Na entrega do Prémio “Consciência e Liberdade 2013” Começo por agradecer à Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa - responsável pela iniciativa - e ao júri - representantes da AIDLR, da Comissão da Liberdade Religiosa e do curso de Ciência das Religiões da ULHT. Agradeço aos outros candidatos, pela participação - valorizaram a iniciativa e o prémio atribuído -, mas, acima de tudo, pela ousadia da própria participação. Para quem tem de (con)viver diariamente com o preconceito sobre o tratamento mediático do fenómeno religioso, é um revigorante perceber que o assunto resiste como objecto de curiosidade intelectual por parte da academia e de jornalistas, numa das suas vertentes mais importantes que é a da investigação científica. Agradeço aos “mestres” que tive e tenho a felicidade de encontrar no meu caminho. Na universidade, os meus antigos professores. Cumprimento todos de forma afectiva, na pessoa do professor Paulo Mendes Pinto, director do curso de Ciência das Religiões da ULHT. Mas permitam-me, já que me é dada esta ocasião, homenagear um deles, que sabiamente navega pelo universo do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, da Bíblia e da exegese, do grego e da cultura clássica: o professor Dimas de Almeida. Da sua elevada estatura e honestidade intelectuais, há outros, que igualmente inspiraram mais do que uma geração, como Bento Domingues ou Joaquim Carreira das Neves, para referir apenas dois dos, felizmente, vários exemplos. Agradeço aos “mestres” de profissão que se dedicam a este tema. “Camaradas” de trabalho, como habitualmente se diz entre jornalistas, os mais velhos pelo menos! Alguns também aqui estão. Lutam diariamente pela dignificação do fenómeno religioso como matéria jornalística - e não apenas “mediatizável” -, com o tratamento adequado, dentro dos códigos e da ética jornalística, com o devido distanciamento crítico, como devem ser tratados todos os assuntos que compõem a agenda da actualidade. Um agradecimento sentido à família. Na medida em que o tempo dedicado ao trabalho de pesquisa, investigação, estudo e reflexão, é tempo retirado à família. E nem sempre nos lembramos deste “pequeno grande” pormenor. Sem o auxílio lá em casa, seria muito mais difícil senão mesmo impossível… Um agradecimento também a todos os que se cruzam e cruzaram comigo ao longo da vida. Os amigos e os desconhecidos. Somos o que dizemos e fazemos, o que pensamos e calamos, mas somos sobretudo um repositório de experiências partilhadas, de 1
relações, inegáveis porque formatam. Formam e formatam. Evidentes, ou quase despercebidas, as relações que vamos construindo e destruindo, no dia-a-dia de uma conversa de café ou numa entrevista de fundo, fazem-nos e moldam-nos. No pensamento e na acção. O que somos hoje, também o devemos a este feliz acaso das muitas relações de vida, de ser e de estar. Em contexto religioso diz-se que não há acasos. Os acasos são ocasião. Com mais ou menos fé, na vida vamos também experimentando isso. As redes sociais já me permitiram uma primeira reacção à atribuição deste prémio. Escrevi que me sinto honrado e feliz. Honrado pela natureza da iniciativa. Feliz por várias razões. Entre elas, o facto de o premiado ser um jornalista - da televisão, esse “reino” onde, pela sua própria natureza, domina a banalidade e a superficialidade. É, pelo menos, a ideia que muita gente tem… A minha esperança é que este momento sirva para reforçar a dignidade com que o fenómeno religioso deve ser tratado na comunicação social. Merece ter gente preocupada com a especialização e o aprofundamento, o conhecimento e a actualização, como acontece noutras áreas. Não apenas para a tão necessária e difícil descodificação das linguagens e dos contextos, mas para o seu real enquadramento na dimensão humana. De facto, alguns acontecimentos só ganham relevância com ampliação mediática. Mas há também quem aproveite a lógica da comunicação global para dar a determinado acontecimento a relevância que, na realidade, não tem. Foram os casos das “caricaturas” de Maomé em 2005 publicadas num jornal dinamarquês e replicadas por outras publicações, ou de um excerto do discurso do papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona, um ano depois. Dois exemplos que refiro no trabalho agora premiado. Os muçulmanos na Europa estão entre um indisfarçado preconceito nas ruas e o radicalismo contagioso que persiste nas comunidades. Por um lado são pressionados a revelar lealdade para com a cultura ocidental, provando que a religião islâmica é pacífica. Por outro, são vítimas da incompreensão e dos estereótipos que alimentam os radicais de uma tradição bélica e hegemónica. O problema tem uma caracterização cultural, com uma “confrontação” entre tradições e comportamentos também de influência religiosa. 2
Multiplicam-se as vozes que sustentam a tese de uma islamização em curso, resultado de uma atitude política passiva por parte da Europa. Ao não o enfrentarem com um debate sério e medidas concretas, os poderes públicos e políticos abrem espaço a medos desnecessários e manipuláveis. A pressão sobre as democracias é cada vez maior, agravada por uma recessão económica. Definitivamente, a Europa anda assustada. E o binómio imigração/religião tem sido manipulável. Perigosamente manipulável. Por outro lado, há cada vez mais sinais de uma rejeição do património religioso que constitui a memória da Europa, excluindo a simbologia religiosa do espaço público e, por consequência, remetendo-a para o privado. Estamos diante de novas formas de fundamentalismo anti-religioso, sob o pretexto de que a religião é motivo e fonte de discórdias, sem se admitir o potencial espiritual, relacional e comunitário das plataformas religiosas. Alguns episódios são também reveladores de um contexto menos tolerante para com as diferenças religiosas, em nome de uma certa uniformização cultural e legal. O caso recente, em Portugal, de uma magistrada do ministério público impedida de cumprir os seus preceitos religiosos a um determinado dia da semana, como determina a sua fé, demonstrará como a democracia tem ainda um percurso a fazer no campo da liberdade religiosa. Implica, no mínimo, uma reflexão. Política, também. Afinal, é matéria de consciência. As relações, por vezes difíceis, entre os protagonistas religiosos e os media também não ajudam. Este tempo testemunha as primeiras gerações na Europa sem referências culturais religiosas, com a maioria dos comunicadores impreparados para compreender e descodificar o fenómeno religioso. E os protagonistas religiosos não conseguem – não terão como –, sintonizar-se com a assertividade e ultra-sintetização da linguagem mediática, recorrendo, muitas vezes, a clichés simplificados e pouco esclarecedores da complexidade religiosa. Sendo o fenómeno religioso – entenda-se aqui num contexto alargado de fé, devoção e espiritualidade –, parte integrante e inseparável da identidade colectiva e individual, deixa marcas nas estruturas, formas e conteúdos de relação e pertença. Não só para os crentes, mas para o todo cultural que não pode ler-se sem esta dimensão - chamemos3
lhe religiosa -, co-construtora e co-responsável pelos códigos de compreensão, sobretudo éticos, que nos trouxeram até aqui. A religião exige uma abordagem científica. Como sugere o professor Paulo Mendes Pinto, “toda a identidade e reconhecimento identitário passam pelo religioso”. Na verdade, o cientista das religiões pode contribuir para o diálogo racional e multidisciplinar com e entre religiões ou sistemas religiosos. Olhemos para este tempo, com o devido distanciamento crítico. A perspectiva religiosa exclusivista deu lugar à liberdade de pensamento, à autonomia de abordagens, ao sentido do “indivíduo” como nova conquista que reorganiza e reconstrói estruturas - das comunidades mais vastas à célula das relações familiares -, enfraquecendo porventura a influência que outrora exerciam as tradições religiosas, na constituição de identidades e laços sociais. Sem o amortecedor social das estruturas religiosas convencionais, que outrora foram tão úteis em tempos de graves crises, há que redescobrir plataformas de encontro, partilha e confiança. Este contexto abre um vasto território de possíveis encontros e desencontros, que tem de juntar a “fé religiosa” com as novas formas de fé ou a ausência desta. Um agnóstico ou um ateu podem acompanhar os crentes na busca da Paz, seja ela Verdade ou desejada Harmonia social. É uma Procura partilhada, na qual podem participar com convicção. O homem racional não tem de excluir a fé dos homens. O terceiro encontro de Assis, em Outubro de 2011, ganhou expressão inédita. Pela primeira vez foram convidados ateus e agnósticos para o diálogo entre, e com, representantes de várias religiões. À margem do encontro, a filósofa e psicanalista Júlia Kristeva, uma das participantes, defendeu a cumplicidade entre o humanismo cristão e o iluminismo, para que o “humanismo possa desenvolver-se e refundar-se”. Já o filósofo mexicano Guillermo Hurtado admitiu que o diálogo entre crentes e não crentes neste momento de crise profunda pode abrir caminho a soluções comuns para problemas comuns. Há uma faceta ateísta mais agressiva e beligerante, mas há também ateus e agnósticos sensíveis à fé religiosa, às novas formas de fé e espiritualidade, com as quais é possível estabelecer diálogo. Em 2010, Bento XVI apelava em Lisboa aos “obreiros da cultura” para que dialogassem com os crentes. E esta é uma dinâmica pendular. O apelo a um diálogo sem 4
preconceitos com os crentes implica, em sentido contrário, crentes que sem preconceitos aceitem dialogar com o mundo da diferença e da indiferença, criando pontes e oportunidades. Só depois de longos anos de estudo sobre a sua própria religião – cristianismo –, Hans Kung encontrou os fundamentos teológicos para o que chama ethos mundial ou global, um “entendimento universal entre as religiões que deve ser ethos comum da humanidade, mas um ethos que não deverá substituir a religião – como às vezes se tem pensado” de forma errada. Todos reparamos que, em ambiente de encontro, as religiões sustentam a crítica à utilização da religião para fazer a guerra. Valoriza-se a paz e a justiça. No actual contexto global, os valores religiosos e espirituais apresentam-se como prioritários e realçam a inevitabilidade da liberdade religiosa na defesa do “bem comum”. Com o sofrimento e a injustiça no centro das reflexões, a promoção da paz e a defesa da “criação” como meta comum, as próprias estruturas religiosas podem reforçar uma ética culturalmente transversal, com consequências nos compromissos políticos e sociais na plataforma global. Mas para tal, há que assumir a prioridade de derrubar barreiras, atenuar o desconhecido que agudiza medos, quebrar mitos mediáticos e construir confiança. Numa palavra… diálogo. Estabelecer pontes de diálogo. Com crentes e não crentes, absorvidos pela universalidade de uma ética emancipada, que, não sendo um valor absoluto ou exclusivamente religioso, é absolutamente carente de diálogo, em liberdade, sem prejuízo da observação preventiva e da crítica construtiva que assegura a convivência entre a fé e a razão. Este é o percurso circular da reflexão: Da liberdade religiosa à urgência do diálogo que, por sua vez, garante a própria liberdade. Ouso, a terminar, nadar um pouco pelo arriscado mar da teologia cristã. Onde não me sinto muito à vontade, mas posso dar umas braçadas… Na literatura evangélica, os primeiros passos do seguimento de Jesus são marcados pela prevalência da incompreensão. Gente agarrada a conceitos e preconceitos, incapaz de entender a nova ideia. Entendiam que quem não era do grupo, era incapaz. Mas o “mestre” que os cativava, lê-se, vinha para concretizar o que outros tinham deturpado com a intolerância cega dos que se julgam “mestres do tempo e do templo”, 5
que ergueram muros e limitações, fechando portas. A teologia deduz que a todos redimiu com a sua morte. Afinal, vinha para todos. Podemos então deduzir que a fé não é exclusiva de uma casta ou de uma elite. A fé pode ser uma adesão, um encontro pessoal, uma contingência do próprio “ser”, um depósito de confiança capaz de construir resiliência e esperança, de delinear um código de compreensão comum a partir da experiência humana - dos limites da experiência humana - onde o homem… Procura! A propósito, fazem eco as palavras do Papa Francisco, há dias, quando, levado por um texto de Marcos, enalteceu a universalidade do “bem” como patamar paralelo ao contexto religioso. O “ponto de encontro”, como disse. A prática do “bem” como lugar onde crentes em Deus e ateus podem encontrar-se. Porque realizar boas obras não é um exclusivo dos cristãos. “É ateu? Faça o bem e lá nos encontramos!”, disse o Papa, com desconcertante simplicidade. O “bem”, não sendo propriedade religiosa, manifesta-se como opção construída no fermento da ética, alicerçada numa busca com matriz religiosa e filosófica, que na cultura judaico-cristã se transforma em dádiva do Alto, uma semente que germina na consciência humana. De facto, do “bem” mais pragmático e aristotélico ao “bem” mais transcendental e platónico, há todo um percurso de encontros possíveis. Gosto particularmente da ideia oriental, segundo a qual, mais do que um conflito entre o “bem” e o “mal”, permanecemos num contraste entre o “conhecimento” e a “ignorância”. A grelha de interpretação é variável. O que determina é a atitude e a disponibilidade. Se cada um acredita apenas no pouco que vai conhecendo, em pouco mais vai acreditar para além desse pouco fechado em si mesmo. Como disse o professor Mário Pinto numa conferência sobre Globalização, Cultura, Ciência e Religiões, organizada na Gulbenkian em 2003: “Se em pouco ou nada acreditar, para além do pouco que sabe por si mesmo, o homem não pode viver verdadeiramente, e não passará de uma pequena cortiça na superfície agitada das águas de um imenso e ignoto oceano”.
Joaquim Franco, 28/05/2013 6