expressão, o secularismo, a liberdade de opinião, incluindo a que choca, perturba ou agride através da sátira e da caricatura, muitas verdades conhecidas nas conclusões do julgamento de Charlie Hebdo interposto pela Grande Mesquita de Paris… No fim, a ideia de que uma religião possa ser protegida de opiniões críticas, satíricas ou hostis, em nome do respeito que se deve ou deveríamos aos seus praticantes, foi claramente rejeitada pelos governos 38
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e opiniões públicas dos países ocidentais, e nenhuma alteração legislativa foi decidida nesse sentido. No entanto, além da aparência extremamente frontal do debate (ainda em curso) e da onda de choque causada por essa discussão – a indignação europeia contra o integrismo fundamentalista islâmico, a defesa apresentada da liberdade de expressão, contestada pela OCI e outros grupos denunciando o desprezo pelo Islão e a discriminação que os muçulmanos sofrem desta forma, ou de outras – o confronto em si foi uma fonte de evolução. O debate, de certa forma, avançou apesar de posições irreconciliáveis.
violações dos direitos humanos e ao terrorismo”. A Comissão pediu então uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, pedindo que os governos tomassem medidas adequadas para combater a “intolerância ou ódio religioso” motivando as palavras, os atos de violência, de intimidação e de coerção, bem como a discriminação, sobretudo das mulheres, e a profanação de locais religiosos. O conjunto da resolução não punha então nenhum problema e, a expressão “difamação das religiões” não tinha um conteúdo muito específico, mas sim constitui um título de choque. Outras resoluções idênticas foram posteriormente aprovadas pela Comissão até 2005, sob o título “Combater a difamação das religiões”7. Entretanto, os ataques de 11 de setembro, o retomar da Intifada em Israel-Palestina (a criação de um Estado palestino é um dos objetivos da OCI) e da intervenção dos EUA no Afeganistão, em seguida no Iraque, tinha dividido profundamente os espíritos. A OCI começou a veicular mais ativamente as acusações de discriminação social e mediática dos muçulmanos, tais como a “difusão de estereótipos negativos” sobre eles e da religião muçulmana (tomado como um todo intocável). Foi então que eclodiu, no final de 2001, um primeiro conflito muito violento no momento da redação do texto da Conferência de Durban consagrada ao racismo, discriminação racial, xenofobia e à intolerância que lhe está associada. Realizada na África do Sul de 31 de agosto a 7 de setembro, esta assembleia desenrolou-se num clima extrema-
I. O conceito de difamação das religiões, introduzido em 1999 por uma resolução da Comissão de Direitos Humanos da ONU A. Uma iniciativa da Organização da Conferência Islâmica Mundial A primeira resolução, introduzida por iniciativa do Paquistão, representante da OCI, foi adotada sem votação pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em Abril de 19996. Inicialmente, intitulou-se “Difamação do Islão”, mas o texto alterado após a discussão tomou outro título, mais geral: “Difamação das religiões”. O conteúdo procurou denunciar a discriminação com base na religião ou crença, de forma que todos a pudessem aceitar. Depois deu conta da preocupação da Comissão perante a proliferação de estereótipos negativos contra as religiões e especialmente contra o Islão, “frequente e erroneamente associado a 39
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mente hostil à ocupação israelita dos territórios palestinianos e propício à confusão das coisas. O texto final foi produzido em dezembro e não foi aprovado por todos os Estados. Numa série de parágrafos relacionados, ele fez a ligação entre a memória do Holocausto e o aumento da discriminação contra os muçulmanos, considerando que agora estes últimos arriscavam-se ou eram ameaçados de sofrer um tratamento equivalente por uma sequência de comportamentos que incentivam o ódio e a violência cada vez mais importantes.8 Um dos parágrafos tomava também posição sobre o destino do povo palestino e, pela sua posição no documento, dando a entender que a situação infeliz desta população era o resultado do racismo, da xenofobia e da intolerância do Estado de Israel para com os árabes muçulmanos. Depois de Durban, vários Estados começaram a recusar votar as deliberações da Comissão de Direitos Humanos sobre a difamação das religiões: por exemplo, os Estados Unidos (que ainda faziam parte dela), o Canadá e os países da União Europeia (UE).
do o princípio de um relatório sobre a situação de discriminação contra Árabes e muçulmanos no mundo, que é confiada ao relator das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de racismo e de discriminação. Esta resolução foi aprovada a 15 de dezembro de 20059. A Assembleia lamenta “o impacto continuadamente negativo dos acontecimentos de 11 de setembro sobre as minorias e comunidades muçulmanas em países não-muçulmanos, a projeção negativa do Islão nos meios de comunicação e a introdução e o reforço de leis que discriminam especificamente e visam os muçulmanos. A “projeção negativa” do Islão nos meios de comunicação é então confundida com a noção de “difamação do Islão” e da difamação do Islão (um ataque contra o Islão) confundido com o incitamento ao ódio, à violência e à discriminação contra o Islão”10. Esta resolução foi aprovada por 101 votos a favor, 53 contra e 20 abstenções. No final de 2005, é aprovado – sem voto – uma outra resolução da Assembleia sobre os esforços globais para a total eliminação do racismo, da discriminação racial e para a efetiva implementação da Declaração de Durban e o seu Programa de Acção11. Apesar de se centrar exclusivamente sobre a intolerância religiosa, essa resolução permanece em limites razoáveis, denunciando, sem citar como exemplo, o aumento do ódio, intolerância e discriminação em razão da religião ou crença. O texto insiste particularmente sobre as medidas legais de discriminação institucional que seriam tomadas em
B. Difamação das religiões torna-se um debate “explosivo” – Setembro de 2005 e Setembro de 2007 1. Atividades e resoluções da ONU, após a publicação das caricaturas (Setembro 2005) O caso das caricaturas ocorreu no final do verão de 2005. A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma primeira resolução geral sobre a “difamação de religiões”, em que é coloca40
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detrimento de certos grupos religiosos e sobre a difusão do discurso do ódio pelos canais de média, incluindo a Internet. Ele usa para descrever este ódio religioso as palavras anti-semitismo, a islamofobia e “cristianofobia”. A Assembleia decidiu nesta resolução confiar ao Relator Especial da Comissão de Direitos Humanos sobre a liberdade de religião ou crença a tarefa de preparar um relatório especial sobre a intolerância religiosa. 2. O surgimento do Conselho de Direitos Humanos e os três relatórios de 2006 do Relator Especial sobre a Eliminação de Todas as Formas de Racismo
“Não queremos mesquita em Trentino!”. Poster da Lega Nord (Liga do Norte para a independência da Padânia, entre política federalista e regionalista, por vezes xenófoba). Trentino, Itália, agosto de 2007. Foto Wikipedia Commoins(/Paolo Massa.
a) O objetivo da Comissão de Direitos Humanos É neste contexto do crescimento da difamação do Islão e do aumento da intolerância religiosa, em geral, que vai dar-se a substituição da Comissão de Direitos Humanos da ONU pelo Conselho de Direitos Humanos – votado a 15 março de 2006. As primeiras eleições para o novo Conselho realizaram-se a 9 de maio de 2006 e sua primeira sessão a 19 a de junho de 2006. Os seus 47 membros são nomeados por distribuição geográfica, 36% delas pertencem à Organização do Mundo Islâmico (isto é 17 membros da Comissão e 57 da Assembleia Geral das Nações Unidas). O cálculo político pode ser conseguido: a associação de membros da OCI com os grupos da Liga Árabe e os Estados Não-Alinhados permitem obter a
maioria na Comissão. Numa primeira resolução sobre a difamação das religiões – sempre por iniciativa da OCI – o novo Conselho dos Direitos do Homem vai exigir um relatório sobre o incitamento ao ódio racial e religioso e a promoção da tolerância14. Mas a resolução não foi votada por todos. Doze países recusaram-na15, porque o conteúdo do texto considera como equivalentes, sem definir de uma forma precisa, a difamação da religião e o incitamento ao ódio racial e religioso. A resolução, em seguida, solicita que o relatório seja posto em relação com as implicações para a difamação das religiões, do artigo 20, parágrafo 2 º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. 41
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anexado ao que foi pedido sobre o mesmo assunto ao Relator Especial sobre a liberdade religiosa por outra resolução da Assembleia Geral da ONU datada de Dezembro de 2005 (A. RES/60/166). Este relatório duplo foi apresentado em setembro de 2006 na segunda sessão do Conselho.18 c) Conteúdo do Relatório Os relatórios são bastante longos, mas podemos tentar resumi-los em algumas ideias-chave que abordam a difamação do Islão, sem a fixação do conteúdo, se este não confunde o incitamento ao ódio religioso e racial como uma nova forma de racismo e exigindo a sua punição, assim como aos anti-semitas. 1. Uma consequência importante da luta contra o terrorismo foi a marginalização do processo anti-racista de Durban. 2. O racismo é comum no Ocidente, nomeadamente na agenda oficial de alguns partidos políticos. Ele está escondido sob o rótulo de “crítica do Islão”. 3. Islamofobia é um racismo relacionado com o sentimento de superioridade cultural que vem de muito longe na história do Ocidente. As caricaturas dinamarquesas são um exemplo dessa atitude, mas certamente não o último. 4. Os muçulmanos sofrem discriminação cada vez mais abertamente legalizada. 5. A difamação do Islão, no atual contexto de discriminação contra as comunidades muçulmanas, a associação do Islão com o terrorismo e
Fiéis muçulmanos orando em direção a Meca. Mesquita Umayyad, em Damasco, na Síria. Foto Wikipedia/Antonio Melina
b. Cronologia dos Relatórios Em dezembro de 2005, Doudou Diene, relator especial sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, viu confirmado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (A/RES/60/150) o mandato de apresentar um relatório (especial) para o ano de 2006 sobre a situação dos povos árabes e muçulmanos em várias partes do mundo. Ele redigiu-o em fevereiro de 2006 e apresentou-o em setembro do mesmo ano, na segunda sessão do Conselho dos Direitos Humanos16. Cabia-lhe, igualmente, o relatório, normal, sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (A/RES/60/251), que ele entregou em janeiro de 2007 e, finalmente, o relatório pedido pelo novo Conselho de Direitos do Homem sobre o incitamento ao ódio racial e religioso e a promoção da tolerância. Para não haver duplicação, este último foi 42
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a proliferação de islamofobia nos média deveria ser interdita como uma forma particularmente virulenta de incitamento ao ódio religioso nos termos do artigo 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966: “1. Toda a propaganda em favor da guerra deve ser proibida por lei. 2. Todo o apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência deverá ser proibido por lei.” Este conteúdo está bem desenvolvido no relatório conjunto de Setembro de 2006 e no relatório anual divulgado em janeiro de 2007. A parte dedicada no Relatório à Liberdade de Religião oferece ainda uma outra perspetiva, e que, em última análise, esta perspetiva possa ser adotada pelos países ocidentais. Asma Jahangir, disse que muitas vezes são os Estados que discriminam e difamam as minorias. Ela fez antes menção das denúncias recebidas sobre a difamação de grupos religiosos por agentes do Estado. Esses ataques visam, muitas vezes, religiões pouco importantes numericamente e, portanto, mais vulneráveis. Os Estados devem implementar políticas (em particular no domínio da formação) incentivando os seus funcionários ao respeito pelas religiões, pois é verdade que os ataques anti-religiosos partindo de funcionários podem ter graves repercussões. A difamação de religiões por atores não-estatais é uma situação mais complexa, segundo Asma Jahangir. É preciso distinguir entre a análise teológica do conteúdo de uma religião e as formas mais extremas do incitamento à violência anti-religiosa, que podem dar 43
origem às piores formas de violência contra a religião. Entre estes dois extremos existe uma gama de formas de expressão sobre temas religiosos, incluindo a sátira e os comentários depreciativos. O direito à liberdade de religião ou crença protege principalmente o indivíduo e, em certa medida, os direitos coletivos das comunidades religiosas ou de crença. O tema dos direitos humanos não é a religião em si mesma, mas tanto homens como mulheres que têm esse direito. Isso não inclui o direito a uma religião de estar ao abrigo de qualquer análise, crítica ou sátira. A senhora Jahangir reconhece, contudo, que se as atitudes críticas são permitidas, nem sempre são justificadas. As formulações que ferem não constituem violações diretas dos direitos humanos qualificados, mas arriscam-se a estigmatizar os membros das religiões visadas e encorajar um clima de intolerância. A resposta não reside na aprovação de leis limitando a liberdade de expressão, mas sim em tomar medidas para criar um clima de tolerância e de inclusão no seio do qual as religiões sejam exercidas ao abrigo da discriminação ou estigmatização. Os dois relatores proposeram, em conclusão, que a Comissão de Direitos Humanos refletisse na adoção de normas complementares sobre as relações entre a liberdade de expressão, a liberdade de religião e não-discriminação, incluindo a produção de um comentário geral ao artigo 20 da Convenção sobre os Direitos Civis e Políticos. Que saibamos, este comentário nunca foi feito.
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e as liberdades lhe são negados. O controlo administrativo das populações árabes e muçulmanas agrava a sua discriminação.
3. A resolução do Conselho de Direitos Humanos de 30 de Março 2007, proposta pelo Paquistão em nome da Organização da Conferência Islâmica Entre as duas posições do relatório conjunto, um no âmbito de uma ação legislativa que incorpore a “difamação do Islão (alargada a difamação das religiões) no incitamento ao ódio religioso ou de discriminação, o outro enfatizando os aspetos muito contra produtivos, de uma tal medida e preferindo a prevenção e a educação para o respeito mútuo, no âmbito de leis muito rigorosas vis-à-vis a discriminação e incitação ao ódio, o Conselho de Direitos Humanos decidiu, em março de 2007, votar uma nova resolução sobre a luta contra a difamação das religiões. Esta incorpora os temas anteriores19. A difamação das religiões – um conceito que ainda não está claro – está entre as principais causas da desarmonia social e conduz à violação dos direitos humanos. De acordo com este resolução, as declarações atacando as religiões, o Islão e os muçulmanos em particular, aumentam nos meios de comunicação, incluindo fóruns de direitos humanos. Os estereótipos negativos e as manifestações de intolerância religiosa e de discriminação por causa da religião estão a aumentar. A “campanha de difamação das religiões e de perfis étnicos das minorias religiosas” intensificou-se desde o 11 de setembro. Na luta contra o terrorismo, a difamação das religiões torna-se um fator agravante que contribui para a exclusão social e económica dos grupos-alvo e ao facto de que os direitos fundamentais
C. A oposição dos países ocidentais a “difamação das religiões” 1. As reacções dos países ocidentais do Conselho de Direitos Humanos face à Resolução HRC/4/L.12 de 200721 Os argumentos em favor do projeto de resolução apresentados pelo representante do Paquistão – em nome da OCI – antes da votação parecem bastante razoáveis, apesar da confusão entre a “difamação do Islão” e islamofobia. A senhora Tehmina Janjua disse que o projeto de resolução não é novo e deseja um consenso sem votação. Ela enfatizou que as consultas foram de modo aberto, assim como as consultas bilaterais com delegações que tinha comentários a fazer. Ela insiste em que esta resolução diz respeito à difamação de religiões e especialmente do Islão. A existência do fenómeno seria, na sua opinião, claramente demonstrado e comprovado pelos Relatores Especiais. Ela denuncia o delito de discriminação racial vivida pelos muçulmanos em países não-muçulmanos como uma prática racista e, portanto, uma violação dos direitos humanos. Entre os representantes que desejam votar para recusar a resolução, Birgitta Maria Siefker-Eberle, representante da Alemanha, falou em nome da União Europeia. Ela afirma as convicções da União e a resolução dos seus Estados-Membros de 44
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e, em particular, sobre as sérias implicações da islamofobia sobre o gozo de todos os direitos” Apercebemo-nos de que a partir de 2007 os Estados hostis ao conceito de “difamação das religiões” elaboram uma argumentação. Em agosto de 2007, quando Doudou Diene, apresentou o seu relatório (que foi seguido pelo do Alto Comissário para a questão, a 25 de setembro de 2007), encontramos as mesmas reações do mesmo grupo de Estados. Assim, Gonçalo Silvestre, representante de Portugal em nome da União Europeia, disse que a União acha problemático conciliar o conceito de difamação com o conceito de discriminação. Ele recusa-se a fazer equivaler a crítica de uma religião e o racismo. A crítica religiosa não necessita de uma proteção especial no contexto dos direitos humanos.23
lutar contra o fenómeno da discriminação baseada na religião. Ela observou que, conforme determinado pelo relatório de Doudou Diene, a discriminação baseada na religião refere-se não apenas o islamismo, mas também o judaísmo, o cristianismo e às religiões e os crentes da Ásia assim como às pessoas sem religião. Ela salienta que é problemático separar a discriminação baseada na religião das outras formas de discriminação. Lembra também que a promoção da tolerância religiosa já faz parte da Carta e da Declaração dos Direitos Humanos. Assim, o uso do conceito de difamação é contraproducente. Por isso, defendeu um texto firmemente focado na liberdade de religião ou crença. Assegurando a OCI o compromisso da vontade de diálogo da União Europeia, ela pediu que a resolução seja votada e confirmou que a União Europeia iria votar contra. A posição da Sra. Siefker-Eberle é também a de Paul Meyer, representante do Canadá, que deseja que o Conselho adote uma abordagem nova e inovadora sobre o problema da intolerância religiosa, uma abordagem baseada na transparência e no diálogo. Ele diz-se incomodado por não haver a menção ao direito de aderir a uma religião ou pelo facto de que o motivo seja a insistência posta numa religião em relação às outras. Paul Meyer acredita finalmente, que o vínculo estabelecido pela resolução entre a discriminação baseada na religião e racismo não é claro. 2. Reações ao relatório 21/08/2007 de Doudou Diène sobre “a manifestação da difamação das religiões
D. A recusa do Conselho da Europa em aceitar o conceito de “difamação de religiões” (proteger a liberdade de expressão e de defesa) Esta posição encontra-se muito exatamente nas resoluções e recomendações da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa daqueles anos. Em outubro de 2005, logo após o início da batalha dos média sobre as caricaturas de Maomé, a Comissão da Cultura do Conselho da Europa apresenta um primeiro relatório. Intitulado Blasfémia, insultos religiosos e incitamento ao ódio religioso, este relatório será finalmente entregue com atraso – em junho de 200724 – e completado por um relatório da Comissão de Veneza, preliminar em 2007 e terminará em 200825. Entretanto, a 45
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Comissão da Cultura pediu ao mesmo relator, a Sra. Sinikka Hurskainen, um outro relatório sobre a liberdade de expressão e de respeito pelas crenças religiosas.
expressões que podem chocar, ofender ou perturbar o Estado ou qualquer parte da população, de acordo com o artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (§ 1). Ela acrescenta que “os ataques contra pessoas por motivos de religião ou de raça não pode ser tolerada, as leis contra a blasfémia não devem ser utilizadas para restringir a liberdade de expressão e pensamento” (§ 3). Ela lembra que as leis que punem a blasfémia e a crítica das práticas e os dogmas religiosos têm frequentemente, no decurso da história, incidências negativas sobre o progresso científico e social (§ 7), observando que o “debate crítico” e a liberdade artística têm tradicionalmente favorecido o progresso individual e social (§ 9). “O debate, a sátira, o humor e a expressão artística devem, portanto, beneficiar de um elevado grau de liberdade de expressão e o recurso ao exagero não deve ser visto como uma provocação”, diz ela (§ 9). O parágrafo 11 enuncia alguns princípios fundamentais da jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Ele observa particularmente que, enquanto expressão política e o debate sobre questões de interesse geral só pode ser objeto de restrições limitadas, os Estados dispõem de uma margem de apreciação mais importante ao regular os modos da frase “suscetíveis de ofender as convicções pessoais íntimas dentro da esfera da moral ou religião.” Também constata que “o que seja suscetível de ofender as pessoas de uma determinada crença religiosa varia consideravelmente no tempo e no espaço”.
1. Os textos aprovados pela Assembleia Parlamentar – Resolução 1510 (Junho 2006): Liberdade de expressão e de respeito pelas crenças religiosas26 Em 28 de junho de 2006, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) aprovou a Resolução 1510 (2006), intitulada “Liberdade de expressão e respeito pelas crenças religiosas”. O texto sublinha a importância crucial de uma sociedade democrática, tanto a liberdade de expressão como a liberdade de pensamento, consciência e religião garantida pelos artigos 10º e 9º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos Direitos do Homem (CEDH). Também enfatiza a realidade da diversidade cultural e religiosa nos Estados-Membros do Conselho da Europa, acrescentando que essa diversidade deve ser “uma fonte de enriquecimento mútuo e não de tensão” e aprofundar o diálogo intercultural assim como a compreensão e o respeito mútuos (§ 5). Perante estas considerações e outros elementos relacionados, a resolução declara que convém, numa sociedade democrática, que a liberdade de pensamento e de expressão integre “um debate aberto sobre as questões relativas à religião e às crenças”, que esta liberdade não é apenas válida para as opiniões favoráveis e inofensivas, mas também se aplica a 46
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com base na sua religião (29 de junho de 200727). Além disso, a Resolução 1535 de 25 de janeiro de 2007 sobre as ameaças à vida e à liberdade de expressão dos jornalistas, especialmente por causa do fundamentalismo religioso28, a Assembleia Parlamentar vai votar em Junho de 2007, uma nova resolução sobre questões de blasfémia, de insultos religiosos e do discurso do ódio com base na religião. Esta recomendação segue três conselhos: – o da Comissão de Veneza do Conselho da Europa, no seu relatório preliminar em Março de 2007 sobre a blasfémia e as ofensas religiosas na legislação nacional aprovada em 16-17 de Março de 200729. – o relatório sobre a mesma questão emanado da Comissão para a Cultura, Ciência e Educação, de 8 de junho de 200730; – a declaração do Comissário para os Direitos Humanos, do Conselho da Europa sobre “observações críticas contra as religiões que não se enquadram no âmbito do direito penal”, de 11 junho de 200731. A recomendação concilia, portanto, essas opiniões e considera que nos termos do artigo 4º da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, os Estados envolvidos devem criminalizar a difusão de ideias fundadas na superioridade ou ódio racial, o incitamento à discriminação racial e os atos de violência ou o incitamento a tais atos contra qualquer raça ou grupo de pessoas de outra cor ou etnia, como represália, “os insultos de carácter religioso ou difamação
O parágrafo 12 reproduz a ideia mestra do texto: a liberdade de expressão garantida pelo artigo 10 da Convenção dos direitos “não deve continua a ser restringida para atender a sensibilidade crescente de certos grupos religiosos”, mas “os discursos que incitam ao ódio contra qualquer grupo religioso que seja, não são compatíveis com os direitos e liberdades garantidos pela Convenção e os precedentes do Tribunal”. Nesta resolução, o PACE convida os Estados e os atores da sociedade civil a “desenvolver um código de conduta e de um entendimento comum de tolerância religiosa” (§ 14). Seria favorável a isso que os profissionais dos média discutam a forma como a ética dos média poderiam ser especificamente aplicada às questões pertinentes, e propõe a criação de “órgãos de reclamação, de mediadores ou outros órgãos de autorregulação no sector dos média [...] que seriam encarregues de estudar os meios de recurso aplicáveis em caso de ofensa às crenças religiosas” § 15). A PACE também incentiva o diálogo intercultural e inter-religioso com a participação da sociedade civil e dos média (§ 16); encoraja os órgãos do Conselho da Europa a trabalhar ativamente no sentido de prevenir o “discurso de ódio dirigida contra diferentes grupos religiosos ou étnicos” (§ 17). A resolução conclui declarando que a PACE decidiu voltar mais tarde a debruçar-se sobre as questões pertinentes (§ 18). – A Recomendação 1805 sobre a blasfémia, os insultos religiosos e os discursos de ódio contra as pessoas 47
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voz do embaixador do Paquistão, Masood Khan, trabalhar na preparação de uma convenção internacional contra a difamação das religiões34. – Três dias depois, uma Resolução do Conselho de Direitos Humanos propõe a elaboração de normas internacionais complementares à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a fim de incluir a islamofobia como incentivo específico ao ódio religioso, tal como o antissemitismo. – Em 10 de dezembro de 2007, por ocasião da cerimónia de abertura da primeira conferência internacional sobre islamofobia organizado pela União das ONGs do mundo islâmico35 em Istambul, o secretário-geral da OCI Ekmeleddin Ishanoglou, Professor de História das Ciências e de cultura islâmica em Ancara, fez uma declaração na qual se propôs dotar a OCI de uma Carta dos Direitos Humanos própria. – Em fevereiro de 2008, Doudou Diene, Relator Especial sobre a Eliminação de Todas as Formas de Racismo, apresentou um novo relatório37, bastante equilibrado, mas em que a frase “difamação de religiões” equivale largamente à sua longa descrição de islamofobia. A Resolução A/HRC.7/L.14 do Conselho dos Direitos do Homem, de 27 de Março de 2008 sobre “a luta contra a difamação das religiões” é de longe a mais longa e a mais virulenta jamais adoptada38. Uma vez mais, os países da União Europeia recusaram-se a votá-la porque, segundo o seu porta-voz, o esloveno Andrej Logar, o conceito de difamação das religiões
das religiões não são penalizáveis segundo as normas da ONU [...]”. A Assembleia considera que “é preciso, numa sociedade democrática, não penalizar senão as expressões de conteúdo religioso que perturbam, intencional e gravemente, a ordem pública e apela à violência pública32”. Além disso, no parágrafo 17.2.4, a recomendação solicita que as legislações europeias devem ser revistas “para despenalizar a blasfémia como um insulto à religião”, respondendo assim às declarações do Secretário-Geral e ao relatório apresentado poucos dias antes pela Comissão Assuntos Jurídicos sobre a descriminalização da difamação em geral33. II. Auge e retorno à calma depois de 2008? A. Uma oposição frontal: entre setembro de 2007 e novembro de 2008 No fim de 2007, em resposta às posições do Conselho da Europa e da atitude dos meios de comunicação e dos tribunais encontradas no continente europeu, as atividades desenvolvidas pela OCI e as suas repercussões no seio das Nações Unidas contra a questão da difamação das religiões parecem “explodir”. Ei-las apresentadas em cascata: – Em 25 de setembro de 2007, após o relatório de Doudou Diene sobre todas as formas de difamação de religiões e em particular sobre as graves implicações da islamofobia sobre o gozo de todos os direitos (A/ HRC/6/6) e no mesmo dia o relatório do Alto Comissário sobre a difamação das religiões, a OCI propôs, pela 48
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não é compatível com o conteúdo dos direitos do Homem e o facto de se concentrar nesse conceito poderia ser utilizado por governos mal-intencionados para negar as liberdades das suas minorias. – Outro ponto de discórdia: em março de 2008, foi aceite uma proposta de alteração (por 29 votos a favor, 15 contra e 3 abstenções). Foi patrocinada pelo Egipto (em nome dos países africanos), o Paquistão (em nome da OCI) e da Palestina (observador, em nome do Grupo dos Estados Árabes) e diz respeito ao mandato do Relator Especial sobre a liberdade de expressão39: trata-se de pedir a este último para recapitular os abusos da liberdade de expressão, que constituem atos de discriminação racial e religiosa com base no artigo 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. As reações a esta alteração são muito vivas e retransmitida pelas associações Repórteres Sem Fronteiras, a Associação Mundial de Jornais e o World Editors Forum. Foi lançada uma petição por quarenta organizações de imprensa e direitos humanos41. Doze Estados recusaram votar a alteração, incluindo o Canadá, que tinha estado na iniciativa da resolução. A Eslovénia, em nome da União Europeia, acusou a OCI de se desviar do mandato sobre a liberdade de expressão e de incluir disposições contrárias ao seu propósito. O Relator sobre a liberdade de expressão acabava, com efeito de apresentar o seu relatório, que, embora denunciando os efeitos deletérios de campanhas mediáticas hostis a certas religiões, explicou
“Os mal comportados”. Caricatura alemã datada de 1849 sob a qual se pode ler as seguintes legendas “Liberdade de imprensa”, “Liberdade de reunião”. “Liberdade de expressão”, “Liberdade de associação”. Há também ao fundo um mapa da Prússia. Foto Wikipedia Commons.
que as restrições em vigor contra o incitamento ao ódio não deviam ser intensificadas nem proibidas, mais do que os pontos de vista críticos, ou os assuntos sujeitos a controvérsia e mesmo politicamente incorrectos.42 B. O apaziguamento relativo após a Primavera de 2008 Março 2008 parece ter sido o auge da “Difamation Saga” – como foi apelidado pelo pesquisador Jeroen Temperman. Entretanto, e após essa data, são tomadas na Europa toda uma série de medidas que mostram que a substância ou a causa da mobilização da OCI contra a discriminação dos muçulmanos e o desprezo mediático e cultural contra a religião muçulmana na Europa deixou de ser considerado totalmente infundado.
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1. O nascimento da Aliança das Civilizações A Aliança das Civilizações43, uma organização internacional da ONU, é uma primeira resposta muito direta. Os seus efeitos são principalmente mediáticos e simbólicos, mas têm o mérito de existir e começar a brilhar. Serve para desenvolver as redes institucionais, programas educativos sobre coexistência religiosa e os espaços de diálogo. Precedido do projeto – permanece sem continuação – “Diálogo das Civilizações” proposta em 2001 pelo presidente iraniano, Mohammad Khatami, esta iniciativa europeia emana do Conselho da Europa. Ela foi lançada, muito simbolicamente, no final de 2004 por ocasião da Assembleia da ONU, pela Espanha (José Luis Rodríguez Zapatero), terra das três culturas monoteístas, e da Turquia (Recep Tayyip Erdogan), herdeira de um Estado laico e do império multiconfessional dirigida por um partido islâmico moderado que pretende entrar na União Europeia. A criação da Aliança das Civilizações foi suscitada pela melhoria das relações “entre o Ocidente e o mundo islâmico”, e especialmente motivada pela situação das populações muçulmanas na Europa e o risco da sua rejeição social massiva, resultando em cascata a sua inclinação para o radicalismo. Oportuna, a formação desta organização foi adiada em parte pelos atentados de Londres e o caso das caricaturas. O primeiro Alto Representante da Aliança das Civilizações, nomeado em abril de 2007 pelo Secretário Geral da ONU,
Ban Ki-Moon, foi Jorge Sampaio, antigo Presidente de Portugal. Para elaborar o plano de ação e as ideias sobre as quais essa aliança deve repousar o Secretariado das Nações Unidas criou um grupo de alto nível composto por 18 pessoas44 pertencentes a diversas culturas e três categorias de atividades profissionais. Na primeira categoria há antigas personalidades políticas de renome, também conhecidas pelo seu potencial intelectual e a sua contribuição para o desenvolvimento da cultura. Encontramos aí Mohammad Khatami, o antigo Diretor Geral da UNESCO Frederico Mayor, antigo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Hubert Védrine, ex-Primeiro Ministro senegalês, Moustapha Niasse e outras personalidades. A segunda categoria comporta intelectuais independentes ou pessoas que não ocupam altas funções administrativas: Karen Armstrong, mulher de letras inglesa (a quem se devem diversas obras sobre o tema da religião, especialmente sobre o Islão), o especialista americano do Islão, John Esposito, diretor do Centro para a Compreensão entre Muçulmanos e Cristãos na Universidade de Georgetown e também redator chefe da Enciclopédia de Oxford consagrada ao mundo islâmico, o russo Vitali Naoumkine, professar da Universidade de Moscovo, Presidente do Centro de Estudos Árabes do Instituto do Orientalismo da Academia das Ciências da Rússia. Na terceira categoria figuram personalidades religiosas de autoridade reconhecida como o bispo Desmond Tutu e o rabino americano Arthur Schneier. Este grupo deverá reunir-se regularmente e definir a filosofia 50
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as estatísticas recolhidas no quadro da RAXEN National Focal Points (Rede Europeia de Informação sobre Racismo e da Xenofobia) em cada Estado membro da UE e destacando exemplos de “boas práticas”. Ela fornece evidências de que a violência racista e atitudes discriminatórias persistem em todo o continente. Segundo este relatório, muitos países não usariam a sua legislação nem o quadro estabelecido pela União. O relatório pressiona os Estados a aplicarem esta legislação, no entanto, desde 28 fevereiro de 2008, que o Conselho Europeu fixou nove prioridades temáticas da Agência para cinco anos: 1. o racismo e a xenofobia, 2. a discriminação baseada no sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, idade ou orientação sexual, a discriminação contra pessoas pertencentes a minorias, ou qualquer combinação destes motivos (discriminação múltipla). Em janeiro de 2008, o SecretárioGeral da OCI e o Comissário Europeu para Relações Exteriores reuniram-se, e foi adotado o princípio de uma missão permanente da OCI em Bruxelas. O Secretário-Geral da OCI também se reuniu com o presidente do Comité de Relações Externas do Parlamento Europeu e participou num painel do Parlamento sobre a discriminação e intolerância contra os muçulmanos na Europa.47 Num outro nível, a Comissão Europeia financia, de março de 2006 a março de 2009, um grande projeto académico intitulado REDCo (A Religião na Educação, uma contribuição para o diálogo ou um fator de conflito na evolução dos países
da Aliança. O primeiro grande fórum da Aliança das Civilizações realizou-se em Madrid em janeiro de 2008 e a segunda em Istambul, em abril de 2009. Na verdade, a ação da Aliança está ainda na sua infância e foi fracamente acolhida, na Europa, bem como entre os Estados muçulmanos. 2. Posições conciliatórias da União Europeia Em geral, a União Europeia tem desempenhado, ao longo destes anos, um papel importante na luta contra a discriminação, uma luta que se tornou uma política pública prioritária. A partir da Primavera de 2007 um acordo entre os Estados-membros levou à adoção de uma decisão-quadro relativa à luta contra o racismo e a xenofobia,45 em negociação desde 2001. Esta decisão-quadro prevê a harmonização dentro da União Europeia, das sanções penais de que serão passíveis, daqui em diante, as infrações inspiradas por motivos racistas ou xenófobos. Embora nada neste instrumento se refira aos “propósitos” críticos ou hostis para com uma religião, uma atenção especial, tem sido dada ao respeito da liberdade de expressão e a que a interdição dos incentivos e ódios estejam bem enquadrados. É assim, que o primeiro relatório da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA Fundamental Rights Agency) – fundada em 15 de fevereiro de 2007 e com sede em Viena46 – insiste particularmente sobre a luta contra o racismo e a intolerância por razões religiosas, especialmente contra os muçulmanos. Ele resume
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europeus). Este projeto de pesquisa europeia e comparativo assenta nas representações dos jovens a propósito da religião, da diversidade religiosa e das possibilidades de diálogo que eles possuem, mas também nas interações na sala de aula e as estratégias desenvolvidas pelos professores. REDCo é o primeiro projeto educativo sobre a diversidade religiosa a ser financiado pela Comissão Europeia. Neste contexto, inquéritos qualitativos e quantitativos foram realizadas, principalmente sobre a questão da religião na vida e escolarização dos alunos com idades entre 14 e 16 anos. Esta pesquisa envolveu oito países (Alemanha, Inglaterra, Espanha, Estónia, França, Noruega, Holanda e Rússia). O relatório do REDCo foi publicado em Março de 2009 e distribuído a todas as instituições da União Europeia, Conselho da Europa, da ONU, os Ministérios da Educação da União Europeia, Organizações Não Governamentais (ONGs), organizações religiosas e universidades.48
foram seguidas por outros, como a Conferência Internacional sobre “O diálogo, a tolerância e a educação” (Kazan, Federação da Rússia, 22-23 de Fevereiro de 2006) e “Diálogo de Culturas e Cooperação Intercultural” (Nizhniy Novgorod, na Rússia, 7-8 de Setembro de 2006). O “Volga Fórum Declaration”, adotado na última reunião inspirou particularmente as discussões da conferência seguinte, chamada “de San Marino” (Abril 2007), que contou com a presença dos ministros dos Assuntos Culturais do Conselho da Europa. Foi no quadro desta que se realizou a reunião final do projeto começado em 2002 sob o tema “Diálogo Intercultural e Religião” (apresentado acima). Foi elaborada uma declaração conjunta,49 cujo artigo 8 reitera: “A dimensão religiosa da nossa cultura deveria ser adequadamente refletida nos sistemas educativos e nos debates públicos, incluindo nos média, nas sociedades que respeitem a liberdade de expressão garantida pelo artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”. O Conselho da Europa e a sua Direção de Educação também reuniram especialistas para elaborar um verdadeiro manual de aprendizagem intercultural para as escolas. Este manual, publicado em 2007, aborda largamente a questão da diversidade religiosa.50 A Direção da Educação e da Cultura do Conselho da Europa também organizou, em abril de 2008, um encontro sobre o ensino dos factos religiosos e relativos às crenças nos estabelecimentos escolares. Todas essas ações levaram à publicação do Livro Branco sobre o Diálogo
3. Posição conciliatória do Conselho da Europa Durante a “Defamation Saga”, e apesar das recomendações e resoluções muito firmes da sua Assembleia tomadas contra a adoção legal da “difamação das religiões”, o Conselho da Europa não parou de trabalhar sobre o conceito de diversidade nas sociedades multiculturais, com a terceira cimeira de Chefes de Estado e de Governo (Varsóvia, maio de 2005) e da Conferência dos Ministros da Cultura (Faro, Portugal, outubro de 2005). Estas reuniões 52
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Intercultural, do Conselho da Europa (julho 2008), lançado por iniciativa do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros em maio 2008. Última publicação em outubro de 2008: relatório final da Comissão de Veneza sobre As relações entre liberdade de expressão e liberdade religiosa: regulamentação e punição da blasfémia, da injúria religiosa e o incitamento ao ódio religioso53. Neste documento, a Comissão aconselha muito vivamente a concentrar as políticas públicas sobre os códigos de “boa conduta” na negociação entre as sensibilidades religiosas e a liberdade de expressão. Ao nível da atividade parlamentar do Conselho da Europa, uma recomendação importante, intitulado As comunidades muçulmanas face ao extremismo, foi votada em 15 de abril de 2008. Ela toca mais precisamente ainda a situação particular das populações muçulmanas no continente. Esta recomendação foi elaborada por uma comissão preparatória55, que fixou objetivos precisos: ajudar os muçulmanos na Europa a prevenir o fanatismo religioso e a denunciá-lo, ajudar os imigrantes muçulmanos a evitar a pobreza e da discriminação; dar a conhecer o fenómeno da islamofobia. A proposta é interessante porque o relatório insiste na criação necessária, nos países europeus, de um “clima de respeito por todas as religiões de qualquer tipo, ou da falta de religião”, em colaboração com os média, para desenvolver “linhas diretivas éticas” que permitam lutar contra a islamofobia nos média. A recomendação da Assembleia retoma a ideia do relatório de desenvolver 53
uma “boa imagem” do Islão e dos muçulmanos, o diálogo das culturas e da noção de pluralismo, pelo conhecimento mútuo. No parágrafo 5 da recomendação do relatório, a Assembleia reconhece o fenómeno da islamofobia e a necessidade de o fazer desaparecer. 4. Resolução do litígio na ONU Parece que a situação se acalmou um pouco em 2009 quando a OCI aceitou que a questão da difamação das religiões e do islamismo fosse removida do projeto de declaração final da conferência de acompanhamento sobre o racismo realizada em Genebra no final de abril de 2009. Esta foi uma das condições postas pela União Europeia para participar na conferência, quando o Canadá já tinha dito, desde 23 junho de 2008, que não viria para a Conferência, por essa mesma razão. Já em Julho de 2008, uma nota especial emanada do SecretárioGeral das Nações Unidas perante a 63ª sessão da Assembleia Geral, intitulado “Eliminação de todas as formas de intolerância religiosa” introduzia o relatório do Relator Especial sobre a liberdade religiosa, Asma Jahangir solicitado pela Resolução A/62/157. Os termos de “difamação das religiões” ou “difamação do Islão” são cuidadosamente evitados. (A/63/161). As Associações de direitos humanos apropriaram-se massivamente da questão da “difamação das religiões”, no outono de 2008, antes da votação das duas últimas resoluções (Assembleia e Conselho de Direitos
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Humanos), em dezembro de 2008 e Março de 2009. UN Watch, o Becket Found for Religious Liberty e 180 outras ONGs, exortaram os Estados a retardar. Eles alertaram as Nações Unidas contra a legitimação das leis anti blasfémia que restringem a liberdade de religião, expressão e imprensa e silenciam dissidentes e minorias religiosas. A petição dessas ONGs foram apoiadas pelo deputado americano Trent Franks, copresidente do Caucus International pour la Liberté de Religion au Congrès: “Apresentado como protegendo a prática religiosa e a tolerância, o conceito de difamação das religiões é, de facto o berço da intolerância. Dá o direito aos extremistas religiosos e aos governos repressivos de suprimir toda a crítica da religião dominante. Muitos países que promovem este conceito criminalizam a difamação, desprezo, insulto e blasfémia contra o Islão”. Finalmente, a penúltima e muito longa resolução da Assembleia Geral sobre a “difamação das religiões” foi uma agradável surpresa. Publicada sob um título ao mesmo tempo mais moderado e mais acessível de forma legal, “Lutar contra a difamação das religiões”56, que inclui muitos parágrafos inteiramente conciliatórios sobre os avanços no domínio de comentários maliciosos, reiterando o quadro de proteção dos liberdade de expressão. Assim, a Assembleia: “(toma) nota dos relatórios apresentados ao Conselho dos Direitos Humanos nas suas quarta e sexta sessões, pelo Relator Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância que lhe está associada, em que sublinha a gravidade da difamação das religiões, e apelando novamente a todos os Estados para que combatam o incitamento ao ódio racial e religioso, mantendo um justo equilíbrio entre a defesa do secularismo e o respeito da liberdade de religião e reconhecendo e respeitando a complementaridade de todas as liberdades enunciadas nos instrumentos internacionais sobre direitos humanos, incluindo o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”. Do mesmo modo, a Resolução do Conselho dos Direitos Humanos que se seguiu, embora continue a chamar-se “difamação das religiões” não tem tido muito sucesso. A resolução sobre a difamação das religiões foi de facto adotada em Março de 2009 pelo Conselho, mas pela primeira vez as alianças tradicionais sobre o voto começaram a falhar: 23 votos a favor – os países muçulmanos, a China, a Rússia, Cuba, a África do Sul, a Bolívia e Nicarágua – 11 votos contra – os países do União Europeia, a Suíça, o Canadá e o Chile – e sobretudo 13 abstenções incluindo os da Índia, do Japão, da Coreia e da Argentina.
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Conclusão A mobilização da OCI contra o fenómeno da islamofobia continua, apesar destes sinais de acalmia oficiais. Os atos de islamofobia não parecem estar a recuar no continente europeu. Em julho de 2009, o Observatório da islamofobia, apoiado pela OCI, apresentou o seu segundo relatório58 e uma nova organização, assim como um novo sítio foi
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relações com o mundo muçulmano vão-se desenvolver”. Como vemos as tensões estão longe de estar resolvidas. Mas depois deste longo panorama sobre a história da “difamação do Islão” como o tema da mobilização e de reação nas instâncias internacionais e europeias nos últimos anos, podemos concluir que este vai e vem a priori conflituoso produziu resultados positivos. Permitiu precisar o conteúdo legal dos conceitos de difamação, discriminação e racismo. O conceito de “difamação das religiões” revelou-se inadequado e não maleável na filosofia dos direitos humanos, mas o mal-estar que parecia simbolizar foi ouvido. Este conflito permitiu especificar o local necessariamente relativo do atentado ao sentimento religioso nos sistemas democráticos, procurando redefinir o próprio conteúdo deste atentado, quando ela se transforma em incitamento ao ódio. Foi também empreendido um esforço de reequilíbrio para dar prioridade a políticas públicas de não-discriminação, de luta antirracista e a construção do pluralismo, particularmente através de uma representação positiva das diferentes religiões na Europa e pela aprendizagem escolar do multiculturalismo.
criado pela União das Organizações Islâmicas da Europa: trata-se do Observatório Euro-islâmico contra a islamofobia. Este organismo foi criado após o assassinato de uma jovem egípcia usando o véu em Dresden (Alemanha), por um homem que acabara de ser levado a tribunal por injúrias. Além disso, o ex-primeiro-ministro dinamarquês Anders Fogh Rasmussen foi nomeado chefe da NATO em 4 de abril de 2009, depois da Turquia (na pessoa do seu primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan), inicialmente se opor a esta nomeação por causa do apoio de Rasmussen ao jornal dinamarquês que publicou as caricaturas de Maomé em 2005, ter retirado as suas objeções. Ele o fez por causa da declaração do novo presidente dos EUA, Barack Obama, que tem sido a “garante” do cumprimento de uma série de compromissos perante o mundo muçulmano. Na véspera da abertura do segundo Fórum da Aliança das Civilizações em Istambul, a 6 de abril, a imprensa turca e mundial esperava para ver como Rasmussen reagia. Este não apresentou desculpas, em sentido estrito, mas disse que, como Secretário Geral da OTAN prestaria “especial atenção às sensibilidades religiosas e culturais”. E acrescentou: “O nosso diálogo e as nossas
* Professora da Universidade Paul Cézanne III Aix-Marseille, França. Notas: 1. Relatório de março de 2005, disponível em http://www.bladi.net/forum/37563-lintolerance-envers-musulmans-europe-rapport-accablant 2. A OCI é uma organização fundada em 1969 por iniciativa da Arábia Saudita e cujo secretariado está localizado em Jeddah desde 1971. Compreende agora 57 Estados membros, representando mais de um bilião de muçulmanos (que são um total de 1,6 biliões em todo o mundo). A sua finalidade, definida pela
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Blandine Chelini-Point sua carta de fundação, é “falar a uma só voz para defender os interesses dos Estados-Membros e garantir o progresso e o bem-estar do seu povo e de todos os muçulmanos ao redor do mundo”. Por outras palavras: reforçar a cooperação económica, política, social e cultural entre os Estados-Membros. Adotadas por consenso, as resoluções das cúpulas e das sessões ministeriais (Negócios Estrangeiros) da OCI, não são senão moralmente obrigatórias para os Estados-Membros. O Programa de Ação para dez anos adotado em Dezembro de 2005, por uma cimeira extraordinária prevê “reestruturar a Organização, para alterar o nome, para revisão da Carta e das atividades” para a tornar mais eficaz. Prevê a criação de um mecanismo de acompanhamento das resoluções. O seu secretário-geral é o turco Ekmeleddin Ishanoglu. O sitio oficial da OCI http://www.OCI-oci.org/home.asp. A OCI criou em Meca, em 2005, um Observatório da islamofobia, que emitiu o seu primeiro relatório na décima primeira cimeira da OCI em Dakar (http://www.OCI-oci.org/ is11/French /), em março de 2008 (http://www.OCI-oci.org/is11/french/Islamophobie-Fr.pdf ), e a segunda em Maio de 2009, durante a reunião do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da OCI, na Síria (http://www.OCIun.org/document_report/Islamophobia_rep_May_23_25_2009.pdf, disponível apenas em Inglês ou árabe). 3. Assim, a Associação Francesa Coletiva contra a islamofobia em França, fundada em outubro de 2003, durante o debate sobre o véu na escola, que publicou um primeiro relatório sobre o assunto em 2004, http:// www.islamophobie.net/user -res/fichiers/bilan_ccif_2003_2005.pdf, e um outro em 2008, disponível no seu sítio http://islamophobie.net. 4. Jean-Pierre Teyssier, “Médias et religions: jusqu’on le respect? “, Em Gaz. Pal, 31 de maio de 2006;. L. Larcher, “Heurs et malheures de l’islam cathodique”, in La Croix, 15-16 novembro 2008, p. 17-18. 5. Gerard Fellous e Richard Prasquier, “Droits humains fragilisés. L’extension de la notion de “diffamation des religions” ... “, in Le Monde, 19 de dezembro de 2008, Jean François Flauss, “La diffamation religieuse en droit international”, in Petites affiches, 23 de julho de 2002, p. 5-17; idem. “La diffamation religieuse”, in La Protection Internacionale de la liberté religieuse, Bruylant, 2003; Guy Haarscher, “Liberté d’expression, blasphème, racisme: Essai d’analyse philosophique et comparée”, Parte 1, in Panotica, Vitoria, ano 1, nº 9, julho, agosto, 2007, p. 22-53; Angela Evenhuis, Blasphemous matter. Blasphemy, difamation of religion and Human Rights, Magenta Foundation, 2008, p. 8; Jeroen Teemperman, “The Emerging Counter-Diffamation of Religion Discurse: A Critical Analysis”, in Annuaire Droit et Religion 2009-2010, PUAM, volume 4, p. 553-559. 6. Comissão de Direitos Humanos, Resolution sur la diffamation des religions, 55ª sessão, E/CN.4/1999. L.40. Rev 1, patrocinada pelo Paquistão em nome do relatório da OCI, Genebra, 30 de abril de 1999, disponível na página http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/ (Symbol) / E. CN.4.1999.SR.62.Fr? OpenDocument. 7. 2000/84 de 26 de abril de 2000, 2001/4, 18 abril 2001; 2002/9 15 de abril de 2002; 2003/4, 14 abril 2003; 2004/6, 13 de abril de 2004 (decidido por um relatório sobre a situação de discriminação árabes e muçulmanos em várias partes do mundo); 2005/3 de 12 de Abril e 2005/40 de 19 de Abril de 2005 sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença. 8. Declaração e Programa de Ação, os parágrafos 57-63, http://www.un.org/french/WCAR/durban_fr.pdf 9. A/RES/60/150 Relatório da Terceira Comissão da Comissão de Direitos Humanos (A/60/509/Add.2 (Parte II)) 60/150). 10. Introdução, parágrafos 1 a 10: link para o texto na página sobre a 60ª sessão colocada on-line pelo guia de pesquisa da documentação das Nações Unidas, http://www.un.org/Depts/dhl/resguide/r60fr.htm 11. A/RES/60/166, sobre o relatório da Terceira Comissão (documento A/60/507-II). Link na mesma página que o texto anterior, http://www.un.org/Depts/dhl/resguide/r60fr.htm. 12. “5. Reconhece com profunda preocupação o aumento global de casos de intolerância e violência contra membros de muitas comunidades religiosas e outras em várias partes do mundo, incluindo casos motivados por islamofobia, o anti-semitismo e cristianofobia; 6. Manifesta a sua preocupação face à persistência da intolerância e da discriminação social institucionalizada praticada em nome da religião ou crença contra muitos; 7. Condena qualquer apologia ao ódio religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência, que seja usado pela imprensa escrita e os média audiovisuais ou eletrónicos ou qualquer outro meio.” 13. Resolução 60/251, 15 março de 2006.
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A difamação das religiões: um braço de ferro internacional (1999-2009) 14. 29 de junho, princípio votado a 30 de junho de 2006. Decisão 1107 sobre o incitamento ao ódio racial e religioso e a promoção da tolerância. Proposto pela Argélia, Jordânia, Paquistão e Marrocos, a Tunísia o Sudão, o Irão, o Qatar, Omã, o Líbano, a Malásia, que embora não sendo membros do Conselho de Direitos Humanos, também se juntaram a esta proposta como observadores. 15. Canadá, República Checa, Finlândia, França, Alemanha, Japão, Holanda, Polónia, Roménia, Suíça, Ucrânia e Reino Unido. 16. Relatório que segue a um outro já produzido por Doudou Diène, em março de 2004 (E/CN.4/2004/18 e Add.1-4) sobre o assunto no qual tinha considerado que se estava “em alerta vermelho”. O relatório de 2006 sobre a situação de discriminação contra os muçulmanos (E/CN.4/2006/17) está disponível em http:// daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/G06/107/33/PDF/G0610733.pdf?OpenElement 17. HRC/4/19/, 12 de janeiro de 2007, http://www.cran.ch/04_PageCentrale/01_DocumentsReferences/ Rapport% 20general% 20% 20Doudou 9620Diene %20HRC% 20A%-4-19_Fr.pdf 18. Difamação de religiões e de incitamento ao ódio racial e religioso, como manifestações contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e de intolerância relativa, A/HRC/2/3. http://www2. ohchr.org/english/bodies/chr/special/docs/statements/hrc6thsession/A-HRC-6-6Dieneracism.pdf 19. A/HRC/4/L.12, alterada oralmente, http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/LTD/G07/121/33/PDF/G0712133.pdf?OpenElement. Esta resolução foi seguida da resolução A/HRC/4/L.13 (2007) sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou na Crença. Essa segunda resolução foi aprovada sem votação. 20. A resolução foi aprovada por 24 votos a favor, 14 contra e 9 abstenções. Votaram a favor (24): África do Sul, Argélia, Arábia Saudita, Azerbaijão, Bahrein, Bangladesh, Camarões, China, República de Cuba, República do Djibuti, Federação Russa, Gabão, Indonésia, Jordânia, Malásia, Mali, Maurícias, Marrocos, México, Paquistão, Filipinas, Senegal, Sri Lanka e Tunísia. Votaram contra (14): Alemanha, Canadá, Finlândia, França, Guatemala, Japão, Holanda, Polónia, Coreia, República Checa, Roménia, Reino Unido, Suíça e Ucrânia. Abstenções (9): Argentina, Brasil, Equador, Gana, Índia, Nigéria, Peru, Uruguai e Zâmbia. 21. http://www.aidh.org/ONU_GE(conseilddh/07/resol-religion.htm. 22. Relatório do Relator Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância que lhe está associada, Doudou Diène, sobre as manifestações de difamação de religiões e em particular sobre as graves implicações da islamofobia no gozo de todos os direitos. A/ HRC/6/6, 21 de agosto de 2007, apresentado a 14 de setembro de 2007, para a 6ª sessão do Conselho dos Direitos Humanos. 23. “European Union members of the Council and other countries cautioned against equating criticism of religion with racism. In our view these two are of a different nature. Religions in themselves do not deserve special protection under international human rights law” 26. http://assembly.coe.int/Main.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta06/FRes1510.htm 27. http://assembly.coe.int/Mainf.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta07/FREC1805.htm 28. http://assembly.coe.int/Mainf.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta07/FRES1535.htm 29. http://www.venice.coe.int/docs/2007/CDL-AD (2007)006-f.asp. Relatório extremamente equilibrado, mas que especifica bem nas suas conclusões, parágrafo 40: “A Comissão recorda, liminarmente, que numa sociedade democrática, os grupos religiosos devem tolerar, como outros grupos da sociedade, a declarações públicas e debates públicos críticos das suas actividades, ensinamentos e crenças, desde que essas críticas não constituam insultos deliberados e gratuitos nem incitamentos para perturbar a paz pública ou a discriminação contra adeptos de uma determinada religião. 30. http://www.droitdesreligions.net/rddr/europe/conseildeleurope.htm Relatora: Sinikka Hurskainen, Finlândia, Grupo Socialista, Doc. 11296: “65. Na ONU, o conceito de “difamação de religiões” foi utilizado recentemente num relatório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (A/HRC/4/50 de 1 de março de 2007) e numa resolução do Conselho de Direitos Humanos (Resolução 4/9 de 30 de março de 2007, relativa à luta contra a difamação das religiões). Esta última foi objecto de críticas de várias organizações mediáticas e de defesa dos direitos humanos. Na verdade, está baseada num conceito claramente
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Blandine Chelini-Point inaceitável, porque viola, claramente, a liberdade de expressão [...] 68. Defendendo a liberdade de expressão, este relatório não deve em caso algum, ser interpretado como uma tolerância para com os insultos de carácter religioso. Desejamos defender o princípio da liberdade de expressão. Também desejamos promover valores tais como a moderação e o respeito pelas crenças religiosas e sublinhar a importância da dimensão religiosa do diálogo intercultural”. 31. Disponível no sítio do Comissário http://www.commissioner.coe.int 32. A assembleia vai votar no mesmo dia uma recomendação sobre “Estado, religião laicidade e direitos humanos”, http://assembly.coe.int/Mainf.asp?link=/Documents/WorkingDocs/Doc07/FDOC11452.htm, recordando os princípios da separação e da neutralidade na fundação da democracia e do Estado de Direito. 33. Doc. 11305, de 25 de junho de 2007. Rumo a uma descriminalização da difamação, Relatório da Comissão dos Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos. Relator: Jaume Bartumeu-Cassany, Andorra, Grupo Socialista. http://assembly.coe.int/Mainf.asp?link=/Documents/WorkingDocs/Doc07/FDOC11305.htm 34. Esta ideia acabou por ser abandonada pela OCI quando em março de 2008 a Shoura da Arábia Saudita, principal financiador da OCI, rejeitou o princípio, que exigiria a reciprocidade na protecção das religiões não-muçulmanas em solo saudita: http://www.gulfnews.com/news/gulf/saudi_arabia/10198648.html 35. http://www.OCI-oci.org/topic_detail.asp?t_id=707 36. “In this regard, the OCI General Secretariat is considering the establishment of independent permanent body to promote Human Rights in the Member States in accordance with the provisions of the OCI Cairo Declaration on Human Rights in Islam and to elaborate an OCI Charter on Human Rights. The OCI is also committed to encourage its member States to reinforce their national laws and regulations in order to guaranty strict respect for Human Rights”. 37.A/HRC/7/19,http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/G08/107/32/PDF/G0810732. pdf?OpenElement 38. http://ap.ohchr.org/documents/F/HRC/resolutions/A_HRC_RES_7_19.pdf 39. 28 de Março de 2008, A/HRC/7/L.24, http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/LTD/G08/120/37/PDF/ G0812037.pdf?OpenElement 40. http://www.wan-press.org/article16875.html 41. http://www.article19.org/pdfs/press/petition-hrc-french.pdf 42. Relatório especial sobre a liberdade de opinião e de expressão, Ambeyi Ligabo, 28 de fevereiro de 2008, A/HRC/7/14, 43. http://www.article19.org/ 44. http://www.unaoc.org/content/view/160/197/lang.english / 45. http://www.eu2007.de/fr/News/Press_Releases/April/0420BMJRassismus.html 46. Esta agência substitui o Observatório Europeu de Fenómenos de Racismo e de Xenofobia (EUMC), que desde 1998 tinha como missão principal recolher informações objectivas, fiáveis e comparáveis sobre os fenómenos do racismo, xenofobia e anti-semitismo na Europa. O EUMC publicou um relatório muito completo, pela primeira vez em 2006 sobre a discriminação contra os muçulmanos. EUMC, os muçulmanos na União Europeia: discriminação e islamofobia, 2006, http://1001nights.free.fr/textes/ Manifestations_FR.pdf 47. Fonte: sítio da OCI http://www.OCI-oci.org/topic_detail.asp?t_id=776&x_key 48.http://www.iesr.ephe.sorbonne.fr/docannexe/file/5699/redco_recommandations_politique_publique.pdf 49. San Marino Final Declaration of the European Conference on “The religious dimension of intercultural dialogue”, 23 and 24 April 2007. http://www.coe.int/t/dg4/intercultural/Source/sanmarinofinal_EN.doc 50. Diversité religieuse et éducation interculturelle: manuel à l’usage des écoles, sob a direcção de John Keast, Estrasburgo, Conselho da Europa, 224 páginas. 51. Por seu lado, o grupo de peritos sobre a liberdade religiosa da ODIHR-OSCE publicou um manual sobre este assunto, Toledo Guiding Principles on Teaching about Religions and Beliefs in Public Schools, Varsóvia, Polónia, 2007, 127 páginas.
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A difamação das religiões: um braço de ferro internacional (1999-2009) 52. http://www.coe.int/t/dg4/intercultural/Source/White%20Paper_final_revised_EN.pdf 53. 17-18 de outubro de 2008, 20 p. http://www.venice.coe.int/docs/2008/CDL-AD(2008)026f.pdf 54. http://assembly.coe.int/mainf.asp?Link=/documents/adoptedtext/ta08/fres1605.htm 55. Doc. 11540. 27 de março de 2008, Relatório da Comissão dos Assuntos Políticos. Relator: João Bosco Mota Amaral, Portugal, Grupo do PPE. 56. Resolução aprovada pela Assembleia Geral sobre o Relatório da Terceira Comissão (A/63/430/Add.2), A/63/171, 21 de dezembro de 2008 http://www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/refworld/rwmain/opendocpdf. pdf?reldoc=y&docid=49d60a322 57. A/HRC/10/L.2/Rev.1, relatório de notícia, na página http://www.aidh.org/ONU_GE/conseilddh/09/10-resol-diff_relig.htm 58. http://www.oFic-un.org/document_report/Islamophobia_rep_May_23_25_2009.pdf
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Difamação religiosa, o estigma e as normas sociais – quando o Direito europeu toma cada vez mais conhecimento da complexidade social Fabrice Desplan * Perante uma indiferença maior ou menor, grupos religiosos são vítimas de difamação. Este lado do Direito e das relações sociais, no entanto, é pouco mencionado. Quando uma organização religiosa é suspeita de ter uma prática incompatível com o Direito, a moral, ou suposta tradição, é um alvo para a difamação. E, apesar de várias sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), a difamação dos grupos religiosos persiste. A França tem-se distinguido particularmente a este respeito. Agora o Tribunal Europeu introduziu um novo quadro, que forçou o Direito interno. A nossa contribuição consistirá em tentar estabelecer que essa evolução corresponda, desde logo, à realidade social. Para isso, lembramos a jurisprudência recente e colocaremos em evidência os seus efeitos sobre a construção jurídica de difamação. Depois, destacaremos que a perspetiva do TEDH pode ser examinada à luz da abordagem sociológica da estigmatização. Isso irá levar-nos a mostrar que o TEDH se opõe às conceções simplistas da “normalidade” que expõe os grupos religiosos ao estigma social, de que a difamação é uma forma de expressão.
1. A nova lei francesa e jurisprudência do TEDH Os sinais do Direito francês No Direito francês, a difamação é um crime definido dessa forma pela Lei sobre a liberdade de Imprensa de 29 de julho de 1881, artigo 29, parágrafo 1: “Qualquer alegação ou imputação de um ato que atente contra a honra ou a consideração da pessoa ou entidade a quem o facto é imputado é uma difamação. A publicação direta ou pela via da reprodução desta alegação ou desta imputação é punível, mesmo se for feito sob a forma dubitativa ou se visa uma pessoa ou uma entidade não expressamente nomeada, mas cuja identificação é possível graças aos termos do discurso, gritos, ameaças, cartazes ou impressos ofensivos”. A intenção culpada é presumida (L. 19 de julho de 1881, art. 35bis). Cabe ao autor e/ou difusor de declarações alegadamente difamatórias provar a sua boa fé, indicando: a) que dispõem de elementos de prova que o levam a crer na verdade dos factos relatados, b) que não estava a prejudicar, mas a informar, c) que o dano sofrido, ou seja, a deterioração da imagem do difamado, pessoa ou grupo, foi proporcional d) que tinha tomado precauções para evitar a difamação. 60
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Esta decisão do TEDH tem um impacto direto sobre a construção jurídica do conceito de difamação e sobre um hábito antigo. Em França, de facto, a difamação foi codificado como parte da liberdade de expressão da imprensa. Este contexto está atualmente em tensão com a nova lei. Podemos, interroga-se Patrice Rolland, ter as mesmas exigências para com profissionais do processamento da informação e para com os cidadãos que se apoderam de uma questão do debate público? No caso Paturel, o Tribunal constatou que as investigações do autor, repousa sobre “uma base factual não existente”, e inscreve-se num debate público que está aberto a todos. O TEDH insiste na noção de debate público, que é um quadro especial para estabelecer a difamação. A sua jurisprudência, está de facto no debate público, pois é um assunto discutido em “arena pública” e que a pessoa física ou moral, está ativa no domínio público: pode tratar-se de associações que operam em áreas de interesse público, de um homem político que, ao contrário de um simples particular, se expõe, inevitável e conscientemente, a um exame minucioso de suas ações tanto pelos jornalistas como pela massa dos cidadãos”2. O recurso ao conceito de debate público não deve levar aos excessos. No processo Giniewski v. França em relação à negação do Holocausto, o Tribunal observou na sua decisão de 31 de janeiro de 2006, o limite que representa “a importância de uma base factual”. Portanto, a jurisprudência europeia insiste na existência
Tratar da difamação é, portanto, à luz destes critérios do Direito, considerar um impacto negativo na imagem de um grupo religioso ou de uma prática religiosa após uma ação refletida. A nova jurisprudência do TEDH A sentença Paturel de 22 dezembro de 2005 do TEDH modificou este quadro bem estabelecido. Christian Paturel, no seu livro intitulado Seitas, religiões e liberdades públicas, pôs fortemente em causa a UNADFI, um ator associativo francês da luta contra as seitas. Neste caso, os juízes franceses tinham aplicado os critérios tradicionais de difamação. No entanto, o TEDH não seguiu as conclusões da jurisdição interna. Ele sublinhou que os juízes franceses tinham rejeitado alguns documentos fornecidas pelo autor para defender as passagens imputadas e, por outro lado, a jurisdição interna tinha considerado que o recorrente, na sua qualidade de membro de uma organização chamada de “seita” pela UNADFI de parcialidade e animosidade pessoal contra a UNADFI. Para o TEDH, o trabalho de Christian Paturel inscreve-se num debate público com base exclusivamente em juízos de valor e, em casos tais, não podemos impor a obrigação de verificação escrupulosa dos factos. “O Tribunal põe, assim, em causa alguns critérios de difamação em alguns contextos1. Por outras palavras, ele reequilibra as relações de poder num debate sobre as seitas, em que os valores se entrelaçam, e se combatem mais do que estabelecem os factos de forma objetiva.
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de elementos que não podem ser questionadas, ou seja, “os factos históricos claramente estabelecidos”. O Tribunal afirmava já com Garaudy de 24 de junho de 2003, que “a negação de crimes contra a humanidade parece ser uma das formas mais agudas de difamação racial para com os judeus e de incitamento ao ódio contra eles”. Da mesma forma, reconhece a tensão entre o crime e o direito ao exagero, especialmente com relação às caricaturas religiosas feitas pelos jornalistas. Procura, também, manter o pluralismo das opiniões, numa sociedade democrática, incluindo em matéria de religião: é a principal lição que tiramos da sua sentença no caso de Aydin Tatlav v.Turquia. Esta breve resenha – não exaustiva – da jurisprudência do TEDH a propósito da noção de difamação, tem o propósito de pôr em evidência uma evolução. Nós já não estamos apenas na simples verificação de critérios antigos. As noções de debate público, de interesse geral, da liberdade de expressão, do pluralismo, ou ainda dos juízos de valor tornam cada vez mais complexo o conceito de difamação. Isto é particularmente verdadeiro em matéria religiosa em que o direito ao exagero e a noção de ofensa se opõem. Esta complexidade da jurisprudência europeia não deve, no entanto, fazer desaparecer aos olhos do observador, um ponto de apoio: a estigmatização. A jurisprudência atual mostra que os juízes estão cada vez mais atentos na verificação de que nenhuma estigmatização social nem estrutura a intenção daquele que difama. Sobre este 62
A estrela amarela usada por este homem é o sinal da sua pertença religiosa. Uma lei, instaurada em 1941, obrigava todos os judeus que viviam na Alemanha nazi e em todos os países ocupados pelos alemães, a usar a estrela de David para serem identificados imediatamente. Foto Wikipedia/ Deutsches Bundesarchiv
ponto, é particularmente importante estabelecer concretamente o conceito de estigmatização. As conclusões da sociologia do desvio permite entender porque, apesar da vigilância dos juízes, o religioso é objeto de difamações. Estigmatização social e a difamação É importante que os sociólogos entendam o que se passa a montante da construção jurídica da estruturação social da difamação. Por outras palavras, não podemos considerar a nova jurisprudência do TEDH como separada dos constrangimentos sociais que codificam o ato de difamar. Antes de ser um ato juridicamente reconhecido, a difamação pertence à
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ordem social. É uma forma de coerção que consiste em estigmatizar socialmente um indivíduo ou grupo para o excluir. Erving Goffman, no seu livro Stigmate3, categoriza o estigma em três tipos. O primeiro inclui as monstruosidades do corpo (as deformidades), a segunda, as falhas de carácter (falta de vontade ou paixão, rigidez, desonestidade, etc., num indivíduo conhecido por pertencer a um grupo socialmente enfraquecido por estereótipos: o dos viciados em drogas, homossexuais, desempregados, por exemplo); o último, que toca diretamente o nosso objetivo, reúne os estigmas tribais. “Estes são a raça, a nacionalidade e a religião, que podem ser transmitidos de geração em geração e também contaminar todos os membros da família.4.” Mas não nos enganemos: mesmo se há diferentes formas de estigmas, o objetivo da estigmatização é distinguir o normal do anormal. Já no prefácio de seu livro, Goffman se refere ao estigma como a situação de um indivíduo – e, por extensão, de um grupo social – que qualquer coisa desqualifica e impede se ser plenamente aceite pela sociedade. Para o autor, esta desqualificação tem um efeito moral, porque “é óbvio que, por definição, nós (os normais) acreditamos que uma pessoa com um estigma não é forçosamente humano”. Além disso, os grupos sociais mais expostos à difamação são aqueles que cultivam o desejo de escapar às normas sociais. Esses são estigmatizados pelos normais, que “parecem unidos numa recusa coletiva da ordem social. Eles são os que parecem desprezar as oportunidades
A festa do Bar Mitzvah em Jerusalém. Aos 13 anos, o jovem judeu atinge a sua maioridade religiosa, isro é, tornar-se responsável pelos seus atos: deve observar os mandamentos e pode participar nos ofícios religiosos ler a Torah na sinagoga, por exemplo. Foto churchphoto.de/A.D.Gundadoo
para avançar nos caminhos abertos para eles na sociedade; eles os que faltam abertamente ao respeito aos seus superiores; eles, os ímpios; eles os falhados da sociedade quanto aos motivos por ela propostos. A observação de Goffman faz exactamente o contrário da lógica jurídica de Direito francês. Neste – antes da nova jurisprudência do TEDH – a difamação aplicava-se tradicionalmente àqueles que tinham a intenção de prejudicar a imagem de um grupo ou de um indivíduo. Ora, constata Goffman, na vida social, a estigmatização toca frequentemente indivíduos que emprestaram uma intencionalidade, uma tentativa deliberada para escapar aos quadros sociais estabelecidos e, consequentemente, prejudicando a harmonia 63
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social. Essa intencionalidade desviante suposta entre os difamados será suficiente para justificar a difamação, enquanto a lógica jurídica procurou a intencionalidade negativa dos autores da difamação. Com a sentença Paturel, o TEDH recusa-se a considerar que é necessário apenas fazer eco de uma busca de intencionalidade negativa. Um indivíduo tem o direito, especialmente quando se está envolvido num debate feito de juízos de valor, de se envolver neste último. O que vamos reprovar nas calúnias? A sua vontade de se demarcar das normas sociais – muitas vezes com pouca descrição. É esta escolha assumida que, porque reanalisa a sociedade nas suas normas, que põe problemas. Não podemos considerar um grupo ou individuais como difamadores, porque têm uma perspetiva diferente sobre as normas sociais e tomam posições num debate que os envolve. Nesse sentido, o TEDH não se constitui como árbitro dos debates, mas em garante do seu bom comportamento. Mas todos os grupos que se desviam da norma, não são necessariamente objeto de difamação. Sobre este ponto, Goffman fez uma distinção. Há “marginais tranquilos”, vivendo numa anormalidade sem pôr em causa as normas e as certezas sociais. Por outro lado, alguns grupos e práticas religiosas são, pela sua mera existência, censuras dirigidas aos comportamentos e às crenças da maioria dos indivíduos. É mais fácil estigmatizá-los do que fazer as perguntas pertinentes que eles levantam. A identidade dos grupos
difamados interroga, especialmente quando estes assumem a sua particularidade, o exprimem e se opõem às normas dominantes partilhadas pela maioria, e isso, sem que representem, mais frequentemente, nenhum risco de perturbação6. A abordagem de Goffman implica que a estigmatização social e um dos seus resultados, a difamação, se apoiam numa representação complexa do conceito de normalidade que visa indicar que os difamados não são “normais”. Sobre este ponto, a análise do sociólogo está mais próxima – e ele assume-o – dos estudos sobre o desvio. O estigma não é mais do que uma caracterização negativa de grupos ou indivíduos considerados desviantes. Mas, ainda é necessário entender se estamos de acordo sobre o conceito de normalidade7. 2. Estigmatização, difamação e normalidade Em 1963, o ano do lançamento do livro de Goffman, o seu colega Howard Becker publicou Outsiders, um estudo sobre o desvio e a normalidade – obra que se tornou um clássico. Becker, como Goffman formado na famosa Escola de Chicago, partilha com ele a intuição de que temos de analisar os grupos e indivíduos desviantes para compreender a normalidade. É, portanto, indiretamente, que a normalidade é discutida. Becker utiliza para isso, os métodos derivados da etnografia. Ele está envolvido na experiência de grupos marginais – os outsiders – que ele estuda. Este olhar permite-lhe notar uma abordagem do conceito de normalidade. 64
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de uma visão patológica do religioso – sobretudo minoritário – que predomina hoje10. O caso Brard, do nome do deputado francês condenado pelos seus comentários a propósito das seitas, explicitam este olhar patológico. Mais genericamente, em França, a luta contra as derivas sectárias, é concebida como uma luta purificadora realizada pela sociedade contra as organizações e grupos religiosos. O último conceito do desvio é o padrão de obediência às normas sociais. Aqui a difamação pode ser concebida como uma sanção social imposta a um grupo considerado desviante. Essa abordagem obriga a ver o grupo desviante, estigmatizado, difamado, como um espaço constituído de atores racionais: estes optam por um estilo de vida, crenças e práticas que consideram melhores do que os da sociedade global. Tratase, portanto, de uma rejeição da normalidade estatística. Notemos que esta escolha não é entendida como um risco para o conjunto da sociedade, em oposição à representação patológica descrita por Becker. “A partir deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato praticado por uma pessoa mas sim uma consequência da aplicação, pelos outros, de normas e sanções a um “transgressor”11. A difamação religiosa não seria, no prolongamento de Becker, senão uma sanção infligida a uma tradição das práticas religiosas ou a grupos entendidos como muito separados das expectativas dos “normais”. A estigmatização e a difamação, e ao que elas podem levar, resulta de uma conceção de normalidade que
Em primeiro lugar, “a conceção, a mais simples, de desvio é essencialmente estatística: é desviante o que se afasta da média”8. A norma aqui seria os comportamentos mais comuns na vida social. Esta definição é pouco eficaz para Becker porque todos os comportamentos não são estigmatizados, isto é, difamados, unicamente porque são uma minoria. Um segundo conceito, baseado em analogias médicas do desvio, e por consequência da normalidade, é mais difundido. “Ela considera o desvio como algo essencialmente patológico, que resulta da presença de um “mal”9. Aqueles que são classificados como desviantes são, como que uma patologia, considerados como portadores de práticas que devem ser combatidas. Eles seriam a causa da disfunção social. Neste caso, a estigmatização de grupos e práticas religiosas visam inscrever o religioso no anormal, no indesejável, no patológico, numa palavra: o desvio. O tratamento político francês dos grupos políticos e práticas religiosas revelam esta visão. A luta contra os comportamentos sectários é um exemplo. Jean Baubérot lembra que o Estado tem o direito de organizar as expressões religiosas e que o jogo democrático impõe a existência de apoiantes pró ou antirreligiosos. A anomalia, para ele, vem de que em França, o Estado, longe de manter uma posição de equidade que há o direito de se esperar dele, toma partido neste jogo, apoiando ações antirreligiosas, desequilibrando assim a noção de laicidade. Essa escolha é, sem dúvida, o resultado 65
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identidades sociais virtuais e reais”. A difamação religiosa, pode, neste sentido, ser considerada como uma alteração mediatizada da imagem de um grupo, de uma prática, de uma tradição, ou de um indivíduo, sobre bases religiosas, apoiadas, unicamente, na identidade virtual. A verdadeira identidade do difamado é esmagada pela identidade virtual construída de forma ilusória por aqueles que se consideram normais. É, portanto, um ato social particularmente violento. A isso acrescenta-se, para Becker, que a difamação toca grupos que assumem uma identidade real oposta aos atentados sociais. Aí não há engano sobre a identidade do grupo. Ele, simplesmente, não é aceite.
combina as três abordagens referidas por Becker. Os grupos, tradições e práticas religiosas são aí por vezes particularmente expostos. É isto que nota, por outras palavras, Jean-Paul Willaime a propósito do debate sobre as seitas12. Ele especifica que “no conceito social corrente, seita serve para designar, desqualificando, a religião do outro e os outros religiosos”. Ele acrescenta que um grupo religioso pode ser chamado de “seita” porque é desconhecido ou pouco conhecido, ultraminoritário, exigindo dos seus membros, que tem no seu seio uma autoridade carismática usado por uma pessoa, ou ainda que se isola da sociedade como um todo e/ou faz proselitismo. A presença de um ou mais destes critérios, muitas vezes justifica o termo “seita”. Na verdade, acrescentemos que o religioso considerado como “anormal” é mais suscetível de ser difamado, porque escapa às representações da maioria. É um dos efeitos que ilude as normas sociais. Lembremo-nos de que as normas sociais se inscrevem num ambiente social. É apoiando-se nelas que entramos em relação e codificamos os nossos comportamentos. Mas esta codificação é um encontro entre os conceitos pré-definidos e a realidade. Existe um desvio entre o padrão de leitura pré-estabelecido e o comportamento objetivo. Disso resulta uma identidade construída pelo observador e colada ao observado: é a identidade virtual. Isso é mais ou menos distante das características mensuráveis, isto é, da verdadeira identidade. A estigmatização é para Gauffman, uma tensão, “um desacordo entre
Conclusão As sentenças do TEDH mostram que os juízes, mesmo se não argumentam sobre a noção da normalidade, não querem colocar o religioso nas categorias passionais que não são fiéis à realidade social. Finalmente, ultrapassando os critérios clássicos que estabelecem a difamação, integrando nela a noção de debate público, reconhecendo ao difamado o direito de participar nos debates de valores que o integram, o Tribunal não faz senão notar que não há construção estatística e patológica da normalidade. Rejeita, sem se lhe referir, as análises da sociologia e parece consciente de que a difamação é um prolongamento da estigmatização social. Para retomar os termos da psicologia social, o TEDH luta contra a psico-oncogénese. Esta, recordemos, é, entre outras, uma tendência 66
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para fazer dos grupos vulneráveis a causa dos males sociais. Assim, por ocasião das grandes epidemias, de crises ou de fenómenos graves inexplicáveis, constata-se que são os marginais, os estrangeiros, os grupos religiosos minoritários ou ainda os judeus que são estigmatizados como causa do mal. A psico-oncogénese designa um inimigo comum, na base de fantasmas, numa indiferença e frequentemente um assentimento geral. Fazendo evoluir a jurisprudência e recusando uma abordagem das normas sociais propícias à estigmatização, o TEDH vigia para que os grupos religiosos não sejam vítimas de difamação. Isso faz dele um elemento que pode ser formador, no plano jurídico, face à difamação. No entanto, é necessário não omitir que as decisões do Tribunal não são conhecidas do grande público. Este último é mais recetivo e exposto
às difamações. E quando é informado de um julgamento em favor de grupos religiosos, está esporadicamente, longo do barulho mediático que reina no momento da estigmatização e da difamação. De facto, a opinião permanece sensível ao adágio segundo o qual “não há fumo sem fogo”, fazendo assim dos grupos religiosos perpétuos difamados apesar das decisões do Tribunal. Esta constatação torna “normal”, aos olhos de muitos, a difamação dos grupos religiosos. O que leva a sublinhar a importância de que se revestem, para equilibrar o jogo democrático, as decisões do Tribunal a favor dos grupos religiosos e a sua mediatização. No caso francês, a leitura dominante da laicidade como espaço asséptico, livre de religião, e longe da realidade histórica e jurídica deste conceito, o que não concilia, em nada, a luta contra a difamação religiosa.
* Sociólogo e antropólogo da religião. Groupe Sociétés, Religions et Laïcités, Paris Notas 1. Seitas, liberdade de religião e liberdade de expressão: Sentença Paturel de 22 de dezembro de 2005 in Paul Tavernier (sob a direcção de), La France et la Cour européenne des droits de l’homme. La Jurisprudence en 2005, Bruylant, Bruxelas, 2006, p. 131-140. Ver também Patrice Rolland, La critique, l’outrage et le blasphème, Dalloz, 2005, n. 20, p. 1326. 2. Patrice Rolland, op. cit., 2006, p. 133, 134. 3. Erving Goffman, Stigmate. Les usages sociaux des handicaps, Editions de Minuit, Paris, 1975. Traduzido do inglês Stigma, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1963.
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Fabrice Desplan 4. Idem, p. 14. 5. Idem, p. 167. 6. Para prolongar a reflexão sobre este ponto, ver Regis Dericquebourg, “Stigmates, prejuges, discrimination dans une perspective psychosociale”, in Boletim CESERE, No. 9, datado de 1988-1989. Publicado em 1990. 7. Para ampliar a reflexão sobre este ponto, ver Regis Dericquebourg, idem. 8. Howard S. Becker, Outsiders. Études de sociologie de la déviance, Le Métaillé, Paris, 1985. Traduzido do inglês Outsiders, The Free Press of Glencoe, 1963, p. 28. 9. Idem, p. 29. 10. Jean Bauberot, L’integrisme republicain contre la laïcité, Ed. de l’Aube, La Tour d’Aigues, 2006. Ver também Jean Bauberot, Laïcité 1905-2005, entre passion et raison, Le Seuil, Paris, 2004. 11. Erving Goffman, p 32, 33. 12. Jean-Paul “Les definitions sociologiques de la secte”, in Francis Messner (ed.), Les sectes et le droit en France, Paris, PUF, 1999. p. 21-46.
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Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões nos documentos das Nações Unidas * Silvia Engeletti **
1. A proteção jurídica contra a difa-
ido além da aplicação do tradicional caso conhecido sob o nome de “discurso de ódio”, introduzindo uma nova forma de violação da liberdade de pensamento, consciência e religião: a difamação das religiões. Ao analisar as disposições internacionais e regionais nesta matéria, podemos constatar que as normas em vigor para a proteção dos direitos humanos podem perfeitamente ser aplicadas nos casos em que a liberdade de expressão e a liberdade religiosa estão em conflito. Além disso, em quase todas as normas internacionais que consagram a liberdade de opinião e de expressão, o quadro jurídico global vela para que o exercício desse direito seja tenha toda uma série de restrições legítimas para garantir os direitos legítimos de terceiros e prevê outras medidas para impedir as manifestações de intolerância e discriminação religiosa ou desrespeito, agrupados sob a expressão geral de “discurso do ódio”2. Podemos portanto interrogar-nos, com alguma razoabilidade, sobre as razões que levaram alguns organismos das Nações Unidas a criar com a “difamação das religiões” uma
mação das religiões: uma nova restrição da liberdade de expressão? Nos últimos anos, as instituições internacionais relacionadas com os direitos humanos têm-se mostrado cada vez mais preocupadas com os casos de discriminação e casos de incitamento ao ódio racial, étnico ou religioso. Estes incidentes suscitam uma ansiedade difusa na sociedade e comprometem a coabitação harmoniosa, no seio de um ambiente onde de uma diversidade cultural e religiosa está a aumentar. As Nações Unidas, assim como outras instituições, sejam eles regionais, internacionais ou religiosos, não cessam de apelar aos governos, aos média e às organizações não-governamentais e às organizações religiosas para se envolverem firmemente contra todas as formas de xenofobia e de propagação de ideologias racistas ou antirreligiosas, comprometendo-se a promover a tolerância e respeito por outras culturas (e entre as culturas), as tradições e crenças religiosas1. Para tentar limitar a difusão de declarações suscetíveis de ofender, denegrir ou rebaixar certos grupos étnicos ou religiosos, as Nações Unidas tem 69
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o objetivo de preservar a paz social – a todas as formas de crítica, troça ou opinião discordante sobre temas religiosos sensíveis. Na falta de clareza de objetivos, temos de adicionar uma formulação muito geral que não permite determinar com precisão o seu conteúdo e os seus limites, nem fornece aos governantes dos diversos Estados ou instituições supranacionais, uma norma uniforme para a sua aplicação. O último ponto – mas não menos importante – que não deixará de espantar – é que os documentos analisados mostram uma estreita relação entre a difamação das religiões e a discriminação racial. Ora se é inegável que os comportamentos discriminatórios são, nos factos, muitas vezes agravados quando são motivados pela pertença étnica ou religiosa da vítima, é igualmente verdade que os elementos qualificativos de uma e a outra ofensa são muito diferentes, e exigem uma reação diferente por parte da legislação. A introdução do conceito de difamação das religiões ligado quer à liberdade de expressão quer à liberdade religiosa, pode ter repercussões negativas que levarão, na nossa opinião, a pelo menos, duas consequências que não podem ser negligenciáveis. A primeira é que os beneficiários das disposições internacionais para a proteção da liberdade religiosa mudam: se considerarmos, com efeito, que a difamação ofende a própria religião já não são os crentes que podem gozar desta proteção, mas as instituições, as doutrinas ou os sistemas de valor. Isto tem implicações importantes tanto do ponto de vista teórico (na ausência de uma definição comum ou em presença
“nova” figura de atentado contra os sentimentos religiosos: trata-se de uma forma de infração que se diferencia do incitamento ao ódio ou à discriminação, na medida em que é simplesmente a causa de uma violação, e não uma violação direta desse direito, e que, por outro lado, pode ser sancionado com base de novos crimes (a blasfémia, por exemplo). Um exame mais detalhado nos documentos da ONU sobre esta questão, faz ressaltar sobretudo dois argumentos principais a favor da introdução desta nova expressão. Em primeiro lugar, trata-se de garantir não só a proteção efetiva do indivíduo no exercício da sua liberdade de religião, mas também a proteção da própria religião protegendo os sentimentos religiosos de cada um dos crentes. Mas também de toda a comunidade ou outros sistemas de valores, para assegurar uma maior coesão social e da paz religiosa mais estável. O segundo argumento baseia-se na conceção de que um comportamento difamatório cria um clima de intolerância e desrespeito geral que facilita as infrações contra a liberdade religiosa. Ao proibir a difamação das religiões, impedir-se-ia, portanto, que se produzam violações mais graves contra os direitos do Homem. Mesmo se compartilhamos das preocupações dos organismos das Nações Unidas, devemos reconhecer que, envolvendo-se na luta contra a difamação das religiões, parece que não foram suficientemente tidos em conta os riscos para a liberdade de expressão que corre o risco de ser asfixiada pela censura infligida – com 70
Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões...
de diferentes confissões pertencentes à mesma tradição, como definir o que é “religião”?)3, de um ponto de vista prático (como identificar as vítimas atuais, não apenas potenciais, e como distinguir expressões legítimas de crítica ou sátira do novo delito?). A segunda estreitamente ligada à primeira, refere-se ao grau de pressão exercida sobre a liberdade de expressão na definição (da mesma forma como a Assembleia Geral das Nações Unidas o faz) como uma possível difamação religiosa qualquer declaração que possa prejudicar a paz social e dos direitos do Homem4 sem especificar em que medida e na base de que critérios a expressão de certos pontos de vista produz tais efeitos nem quem está qualificado para fazer valer que há uma infração (quem pode pretender representar uma religião?)5. A forma como o problema se põe – em vista do conteúdo e do tom utilizado nos documentos das Nações Unidas – parece vir, em grande parte, de uma conceção que tende a classificar tudo o que é humano em quadros estritos fixados pela civilização a religião e a cultura. Isso tem como consequência fazer renascer todas as tensões internacionais os problemas de relação de equilíbrio e a conflitos entre as civilizações6. Esta conceção, que tende a enfatizar o aspeto comunitário, demonstra não ser, de forma alguma, apropriado para prestar contas, por um lado das razões políticas, que se escondem por detrás das tensões aparentemente étnicas e religiosas7 e, por outro lado, da complexidade de realidade social e da sobreposição, das múltiplas identidades que formam o indivíduo e
A Bíblia hebraica, ou Tanakh, é constituída por três partes principais: a Torah (a lei), os Neviim (os profetas e os Ketouvim (os outros escritos). A foto mostra a Torah e o interior da antiga sinagoga (reconstruída) situada na Glockengasse, em Colónia. Foto Wikipedia/Willy Horsch.
motivam as suas pertenças pessoais, que vai progressivamente escolher de forma racional8. Uma perspetiva mais centrada no indivíduo, provavelmente, iria oferecer mais oportunidades de alcançar a paz social que a procura diligente de uma coabitação harmoniosa entre as entidades que se consideram estranhos uns aos outros, monolíticas e, geralmente identificáveis como as religiões ou as civilizações. Se se considera o horizonte conceptual em que se situam os documentos das Nações Unidas, não é anódino. Com efeito, a noção de descriminação religiosa baseia-se nas reclamações vindas, em grande parte, (mas não exclusivamente) de alguns Estados do mundo islâmico, que pedem medidas de proteção 71
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O Corão, livro sagrado dos muçulmanos, contém as palavras - a revelação escrita - que Maomé dirigiu aos seus compatriotas árabes, no início de século VII. Foto Wikipedia
das religiões – e sobretudo do Islão – contra todas as formas de declarações caluniosas. No momento de aprovar documentos que integram no Direito esse género de pedidos, é portanto importante ter em conta a força representativa de que beneficia cada um dos componentes nacionais assim como a orientação política dos diferentes órgãos encarregados de redigir esses documentos e de os votar. A variação dos equilíbrios internos pode explicar porque chegamos a diferentes formulações (ou contradições) entre os diferentes textos. Os Relatores Especiais das Nações Unidas, por exemplo, têm claramente assumido uma posição, nestes últimos anos, sobre a difamação das religiões, e declarado que se trata de uma medida que conduz
à confusão, mais do que as soluções reais – voltaremos a este assunto. Não é evidente prever como esta questão vai evoluir, pois está longe de estar encerrada9. É apenas conservando em mente essas observações preliminares essenciais, que se poderá tentar uma primeira estimativa com a ajuda dos documentos das Nações Unidas. 2. Primeiro objetivo: proteger as religiões e crenças Foi posta pela primeira vez às Nações Unidas a questão da difamação das religiões, no final de 1999, quando a então Comissão de Direitos Humanos, numa série de Resoluções de conteúdo essencialmente idêntico,10 constatou com grande inquietação, o aumento dos casos de violência, de intolerância de coerção, ou 72
Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões...
de intimidação com base na religião, ou motivados pelo, extremismo religioso (em contrapartida é de notar, que as Resoluções mais recentes, já não mencionam a violência motivada pela religião). A Comissão mostrou-se então preocupada pela ligação existente entre os comportamentos de intolerância religiosa e os estereótipos negativos. Esse fenómeno parece ter-se amplificado recentemente, depois dos acontecimentos de 2001, logo que tem associado, sem razão, o Islão ao terrorismo, o que teve repercussões nefastas sobre a imagem da religião e sobre a vida da comunidade islâmica,11 Nos documentos, também se faz uma alusão direta aos meios de comunicação que muitas vezes contribuem para suscitar a intolerância ou de xenofobia em relação ao Islão e outras religiões (itálico nosso). Em resoluções posteriores, o Conselho dos Direitos Humanos fez as mesmas constatações, confirmou-as e formulou os mesmos objetivos.12 Para lutar contra esta situação, os Estados membros são convidados a colaborar de diferentes formas: desde logo não apoiando as organizações extremistas, mas, ao contrário, impedindo-as de fazer a propaganda que incitaria à violência ou à discriminação contra certas crenças religiosas. Depois, vigiando para que todos os agentes da função pública se envolvam em não exigir que os cidadãos façam prova de pertencer a uma religião, em particular no que respeita ao acesso à educação. Além disso os governos são encorajados a “prover medidas jurídicas apropriadas” (a formulação tem falta de cla-
reza) de proteção contra a coerção, a intimidação e a descriminação, que são as consequências da difamação religiosa e associar-lhes estratégias intelectuais e morais (itálico nosso) que permitam lutar contra o ódio e a intolerância religiosa.l3 Em 2007, o Conselho de Direitos Humanos14 foi ainda mais longe. Ele repete uma fórmula já adotada pela Assembleia Geral15 e adicionado à lista existente das restrições à liberdade de expressão, já previstas pelos textos internacionais um outro motivo, definido pela expressão “respeito pelas religiões e convicções”. Ele “[...] insiste no direito de todos à liberdade de expressão, que deve ser exercida com responsabilidade e pode, portanto, ser objeto de restrições previstas pela lei e necessários para o respeito dos direitos ou da reputação de outrem, a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, da saúde ou da moral pública e do respeito pelas religiões e crenças (itálico nosso)”.16 Num documento posterior, o número de limitações previstas nas disposições internacionais (em especial os artigos 19 e 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) aumentou ainda mais graças à inserção de uma referência – ainda mais vaga – ao interesse Geral.17 Com uma Resolução de 2009, o Conselho parece querer dar um passo para trás: ele retoma a lista das restrições à liberdade de expressão, mas omite as razões anteriormente apresentadas e que, até então, não faziam parte das normas internacionais.18 As preocupações da Comissão e as soluções que ela propõe resultam da convicção de que é necessário 73
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reconhecer e apreciar a diversidade cultural e religiosa, os diferentes valores assim como a riqueza e a contribuição que as religiões têm dado para a civilização moderna. Donde a necessidade, para cada país e para a comunidade internacional como um todo, de garantir o respeito e a tolerância para com todas as religiões e incentivar o diálogo e uma cultura baseada nos direitos humanos e da diversidade da fé19. As mais recentes declarações da Assembleia Geral – que têm todas este título revelador: Combating Difamation of Religions20 – parecem estar fortemente baseadas na noção de tolerância e de diálogo; este, é preciso esperar, deveria sobretudo pender para as relações entre as religiões e as civilizações, que são, em princípio, diferentes e potencialmente fonte de conflitos. Indo no mesmo sentido da Comissão, a Assembleia Geral manifestou a sua preocupação perante os fenómenos de intolerância, violência e intimidação por motivos religiosos ou pelas manifestações de extremismo religioso21. Também se declarou preocupada com a crescente campanha de difamação que fere as religiões, e especialmente pela imagem negativa e estereotipada do Islão veiculada pelos média. Este fenómeno é acompanhado, em algumas regiões do mundo, de políticas e de legislações que discriminam determinados grupos religiosos (especialmente os muçulmanos), e juntam-se a certos comportamentos22 influenciados por problemas de segurança ou a imigração clandestina e exacerbada pelo debate mediático. Tudo isto tem
como consequência formas mais ou menos veladas de profiling étnico e religioso23 das minorias muçulmanas. A Assembleia exorta, portanto, os governos a lutar contra a difamação de todas as religiões (especialmente o Islão), para proibir a divulgação de documentos racistas e xenófobos, mesmo quando eles vêm dos meios políticos, a não para apoiar os programas de organizações extremistas que caluniam as religiões e a conceder uma proteção adequada contra os atos de descriminação e de coerção resultantes da difamação das religiões. Por fim, pede-lhes para garantir que os funcionários e os educadores, no exercício das suas funções, respeitem as diferentes religiões não fazendo descriminação e garantindo o acesso à educação, sem ter em conta a raça25. O essencial tanto para a Comissão e o Conselho como para a Assembleia Geral, o ponto de partida para justificar a proteção das religiões, como tal, parece ser a sua contribuição para a civilização moderna e o facto de que o respeito da diversidade cultural, religiosa e étnica é essencial para a paz, assim como os preconceitos culturais e intolerância e a xenofobia apenas dão origem ao ódio e à violência26. O mesmo tema reaparece noutra Resolução, consagrada, desta vez, à estratégia mundial contra o terrorismo27. O suposto vínculo entre o terrorismo e a difamação religiosa é um ponto importante. De acordo com a Assembleia Geral, para lutar eficazmente contra o fenómeno do terrorismo, é necessário realizar uma série de iniciativas 74
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por um lado, a discriminação racial e a xenofobia e, por outro, a falta de conhecimento de outras culturas e religiões. Segundo ele,31 a política dos Estados deve basear-se numa estratégia dupla: primeiro, a aplicação real e eficaz dos documentos internacionais e, segundo, uma melhor – e mais profunda – compreensão das causas fundamentais e determinantes do racismo32. Com efeito, a falta de reconhecimento do pluralismo étnico, religioso e cultural, favorece o desenvolvimento de novas formas de racismo, o que obriga os Estados, a concentrar as suas intervenções sobre a proteção da diversidade das expressões religiosas e culturais33. Ele propõe dar destaque ao diálogo entre civilizações, as culturas e as religiões, e promover a abordagem educativa pela compreensão da história, da ética e dos valores comuns a todas as religiões e tradições espirituais34. O medo do Islão, que foi reforçado nos últimos anos devido à amálgama entre muçulmanos e terroristas, chamou em particular a atenção do Relator Especial. Este sublinha que por detrás das manifestações de racismo e discriminação contra os muçulmanos escondem-se, a maior parte das vezes, razões políticas e ideológicas mais do que religiosas, e que têm mais a ver com o fenómeno do crescimento da xenofobia nos países ocidentais35. O caso das caricaturas também ilustra o aumento da islamofobia e do racismo36.
visando erradicar a pobreza, promover a boa governação, os direitos humanos e o Estado de direito e garantir o respeito por todas as religiões, valores religiosos, crenças e culturas. Convém, para isso, encorajar o diálogo a tolerância e a compreensão entre as civilizações, os povos e as religiões, prevenindo as formas de difamação religiosas e culturais. As palavras do Relator especial sobre a liberdade religião ou crença28 também deixam transparecer a esperança de uma convivência pacífica entre as confissões. Elas lembram que, se as opiniões e ideias devem sempre ser respeitadas, não se deve tolerar o uso de estereótipos e declarações que ofendem os sentimentos religiosos profundamente enraizados porque eles não contribuem para a instauração de um clima propício ao diálogo construtivo e pacífico entre as diferentes comunidades (itálico nosso)29. Ele apresentou um argumento suplementar demorando-se sobre a dificuldade que há em fazer a distinção, entre as comunidades religiosas e grupos raciais. Muitas minorias têm, com efeito, tendência para se identificar tanto pela religião como pela raça, e isso os expõe mais às discriminações, que visam vários aspetos da sua identidade30. A situação da liberdade religiosa agrava-se quando fatores raciais entram em jogo, porque a possibilidade e a importância da discriminação podem achar-se influenciadas e reforçadas. A este respeito, em Relatórios recentes, o Relator Especial sobre a Discriminação Racial estabelece uma ligação estreita entre, 75
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O facto da relação estabelecida entre etnia e religião tomar tal importância na luta contra a discriminação está gradualmente a tornar-se um elemento recorrente das reflexões dos organismos internacionais. Na primeira Declaração de Durban37, os delegados, no quadro de uma série de propostas sobre o combate à discriminação racial, exprimiram a sua preocupação sobre as manifestações de intolerância que limitam a liberdade de certas comunidades religiosas. Eles deploram, igualmente, os atos de hostilidade e de violência de que os seus membros foram alvo, por causa das suas convicções, mas também muitas vezes por causa de fatores raciais ou étnicos. As medidas e as políticas aplicadas pelos governos, para lutar contra a xenofobia e o racismo deviam, portanto, ter em conta os fatores étnicos e religiosos, que tornam mais difícil a vida das minorias culturais. Estas mesmas ideias foram reafirmados na Segunda Declaração de Durban (2009)38, que confirma que a luta contra o racismo está ligada a uma melhor integração assim como ao respeito e à tolerância entre os comunidades étnicas, culturais, religiosas e linguísticas. De acordo com organismos das Nações Unidas, a discriminação racial e a descriminação religiosa são muito próximas. Essa interpretação pode ter efeitos perversos sobre a difamação das religiões. Com efeito, seguindo esse padrão de pensamento, a difamação da religião é vista como resultado do uso da religião na política39, como um meio de lutar contra o terrorismo40, 76
e como uma retórica racista – tolerada pela sociedade e utilizada em política – que conduz a novas formas de discriminação41, de modo a que o incitamento ao ódio racial e religioso se torna um elemento comum à difamação das religiões e às manifestações de discriminação42. O Relator Especial contra a discriminação racial propõe como solução para passar do conceito sociológico de “difamação das religiões” para um conceito jurídico o de “incitamento ao ódio racial ou religioso” que poderia encontrar o seu fundamento normativo nos artigos 18 e 20 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no artigo 4º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Porque, como ele sugere, o incitamento à discriminação racial, à xenofobia e a outras formas de intolerância e difamação religiosa – ou desprezo pela religião – são muitas vezes vistos como “dois fenómenos ligados”43. Há no entanto uma diferença de conceito e prática que distingue a difamação das religiões e de incitamento ao ódio racial e isso deve ser tido em conta se não se quiser estender de modo ilimitado e arbitrário a proteção do sentimento religioso. A este respeito, o Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade religiosa44 apelou à prudência face à confusão entre as declarações racistas e a difamação religiosa. Ele lembrou que os elementos constitutivos destes dois casos não são idênticos e que as legislações nacionais relativas à luta contra o racismo não são necessariamente aplicáveis à difamação religiosa.
Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões...
Durante o Ramadão, a quebra do jejum, por ocasião do iftar (refeição da noite), dá lugar a uma pequena festa. O Ramadão, um dos cinco pilares do Islão, tem lugar durante o 9º mês do calendário islâmico. Durante este período, todos os muçulmanos devem jejuar - não comer nem beber - do nascer ao pôr do sol. Foto Wikipedia Commons/Md. Saiful Aziz Shamseer
3. Segundo objetivo: impedir uma causa indireta de violação dos direitos humanos A segunda série de razões que deveriam justificar o recurso ao caso da difamação das religiões prende-se com a necessidade de tomar todas as medidas possíveis para contrariar a argumentação, em diferentes partes do mundo, dos casos de incitamento ao ódio nacional, racial ou religioso, cujo comportamento difamatório seria uma das causas mais frequentes. A solução proposta baseia-se na vontade de impor limites à liberdade de expressão – de acordo com as disposições nas normas internacionais
– no caso em que esta última poderia entrar em conflito com os direitos de outrem e criar tensões eventuais entre grupos étnicos, raciais ou religiosos45. Por causa do aumento constante do emprego de vocabulário de um tom discriminatório para com algumas comunidades, fenómeno sobretudo muito marcado na imprensa, é pedido aos jornalistas para exercerem o seu trabalho com “bom senso, coerência e sentido das responsabilidades46”. Isso significa que devem evitar recorrer aos estereótipos que insultam a sensibilidade dos crentes e que não contribuem para um 77
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clima propício ao diálogo construtivo mas que, ao contrário, atiçam ainda mais o ódio étnico e religioso, minando, dessa forma, o frágil equilíbrio social e cultural assim como
expressão – para a proteção social – critério seguramente mais vago e mais arbitrário – abre o caminho para ver não importa que declaração de opinião submetida a toda a espécie de limitações. As restrições atualmente em vigor são, de facto, justamente para proteger um espaço público plural e aberto ao diálogo que não receie o conflito de ideias, e não um estado de perfeita harmonia social que jamais se atingiria apenas limitando ou suprimindo as condições necessárias à expressão do pensamento crítico – resultando na censura de críticas da opinião pública para a proteção de entidades mal identificadas. A esse respeito, basta constatar que a difamação das religiões é considerada, nos documentos acima mencionados, simplesmente como uma causa indireta de ofensa, e não como uma forma de discurso de ódio. Isso torna necessário – mas extremamente difícil – reconstituir o laço de causalidade entre o comportamento do presumido autor da difamação e os efeitos que resultam e que constituem uma infração à lei. 4. Conclusões A leitura das Resoluções da Assembleia Geral e do Conselho dos Direitos do Homem, parece fazer salientar um facto significativo: estes importantes documentos introduzem o conceito de difamação das religiões sem propor uma definição que permita interpretá-la e fazer a distinção entre este novo caso e o incitamento ao ódio religioso e ao desprezo, já conhecido e sancionado. As consequências que os órgãos das Nações
a construção de uma “sociedade multicultural harmoniosa”47. Neste
contexto, joga-se desta forma o jogo da difamação das religiões: a Assembleia Geral48 vê aí uma das causas da discórdia social levando a violações dos direitos humanos perante todas as religiões ou crenças49. A Comissão, assim como o Conselho utilizam os mesmos termos quando observam que a difamação religiosa representa um grave atentado à dignidade humana, contando-se entre as causas da discórdia social, levando à violação dos direitos do Homem, constitui um fator agravante da exclusão social e económica dos grupos que disso são vítimas e, por fim, é incompatível com o objetivo da manutenção da paz num mundo verdadeiramente globalizado50. A argumentação da Assembleia Geral e do Conselho parece, em princípio, aceitável. É evidente, com efeito, que um clima de suspeição generalizado, de preconceitos e de xenofobia, constitui o melhor terreno para os atos de violência e a discriminação. Não podemos, no entanto, deixar de dar conta de que é exagerado e perigoso chegar a limitar até mesmo expressões realmente legítimas de opiniões, de críticas ou de sátira justas para evitar tensões sociais. O facto de passar da proteção da ordem pública – o que significa, segundo as normas internacionais, uma limitação da liberdade de 78
Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões...
Unidas preveem para as manifestações da “difamação das religiões” impõem ainda o definir os limites exatos deste último, a fim de pelo menos bloquear o que aparece como o maior risco ligado à introdução de um tal conceito: a supressão da liberdade de expressão, sob o pretexto de que toda a declaração potencialmente ofensiva, porque é passível de gerar tensões no seio da sociedade, é passível de censura por ser considerada como difamatória. Sem negligenciar o facto de que a regulamentação jurídica sobre a liberdade de expressão comporta, inevitavelmente, fraquezas e pontos críticos, é preciso não esquecer que o incitamento ao ódio, à violência e à descriminação é um fenómeno já antigo e bem conhecido. Para o conter, os documentos internacionais não são apenas limitados em prever certos motivos de restrição da liberdade de expressão; eles fornecem, também, elementos suplementares que, mesmo que nem sempre figurem nas disposições específicas, são capazes de oferecer uma proteção adequada contra toda a manifestação de discurso do ódio51. Permanecendo no quadro das Nações Unidas, é possível encontrar um conjunto de normas – na maior parte juridicamente vinculativas – que interditam o discurso do ódio: o artigo 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, o artigo 3 da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio e o artigo 4 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminações raciais. A estes, podemos juntar
os artigos 1,2,7 e 29 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 194852. Não falta quem53 faça notar que estes textos diferem um pouco nos seus objetivos e que os conceitos chave utilizados nem sempre são definidos de maneira precisa. Esta crítica, em todo o caso, não se pode aplicar ao artigo 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, que sanciona, claramente, todo o apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua um incitamento à descriminação, à hostilidade e à violência. Esta lei possui um carácter altamente simbólico e as suas possibilidades de aplicação são igualmente consideráveis, como é testemunhado pelo Comité dos Direitos do Homem, os Relatores Especiais e os outros órgãos das Nações Unidas, que se lhe referem frequentemente. Cada Estado membro pode encontrar nela instrumentos eficazes para limitar ou interditar o incitamento direto aos atos de violência ou à discriminação para com certos grupos ou indivíduos. Com efeito, a formulação das suas disposições conferem-lhe um carácter geral que permite a sua aplicação a todos os Direitos e não apenas à liberdade de expressão54 – isto diz respeito mesmo àquele que, por exemplo, fizer um uso abusivo da sua liberdade religiosa. Todas as disposições que acabam de ser invocadas visam proteger os indivíduos. No seu relatório apresentado perante a Assembleia Geral de 2009, o Secretário Geral das Nações Unidas também lembrou o artigo 20 79
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de Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e foi elaborado com o fim de fornecer aos indivíduos e aos grupos que se identificam com uma determinada religião uma proteção contra os atos de incitamento ao ódio e não tanto para proteger “as religiões, os sistemas de crença, as opiniões ou as instituições contra a vigilância, a crítica ou a difamação”55. Por outras palavras, a vítima da ofensa deve ser uma pessoa ou um grupo bem definido – impede-se também, um uso eventual arbitrário do instrumento de proteção – e não a crença ou a convicção como tal, nem o património doutrinal ou o sistema de valores. Nota-se aí quanto esta abordagem contrasta claramente com o novo caso específico da difamação das religiões56. O que torna ainda mais problemática a aplicação deste novo tipo de delito, é a falta de precisão do conceito. Nas Resoluções da Assembleia Geral, da Comissão dos Direitos do Homem e, mais tarde, do Conselho dos Direitos do Homem, a expressão “difamação das religiões” evoca fenómenos bem diferentes uns dos outros: declarações hostis, estigmatização, insultos, ridículo, ataques islamofóbicos, assimilação abusiva do Islão ao terrorismo, etc. Em consequência, resta ainda definir uma norma comum para estabelecer o que se deve entender por difamação religiosa57. A UNESCO também se exprimiu sobre o assunto58, confirmando que a formulação era, efetivamente, muito geral (tal como a palavra religião) e evoca a dificuldade que representa, igualmente, a elaboração de normas comuns sobre a blasfémia. 80
Desde estas declarações, ao nível do Direito Internacional, o problema que se encontra não é tanto o de uma falta de legislação (ao contrário, novos regulamentos seria contraproducente) mas de uma incerteza persistente quanto à relação entre liberdade de expressão e liberdade de manifestar a sua religião, entre o direito a informar e o respeito pela fé e as convicções religiosas – questões que não se tem podido até ao presente elucidar com a ajuda das fontes disponíveis59. Lembrando, a propósito, nestes documentos, a importância da educação e do diálogo como resposta a estes problemas, a UNESCO insiste, no entanto, na referência habitual – e ambígua – no respeito mútuo que deve caracterizar as relações entre a liberdade de expressão e as “convicções e símbolos religiosos”60. Ela contribui assim para tornar os conceitos ainda mais confusos, uma vez que a liberdade de expressão, como direito individual, e os próprios valores e símbolos religiosos se situam em níveis diferentes. Encontramos a mesma observação num comunicado desta organização publicado no dia seguinte ao aparecimento das caricaturas dinamarquesas61. As formulações utilizadas confirmam de forma evidente um marcado resvalar do conceito da proteção da liberdade religiosa individual para a proteção das convicções religiosas (como tal) assim como sentimentos e símbolos religiosos: “O respeito da liberdade de expressão e o respeito das convicções e símbolos religiosos são dois princípios ligados e inseparáveis”. Uma vez mais, a convicção de que o respeito pelas diversas cren-
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dos governos poder, em definitivo, reforçar, como consequência, o poder da maioria sobre a dissidência e a do Estado (que assume o papel de mediador do conflito) sobre o indivíduo65, para conseguir que o debate público seja censurado e as tensões exacerbadas por causa de redução da liberdade de criticar66. As preocupações expressas pelas organizações não governamentais e muitos comentadores, não passaram totalmente sem resposta. No meio das instituições internacionais, começam-se a registar importantes sinais de mudança, mesmo que em proporções variáveis. Vale a pena recordar as declarações conjuntas dos Relatores Especiais sobre a Liberdade de Expressão, das Nações Unidas, da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, da Organização dos Estados Americanos e a Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, pelo seu valor simbólico da riqueza que lhe traz o aumento de experiências ligadas a contextos culturais e tradições diversas. Têm, com efeito, nestes últimos anos, abordado várias vezes, a questão da relação entre liberdade de expressão e difamação religiosa. O de 200867 reconhece a importância do debate público aberto, do acesso aos meios de comunicação para todas a comunidades (incluindo as religiosas) e do diálogo como meio de erradicar os preconceitos e os estereótipos68. Insiste, também, na diferença profunda que separa a crítica feita a uma convicção seja ela qual for, e os ataques individuais que
ças religiosas é essencial para a paz, a segurança internacional e o progresso das civilizações serve de base para legitimar uma maior restrição da liberdade de expressão, uma liberdade que deveria ser exercida com um profundo sentimento de responsabilidade e num espírito de respeito pelas religiões e crenças. O carácter impreciso da noção de difamação religiosa, os riscos inerentes à ideia de que os sistemas de pensamento, as religiões e as crenças devem ser protegidas das formas de crítica ainda mais acerbas e veementes, o perigo de que a liberdade de expressão seja restringida por razões que permanecem tão vagas que poderiam tornar-se instrumentos arbitrários nas mãos das instituições, são questões que têm encontrado eco nas preocupações expressas pelas organizações não governamentais e as associações de defesa da liberdade de expressão como da liberdade religiosa62. Em muitas ocasiões, as ONGs marcaram a sua firme oposição às legislações nacionais que punem a blasfémia e a difamação religiosa63. Também se pronunciaram contra a adoção de instrumentos internacionais que vão além do que já está previsto pelo artigo 20 do Pacto Relativo aos Direitos Civis e Políticos e pelas disposições sobre a proteção da liberdade religiosa. Elas fizeram notar que a ideia de difamação religiosa, nascida no quadro da Organização da Conferência Islâmica, é muito ambígua e muito vaga para poder ser um elemento capaz de limitar a liberdade de expressão64. Por outro lado, o facto das políticas de luta contra a difamação das religiões serem deixadas à maior descrição 81
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ferem o indivíduo por causa da sua ligação a um sistema de valores69. A do ano anterior exprimia, a perplexidade ao constatar que os habituais instrumentos destinados a limitar ou interditar as formas de incitamento ao ódio estão “erodidas” “em favor de termos vagos e potencialmente muito gerais”70. No centro das preocupações dos Relatores figuram, sobretudo, as afirmações contidas nas Resoluções da Comissão dos Direitos do Homem, do Conselho dos Direitos do Homem e da Assembleia Geral das Nações Unidas. A impressão que ressalta, no dizer de três especialistas, é que a liberdade de expressão está submetida a restrições que vão além da interdição do incitamento ao ódio e à violência racial e religiosa. Os relatores pedem, em particular, ao Conselho e à Assembleia Geral que evitem a todo o custo dar o seu apoio à ideia de difamação religiosa e de lhe dar voz: “Renunciem à adoção de novas declarações apoiando a ideia de difamação das religiões”71. Cada um dos diferentes governos é também posto em causa: a declaração coloca particularmente a ênfase nas preocupações sobre a escolha de entender também à “difamação das religiões” a aplicação das leis penais sobre o incitamento ao ódio racial, tendo em conta que os propósitos racistas diferem da difamação religiosa tanto ao nível do conteúdo como ao das suas conotações72. Em contrapartida, é de notar como sinal positivo, que numerosos países já aboliram as leis sobre a blasfémia, que, para além do facto de que são fre82
quentemente discriminatórias, têm, geralmente, como vocação deixar de reprimir as opiniões divergentes e as críticas feitas pelos não crentes, ou os adeptos de cultos minoritários73. Mesmo em certos casos, é mesmo o fundamentalismo religioso que se serve dos conceitos de difamação e de blasfémia, e chega, desta forma, a censurar as opiniões críticas no seio da sua própria confissão ou as contestações das minorias religiosas74. Segue-se que uma tentativa legítima tendo em vista lutar contra a difamação e a blasfémia é desviada em detrimento de outros direitos do mesmo nível e que as suas primeiras vítimas são os próprios crentes. O risco de que a legislação contra o discurso de ódio seja objeto de um uso abusivo aumente, sobretudo num contexto nacional ou os direitos do Homem e o Estado de direito são já pouco respeitados75. Partindo da convicção de que seria inoportuno propor um novo caso de delito que também seria tão indefinível como potencialmente discriminatório, certos órgãos das Nações Unidas não deixaram de intervir para oferecer pistas de solução para o problema do conflito entre as liberdades em jogo, reconhecendo no sistema normativo em vigor, os instrumentos jurídicos necessários para dar uma resposta adequada às exigências legítimas da proteção. Para pôr o problema corretamente, é necessário, segundo nós, começar por definir onde se encontra a fronteira entre o facto de criticar ou de censurar assuntos religiosos (atitudes que fazem parte de liberdade de expres-
Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões...
são) e o incitamento ao ódio racial e ao ódio religioso. Sobre este assunto, encontramos uma confirmação que tem autoridade numa tomada de posição recente do Relator Especial das Nações Unidas sobre as formas contemporâneas de racismo, de discriminação racial, de xenofobia e da intolerância que lhes está associada. Este afirma, com efeito, que é necessário distinguir entre o comportamento decorrente, simplesmente de um estado de espírito intolerante, mas que ainda não constitui uma violação dos direitos do Homem, e um verdadeiro ato de incitamento ao ódio racial ou religioso (no sentido do artigo 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e do artigo 4 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial). Nele chega-se à conclusão de que a melhor solução para fazer face ao problema do discurso do ódio é aplicar, na sua totalidade, todas as disposições que já figuram na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, no Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos na Declaração o Programa de ação do Durban assim como no documento final da Conferência de Exame do Durban. O conjunto destes instrumentos oferece, com efeito, segundo ele, o quadro mais completo para guiar as iniciativas tomadas nos planos internacional e nacional na luta comum contra o racismo76. Os três Relatores Especiais das Nações Unidas sobre a liberdade de expressão, a liberdade religiosa
e a luta contra o racismo chegam às mesmas conclusões. Numa recente declaração conjunta77, lembram que é importante conservar no espírito a diferença que existe entre as expressões de opinião que constituem um delito segundo o Direito Internacional, as que apenas dão lugar apenas a sanções civis e as que não são passíveis de nenhuma repressão ou censura, mesmo que possam suscitar receios legítimos pelas consequências que se arriscam a causar em termos de intolerância contra as convicções alheias78. O problema central que preocupa os Relatores Especiais é o do efeito contraproducente que pode ter a penalização da difamação religiosa gerando um clima de intolerância e de receio em detrimento da livre expressão da crítica. O Relator Espacial das Nações Unidas sobre a Liberdade Religiosa79 declara a este respeito: “Contudo, a circunspeção deve presidir à adoção de leis especiais porque uma regulamentação excessiva pode ir contra os fins visados”80. Na busca de mecanismos mais eficazes de sanção não nos devemos jamais afastar de um princípio fundamental: o papel da liberdade de expressão deve ter-se sempre em vista de forma positiva porque ela contribui para a salvaguarda da democracia81, do pluralismo e, por fim – o que não é de negligenciar – da própria liberdade religiosa, protegendo opiniões divergentes, os pontos de vista das minorias e as oposições no seio das religiões e entre as diferentes religiões. O Relator Especial sobre a Liberdade de Expressão lembra que um debate livre e aberto é uma condi83
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ção necessária e não um obstáculo à tolerância: “As tensões nascidas das diferenças culturais ou religiosas não se atenuam quando se reprime a expressão dos diversos pontos de vista, mas unicamente quando se discutem livremente (…). A liberdade de expressão é, portanto, uma condição prévia para a tolerância e não um obstáculo82”. Nesta perspetiva, parece que se possa subscrever (mas nos limites
várias vezes mencionados) a hipótese do método proposto, há pouco, em Durban, e que assenta na ideia de que a única possibilidade, para lutar contra os discursos do ódio, é recorrer a “mais discurso”: “Pois mais discurso poderia revelar-se a melhor estratégia para chegar aos “corações e aos espíritos” dos indivíduos, alterando, não só os seus atos, mas também a sua forma de pensar83”.
* Este artigo é o resumo de um relatório mais completo intitulado “La diffamazione delle religioni nella protezione ultranazionale dei diritti umani” (a publicar) disponível, em italiano, em: www.statochies.it ** Investigadora em Direito Religioso e Direito Canónico da Universidade de Pérouse, na Itália Notas: 1. Doc. ONU A/RES762/154, de 18 de Dezembro de 2007, par. 12: A Assembleia Geral “exorta igualmente os Estados (…) a tomarem todas as medidas possíveis para promover a tolerância e o respeito por todas as religiões e crenças e fazer compreender o seu sistema de valores, e a completar os seus sistemas jurídicos
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Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões... associando-lhes estratégias intelectuais e morais visando combater o ódio e a intolerância religiosas”. Ver sobre este assunto, Doc. ONU A/RES/61/166, de 19 de dezembro de 2006, e também K. Boyle, “Religious Intolerance and the Incitement of Hatred”, in S. Coliver (Ed.), Striking a Balance: Hate Speech, Freedom of Expression and Non-Discrimination, University of Essex, Colchester 1992. 2. Ver, entre outros, S. Marks/A. Clapham, International Human Rights Lexicon, Oxford, 2005 ; M. Nowak, U.N. Covenant of Civil and Political Rights. CCPR Commentary, Strasbourg, 1993; C. Zanghi, “La libertà di espressione nella Convenzione Europea dei diritti dell’uomo e nel Patto delle Nazioni Unite sui diritti civili e politici”, in Rivista di diritto internazionale, 1969, p. 295-308; E.X. Gomes, “La tutela della libertà religiosa nel sistema interamericano di protezione dei diritii umani”, in Il Diritto Ecclesiastico, 3-4, 2007, p. 123-147. Na jurisprudência, recordar a recente decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que decidiu tomar posição contra as leis nacionais que submetem os discursos de ódio à censura, I. Cram, Contested Words. Legal Restrictions on Freedom of Speech in Liberal Democracies, Aldershot, 2006; A. Nieuwenhuis, “Freedom of Speech: USA vs Germany and Europe, in Netherlands Quarterly of Human Rights, 2000, 18/2, p. 195-214; T.D. Jones, Human Rights: Group Defamation, Freedom of Expression and the Law of Nations, La Hague, Londres, Boston, 1998, p. 40-46; E. Heinze, “Viewpoint Absolutism and Hate Speech”, in The Modern Law Review, 69 (4), 2006, p. 543-582. 3. Cf. J. Webber, “Understanding the Religion in Freedom of Religion”, in P. Cane/C. Evans/Z. Robinson, Law and Religion in Theoretical and Historical Context, Cambridge, 2008, p. 26-43. A Relatora Especial das Nações Unidas por outro lado declarou que uma das razões fundamentais pelas quais as disposições internacionais protegem, em primeiro lugar, os indivíduos no exercício da liberdade de religião e não as religiões em si mesmas, é que os fiéis das religiões, os membros das comunidades de crença, não são considerados como elementos de identidade homogéneos. Doc. ONU A/HRC/”/#, de 20 de Setembro de 2001, par. 27. 4. Doc. ONU A/RES/61/164, de 19 de Dezembro de 2006. 5. Ver “ The Meaning of Freedom ”, in The Economist, 2 abril 2009; J. Temperman, “ The Emerging Counter – Defamation of Religion Discourse: A Critical Analysis ”, in Annuaire Droit et Religions, 4, 2009-2010, p. 553-559; R. Pisillo Mazzeschi, Situazione della libertà religiosa nel Consiglio dei diritti umani dell’ONU, exposição apresentada por ocasião do colóquio sobre o tema “Diritti umani e religioni: il ruolo della libertà religiosa”, Veneza 2008 (a publicar). 6. Pensa-se no conceito muito conhecido exposto por S. Huntington no seu livro The Clash of Civilisations and the Remaking of World Order, New York, 1996. 7. Ver sobre este assunto: S. Ferrari, “Libertà religiosa e sicurezza nazionale in Europa dopo l’11 settembre ”, in Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica, 1, 2005, p. 161-184; G.B. Varnier, “Libertà, sicurezza e dialogo culturale come coordinate del rapporto tra Islam e Occidente ”, in G.B. Varnier (Ed.), La coesistenza religiosa: nuova sfida per lo Stato laico, Soveria Manelli, 2008; G. Dammacco, “Le politiche delle religioni e le esigenze della sicurezza”, in A. Talamanca/M. Ventura (Ed.), Scritti in onore di Giovanni Barberini, Turim 2009, p. 251-273. 8. Ver entre outros, A. Sen, Identità e violenza, Rom/Bari, 1ª edição 2006; Z. Bauman, Modernità liquida, Rome/Bari, 2000; N. Colaianni, Eguaglianza e diversità culturali e religiose. Un percorso costituzionale, Bologne 2006; G.Pino, Identità personale, identità religiosa e libertà individuali, in Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica, 1, 2008, p. 119-151 (aplica-se particularmente à Itália). 9. A Assembleia Geral das Nações Unidas votou, recentemente, uma nova Resolução que condena a difamação religiosa. (A/RES/64/156, de 18 de dezembro de 2009). Esta nova resolução também foi tomada a pedido de alguns Estados islâmicos. Foi aprovada por 80 votos a favor, 61 votos contra e 42 abstenções. (Este é o resultado mais baixo na votação de todas as resoluções sobre este assunto www. nytimes.com/reuters/2009/12/18/world/international-us-un-religion.html.) A Bielorrússia, A República Árabe da Síria e a Venezuela apresentaram este projeto de resolução (A/C.3 / 64/L.27, 29 de outubro de 2009). A adoção deste documento, que teve lugar após a tomada de posições opostas dos relatores especiais, destaca o problema e parece confirmar a impressão de que uma solução definitiva ainda está longe de ser viável. 10. Comissão de Direitos Humanos, Resolução 1999/82, de 20 de abril de 1999, 2000/84 de 26 de abril de 2000, 2001/4, de 18 de abril de 2001, 2002/9, de 15 de abril de 2002, 2003/4, em 14 de Abril de 2003;
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Silvia Angeletti 2004/6, de 13 de abril de 2004, 2005 / 3, de 12 de abril de 2005. 11. A Comissão lamenta que se trata de um fenómeno de perfil religioso e étnico no que diz respeito aos muçulmanos. 12. Doc. ONU A/HRC/RES/7/19, de 27 de março de 2008, Combating Defamation of Religions. Doc ONU. A/HRC/10/22, 26 de março de 2009, Combating Defamation of Religions. Ver também doc. ONU A/HRC/RES/6/37, de 14 de setembro de 2007, Combating Defamation of Religions Elimination of All Forms of Intolerance and Discrimination based on Religion or Belief. 13. Comissão de Direitos Humanos, Resolução 2005/3, op. cit. 14. Doc. ONU A/HRC/RES/4/9, de 30 de março de 2007, Combating Defamation of Religions. 15. A Assembleia fala do respeito das religiões e das crenças no quadro das restrições à liberdade de expressão previstas pela lei. Doc. ONU A/RES/62/154 de 8 de Dezembro de 2007, Combating Defamation of Religions. Na Resolução que apareceu no ano seguinte, não se encontra esta formulação, doc. ONU A/ RES/63/171, de 18 de dezembro de 2008. Noutras situações, a mesma Assembleia defende, pelo contrário, que a liberdade de expressão não pode ser objeto senão das únicas restrições previstas pelos textos internacionais, doc. ONU 62/90, de 17 de dezembro de 2007. 16. Doc. ONU A/HRC/RES/4/9, op.cit. 17. Doc, ONU A/HRC/10/22, de 26 de março de 2009, Combating Defamation of Religions. 18. O Conselho sublinha a importância do respeito pela liberdade de expressão no reforço da democracia e a luta contra o terrorismo e sugere aos Estados que não autorizem desde logo, as restrições que estas preveem no artigo 19 do Pacto Relativo aos Direitos Civis e Políticos, doc. ONU A/HRC/RES/12/16 de 12 de outubro de 2009. 19. Comissão dos Direitos do Homem, Resoluções 1999/82, 2001/4, 2002/9, 2003/4, 2004/6 e 2005/3, op.cit. 20. Doc. ONU A/RES/80/150, de 16 de dezembro de 2005, Combating Defamation of Religions: doc. ONU A/RES/61/164 de 19 de dezembro de 2006, Combating Defamation of Religions¸ doc. ONU A/RES/61/161 de 19 de dezembro de 2006; A/RES/62/154 de 18 de dezembro de 2007, Combating Defamation of Religions; A/RES/63/171 de 18 de dezembro de 2008, Combating Defamation of Religions. 21. Doc. ONU A/RES/62/154, de 18 de dezembro de 2007. Menciona-se aqui, em particular, a islamofobia, o antissemitismo e a cristianofobia. Doc. ONU A/RES/61/161 de 19 de Dezembro de 2006. 22. Segundo as declarações da Assembleia Geral, a campanha de difamação étnica e religiosa que tem crescido nestes últimos anos, diz respeito particularmente aos muçulmanos desde os atentados de 11 de setembro e repousa, sobretudo, na injustificada associação entre o Islão e o terrorismo ou entre o Islão e a violação dos direitos do Homem, doc. ONU A/RES/61/164, de 19 de Dezembro de 2006. 23. A este respeito ler : O. De Schutter/J. Ringelheim, Ethnic Profiling: “A Rising Challenge for European Human Rights Law”, in The Modern Law Review, Bd. 71,3, p. 358-384. Sobre o aumento da discriminação, ver. doc. ONU A/RES/63/242, de 24 de Dezembro de 2008; doc. ONU A/RES/61/149, de 19 de Dezembro de 2006. 24. A resolução aprovada em 2008 confirma as preocupações ligadas ao facto de que o Islão é frequentemente associado a violações dos direitos humanos e ao terrorismo. Ela reitera que a difamação religiosa é um fator que agrava a posição social e económica dos membros de determinadas comunidades. A Resolução apresentada pelo Uganda, em nome da Organização da Conferência Islâmica, com a Bielorrússia e Venezuela foi aprovada com 85 votos a favor, 50 contra e 42 abstenções. Esse resultado reflete bem as diferenças de opinião. Doc. ONU A/RES/63/171, op. cit. Ver também M. Ventura, “L’ONU difende le fedi ma non i singoli credenti”, in Corriere de la Sera, de 20 de Dezembro de 2008. Os países que votaram contra justificaram a sua posição pelo desequilíbrio da formulação em favor de uma religião (o Islão), que podia opor categoricamente contra a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Doc. ONU A/64/209, de 31 de julho de 2009, Report of the Secretary General. O Conselho da Europa está particularmente interessada na agitação dos atentados do 11 de Setembro e as suas repercussões sobre a imagem negativa do Islão na opinião pública internacional. A Assembleia Parlamentar lembra que em matéria de terrorismo islâmico, é preciso distinguir claramente o Islão como religião e o fundamentalismo islâmico. Ele exorta os governos e organizações islâmicas a contribuírem para a luta contra o terrorismo
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Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões... e estabelecer uma cultura onde os direitos humanos e a liberdade religiosa são respeitados, ao proibir qualquer forma de discurso de ódio para com a religião assim como a islamofobia. Resolução do Conselho de Europa 1605 (2008), European Muslim Communities Confronted with Extremism. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância também se manifestou sobre a questão da islamofobia e o antissemitismo. Ela rejeita formalmente qualquer forma de determinismo e de estereótipos, e salienta que num Estado democrático todas as religiões são iguais em direitos e que é necessário separar as leis do Estado e as necessidades religiosas. Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância. Recomendação n º 5, Combating Intolerance and Discrimination against Muslims, de 26 de março de 2000; Recomendação n° 9, The Fight against Antisemitism, de 25 de junho de 2004; ver também Comissão Europeia Contra o Racismo e a intolerância. Recomendação n° 7, National Legislation to Combat Racism and Racial Discrimination, de 13 de dezembro de 2002. Sobre a política da União Europeia no que diz respeito à discriminação racial, ver J.F. Flauss, “L’action de l’Union européenne dans le domaine de la lutte contre le racisme et la xénophobie ”, in Revue trimestrielle des droits de l’homme, 2001, p. 487. No que respeita à islamofobia nos países ocidentais, em particular a obrigação dos meios de comunicação se autodisciplinarem, ler o relatório do representante da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa em 2006 (Chairman-in-Office on Combating Intolerance and Discrimination against Muslims) por ocasião da reunião da OSCE em 2006. O representante denuncia a falta de respeito para com os muçulmanos que os média tem mostrado por ocasião da publicação das caricaturas dinamarquesas. OSCE Supplementary Human Dimension Meeting on Freedom of Media: Protection of Journalists and Access to Information, Sessão n° 2, Viena, 2006, PC.SHDM.GAL/6/06/Rev. 1. Nessa mesma sessão, o emissário do Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais da Santa Sé manifestou igualmente o desejo de que os média se auto controlassem voluntariamente e mostrem o respeito que merecem os crentes em termos de sentimentos religiosos das suas instituições e dos seus símbolos. Além disso, os governos devem fornecer os meios para punir efetivamente o fenómeno do discurso do ódio, especialmente por motivos religiosos. Ibid. PC.SHDM.DEL/16/06, 2006. O representante da Igreja da Cientologia Internacional foi da mesma opinião – especialmente para com as minorias religiosas. (Bureau Europeu dos Direitos do Homem), Ibid, PC:. SHDM: NGO/25/06, 2006. 25. Doc. ONU A/RES/61/161, op. cit;. A/RES/63/171, op. cit. 26. Doc. ONU A/RES/61/164, op. cit. Um ano mais tarde, os países membros da ONU também pertencentes à Organização da Conferência Islâmica apresentaram um projeto de resolução com o mesmo conteúdo, doc. ONU. A/C.3/62/L.35, 2007. Um exemplo manifesto da vontade de passar da proteção das pessoas para a proteção da religião, enquanto tal, uma Declaração comum assinada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, o Secretário Geral da Organização da Conferência Islâmica e o Alto Representante União Europeia para os Negócios Estrangeiros e de Segurança, assinado em 2006, logo após a publicação das caricaturas satíricas dinamarquesas. Esta Declaração, estipula que a sociedade deve demonstrar sensibilidade e responsabilidade na sua forma de abordar as questões demonstrando um interesse particular pelos membros de uma determinada religião. O documento enfatiza o total respeito pelo direito à liberdade de expressão, mas acrescenta que a liberdade de imprensa implica responsabilidade, discrição, e o dever de respeito para com as crenças e os princípios de todas as religiões. Posição comum em 7 de fevereiro de 2006. Neste mesmo contexto, o Relator das Nações Unidas sobre as formas de descriminação racial criticou severamente o comportamento do governo dinamarquês que, segundo ele, é culpado por não ter, desde o início, tomado uma posição firme contra as caricaturas, sinal – segundo o Relator – que a política “banaliza” a difamação religiosa. Doc. ONU E/CN.4/2006/17, de 13 de fevereiro de 2006, Situations des populations musulmanes et arabes dans divers regions du monde. Por outro lado, o mesmo Relator afirma que as formas diretas ou indiretas de difamação religiosa dão, na realidade matéria que justifica ideológica e intelectualmente os discursos e práticas discriminatórias. Doc. ONU A/HRC/6/6, de 21 de agosto de 2007. Já durante os anos 1990, os Relatores Especiais das Nações Unidas tinham reclamado um viva atenção para o problema da discriminação para com as três grandes religiões monoteístas quando os Relatores revelaram um grande preocupação sobre o assunto do ressurgimento do antissemitismo na Europa assim como na América, (doc. ONU E/CN.4/1996/72 de 15 de fevereiro de 1996; doc. ONU E/CN/.4/2000/16, de 10 de fevereiro de 2000) e a propósito das manifestações de xenofobia, de comportamento anti árabe e de islamofobia, que tornavam difícil a distinção entre os atos ligados à discriminação racial e os ligados à intolerância religiosa porque uns e outros se encorajavam e reforçavam mutuamente. Doc. ONU E/ CN.4/1998/79, de 14 de janeiro de 1998; doc. ONU E/CN.4/1999/15, de 15 de janeiro de 1999.
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Silvia Angeletti 27. Doc. da ONU A/RES/60/288, de 20 setembro de 2006, The United Nations Global Counter-Terrorism Strategy. 28. Sobre o assunto da identificação do islão com o terrorismo, ver doc. ONU E/CN.4/2003/66, de 15 de janeiro de 2003; doc. ONU E/CN.4/2000/65, de 15 de fevereiro de 2000. Vê-se, claramente, que a difamação existe, frequentemente, no contexto inter e intrarreligioso e que afeta sobretudo as minorias. 29. Doc. ONU A/HRC/10/8 de 6 de janeiro de 2009. 30. “Numerosas discriminações são, de facto, agravadas pelas incidências das identidades múltiplas”. Doc. ONU E/CN.4/2003/66, op. cit.; ver também Doc. ONU E/CN.4/2004/63, de 16 de janeiro de 2004. 31. Doc. ONU E/CN.4/2004/18, de 21 janeiro de 2004; doc. ONU E/CN.4/2005/18, de 13 dezembro de 2004; doc. ONU E/CN.4/2003/24, de 30 janeiro de 2003; doc. ONU E/CN.4/2002/24, de 13 fevereiro de 2002. 32. “Trata-se, para a reflexão e a ação, de ligar intimamente, por um lado, os esforços para lutar contra o racismo, a discriminação, a xenofobia e a intolerância e, por outro lado, a promoção urgente do diálogo entre culturas, civilizações e religiões ” Doc. ONU E/CN.4/2003/24, op. cit. p. 15,16 33.Doc. ONU, E/CN.4/2004/18, op. cit. ver a este respeito F. Margiotta Broglio, “ Discriminazione razziale e discriminazione religiosa ”, in Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica, 1, 2000, p. 269-279. 34. Doc. ONU E/CN.4/2003/24, op.cit. 35. Doc. ONU E/CN.4/2006/17, de 13 fevereiro de 2006, Situations des populations musulmanes et arabes dans diverses régions du monde. 36. Idem. Nota-se que o Relator Especial cala as fortes reações e ameaças a que têm estado expostos aos autores das caricaturas. Ele lamenta sinceramente apenas a violência infligida a inocentes e difamação causada por uma publicação. 37. Doc. ONU A/CONF. 189/12, 2001, Rapport de la Conférence mondiale contre le racisme, la discrimination raciale, la xénophobie et l’intolérance qui y est associée, Durban, de 31 de agosto – 8 de setembro de 2001. Em particular, coloca em evidência o aparecimento de movimentos racistas inspirados pelo racismo para com as comunidades judaicas e árabes e mostra como a religião e a espiritualidade podem contribuir para a promoção da dignidade da pessoa humana. 38. A Conferência do exame de Durban, Document final, 2009. 39. Doc. ONU A/HRC/7/19, de 20 de fevereiro de 2008; doc. ONU A/HRC/2/3, de 20 setembro de 2006. 40. Doc. ONU A/HRC/2/3, op. cit. 41. Ibid. 42. Doc. ONU A/HRC/9/12, de 2 de setembro de 2008. 43. Doc. ONU A/HRC/2/3, op. cit. Neste relatório lê-se que a intolerância para com todas as formas ou expressões da religião está em via de se tornar uma consequência muito nefasta de certas formas de “laicidade radical”. 44. Doc. ONU A/HRC/2/3, op. cit. Para o Comité dos ministros do Conselho da Europa, a luta contra o racismo e a intolerância deve ser acompanhada pelo respeito pela liberdade de expressão a fim de impedir que paradoxalmente a democracia seja diminuída enquanto procura de facto protegê-la. 45. Doc. ONU E/CN.4/2002/75, de 30 de janeiro de 2002; doc. ONU E/CN.4/2005/64, de 17 de dezembro de 2004; doc. ONU E/CN.4/2006/55, de 30 de dezembro de 2005. 46. Doc. ONU A/HRC/4/27, de 2 de janeiro de 2007 (ponto 13). A Relatora especial sobre a liberdade de religião ou de convicção exprimiu-se sobre a restrição da liberdade de expressão, justificada para conseguir que as comunidades vivam em conjunto pacificamente. Doc. ONU A/HRC/10/8, de 6 de janeiro de 2009. 47. Doc. ONU A/HRC/4/27 (ponto 45), op. cit. 48. Doc. ONUA/RES/61/164, op. cit. O projeto de resolução proposto pelos Estados membros das Nações Unidas que também pertencem à Organização da conferência islâmica, (doc. ONU A/C.3/62/L.35, 62ª sessão, em 2007, e o projeto de resolução apresentado em 2009 pela Bielorrússia, a República Árabe da Síria e a Venezuela, A/C.3/64/L.27 de 29 de outubro de 2009 também se refere a este assunto.
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Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões... 49. Doc. ONU A/RES/61/164, op. cit.; A/RES/63/171, op. cit. 50. Comissão dos Direitos do Homem, Resoluções 1999/82; 2000/84; 2001/4; 2002/9; 2003/4; 2004/6; 2005/3, op. cit.; Doc. ONU A/HRC/RES/7/19, de 27 de março de 2008, Combating Defamation of Religions; Conselho dos Direitos do Homem, Resoluções 10/22, de 26 de março de 2009, Combating Defamation of Religions. Esta última Resolução do Conselho baseia-se num projeto de resolução da Bielorrússia, do Paquistão (em nome da Organização da Conferência Islâmica), e da Venezuela (doc. ONU A/HRC/10/L.2/Rev.1, de 26 de março de 2009). Mais de 200 organizações de diferentes domínios da sociedade e de 46 países declararam-se em oposição a esta resolução e exigiram a sua retirada, www. iheu.org/human-rights-council-resolution-combating-defamation-religion. 51. Consultar os artigos 9, 10 e 11 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Para uma reflexão sobre o assunto e uma avaliação das diferentes abordagens do Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas e do Tribunal Europeu de Estrasburgo, ver P.M. Taylor Freedom of Religion. UN and European Human Rights Law and Practice, Cambridge, 2005, p. 77 e seg. 52. O Comité para a Eliminação da Discriminação Racial explicou que o artigo 4 da Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de Discriminações Raciais deve ser lido em harmonia com o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e que, portanto, não está em conflito com a liberdade de expressão. Doc. ONU A/48/18, 1994, Recommandation générale n° 15; ver também doc. ONU A/64/209, de 31 de julho de 2009, Report of the Secretary General. Nas Resoluções de 2008 e 2009 do Conselho dos Direitos do Homem (doc. ONU A/HRC/RES/7/19 de 27 de março de 2008; doc. ONU A/HRC/10/22, de 26 de março de 2009) evocou-se, pela primeira vez, a possibilidade de aplicar, também, o incitamento ao ódio religioso (tal como definido na recomendação do Comité para a Eliminação da Discriminação Racial) a compatibilidade existente entre a interdição da propaganda de ideias baseadas na superioridade racial e o direito à liberdade religiosa. 53. Doc. ONU A/HRC/2/6/, 2006, de 20 de setembro de 2006. 54. Doc. ONU A/HRC/2/3, 2006, op. cit. 55. Doc. ONU A/64/209 (ponto 16), Relatório do Secretário Geral, Combating Defamation of Religions, de 31de julho de 2009. 56. Ver N. Colaianni, “Diritto di satira e libertà religiosa ”, in A. Talamanca/M. Ventura (éd.), Scritti in onore di Giovanni Barberini, Turin, 2009, p. 193-222 ; P. Floris, “Libertà religiosa e libertà di espressione artistica ”, in Quaderni di Diritto e Politica Ecclesiastica, 1, 2008, p. 175-196. O Relator Especial das Nações Unidas sobre a Liberdade Religiosa também pôs em causa a ideia de que a difamação religiosa seja um instrumento eficaz para a proteção dos cultos e das crenças, mais do que para a dos crentes como indivíduos. Com razão fez uma observação contra certos tipos de discriminação, fazendo notar que as grandes religiões não são as únicas a ser alvo de difamação e injúrias, é preciso não esquecer as minorias. O problema, é que as criticas que ferem as primeiras suscitam a atenção e a consternação da sociedade, enquanto que, inúmeros casos de incitamento à violência contra as minorias religiosas permanecem na sombra. Segundo o Relator Especial, um reforço do sistema protegendo contra o incitamento ao ódio racial ou religioso, no sentido do artigo 20 do Pacto Internacional, seria mais eficaz do que leis contra a blasfémia. 57. Doc. ONU A/HRC/9/25 de 5 de setembro de 2008. A difamação consiste em ter, intencionalmente, um propósito falacioso que atente contra a reputação de terceiros. Doc. ONUE/CN.4/2006/55 de 30 de dezembro de 2005; como tal, deve ser tornado público, A/HRC/4/27 de 2 de janeiro de 2007; é igualmente verdade para os atos de incitamento ao ódio, à violência e à discriminação, o doc. ONU A/HRC/10/31/ Ad. de 16 de janeiro de 2009. Nas leis dos diferentes Estados, apercebe-se, como o Alto Comissário para os Direitos do Homem constatou, para o conceito de difamação religiosa à noções muito diversas: o ridículo, a injúria, a falta de respeito e a calúnia são, aparentemente, a maior parte, embora seja difícil chegar a uma definição eficaz e abrangente, doc. ONU. A/HRC/9/7, de 12 de setembro de 2008. Para a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o discurso do ódio de conteúdo religioso apenas constitui um delito quando visa um indivíduo ou um grupo de pessoas determinado, quando fere deliberadamente os sentimentos religiosos e quando representa uma ameaça potencial para a ordem pública. A blasfémia (entendida como um insulto à religião) não deverá ser considerada um delito (infração penal). Conselho da Europa, Recomendação 1805 (2007); ver também doc. ONU a/HRC/9/7, de 12 de Setembro de 2008.
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Silvia Angeletti Ver também a definição de discurso do ódio apresentado pelo Conselho de Ministros do Conselho da Europa: todas as formas de expressão que propaguem, incitem, promovam ou justifiquem o ódio racial, a xenofobia, o antissemitismo e outras formas de ódio com base na intolerância, incluindo a intolerância que se exprime, quer sob a forma de nacionalismo agressivo e de etnocentrismo, de discriminação e de hostilidade para com as minorias, os imigrados e as pessoas vítimas de imigração. Conselho de Ministros do Conselho da Europa, Recomendação Nº R (97) 20 sobre o Discurso do ódio de 30 de outubro de 1997. Segundo a Assembleia Parlamentar, o discurso do ódio e a blasfémia não são, em caso algum, protegidas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Resolução 1510 (2006), ponto 3; é dever dos Estados determinar em que medida estes fenómenos devem ser considerados como delitos passíveis de sanções. Desde logo, o Tribunal de Estrasburgo é responsável por julgar sobre as diferentes jurisdições nacionais. P.M. Taylor, Freedom of Religion […], op. cit. p. 84 e seg. Ele encontrou na justiça do Tribunal de Estrasburgo certas variações neste domínio. 58. Conselho executivo da UNESCO, Decisões adotadas pelo Conselho executivo na sua 176ª sessão EX/23, ponto 23 da ordem do dia provisória, de 28 de março de 2007. 59. Entre as propostas da UNESCO, um envolvimento sério para com o intercâmbio intercultural e interreligioso na educação nacional e para os chefes religiosos e os representantes do mundo dos média. Idem. 60. “Defendendo o exercício da liberdade de expressão num espírito de respeito mútuo e de compreensão mútua, exorte ao respeito mútuo de diversidade cultural, das convicções religiosas e dos símbolos religiosos.” UNESCO, Decisões adotadas pelo Conselho Executivo na sua 174ª sessão, 174/EX/Decisões, ponto 44, p. 56, Respect de la liberté d’expression et respect des croyances et valeurs sacrées ainsi que des symboles religieux et culturels, 2006. Ver igualmente UNESCO Resolução n° 49, 2005, em que a organização sublinha uma vez mais, a importância do diálogo entre os povos, as culturas, as religiões para o respeito da diversidade cultural, como fator de paz e de coesão social. 61. UNESCO, Conselho executivo, 174 EX/42. 62. Segundo um bom número de associações, a falta de precisão do conceito de difamação religiosa esconde a intenção de proteger a religião de toda a crítica e avaliação e visa suprimir toda a dissidência religiosa, in doc. ONU A/62/280, de 20 de agosto de 2007, Élimination de toutes les formes d’intolérance religieuse, Interim Report; ver, entre outros, os pareceres do Comité de especialistas da International Religious Liberty Association: Statement of Concern about Proposals Regarding Defamation of Religions, de 3 setembro de 2009 (em português: Preocupações sobre as propostas sobre a difamação religiosa.) 63. De acordo com as declarações do Secretário Geral perante a Assembleia Geral das Nações Unidas. UN doc. A/63/365, de 21 outubro de 2008, Combating Defamation of Religions. 64. Algumas organizações não governamentais, avançam que a base de apoio dos direitos humanos na proteção de pessoas, em vez de ideias está bem estabelecido no Direito Consuetudinário e no Direito Internacional há muito tempo; em Direito Internacional não há lugar para a proteção das convicções religiosas. O conceito de difamação religiosa é incompatível com os princípios dos direitos do Homem, uma vez que visa proteger os sistemas de valores e dos símbolos e não os crentes. Becket Fund for Religious Liberty, International Pen, International Humanist and Ethical Union, in doc. ONU A/HRC/9/7, de 12 de setembro de 2008. 65. Doc. ONU A/HRC/9/7, de 12 de Setembro de 2008. 66. Ibid. 67. Joint Declaration on Defamation of Religions, Anti-Terrorism and Anti-Extremism Legislation, Atenas, 9 de dezembro de 2008. 68. A conceção americana de more speech against hate speech aparece também nos outros documentos da Organização dos Estados Americanos; ver o relatório de 2001 que o seu Relator especial apresentou sobre a responsabilidade ética dos médias. Annual Report of the Special Rapporteur for Freedom of Expression, Media Ethica, 2001. 69. Joint Declaration on Defamation of Religions, Anti-Terrorism and Anti-Extremism Legislation, op. cit. A OSCE dá também o seu apoio, Libel and Insult Law: What More Can Be Done to Decriminalise Libel and Repeal Insult Laws?, Paris, 2003. 70. Joint Declaration, doc. ONU A/HRC/4/27 Anexo, de 2 de janeiro de 2007. A Comissão de Veneza
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Alguns comentários críticos sobre a difamação das religiões... chegou às mesmas conclusões, Comissão Europeia para a democracia pelo Direito, Report on the Relationship Between Freedom of Expression and Freedom of Religion: the Issue of Regulation and Prosecution of Blasphemy, Religious Insult and Incitement to Religious Hatred, CDL-AD (2008) 026. 71. Joint Declaration [...], op. cit. 72. Ibid. Freedom of expression and incitement to racial or religious hatred. Declaração conjunta pronunciada por ocasião de uma reunião sobre o incitamento ao ódio racial ou religioso que teve lugar à margem da Conferência de Durban, 2009. Versão inglesa: http://www2.ohchr.org/english/issues/racism/rapporteur/docs/Joint_Statement_SRs.pdf 73. Declaração conjunta: Freedom of Expression [...], op. cit., Conferência de Durban, 2009. Ler também os apelos pedindo aos Estados para não votarem leis limitando os propósitos “ puramente insultuosos ”, in Joint Declaration, 19 de dezembro de 2006. Sobre o mesmo assunto, doc. ONU A/HRC/9/25, de 5 de setembro de 2008. A Relatora das Nações Unidas sobre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa apresentou as mesmas objeções. Segundo ela, as leis anti blasfémia são contraproducentes, porque são utilizadas seja de forma discriminatória – para proteger apenas certas religiões – ou como meio de reduzir ao silêncio opiniões dissidentes tais como os dos ateus ou os protestos intrarreligiosos. Declaração conjunta, Freedom of Expression and Incitement to Racial and Religious Hatred, Conferência de Durban, 2009, op. cit.; cf. também doc. ONU A/HCR/10/8, de 6 de janeiro de 2009. 74. Doc. ONU E/CN.4/2001/63, de 13 de fevereiro de 2001. N. Colaianni indica-nos que não se pode permitir associar o ter em conta e o benefício dos princípios fundamentais dos direitos do Homem em matéria de religião ao pertencer a uma certa confissão, Tutela della personalità e diritti della coscienza, Bari, 2000, p. 45 e seg. 75. Doc. ONU E/CN.4/2002/75, de 30 de janeiro de 2002. O Alto-Comissário das Nações Unidas também evocou o risco de que as leis contra os discursos de ódio dissimulem uma tentativa de reduzir ao silêncio os opositores e as minorias. Doc. ONU A/HRC/2/6, de 20 de setembro de 2006, Report of the High Commissioner for Human Rights. Sobre o tema da reação dos modelos do Estado social e do Estado liberal na proteção contra os discursos de ódio, ver E. Heinze, Viewpoint Absolutism and Hate Speech, op. cit. 76. Doc. A/HRC/12/38, de 1 de julho de 2009. Sobre as manifestações da difamação das religiões e em particular sobre as incidências graves da islamofobia sobre o gozo de todos os direitos dos fiéis. 77. Declaração conjunta, Freedom of Expression and Incitement to Racial or Religious Hatred, Conferência de Durban, 2009. 78. Neste contexto os três especialistas constataram com satisfação que o debate aberto que, nestes dez últimos anos, se concentrou no conceito – vago e fácil de contornar – de difamação religiosa se coloca de novo sobre a forma de sancionar o incitamento ao ódio racial ou religioso. Ibid. Ver. Doc. ONU A/ HRC/2/3, de 20 de setembro de 2006; e doc. ONU E/CN.4/2006/55, de 30 de dezembro de 2005; doc. ONU E/CN.4/2001/64, de 13 de fevereiro de 2001; Sobre este assunto também a Comissão de Veneza, op. cit.; doc. ONU A/HRC/4/27, de 2 de janeiro de 2007; doc. ONU A/HRC/2/6, de 20 de setembro de 2006. 79. doc. ONU A/62/280, Elimination of all Forms of Religious Intolerance; doc. ONU A/HRC/2/3, op. cit.; doc. ONU A/HRC/2/6, op. cit; doc. ONU A/HRC/4/27, de 2 de janeiro de 2007. 80. Doc. A/62/280, op. cit. Na Declaração de Doha, é pedido aos governos para tomarem medidas e adoptarem leis que respeitem e protejam tanto a liberdade religiosa como a liberdade de expressão, e abolirem leis contra a difamação (“to remove statutes on defamation from penal codes”). Declaração de Doha, Journée mondiale de la liberté de la presse celebrada pela UNESCO tendo como tema “As possibilidades que os média oferecem de favorecer o diálogo, a compreensão mútua e a reconciliação”, 3 de Maio de 2009. No plano europeu, o Conselho da Europa interessou-se, igualmente, pelo problema na sua Recomendação de 2007, Assembleia Parlamentar, Recomendação 1814 (2007) Towards Decriminalisation of Defamation. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa exorta os Estados membros a reexaminarem as suas leis sobre a difamação, a fim de que elas estejam conformes à jurisdição do Tribunal de Justiça de Estrasburgo e para evitar os abusos e repressões injustificadas. Recomendação 1805 (2007), ponto 10. O Conselho de Ministros do Conselho da Europa declarou-se, resolutamente a favor de uma regulamentação do Direito Civil que garante às vítimas uma forma de indemnização ou o direito de fazer oposição ou de reclamar civilmente. Conselho da Europa, Conselho de Ministros, Recomendação N R(97) 20 sobre o discurso de ódio de 30 de Outubro de 1997. Ao nível da União
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Silvia Angeletti Europeia, é necessário citar, também, a Decisão-quadro 2008/913/JAI do Conselho da União Europeia de 28 de novembro de 2008 sobre a luta contra certas formas e manifestações de racismo e de xenofobia no meio do Direito Penal; o artigo primeiro da Decisão, intitulado Infrações derivadas do racismo e da xenofobia, pede a cada Estado membro que tome “as medidas necessárias para fazer com que os atos intencionais abaixo citados sejam punidos: o incitamento público à violência ou ao ódio visando um grupo de pessoas ou um membro de um tal grupo, definido por referência à raça, à cor, à religião, à ascendência, a origem nacional ou étnica e que sejam tomadas medidas adequadas”. O texto desta decisão pode ser encontrado, em francês, em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2008:328:005 5:0058:FR:PDF 81. Doc. ONU E/CN.4/RES/2005/38, de 10 de abril de 2005; doc. ONU A/HRC/RES/7/36, de 28 de março de 2008, Conferência de Durban, Documento final, Genebra, abril de 2009 (par. 58); doc. ONU A/ HRC/11/4, de 30 de abril de 2009; doc. ONU E/CN.4/2003/67, de 30 de dezembro de 2002; doc. ONU A/ RES/61/221, de 20 de dezembro de 2006. 82. Doc. ONU A/HRC/11/14, de 30 de abril de 2009. O Conselho dos Direitos do Homem acrescenta que “o debate público de ideias assim como o diálogo intercultural e interconfessional [...] podem contar-se entre as melhores proteções contra o racismo [...] o ódio nacional, racial ou religioso”, doc. ONU A/HRC/ RES/12/16, de 12 de outubro de 2009. 83. Declaração conjunta, Freedom of Expression and Incitement to Racial or Religious Hatred, Conferência de Durban, 2009.
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DOCUMENTOS O novo Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião ou de crença O novo Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião ou de crença, Heiner Bielefelt, esteve pela primeira vez, na quinta-feira dia 23 de setembro de 2010, com os representantes de organizações não-governamentais acreditadas junto das Nações Unidas, em Genebra. Apresentou a sua visão e os seus planos para o seu mandato, fez algumas observações sobre os problemas e os assuntos preocupantes evocados pelas organizações não-governamentais e respondeu a diversas perguntas. O seu vasto conhecimento do assunto, a sua notável inteligência e a sua abordagem realista, assim como a sua experiência, auguram o bom sucesso do seu mandato. Heiner Bielefeldt Foi em junho de 2010, por ocasião da 14ª sessão ordinária que o Conselho dos Direitos do Homem, depois de ter prolongado por três anos a duração do mandato do Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião ou de crença, nomeou o novo Relator Especial, Heiner Bielefelt, substituindo a senhora Asma Jahangir, advogada paquistanesa, que exerceu funções desde 2004. Com 52 anos de idade, Heiner Bielefelt, teólogo, filósofo e historiador católico, alemão, ocupa atualmente a cadeira dos Direitos do Homem e da Política dos Direitos do Homem na Universidade Friedrich Alexander de Erlanger – Nuremberga. De 2003 a 2009, foi Diretor do Instituto Alemão dos Direitos do Homem em Berlim. Grandemente implicado no diálogo inter-religioso, é, ao mesmo tempo, administrador da Academia Muçulmana da Alemanha e da Sociedade Islamo-Cristã. Conta entre os seus interesses pesquisas das diversas facetas interdisciplinares da teoria e da prática dos direitos do Homem, e mais especificamente, da liberdade de religião ou de crença. 93
O Novo Relator Especial das Nações Unidas
O Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião ou de crença tem como mandato: – encorajar a adoção de medidas, aos níveis nacional, regional e internacional, tendo em vista assegurar a promoção e a proteção do direito à liberdade de religião ou de crença; – identificar os obstáculos – os que já existem e os que começam a aparecer – ao exercício do direito à liberdade de religião ou de crença e apresentar recomendações sobre a forma de os ultrapassar; – prosseguir os esforços para examinar os incidentes e as ações governamentais que são incompatíveis com as disposições da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Crença, e recomendar medidas convenientes para as remediar; – continuar a aplicar uma abordagem sexoespecífica, entre outras, colocando em evidência as violações sexistas, no quadro do processo de comunicação, inclusive na recolha de informações e na elaboração de recomendações. No cumprimento do seu mandato o Relator Especial: – transmite aos Estados apelos urgentes e acusações sobre casos que constituam violações do direito à liberdade de religião ou de crença ou de entraves ao seu exercício; – efetua missões de inquérito nos países; – apresenta relatórios anuais ao Conselho dos Direitos do Homem e à Assembleia Geral com uma descrição das suas atividades, das tendências e dos seus métodos de trabalho. A liberdade de religião assegura, entre outras, a todos os indivíduos, a livre escolha de pertencer, ou não, a uma religião, de adotar qual a que quer seguir, e protege o exercício de fé pessoal. Este direito é garantido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e numa Declaração da Assembleia Geral das Nações Unidas de 25 de novembro de 1981.
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“Lutar contra a difamação das religiões*” Grégor Puppinck**
A 27 de Março de 2008 o Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas adotou a Resolução 7/19 envolvendo os Estados no reforço da luta contra a difamação religiosa. Esta Resolução confia, especialmente, ao Alto Comissário para os Direitos do Homem (ACDH) a missão de apresentar, por ocasião da 9ª sessão do Conselho, um relatório sobre a aplicação da Resolução e de redigir um estudo sobre as actuais leis e a jurisprudência pertinentes sobre a difamação e o desprezo pelas religiões. Para responder ao convite do Alto Comissário para os Direitos do Homem, que desejava consultar a sociedade civil, o Centro Europeu para a Justiça e os Direitos do Homem (European Centre for Law and Justice, ECLJ) apresentou o seguinte relatório: O conceito de “difamação das religiões” é um dos principais instrumentos contemporâneos de questionar a política de princípio jurídico fundamental da “liberdade religiosa” que se desenvolveu no Direito Internacional desde a segunda metade do século XX. Este conceito pertence a uma cultura política que se opõe à modernidade na medida em que demonstra uma ligação entre “lei de Deus” e “lei do homem” e que reintroduz a religião na sua dimensão social e colectiva em detrimento da abordagem individualista própria do pensamento moderno dos direitos do Homem. Em consequência, o ECLJ é de parecer que as Resoluções sobre “a luta contra a difamação das religiões” tal como foram adotadas por ocasião da Assembleia Geral e do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas, constituem ataques diretos contra o espírito e a letra dos direitos do Homem em matéria de liberdade de religião e de expressão. Como o ECLJ tinha indicado em 12 de junho de 2008, na sua Declaração oral e no quadro do Exame periódico universal sobre o Paquistão, este conceito resultou em dar uma legitimidade internacional às leis repressivas dirigidas contra as minorias religiosas, tal como as leis contra o proselitismo e a blasfémia. Por outro lado, tende a substituir-se à noção de incitamento ao ódio ou à violência, à principal diferença que, na lógica da “difamação de religiões”, a apreciação da realidade do caráter difamatório é reservada à pessoa ofendida. No que se refere ao carater de incitamento ao ódio, como mostraram as reações de violência provocadas pela publicação das “caricaturas”, a violência foi bem real, mas não foi orientada contra as vítimas da caricatura, mas contra o seu autor e editores. 95
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*** Atualmente, a validade do conceito moderno da “liberdade religiosa” como instrumento de regulação da religiosidade do Estado e da “socialidade” da religião está abertamente posta em causa. Este desafio é principalmente o resultado do mundo não-ocidental e, em primeiro lugar, os países de cultura muçulmana. Trata-se de uma crise jurídica observável muito concretamente da evolução do Direito Positivo. Mas esta crise jurídica é, ela própria, a manifestação de uma crise mais profunda de natureza política e identitária. Tal como garantida pelos grandes textos internacionais, “a liberdade de pensamento, de consciência e de religião” é simultaneamente “positiva” e “negativa”: é uma liberdade contra a restrição. Trata-se de uma liberdade que pertence a cada pessoa considerada individualmente. Esta imunidade contra toda a restrição protege uma “liberdade” de ação axiologicamente neutra, isto é, sem referência a um “bem objectivo” ou à “Verdade”. Esta liberdade é considerada como universal porque baseada na natureza do Homem e é imperativa porque é a expressão de um dos aspetos da dignidade humana. Este direito positivo à liberdade de religião encontra a sua origem na liberdade do acto de fé individual isto, é do foro íntimo. Ele exprime-se – ou extravasa – através de manifestações diversos no foro externo, isto é, na sociedade. Esta conceção moderna da liberdade religiosa pressupõe uma certa neutralidade religiosa das sociedades. Enquanto, em numerosos domínios, é reconhecido em Direito Internacional que as nações podem ser titulares de direitos subjectivos (como o direito ao desenvolvimento ou à autodeterminação), não é assim em matéria religiosa, mesmo que a identidade religiosa seja, por vezes, um componente profundo, essencial da identidade nacional. Segundo a moderna conceção da liberdade de religião, apenas os indivíduos, tomados isoladamente, possuem direitos religiosos, que podem ser exercidos colectivamente, mas nos limites fixados pelas legislações nacionais. As religiões não beneficiam de uma proteção particular: apenas cada crente, individualmente1, é titular desse direito, o qual se exerce, em primeiro lugar e sobretudo em relação a terceiros e a sociedades. Numa palavra, segundo a abordagem actual da liberdade de religião, porque só os indivíduos têm uma consciência, só eles merecem que o exercício da sua consciência seja protegido contra a oposição. Como resultado, as dimensões religiosas das sociedades e as dimensões sociais das religiões são fundamentalmente ignoradas, a fim de libertar o espaço para o livre exercício da consciência individual. Isso aplica-se a todas as sociedades e corpos intermédios – Nações, coletividades e instituições públicas – mas também às famílias e aos média. Esta moderna conceção da liberdade religiosa choca, cada vez mais, com a diversidade das diversidades sociais e culturais. É verdade que ela nunca se impôs facilmente. O que é novo, é que tanto o seu universalismo como até a sua validade são presentemente contestadas. 96
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Enquanto que durante a segunda metade do século XX, os países muçulmanos formulam reservas apenas na sua aceitação do princípio da liberdade religiosa, hoje, contestam-na abertamente2. Com efeito, a maior parte dentre eles não aceita senão com reticências os instrumentos internacionais contendo um reconhecimento da liberdade de religião e, sobretudo, a liberdade de mudar de religião. Não existe, no Direito muçulmano, a liberdade de deixar o Islão. Bem ao contrário, esta liberdade constitui o crime de apostasia3. Assim, desde a discussão do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Egipto tem tentado opor-se ao reconhecimento de direito de mudar de religião exprimindo, particularmente o seu receio de que, ao proclamar a liberdade de mudar de religião ou de crença, a Declaração apenas encoraje “as maquinações de certas missões bem conhecidas no Oriente, que prosseguem incansavelmente nos seus esforços tendo em vista converter à sua fé as populações do Oriente”4. Por ocasião destas discussões sobre o artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos de 1966, o problema foi posto novamente. A fim de satisfazer o pedido da Arábia Saudita5 e do Egipto6, que falaram em nome dos países muçulmanos, foi decidido substituir o reconhecimento do direito de mudar de religião ou de crença, para a liberdade de ter ou de adotar uma religião da sua escolha7. Esta alteração não devia parecer ainda suficiente porque, por ocasião da sua ratificação, o Egipto indicou que a interpretação desta convenção devia ser conforme as normas da sharia9. Posteriormente, o problema tem voltado a ser posto várias vezes, particularmente por ocasião da discussão de Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação sobre a Religião ou a Crença, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e 25 de Novembro de 195110. O representante do Irão chamou a atenção para que os muçulmanos não estão autorizados a escolher uma outra religião e que, se apesar de tudo o fazem, são passíveis da pena de morte11. Os países membros da Organização da Conferência Islâmica (OCI) exprimiram, por sua vez, “reservas para com qualquer disposição, ou termo, que infrinja o Direito islâmico (sharia) ou qualquer legislação ou lei baseada nesse Direito12”. Nas Constituições nacionais, uma vez que a religião é afirmada, é como tal enquadrada pela ordem pública local ou como tal interpretada pela cultura islâmica e a sharia13. Atualmente, a contestação da liberdade religiosa ultrapassa a formulação de reservas perante os instrumentos internacionais. Ao nível institucional internaciona, toma a forma de uma política coordenada de questionar ou pôr em causa, princípios modernos de liberdade de religião mas também da liberdade de pensamento e de expressão em matéria religiosa. No decurso dos últimos anos, a OCI tem sido instrumento político privilegiado desta contestação, especialmente através da promoção de uma conceção alternativa dos direitos do Homem, baseada na sharia e sintetizada na Declaração do Cairo sobre os Direitos do Homem no Islão15 de 199016. Esta Declaração, porque se 97
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baseia na universalidade do Islão, não nega a universalidade do Direito; pelo contrário, ela confirma-o porque “a legislação islâmica veio pôr fim a todas as legislações precedentes e concorda com todo o tempo e todo o lugar”17. Como consequência, esta atitude não visa tanto destruir como substituir integrando-se e corrigindo deste o âmago a moderna filosofia dos direitos do Homem. Neste sentido, o modelo islâmico é altermundialismo18. Esta política foi reafirmada, especialmente, no Programa da Ação para uma Década para fazer face aos desafios com que a oummah islâmica se encontra confrontada no século XXI, adotado pela OCI em dezembro de 200520. Ele organiza-se em torno da promoção de dois conceitos complementares – a “difamação das religiões” e a “islamofobia”. O conceito de “islamofobia” tende a defender coletivamente a comunidade muçulmana no seu conjunto “vitimizando” uma parte da população para “culpabilizar” a outra, interditando o recurso a qualquer forma de justificação racional. Este conceito de “islamofobia” apõe-se assim a toda a apreensão e crítica racional do Islão. O Programa da Ação para uma Década de 2005 tinha feito da luta contra a islamofobia uma das suas prioridades, fixando-se especialmente, no objetivo de “trabalhar para a adaptação de uma resolução das Nações Unidas para lutar contra a islamofobia e convidar o conjunto dos Estados a promulgar leis com sansões dissuasoras para combater a islamofobia”21. Este objetivo foi largamente aceite, não só no seio das Nações Unidas, mas também no seio das instituições ocidentais como a OSCE e o Conselho da Europa22, cuja Assembleia parlamentar viria a adotar (em junho de 2010) um projeto de relatório e resolução “o Islão, o islamismo e a islamofobia na Europa” (Doc. 12266)23. Se o conceito de “islamofobia” foi largamente aceite, não aonreceu o mesmo para a “difamação das religiões” que se debate com uma oposição crescente. O conceito de “difamação das religiões” tende a defender globalmente o Islão como religião contra a sua “difamação”, justificando, especialmente, novas limitações à liberdade de expressão. É necessário precisar que a promoção deste conceito se iniciou em 1990, isto é, antes do “11 de setembro” e o assunto das caricaturas. Com efeito, desde os anos 1990, este conceito foi promovido por uma série de resoluções, a última das quais foi adotada a 25 de Março de 2010 pelo Comité dos Direitos do Homem24. A primeira tinha sido proposta pelo Paquistão em 1999, em nome da OCI e no quadro da luta contra o racismo, e intitulava-se: “difamação contra os Islão”25. Novas resoluções foram apresentadas, desde o Conselho dos Direitos do Homem e a partir de 2005, todos os anos na Assembleia Geral26. Atualmente visa-se consagrar este conceito num protocolo adicional na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de descriminação recial27. Um tal protocolo assimilaria a difamação das religiões e, em particular, a crítica do Islão, e o ódio racial. Se chegar a ver a luz do dia, dará uma legitimidade internacional às leis islâmicas repressivas – e bem frequentemente arbitrárias – dirigidas principalmente 98
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contra as minorias religiosas, tal como as disposições penais paquistanesas contra a blasfémia. É muito difícil definir juridicamente este conceito e integrá-lo no Direito existente, especialmente com os artigos 19 e 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. A difamação das religiões poderia ser definida como uma incriminação semelhante à blasfémia, não diretamente contra a divindade mas contra a religião, antes de mais contra a reputação da religião, na ocorrência, o Islão. Trata-se de uma clara rutura relativamente à interpretação histórica da noção de difamação, podendo acarretar graves repercussões jurídicas. Liaquat Ali Khan, um colaborador do American Muslim, exprime, a este propósito, as suas preocupações: “Tradicionalmente, o termo ‘difamação’ designa o atentado à reputação de um indivíduo. A difamação de um grupo constitui uma noção problemática uma vez que pode julgar a liberdade de expressão e fornecer uma proteção injustificada a costumes e práticas decadentes. A difamação das religiões transcende mesmo a difamação de um grupo, uma vez que pode ir até interditar a difamação de ideias e de doutrinas religiosas”28. Segundo as resoluções adotadas no seio das Nações Unidas, constituiria difamação a difusão de “estereótipos negativos” pelos quais “o Islão é muitas vezes erroneamente associado a violações dos direitos humanos e terrorismo”. Além disso a “difamação de religiões constitui um grave atentado à dignidade humana levando a restrições da liberdade religiosa dos seus adeptos e um incitamento ao ódio religioso e à violência”. A fim de compreender os elementos constitutivos da “difamação das religiões”, convém lembrar rapidamente, a conceção muçulmana de blasfémia. Como Mircea Eliade indica29, o conceito jurídico de blasfémia é definido pela lei islâmica como sendo “a expressão de denegrir, de desprezo, de desdém para com Deus, os profetas, o Alcorão, os anjos ou as ciências religiosas tradicionais baseadas na revelação”. “No Islão, a blasfémia confunde-se com a infidelidade, definida como sendo a rejeição deliberada de Deus e da revelação. Neste sentido, a expressão de ideias religiosas que não estão em conformidade com os objetivos islâmicos habituais constitui blasfémia. Esta pode também ser definida como o equivalente à heresia, e nesse sentido, é entendida como a expressão pública de ensinos perigosos para o Estado”30. A “difamação das religiões”: um conceito defensivo e ofensivo A OCI toma astuciosamente posição fazendo uso de noções de “difamação das religiões” e de islamofobia como de uma arma ofensiva e defensiva permitindo, ao mesmo tempo, proteger o Islão contra os ataques e reduzir ao silêncio as vozes dissidentes. Nos países muçulmanos, as leis sobre a blasfémia que protegem o Islão contra a sua difamação servem para proteger a religião dominante, mas servem, também, para condenar ao silêncio os adeptos das minorias religiosas. 99
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O artigo 295 do Código Penal paquistanês é exemplar nesse sentido; é formulado da seguinte forma: “Toda a pessoa que por escrito ou oralmente, ou por representação visível, ou por qualquer forma de imputação ou insinuação, direta ou indireta, sujar o nome do profeta (do Islão) deverá ser punido com a morte, ou sofrer prisão perpétua. Por outro lado, todo aquele que profana o Corão é condenado a prisão perpétua”31. Perante os factos, a lei contra a blasfémia é uma arma repressiva fornecida à religião do Estado e aos grupos islâmicos contra os não muçulmanos. A imprecisão dos seus elementos constitutivos torna esta incriminação totalmente arbitrária. Esta infração, tal como prevista no Direito Penal paquistanês, não exige o elemento intencional, tanto mais que ela não exige outra prova do que um simples testemunho, sendo a pessoa acusada imediatamente colocada sob detenção, com as consequências sociais que isso comporta, especialmente para a sua família. Esta disposição contra a ofensa ao Islão revela, dessa maneira, ser nem mais nem menos um elemento de opressão. O ECLJ recolheu uma quantidade de incidentes recentes sobre acusações de “difamação de religiões” em diversos países32. Esses factos dizem respeito a diversas infrações civis ou penais, entre as quais a blasfémia, a difamação, a apostasia, os escritos difamatórios, a calúnia e os discursos de ódio. Mas têm um denominador comum: em todos os casos, as pessoas foram objeto de acusação, baseada nas suas palavras ou nas suas opiniões. Nenhum incidente se baseou numa difamação contra uma pessoa ou um incitamento ao ódio ou à violência contra um indivíduo ou grupo. Citamos apenas um exemplo: no Paquistão, Jagdeesh Kumar, um hindu de 22 anos, trabalhador de uma fábrica, foi agredido até à morte pelos colegas, por ter, segundo eles, cometido um crime de blasfémia, passível da pena capital no país em questão. Os três funcionários autores do ataque fatal foram presos e acusados não de terem cometido um assassinato, mas sim de terem “omitido informar a polícia no momento da blasfêmia”. Em Islamabad, um militante pelos direitos humanos declarou: “não há um só caso de morte de uma pessoa por blasfémia em que o assassino tenha tido que responder pelo seu crime. De facto, tais assassinos são tratados como heróis nas esquadras da polícia. E os oficiais da polícia que honram abertamente esses criminosos nunca são julgados pelas suas ações ilícitas e repreensíveis”33. Nos países ocidentais, os conceitos de “difamação das religiões” e de “islamofobia” são abusivamente assimilados às noções de incitamento ao ódio e à violência e à manifestação de racismo. A difamação das religiões serve de arma de dissuasão contra os média, os universitários e os artistas declarando que toda a descrição ou crítica negativa do Islão e dos seus adeptos deverá ser proscrito dado o seu caráter irreverente, ou como “discurso do ódio”. Nesse caso, a imunidade do Islão prevalece sobre a liberdade de expressão e de imprensa – principalmente quando essas palavras são suscetíveis de causar reações adversas ou violentas.34 100
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A OCI tentou assimilar qualquer ato de difamação do Islão a uma ação racista contra os muçulmanos. Esta intensão manifestou-se, especialmente, pela vontade de fazer adotar resoluções sobre a difamação no quadro da Conferência de Durban sobre o racismo, assim como sob o mandato do Relator especial sobre o racismo. Várias vozes se levantaram contra a assimilação da crítica ao Islão ao racismo. Assim, exprimindo a sua oposição à resolução da Assembleia Geral de 2007 sobre a “luta contra a difamação das religiões”, a União Europeia denunciou o erro que consiste em confundir esta problemática com uma questão de raça: “A União Europeia não considera valida a noção de “difamação das religiões” num discurso sobre os direitos do Homem. No quadro dos direitos do Homem, os membros de comunidades religiosas ou confessionais não devem ser consideradas como fazendo parte de entidades homogéneas. A legislação internacional em matéria de direitos do Homem protege antes de mais, os indivíduos no exercício da sua liberdade de religião ou de confissão mais do que as próprias religiões”.35 A Relatora especial, Asma Jahangir, lançou algumas advertências face à confusão entre difamação das religiões e racismo, explicando porque é que isso põe problemas do ponto de vista jurídico: “A Relatora especial adverte contra a confusão que poderia ser feita entre uma declaração racista e propósitos difamatórios para com uma religião. Os elementos constitutivos da declaração racista não são os mesmos que os que constituem a difamação religiosa. É por isso que as medidas legislativas, em particular na esfera penal, adotadas na ordem jurídica nacional para lutar contra o racismo, nem sempre são aplicáveis aos atentados difamatórios de uma religião”.36 O conceito oposto ao moderno pensamento jurídico O conceito de “difamação das religiões” é oposto à cultura política e jurídica moderna no que, por um lado, manifesta um laço entre “lei de Deus” e “lei dos homens” e, por outro lado, reintroduz a religião na sua dimensão social e coletiva em detrimento da abordagem individualista própria do pensamento moderno dos direitos do Homem. No que respeita a ligação entre “lei de Deus” e “lei dos homens”, não há dúvida que, para um crente, certos objetos, tratando-se da sua fé, são revestidos de uma dimensão sagrada. Todo aquele que tem a sua fé no Decálogo, e consequentemente aceita como necessária a ligação entre a lei de Deus e a lei dos homens, não pode estar em total oposição ao princípio, mesmo de uma forma de condenação da blasfémia na aplicação do segundo mandamento: “O Seu santo nome respeitarás, fugindo da blasfémia e falso juramento”. Mesmo para além deste explícito mandamento divino, o sentido do respeito do sagrado é uma forma de instinto natural ao Homem e explica que todas as 101
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culturas, qualquer que seja a sua religiosidade, possuem leis visando proteger o “sagrado” ou os tabus em seu lugar. Alguns países ocidentais (ou de cultura histórica cristã) também incriminam a blasfémia17, mas segundo uma lógica fundamentalista diferente da que ocorre nos países muçulmanos. Em virtude a distinção entre a ordem temporal e a ordem espiritual derivada da cultura cristã, a blasfémia não é considerada como um atentado ao Estado, mas como um atentado de natureza estritamente espiritual. Desde logo o Direito (Civil, isto é não religioso) não tem vocação para o sancionar, mas apenas, eventualmente, tratar das consequências deste atentado perante a ordem pública e os direitos de terceiros ao “gozo pacífico” da sua liberdade de religião. Assim, não é a falta de respeito para com a divindade que é sancionada pelo Direito Civil, mas a ordem pública e os direitos e liberdades de terceiros que são protegidos. É para a preservação destes interesses temporais que a liberdade de expressão pode ser, legitimamente, restringida38, e apenas na medida em que os propósitos incriminados são manifestamente injustificados e deliberadamente ofendidos39. Contudo, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem lembra frequentemente, “o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não há sociedade democrática, significam que o direito à liberdade de expressão não implica que um indivíduo deva estar ao abrigo da expressão de pontos de vista religiosos pela simples razão deste serem diferentes dos seus”40. Em oposição, é porque os países muçulmanos não aceitam a distinção entre as ordens temporais e espirituais que o atentado à religião é assimilado a um atentado ao Estado, fornecendo por isso uma sanção civil devido a uma qualificação religiosa. Arbitrariedade é ainda agravada pela inferioridade jurídica dos não-muçulmanos, especialmente no que diz respeito ao testemunho. Assim, o problema posto pelo conceito de difamação religiosa é mais profundo e não se limita à atribuição de direitos a uma entidade abstrata contra os direitos individuais. Além disso, este problema não está direta e necessariamente relacionado com o facto de ter em conta os aspetos políticos e jurídicos da dimensão social da religião. Com efeito. Se é verdade que o indivíduo é a unidade fundamental sobre a qual é construído o pensamento moderno dos direitos do Homem e que, por conseguinte, este pensamento dificulta entender o Islão como uma religião essencialmente política e comunitária, o reconhecimento da legitimidade de certos interesses coletivos, especialmente de natureza cultural e religiosa, é possível sem pôr em causa o próprio princípio da liberdade individual da religião. O problema posto ao Direito Internacional pelo conceito de difamação das religiões é assim, em primeiro lugar, causado pelo próprio contexto cultural dos países que o promovem. Com efeito, como já foi lembrado inúmeras vezes, especialmente pela maior parte dos especialistas que participaram no Seminário de especialistas sobre “a liberdade de expressão e os apelos ao ódio religioso que constituem um incitamento à descriminação, à hostilidade 102
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ou à violência”41, as disposições dos artigos 19 e 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos bastam para responder juridicamente aos factos visados pelos promotores da difamação das religiões. É, em particular, o caso do artigo 20-2, segundo o qual “Qualquer apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constitui um incitamento à descriminação, à hostilidade ou à violência é proibido pela lei”. Segundo a senhora Asma Jahangir, Relatora especial das Nações Unidas, sobre a liberdade de religião e de crença, o alvo fixado pelo artigo 20 é relativamente elevado, uma vez que não permite restringir a liberdade de expressão no que diz respeito, neste assunto, a discursos que incitam ao ódio e à violência. A Relatora especial estima assim que a expressão de uma opinião não pode ser interdita em virtude do artigo 20 senão se é um incitamento direto a cometer imediatamente um ato de violência ou de descriminação contra um indivíduo ou um grupo particular42. Igualmente, o Relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de opinião e de expressão. Ambeyi Ligabo, concorda que a única das restrições à liberdade de expressão é elevada e que a proteção geral e global das ideias ou das religiões como tal não está incluída: segundo ele “as restrições não visam impedir a expressão de opiniões críticas, de ponto de vista crítico, opiniões controversas ou declarações politicamente incorretas (…) não são de forma alguma destinadas a proteger os sistemas de crença das críticas internas ou externas”43. Mais recentemente, a 16 de novembro de 2009, o Conselho da União Europeia finalmente adotou uma resolução relativa à liberdade de religião ou de crença na qual afirma, sem ambiguidade, que “a difamação das religiões não é uma noção que releve dos direitos do Homem”. A este respeito, o “Conselho declara-se vivamente preocupado com o facto de que os países que dispõem de um legislação relativa à difamação das religiões recorrem frequentemente a ela para maltratar as minorias religiosas e limitar a liberdade de expressão, assim como a liberdade de religião ou de crença”44. Esta tomada de posição, tardia, retoma, quase palavra por palavra, as intervenções do ECLJ perante o Conselho dos Direitos do Homem em Genebra. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa estimou, por sua vez, na Resolução “Liberdade de expressão e respeito pelas crenças religiosas”45, que a liberdade de expressão não deve ser desde logo restringida para responder à sensibilidade crescente de alguns grupos religiosos, insistindo no facto de que os incitamentos ao ódio contra um qualquer grupo religioso se opõe à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Em contrapartida faz sua a vontade de lutar contra a islamofobia. A dificuldade com que esbarram as Nações Unidas é provavelmente dever conceber um modo de reconhecimento jurídico desta dimensão social, devendo este reconhecimento ser equilibrado e respeitador da liberdade de consciência das minorias. 103
Grégor Puppinck
* Relatório apresentado em junho de 2008 e atualizado em junho de 2010 por Grégor Puppinck, em resposta à consulta do Gabinete do Alto-Comissário para os Direitos do Homem das Nações Unidas, pela França, a Resolução 19/07 do Conselho dos Direitos do Homem, de 27 de março de 2008 sobre a luta contra a difamação das religiões. ** Diretor-Geral do Centro Europeu para a Justiça e os Direitos do Homem. Notas: 1. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tal como a antiga Comissão dos direitos do Homem, declarou varias vezes que uma organização com objetivo filosófico ou religioso tem a capacidade de possuir e de exercer o direito à liberdade de religião, porque, logo que um tal órgão introduz um pedido, ele o faz, na realidade em nome dos seus membros. Ver Com. eur. DH, n° 7805/77, dec. de 5 de maio de 1979, DR 16 p. 68-76, n° 8118/77, dec. de 19 de março de 1981, DR 25 p. 105-135, n° 12587/86, dec. de 14 julho de 1987, DR 53 p. 241-252. 2. Parece que esta posição está sempre ligada ao recuo do modelo cultural ocidental e à reconstrução identitária que daí resulta, nos países muçulmanos assim como nos países ortodoxos antigamente comunistas. No Ocidente, esta posição perante a conceção moderna da liberdade religiosa está também ligada à questão identitária – não como reconstrução de uma identidade anterior, mas como preservação identitária face à islamização do Ocidente, demostrada especialmente, pelo uso de sinais ostensivos como a Burca. 3. Dr. Sami A. Aldeeb Abu-Sahlieh, Le changement de religion en Égypte, European Centre for Law and Justice, fevereiro 2010, p. 10, 11. 4. AG, 3ª sessão, da sessão plenária 180, 1980, p. 913. 5. A/C3/L.422. 6. A/C3/L.72. 7. Ver sobre estas discussões A/4625, p. 17-20. 8. Decisão presidencial n° 536 de 1981, journal officiel de 15 avril 1982. 9. Declaração do Egipto por ocasião da ratificação do International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR) et de l’International Covenant on Civil and Political Rights (ICCPR): Declaração: “Taking into consideration the provisions of the Islamic Charia and the fact that they do not conflict with the text annexed to the instrument, we accept, support and ratify it [...]” 10. Resolução AG 36/55. 11. AG, 3ª Comissão, 26 out. 1981, A/C.3/36/SR.29, p. 5. 12. AG, 3ª Comissão, 9 out. 1981, A C 36/SR. 43, p. 10. 13. O artigo 2 da Constituição egípcia de 1971, tal como emendada em 1980, dispõe assim que “os princípios da lei islâmica constituem a principal fonte da legislação”. Isto é muito frequente nos países islâmicos. 14. De facto desde há uns doze anos. 15. Declaração sobre os direitos do homem no Islão adotada a 15 de Agosto de 1990, no Cairo, por ocasião da 19ª Conferência Islâmica dos Ministros dos Negócios Estrangeiros. 16. O artigo 24 da Declaração estipula: “Todos os direitos e liberdades enunciados na presente Declaração estão submetidos às disposições da sharia”. O artigo 25 afirma: “A sharia é a única referência para a explicação ou a interpretação de um qualquer dos artigos contidos na presente Declaração”. 104
Lutar contra a difamação das religiões 17. Declaração da Conferência Geral do Conselho Superior dos Assuntos islâmicos, Declaração do Cairo, 22ª Conferência Geral do Conselho Superior dos Assuntos islâmicos, Cairo, Egipto, 22-25 de fevereiro de 2010 sobre o tema “Objetivos da sharia islâmica e as causas da nossa era”. 18. Tariq Ramadan “Os desafios do pluralismo”, Politis junho 2033 (nº 756) 19. Mais recentemente as resoluções da OCI sobre “a luta contra a difamação das religiões” (nº 39/37-POL) e sobre a “luta contra a islamofobia e a eliminação do ódio e os preconceitos para com o Islão” (nº 38/37-POL) sintetizavam assim os elementos desta contestação “reafirmando o conjunto das Resoluções e Decisões pertinentes (…) que insistem, entre outras, na necessidade de combater eficazmente a islamofobia, de lutar contra a difamação dos Islão e o incitamento ao ódio religioso, a hostilidade, a violência e a descriminação contra o Islão e os muçulmanos e travar o crescimento da islamofobia”, in Resoluções sobre os assuntos políticos adotados pela 37ª sessão do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros (sessão da visão partilhada de um mundo islâmico mais seguro e mais próspero), Douchanbe – República do Tadjikistão de 4 a 6 joumada athania 1431h (18-20 de maio de 2010)), Doc OCI/CFM-37/2010/ RES/POL/FINAL. http://www.OCI-oci.org/37cfm/fr/documents/res/37-CFM-POL-RES.pdf 20. “Programa da Ação para uma Década para fazer face aos desafios com que a oummah islâmica se encontra confrontada no século XXI”, Terceira Sessão Extraordinária da Conferência de Cúpula islâmica, Makkah al Moukaarramah, na Arábia Saudita, 5-6 Dhoul Qaada 1426 h/ 7-8 de dezembro de 2005. Disponível no seguinte endereço: http://www.OCI-oci.org/ex-summit/french/program-decennal.htm da Organização da Conferência Islâmica (OCI). 21. OCI Dez Programa de ação para dez anos … Extrato: “VII-A luta contra a islamofobia: 1) Insistir na responsabilidade da comunidade internacional, incluindo todos os governos, em termos de garantir o respeito por todas as religiões e combater a difamação. 2) Sublinhar a necessidade de lutar contra a islamofobia, através da criação de um observatório no seio da Secretaria da OCI, para acompanhar continuamente todas as manifestações de islamofobia, elaborar um relatório anual sobre este fenómeno e cooperar com organizações governamentais e não governamentais para lutar contra a islamofobia. 3) Trabalhar no sentido da adoção de uma resolução das Nações Unidas para lutar contra a islamofobia e convidar todos os Estados a promulgarem leis com sanções dissuasivas para combater a islamofobia. 4) Promover com as partes interessadas um diálogo institucionalizado e permanente para promover os verdadeiros valores do Islão e destacar a participação dos países islâmicos na luta contra o extremismo e o terrorismo. 22. Ver, por exemplo, os seguintes textos adotados pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa: Resolução 1605 (2008) As comunidades muçulmanas europeias face ao extremismo; Resolução 1675 (2009) Situação dos Direitos do Homem na Europa: necessidade de erradicar a impunidade; Recomendação 1732 (2006) Integração das mulheres imigradas na Europa; Resolução 1478 (2006) Integração das mulheres imigradas na Europa; Recomendação 1768 (2006) A imagem dos que pedem asilo, dos migrantes e dos refugiados veiculada pelos média; Resolução 1618 (2008) Situação da democracia na Europa – Medidas visando melhorar a participação democrática dos migrantes; Resolução 1700 (2010) Situação no Próximo-Oriente; Resolução 1547 (2007) Situação dos direitos do Homem e da democracia na Europa. Ver também a “Declaração de Varsóvia” dos chefes de Estado e do governo dos Estados membro do Conselho da Europa, por ocasião da 3ª Cimeira de Varsóvia (16-17 maio de 2005), na qual condenaram “com firmeza todas as formas de intolerância e de discriminação, especialmente as baseadas no sexo, na raça e na religião, incluindo o antissemitismo e a islamofobia”. 23. Manifestamente, o Secretariado-geral do Conselho da Europa também deu o seu apoio à promoção do conceito de islamofobia, como testemunha, por exemplo a co-organisação, com a OCI de uma mesa redonda sobre “Addressing Islamophobia” no quadro da Alliance 105
Grégor Puppinck des Civilisations, no Rio, em maio de 2010. Third Global Forum Of The Alliance Of Civilizations, in Rio de Janeiro, Open Roundtable “Addressing Islamophobia: Building on Unused Opportunities For Mutual Respect and Inclusion”, 27 de maio de 2010, 16:30-18:00, Co-organizers: UN Alliance of Civilizations, the Organization of the Islamic Conference, the Council of Europe and the British Council. 24. Resolução 13/16 Combating defamation of religions, adopted by the Human Rights Council, 25 de março de 2010. A/HRC/RES/13/16. 25. U.N. Econ. & Soc. Council [ESOSOC], Commission on Human Rights, Draft Res.: Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and all Forms of Discrimination, U.N. Doc. E/ CN.4/1999/L.40 (20 de abril de1999). 26. O presente relatório e o seu anexo concentrar-se-ão na “difamação das religiões” no contexto do Islão uma vez que a Resolução 62/154 da Assembleia geral não nomeia senão uma religião, o Islão, e que foi submetida pelos países muçulmanos. Convém, para obter um histórico detalhado das resoluções das Nações Unidas sobre a “difamação das religiões”, consultar o relatório sobre “A luta contra a difamação das religiões” preparada pela Fundação Becket para a liberdade religiosa, datada de 2 de junho de 2008, e apresentada ao HCDH, texto inglês disponível em http://www.becketfund.org/files/a9e5b.pdf. 27. Organization of the Islamic Conference, “Letter dated 18 December 2009 from the Chargé d’affaires ad interim of the Permanent Observer Mission of the Organization of the Islamic Conference to the United Nations Office at Geneva addressed to the United Nations High Commissioner for Human Rights”, A/HRC/13/G/3, 14 January 2010, Human Rights Council, Thirteenth session, Racism, racial discrimination, xenophobia and related forms of intolerance: follow-up to and implementation of the Durban Declaration and Programme of Action. 28. Tradução livre do texto de Liaquat Ali Khan, “Combating Defamation of Religion”, The American Muslim, 1de janeiro de 2007, disponível em http://www.theamericanmuslim.org/tam.php/features/articles/combating_defamation_of_ religions/ 29. Mircea ELIADE, The Encyclopedia of Religion, Macmillan Publishers Company, Oxford, 1976, p. 243. 30. Jean-François FLAUSS, “La diffamation religieuse en droit international”, Petites affiches, 23 de julho de 2002, n° 146, p. 5. 31. É verdade que, nos artigos 298 e 295-A, as outras religiões recebem, igualmente, uma proteção legal, mas apenas a título de interdição de insultos e ultrages contra o sentimento religioso. Esta proteção não tem nada de comum com a de que o Islão beneficia. 32. Este anexo está disponível no sitio do ECLJ no seguinte endereço http://www.eclj.org/ PDF/080626_ECLJ_submission_to_OHCHR_on_Combating_Defamation_of_Religions_ June2008.pdf 33. Tradução livre do texto original a consultar na versão original sob o Anexo 1 – Paquistão. 34. Em setembro de 2007, no quadro de uma declaração oral no Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas, o ECLJ tinha sublinhado como o conceito de difamação das religiões era contrário aos Direito Internacional: http://www.eclj.org/PDF/070925_ECLJ_ Oral_Statement_ENGLISH.pdf. 35. Tradução livre da declaração feita por Portugal em nome da União Europeia, por ocasião da Assembleia Geral, de 18 de dezembro de 2007, e tal como citada numa declaração de 24 de Fevereiro de 2008, pelo União Internacional Humanista e Ética (IHRU) perante o Conselho dos Direitos do Homem. Texto em inglês disponível em: http://www.iheu.org/node/2949. 36. A/HRC/2/3, supra, nota 6, parágrafo 49. 37. Ver Comissão de Veneza, “Relatório sobre as relações entre liberdade de expressão e liberdade de religião : Regulamentação e repressão da blasfémia, da injúria de caráter religioso 106
Lutar contra a difamação das religiões e do incitamento ao ódio religioso” CDL-AD (2008) 026, adotado pela Comissão de Veneza por ocasião da 76ª sessão plenária, Veneza 17,18 de outubro de 2008. 38. Ver, por exemplo, neste sentido: CEDH, Murphy c. Irlande, 10 de julho de 2003 § 64. 39. Ver, por exemplo, neste sentido: CEDH, Otto-Preminger-Institut c. Autriche, 20 de setembro de 1994. 40. CEDH, Murphy, cit. § 72. 41. Seminário de especialistas sobre as relações entre os artigos 19 e 20 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos: “A liberdade de expressão e os apelos ao ódio religioso que constituem um incitamento à descriminação, à hostilidade ou à violência” (Genebra, 2 e 3 de outubro de 2008). Relatório do Alto Comissário para os Direitos do Homem: http://daccessdds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/103/76/PDF/G0910376.pdf?OpenElement 42. Relatório do Conselho dos Direitos do Homem, ONU, Doc. Doc. A/HRC/2/3 (20 setembro de 2006), Parágrafo 47, disponível em: http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/ G06/139/90/PDF/G0613990.pdf?OpenElement. 43. A/HRC/7/14. 44. O projeto de conclusões do Conselho sobre a liberdade de religião ou de crença adotado pelo Comité político e de segurança (COPS), por ocasião da sua reunião de 11 de novembro de 2009, é público. Conselho da União Europeia, Bruxelas, 11 de Novembro, de 2009 (12.11), 15510/09, COHOM 250, PESC 1488, COPOL, 72. Foi transmitido ao Coreper tendo em vista a sua adoção pelo Conselho “Negócios Gerais e Relações Exteriores”, por ocasião da sua sessão de 16 e 17 de novembro de 2009. Acessível em http://register.consilium.europa.eu/pdf/ fr/09/st15/st15510.fr09.pdf. 45. Resolução 1510 (2006) adotada pela Assembleia Parlamentar a 28 de Junho de 2009 (19ª sessão).
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Declaração relativa às propostas sobre a difamação das religiões*
Introdução Os defensores dos direitos do Homem, e em particular da liberdade religiosa, estão grandemente preocupados com a questão da difamação religiosa1. Crentes através do mundo, quer se trate de indivíduos ou de grupos, são objeto de acusações hostis e de insultos chegando até à intimidação e à agressão violenta. Reconhecendo a ligação existente entre certas formas de expressão do ódio e os atos de violência, as instituições regionais, nacionais e internacionais assim como as organizações não-governamentais têm procurado atacar os problemas concretos que a expressão do ódio pode arrastar. Estes problemas têm sido abordados de diferentes formas, que vão da intensificação das perseguições contra aqueles que tomam como alvo os crentes – tanto os indivíduos como os grupos – até à adoção de leis específicas agravando as penas para os crimes e delitos devido ao ódio religioso. Uma outra abordagem possível seria regulamentar e interditar aquilo que se chama frequentemente a “difamação das religiões”. Os especialistas reconhecem que há situações nas quais a expressão de uma opinião constitui um incitamento à descriminação ou à violência. Um tal discurso pode então ser submetido a restrições de acordo com o Direito Internacional relativo aos direitos do Homem2. Mas temem que certas propostas que visam atacar esta questão não resolvam o problema subjacente aos crimes e aos delitos motivados pelo ódio religioso que são perpetrados contra as pessoas ou os bens, mas, ao contrário, acentuem a intolerância religiosa e infrinjam direitos tão fundamentais como a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, as quais autorizam a crítica das crenças e práticas religiosas. Exemplos de propostas problemáticas As mais problemáticas são as resoluções e outros documentos aprovados ou em estudo no seio das Nações Unidas que apelam aos Estados para tomarem medidas firmes para interditar a difusão de ideias e de escritos visando uma qualquer religião ou os seus membros e que constituam um incitamento ao ódio, à hostilidade ou à violência racial ou religiosa3.
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Declaração relativa às propostas sobre a difamação das religiões
Assuntos inquietantes Os especialistas estão de acordo com certos objetivos de muitas dessas propostas para prevenir e descriminação e a violência baseadas em motivos religiosos. Contudo, os métodos que preconizam são inquietantes por inúmeras razões e vão, provavelmente, exacerbar as tensões entre as religiões, na sociedade e em todo o mundo em vez de as apaziguar. Os especialistas receiam que as medidas propostas para limitar a difamação das religiões: 1. invadam um direito religioso essencial: o de avaliar, comparar e mudar as práticas e convicções religiosas. Este direito é fundamental para elaborar uma escolha de consciência livre e clara em matéria de crença e de religião. Tais restrições arriscam-se a limitar, não apenas o trabalho de sensibilização e de difusão efetuado pelos média sobre as questões religiosas, mas também os conhecimentos no domínio religioso assim como o ensino das diferentes filosofias religiosas em confronto ou o debate leal sobre o assunto; 2. invadam a liberdade de expressão e de palavra. Regulamentar os discursos para além do atual Direito Internacional relativo aos direitos do Homem será arriscado, na melhor das hipóteses, ou na maioria dos casos, tem o efeito contrário ao objetivo pretendido. As iniciativas para prevenir a difamação das religiões correm o risco de impedir certas tradições religiosas de usarem as suas próprias escrituras santas ou outros textos sagrados. Segundo os especialistas, o direito de ter uma religião e uma crença, e o direito à liberdade de expressão, estão intimamente ligados. Eles estão de acordo para dizer que “o direito à liberdade de religião ou de crença, tal como está consagrado pelas normas jurídicas internacionais competentes, não incluem o direito de ter uma religião, ou uma crença, que esteja ao abrigo de crítica ou do ridículo”4; 3. possam ser utilizadas pelos grupos dominantes para reprimir os direitos dos indivíduos e dos grupos vulneráveis. Os grupos que dominam nas sociedades têm, em geral, mais acesso aos tribunais e organismos de Estado encarregues de aplicar as leis e têm mais influência sobre eles. Os seus interesses são, muitas vezes, melhor representados, assim como os grupos menos poderosos dificilmente têm acesso à justiça e chegam mesmo a recear fazer valer os seus direitos. Tais leis podem ser particularmente intolerantes para com as religiões locais, ou indígenas, ou ainda para com as crenças ou as novas convicções introduzidas; 4. contenham atentados aos direitos de todos os grupos religiosos reforçando o poder de ingerência do Estado nos assuntos religiosos. Acontece, frequentemente, que os Estados utilizam as iniciativas contra a difamação das religiões, para controlar, gerir ou marginalizar um grupo religioso, por vezes todos. Estas leis podem ser, para os governantes, uma porta aberta para a exploração dos grupos religiosos com fins políticos; 109
Declaração relativa às propostas sobre a difamação das religiões
5. sejam demasiado vagas e com falta de normas aplicáveis. Os especialistas sublinham a ausência de uma definição da difamação das religiões aceitável por todos ao nível internacional. Por outro lado, receiam que não importa que a definição seja vaga, muito subjetiva, sujeita a diversas interpretações e aplicações. Ela levará muito frequentemente os Estados a aplicarem essas leis de maneira arbitrária e a favorecer as religiões dominantes. Recomendações O grupo de especialistas da IRLA formula as seguintes recomendações: 1. Convém rejeitar os projetos de leis relativas à difamação das religiões ou conceitos semelhantes. Os especialistas creem que as leis e as normas existentes em Direito Regional, Nacional e Internacional constituem uma proteção suficiente contra os discursos incitando à descriminação e à violência. 2. Onde as leis relativas à difamação das religiões já foram adotadas, é necessário vigiar de perto a sua aplicação para compreender melhor o seu impacto, os problemas encontrados na sua aplicação, o seu poder de dissuasão face à violência e à descriminação, e as eventuais consequências contraproducentes. 3. As leis sobre o incitamento à violência ou à descriminação para com as religiões e as crenças devem conter normas concretas e mensuráveis. Entre outros, devem garantir a proteção de todos os grupos religiosos e permanecer neutras para com todas as religiões e convicções, quer ao nível dos textos, quer da sua aplicação. 4. As Nações Unidas devem continuar a encorajar o diálogo neste domínio com o maior número possível de parceiros, entre os quais, representantes dos Estados, das organizações religiosas, de organizações não-governamentais e qualquer outra parte interessada. Seria necessário aplicar metodologias específicas, a fim de atenuar as diferenças culturais sobre as insensibilidades e os desacordos religiosos. 5. Os responsáveis governamentais, educativos e administrativos, os proprietários dos média, os chefes religiosos e outros dirigentes devem promover e encorajar, através da educação e por outros meios, a compreensão, a tolerância, o respeito e a amizade. Devem transmitir uma mensagem de responsabilidade ética lembrando a todos que nem tudo o que legalmente pode ser dito, deve ser necessariamente dito. Somos da mesma opinião que a Relatora Especial sobre a liberdade de religião ou de crença: é necessário “cada vez mais dedicarmo-nos a criar um ambiente tolerante, sem exclusão, no qual todas as religiões e todas as crenças possam ser praticadas ao abrigo da descriminação e da estigmatização, nos limites do razoável. Não é impedindo as ideias sobre as religiões de se exprimirem que a situação melhorará”5. 110
Declaração relativa às propostas sobre a difamação das religiões * Declaração adotada a 3 de setembro de 2009. Por ocasião do encontro de especialistas da, International Religious Liberty Association, que se realizou em Silver Spring, MD/ Washington, DC Notas: 1. Neste artigo, a expressão “difamação religiosa” refere-se a propostas – como as que têm sido apoiadas nas resoluções da ONU destes últimos anos – visando proteger as crenças religiosas, os escritos, os símbolos e os guias espirituais e a suscetibilidade dos crentes. Não se refere às leis contra a difamação em geral, que protegem a reputação das pessoas e das instituições, religiosas ou não, contra as declarações mentirosas e manifestamente prejudiciais. 2. Ver Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, artigos 18, 19 e 29. 3. A questão da difamação das religiões foi submetida, pela primeira vez, à Comissão dos Direitos do Homem da ONU num projeto de resolução apresentado pelo Paquistão em 1999 em nome da Organização da Conferência Islâmica. Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), Comissão dos Direitos do Homem. Projeto de resolução: Racismo, descriminação racial, xenofobia e todas as formas de descriminação, Doc. N.U. E/ CN.4/1999/L.40 (20 de abril de 1999). Resoluções semelhantes têm sido adotadas cada ano pela Comissão dos Direitos do Homem de 1999 a 2005. Comissão dos Direitos do Homem, Res. 2000/84 de 26 de abril 2000; 2001/4 de 18 de abril de 2001; 2002/9 de 15 de abril de 2002; 2003/4 de 14 de abril de 2003; 2004/6 de 13 de abril de 2004; 2005/3 de 12 de abril de 2005. Depois, foram adotadas pelo Conselho dos Direitos do Homem resoluções sobre este assunto. HRC Res. 4/9 de 30 de março de 2007; HRC Res. 7/19 de 27 de março de 2008. Depois em 2005, A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou resoluções similares. G.A. Res. 60/150 de 16 de dezembro de 2005; G.A. Res. 61/164 de 19 de dezembro de 2006; G.A. Res. 62/154 de 18 de dezembro de 2007; G.A. Res. 63/171 de 18 de dezembro de 2008. 4. Relatório conjunto da Srª Asma Jahangir, Relatora Especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, e de Doudou Diène, Relator Especial sobre as formas contemporâneas de racismo, de discriminação racial, de xenofobia e da intolerância que lhe está associada, Doc. N.U. A/HRC/2/3 (20 Setembro de 2006), par. 36. 5. Id., par. 65.
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Declaração de Pincípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária de cada individuo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da descriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles. 112