tatear o invisivel ResidĂŞncia ArtĂstica Cazulo 2019
Artistas
Coordenação
Residência Cazulo, realizada na Casa Azul - Sede do Diretório Central dos Estudantes daUFMG (DCE-UFMG) . Rua Guajajaras 694, Centro, Belo Horizonte. 1º de Setembro a 1º de Novembro de 2019
Aidssaurus André da Matta Cíntia Alves Clara Pernambuco Dani Fonseca Júlia Lobato Madama Vitória Rudá Brígida Campbell
2º Andar
1º Andar
5
1. Rudá Até quando? Instalação
9
2. Instalação coletiva 3. Madama Vitória Antroponóia - Video performance Instalação Fragmentos de farinhas e cristais diversos embalados em saquinhos Ziploc.
4
4
3
1
2 entrada
4. Aidssaurus Me Visto de Mim Instalação Gatinhos Musculosos na internet Giz de cera de 1,99 5. Dani Fonseca Alar-se - Mural
6. Cíntia Alves Memória do tempo Desenho e instalação
escada
6
8 7
7. Clara Pernambuco As Rugas de Dona Assunta Quadrinho O reflexo Tinta para tecido sobre pano 8. Julia Lobato Transbordar Pinturas e intervenção na parede. 9. André Da Matta Anistia fotomanipulação Abolir o Abandono Bandeira Homens no centro da Praça Carbono sobre papel Debret
TATEAR O INVISIVEL
durante décadas, um espaço de debate crítico e de movimentação política.
Q
uando chegamos na Casa Azul, sede do Diretório Central dos Estudantes da ufmg, pouco se sabia sobre ela. É verdade que as edificações nem sempre são testemunhas confiáveis dos acontecimentos que nelas se passaram. Foi preciso tatear o invisível e adentrar uma camada densa que misturava relatos soltos, imaginação, cenas de filmes e alguns poucos documentos dispersos. Sabiase que a casa fez parte de uma constelação de atos de terrorismos de Estado, que violentou o país no período da ditadura. O governo militar reprimiu fortemente os movimentos estudantis da época e o porão da casa era então um lugar para se esconder, abrigar e se reunir. É sabido que seus dirigentes sofreram perseguições, prisões, torturas, mortes, exílios e desaparecimentos, alguns até hoje não esclarecidos. A casa protegeu os estudantes da violência do estado e também produziu,
Esta casa é também é um lugar utópico, um lugar que ao longo de seus mais de 80 anos, sempre abrigou utopias de transformação social, tentativas de se experimentar novas formas de se fazer política, e também de se sonhar e imaginar mundos possíveis. As paredes brancas da casa, com marcas de mãos, pés, ombros, solas, frases gravadas no solo e algumas latas de cerveja espalhadas, não nos contam a história como deveriam. Pelo contrário, borram ainda mais o significado do lugar que teve seus documentos saqueados em uma última onda de esquecimento e abandono. Trabalhar aqui foi intenso e interessante. Ao propor obras de arte que se relacionassem com o lugar, foi necessário olhar bastante a casa, com uma lupa, um microscópio, mas também, a um certo ponto, fechar os olhos e seguir a intuição para deixar que as imagens viessem aos poucos: lentas, rastejantes, pálidas, porosas e nubladas. Os artistas em residência tiveram que relacionar seus trabalhos em andamento
a uma pesquisa nova. O tempo era curto e o mergulho necessário. Tatear o Invisível foi mergulhar em um não-saber, mergulhar nas incertezas vivas no momento atual e tentar criar conexões entre o campo da arte e dos movimentos sociais. A casa que já abrigou por tantas vezes a imaginação de tantas gerações recebe agora uma série de propostas artísticas que podem tatear aquilo que ainda está invisível aos olhos mas que nos ensina a olhar, sentir e pensar o futuro.
Brígida Campbell
casa azul
entra pela vidraça da porta, com um tom de nostalgia, permeia esta sala com uma presença calorosa de conversas e debates vigorosos, de mentes e seres que vibram em alta frequência. Vibra a coragem, vibra o medo, vibra a alegria e vibra a força.
O azul lá de fora se infiltra aqui dentro, corre pelas beiradas das paredes, circula toda a sala e continua o seu fluxo pela casa, e vai, e volta, e segue. Por esta janela também vejo uma beirada de azul, mas não vejo mais o azul do céu. São tantas portas... passos ecoam por elas, quem poderia ser? Será um amigo? Embora pareça oca, os passos ecoam nesta casa. A luz que entra pela janela grande é fria e vem se esgueirando pelo corredor estreito entre esta casa e o prédio ao lado. Ela vem da rua, junto com os barulhos dos carros, dos sons publicitários, de uma obra em cantos vizinhos, dessa vida cotidiana que encaro quando saio às ruas. Mas aquela luz que
O Quarto da Esquina
Rachaduras, infiltrações E até mesmo pegadas Que nem consigo alcançar
Algumas estantes e armários Quase vazias São os únicos habitantes Do quarto da esquina Pode ser que por aqui tenha existido um clube Mas hoje só restam as marcas Metade do forro do teto já não existe mais O que deixa aparente alguma história de construção e reconstrução As paredes tem marcas
O rodapé azul Me lembra o nível do mar E mesmo vendo de cima De longe Parece que vou me afogar A história do quarto da esquina Parece um barco que se perdeu E já não consigo mais enxergar Mas nesse porto Tem muitos barcos E sempre outra história pra contar
A varanda esquecida
A casa tem três andares. É velha e suja. Inabitada e azulada, da varanda minúscula consigo ver quanto tempo se passou sem essa casa ser ocupada. A varanda exposta as sujeiras, fuligem, chuvas sol e vento, carrega uma encosta de limo e sujeiras acumuladas por tempos em seu batente. A varanda suja e que é usada de lixeira, permanece no seu formato original. O chão gasto deixa claro quantas narrativas passou-se por aqui. História essa que não existe mais. Se perdeu por negligência dos seus próprios donos: os estudantes. E mesmo assim, ela persiste – ou melhor, resiste, acumulando a sujeira, a poeira e os causos. Mais do que resistir, a varanda nos possibilita olhar além das paredes e janelas da casa, ela
está ali para criar essa zona de intercessão entre a rua e a casa, que é a velha da rua. Basta enxergar que essa varanda usada e esquecida, era o ponto expiatório da casa no passado. Do terceiro andar, onde a varanda existe, se vê a rua em movimento, o bom e o mal. Se observa a possibilidade de ter um controle sobre quem precede a sua chegada na casa. E não só disso, a varanda conta para mim, e para qualquer um que passa por ela, algo bem algo bem lúcido: é aqui onde as pessoas se reuniam para tomar sol, café e fumar cigarros enquanto tramavam um projeto de resistência estudantil.
O Esconderijo
Ei mãe, achei meu diário de quando tinha 8 anos! Vou enviar em anexo pra senhora algumas páginas dele é do dia que encontrei o esconderijo do papai!!! Tem um esconderijo lá em casa que é meu lugar favorito em todo o universo, vou te contar mas não conta pra mais ninguém, tá? Fica embaixo da escada que também é a minha escada favorita de todo o universo. Se é um lugar secreto como eu encontrei ele? Foi um dia que meu pai chegou em casa bastante desesperado de madrugada eu estava dormindo e fui ver o que tava acontecendo achei que a Aurora (minha gatinha) tinha aprontado de novo na cozinha, mas era o papai, vi ele entrando por um beco da escada e do nada ele sumiu! Mamãe me viu
e logo me mandou ir para o quarto, mas ouvi de longe ela dizendo pra alguns policiais que papai nem se quer em casa estava e que tinha ido tirar umas férias lá na Alemanha e que ela não o via desde a faculdade há muitos e muitos anos. Papai sempre fazia truques de mágica e dessa vez eu descobri o segredo que ele tinha pra desaparecer e sempre que mamãe fica brava comigo porque eu não troquei a areia da Aurora eu corro para lá.
O porao
Um espaรงo escondido, que tanto tentaram Fazer esquecer Que um dia escondeu corpos Em movimento Em luta Um espaรงo onde antes se depositavam Esperanรงas Esconde-se hoje Um depรณsito Esquecido.
conversa silenciosa I
O
processo já vem de antes, não sei se tem alguma influência da casa, do seu espaço ou da sua história. Na real acho que não tem. Meu processo está totalmente ligado ao meu pensamento, tanto o que penso quanto a forma de pensar, mas acho que não tenho pensado na casa. Os desenhos estão surgindo agora sem muito esforço de pensamento na verdade. São os símbolos que elegi para traduzir alguns sentimentos, estados mentais ou rebuliços interiores, que agora talvez tenham tomado de mim o controle estão querendo aparecer e figurar por vontade própria. Eles tem seu próprio fluxo. Talvez sejam mesmo meus pensamentos. Uma ressonância? O processo nem sempre é consciente.
O fato de estar presente na casa já traz a própria casa para o trabalho mesmo que indiretamente. E estar presente na cada cria uma nova experiência para o lugar, é habitando que se ressignifica o espaço. Não acho que deva ser preciso procurar (necessariamente) histórias da casa, mas principalmente manifestar-se dentro dela e deixar que ela nos acolha. Como estranhos que acabamos de conhecer, aos poucos adicionamos uns aos outros nas nossas vivências. Concordo que o processo nem sempre é consciente. Gosto de confiar no gesto da mão, ela talvez seja o melhor, ou o único, veículo pra inconsciência se manifestar. Habitar pra mim é sobrepor, e existem mil maneiras de se sobrepor, todas são válidas. Pode sobrepor uma cor sólida sobre um emaranhado de fios delicados, ou pode sobrepor os mesmos fios com outros fios. Pode adicionar, subtrair, multiplicar e dividir. Sobrepor essa casa é um desafio que aceitamos, agora vamos descobrir como.
Aidssaurus
Me Visto de Mim — Instalação Gatinhos Musculosos na internet — Giz de cera de 1,99
Uma questão que surgiu no processo Eu não sei onde me encaixar como pessoa nesse mundo e eu não tenho um lugar para encaixar minha produção artística, talvez eu só exista na internet e talvez minha arte só exista na internet também. Pensei muito nisso. Muito. Muito. Muito mesmo. Me senti bem desconfortável durante todo o processo de produção em residência e voltei a querer me transformar numa formiguinha e passear pela casa. Encontrei o lugar onde poderia encaixar.
Conexão com a Casa Como em qualquer lugar que eu me encontre com outras pessoas meu sentimento é sempre o mesmo: querer me esconder. Durante algumas reuniões minha vontade era apenas de desvendar o caminho que as rachaduras das paredes poderiam me levar, queria me transformar numa formiguinha, miúda e passear pela casa e escorregar pelo corrimão daquela escada estreita.
Uma resposta Voltei para um limbo existencial artístico e não parava de pensar ‘’Não existo e minha produção artística é um lixo e eu sou um lixo um chorumão bem fedorento’’ porém fui para o lugar da casa onde me chamou mais a atenção desde a primeira vez que entrei na Casa Azul,
um espacinho embaixo da escada. Sentei e pensei que ali que seria meu esconderijo, ali era um cantinho que iria acolher minha produção para a exposição.
O que estava invisível? O dicionário do Google diz esconderijo Aprenda a pronunciar substantivo masculino 1. lugar onde alguém se esconde ou esconde algo; escondedouro. Talvez esse meu desconforto de sentir parte de algo ou lugar tenha essa barreira que eu sempre terei que encontrar esconderijos para se mostrar em existência, assim como a casa azul, cheia de histórias escondidas que poucos sabem a respeito mas quando se encontra é uma imersão a um outro mundo desconhecido porém seguro, como um casulo.
Comentário
A
Rosana é uma artista peculiar. Extremamente bem vestida, é visível a dedicação que ela investe na criação da própria imagem. E também na imagem do próprio trabalho. Sua obra ficou num quartinho embaixo da escada. Coube como uma luva. Ele revelou uma potência instalativa incrível, me senti num Casulo. Meu corpo se sentiu bem vindo e acolhido. Mas, para além da imagem do trabalho final, montado e exibido, a imagem que guardo comigo é de suas mãos costurando pompons nas calcinhas. Que objeto mais peculiar! Ao mesmo tempo em que parte de um lúdico quase inocente é também levemente erótico. Me parece que a produção dela tensiona a fronteira tênue entre o imaginário infantil e o adulto. É disruptivo.Quase uma revisitação comentada desse universo lúdico.
Rudá Adur
andre da matta
Anistia — Fotomanipulação Abolir o Abandono — Bandeira Homens no centro da Praça — Carbono sobre papel Debret
espaço pra cabeça pensar, espaço pra esticar os braços.
quando fizemos a residência. Há um poder nessa sobrevivência através da imagem.
Uma questão que surgiu no processo Uma resposta
Conexão com a Casa Diz respeito a maneira como ele existe. na casa azul, por exemplo, começa pelo ambiente da rua. O centro, movimento contínuo, ruído constante, isso já influencia no ritmo cardíaco. Dentro, as superfícies são escrita, as marcas do desgaste do tempo na parede, a sujeira acumulada em certos pontos indicam como aquele espaço foi ocupado. Ao longo desse processo de olhar, reconhecer e especular surgem ideias ficcionais sobre o espaço, começo a me conectar por ele por projeção. Sinto como a luz habita aquele lugar, como ela percorre os cômodos, quando as janelas ficam entreabertas, como ela inunda parcialmente um lugar. Me conecto ao perceber. Tem algo haver com o elemento diante do todo, o meu corpo no espaço, o pé direito da casa azul é grande, parece que dá
Como a memória coletiva, que às vezes chamamos de história, é construída a partir de pequenos fragmentos, relatos individuais. Escutei, durante a estadia na casa azul, diferentes depoimentos sobre os acontecimentos que lá se passaram. Em 1978, ocorreu um atentado a bomba na casa. Sobre esse evento, muito pouco documentado, parecem existir muitos pontos de vista. A impossibilidade de chegar em uma verdade é uma questão que surgiu no processo, talvez. A verdade como um organismo fluido entre coerência e honestidade, nunca factual. O fato é que a bomba estorou, a verdade do porque ela estorou e como isso aconteceu agrupa muitas possibilidades. O espaço da lembrança é espaço de construção de imagem, não conversei com ninguém que estava na casa na década de 70, mas essa imagem, da explosão, do atentado, sobreviveu até 2019,
Gesto crítico. Confiar nas mãos. O pensamento crítico é um agente importante da minha criação também, no trabalho Anistia, que realizei na casa azul, foi uma das primeiras vezes que esse pensamento crítico surgiu antes da imagem física. Confiar nas mãos antes e depois. Durante a experimentação com os materiais e as sequenciadas tentativas de construir imagem, tarefa que permeia 12 horas do meu dia, me deparei com algumas faíscas. Estava trabalhando com imagens de arquivo público, provocando intervenções, pinturas, rasuras além de outros gestos compositivos. Nessa experiência criativa vi surgirem situações de apagamento, de sobreposição de camadas de branco. Essa foi a parte que o material me apresentou, o sentido através dele. Guardei essa informação. Quando na residência
estava pesquisando sobre a casa, logo sobre a ditadura militar e as suas consequências cheguei ao tema da anistia, ponto e vírgula do regime. Que lida precisamente sobre o tema do esquecimento, apagamento e do perdão. Foi um casamento, manual e mental. O que estava invisível? A verdade é invisível eu acho, portanto ela haveria de estar invísvel na residência. Comentário Azul do carbono, e da casa. Os cartazes de manifestações, todos em branco, como as paredes. O apagamento da história da casa, e do país. Cada gota é invisível, a casa também é so uma gota, mas faz parte de um oceano, e esse trabalho me fez perceber que estávamos em uma gota, mas submersos. A história esses cartazes apagados, o que eles contavam?
Júlia Lobato
conversa silenciosa iI
dos cantos de cada cômodo. A residência artística foi com certeza um exercício de andar no escuro.
A
experiência na Casa Azul não foi fácil, afinal de contas estávamos todos tateando o invisível, mas como me identifiquei com esse processo, sendo o mesmo que faço com o meu trabalho, ela acabou me fortalecendo de certa forma, como se fosse uma espécie de treinamento. Também senti que criar um laço afetivo com o espaço era vital para que algo acontecesse, algo se mostrasse. O que mais se revelou nesse processo, acho, acabou sendo justamente o invisível. Ele era o importante de ser não-visto, e, sendo não-visto, escutado. Essa ausência foi o ponto de partida para todos nós. O invisível pode significar muito. É essêncial para os olhos. Apesar de não vermos nós sentimos. Não é um vazio, um nada. É algo imenso presente na aura das paredes e
O invisível não pode ser visto, mas existe. A história que não é contada, as paredes, e quando tá escuro o que resta é tatear o invisível, a história, a memória, o processo, o não-visto, o sentido, a aura, a residência, o infinito, o todo, o tudo, o espaço, a existência, o nada, a vida, a morte, o fim do mundo, a falta de estrutura, a abundante falta, a ausência, a impermeável transparência, a divina recorrência, o infinito do céu azul finito, o oceano que não tem fim mas acaba, a energia espiritual e elétrica, o ser humano tosco, o ser humano maravilhoso.
cintia alves
Memória do tempo — Desenho e instalação
Conexão com a Casa Acredito que minha conexão com a casa foi se dando aos poucos, como se ela me permitisse conhecer cada vez mais o seu interior, e eu a permitisse também entrar no meu. Quando ficava sozinha, sentia como seu fosse uma extensão do meu quarto, e pude quase que meditar no seu espaço, se não fossem os ruídos nada tímidos do centro de Belo Horizonte.
Uma questão que surgiu no processo Acho que no início foi simplesmente como fazer as coisas funcionarem. A gente tinha uma tela em branco, mas era um espaço, e tinha as suas restrições, e eu queria fazer algo para preencher ele, não pensando nos meus trabalhos, mas nas pessoas e nas coisas que ocupam uma casa. Achei que ocupá-lo com meu corpo e meus processos seria o que estava ao meu alcance no momento. Então teve a questão de entender o espaço, pesquisar sua história e o que atravessou aquelas paredes. Queria encontrar um rastro para que eu mesma pudesse atravessá-las também.
Uma resposta Talvez as buscas que comentei, de ocupar e de pesquisar o espaço, tenham no final sido resposta, porque refletem no meu trabalho. Minha pesquisa se desdobrou naquele espaço com seus rastros, e acabou se tornando outra
coisa sendo ela mesma. Acho que a resposta foi esse desdobramento. Ela, que acho lenta e tímida, irrompeu num impulso produtivo e acabou ocupando o espaço e preenchendo aqueles meus desejos/buscas iniciais.
O que estava invisível?
A história, o espaço, a própria casa. Mesmo que ela tenha cor, pessoas passavam por ela e nem notavam sua presença. Um dia, quando eu entrava pelo portão, um moço me parou e perguntou se aquela era a tal da Casa Azul, e eu disse que era. Ele então me contou que sempre passava ali em frente, mas só naquele dia percebeu. Era o dia do encerramento da residência, e então pensei que o nome da exposição era mesmo perfeito, porque além de metafórico, chegava a ser literal: buscamos o invisível da casa para nos conectarmos a ela, mas também tocamos o invisível todos os dias que estivemos nela.
Comentário Um tecido branco, quase transparente, levíssimo, tenta escapar do espaço interno do cômodo. o arquivo, móvel pesado, estava repleto de leveza também. As imagens, a princípo fotográficas, revelavam com a proximidade, outras superfícies. O gesto que Cíntia promove, de aproximar, é bonito. Penso sobre as paisagens que ela provoca se essa leveza é um gesto que ela recorre, ou se é uma qualidade que escorre.
André da Matta
clara pernambuco
As Rugas de Dona Assunta — Quadrinho O Reflexo — Tinta para tecido sobre pano
Uma questão que surgiu no processo Como conectar o que está fora ao que está dentro? Como fazer caber, fazer encaixar, fazer conectar um cenário novo a uma história que começou tão dentro, e tão longe? O espaço, me repetiram, já era meu, assim como era de outros, mas será que eu também já era dele?
Conexão com a Casa O espaço, antigo, misterioso, inescrutável, suscita perguntas sem oferecer as respostas. Essas, quando vinham, vinham de terceiros, de pesquisas. Suas paredes não traíam seu passado mais distante, apenas sugeriam as idas e vindas do que só recentemente deixou de ser o presente. Ele foi, no início, a casa de alguns, depois de muitos. Foi a casa de ninguém, para ser depois a casa de ainda outros. Hoje ela é, me disseram, a nossa casa. Será que pode mesmo ser minha?
Uma resposta Eu era, sim, da casa, tanto quanto a casa era minha. O que demorou para que eu notasse, foi que isso não precisava transparecer no meu trabalho para ser verdade. O que está fora influencia o que está dentro, que eu externava no fazer artístico. Essa passagem
entre o que está dentro e o que está fora, dentro, e fora de novo muitas vezes transforma para além do reconhecimento, no entanto, aquilo que entrou. O que estava invisível? Invisível. A história do espaço, que o azul esconde tão bem escondido, tão sutil quanto as marcas da casa naquilo que ela trouxe para mim, e que de mim foi para o papel. Tatear esse invisível é encontrar respostas pelos silêncios, pelo que não é dito, pelo que não se faz evidente.
Comentário Clara posicionou suas páginas num cantinho reservado, quase que escondido, que acabou por ser aconchegante, ainda mais com a luz amarela que vinha do banheiro. Tudo isso fazia daquele espaço um lugar para um ou dois, que deixava a gente mais próximo do quadrinho na parede, como que se estivesse com um em mãos. Depois de estar íntimo de Dona Assunta, de ter visto mil e uma coisas que diziam (de) suas rugas, você se depara com seu rosto no banheiro, e é como se fosse um convite para você dar o seu palpite sobre o que vê nas rugas. Mas ali de frente com Dona Assunta, você também está de frente com o que deveria ser um espelho, e essa alteridade faz pensar que aquilo que você vê no outro pode estar em você.
Cíntia Alves
conversa silenciosa iiI
pode acontecer em qualquer lugar do mundo, inclusive no livro. Nada é necessário, o que importa é se há vontade. Levar o conteúdo do livro para o espaço é possível, porém perde-se o meio, a forma da mensagem transforma-se.
O
nde se encontram as narrativas? Um trabalho que se conclui como um livro, história narrada a partir de imagens, texto ou ambos, tem seu espaço onde? Será que é mesmo necessário trazer o livro para o espaço? Eu sempre achei que o livro ocupasse espaço, e as narrativas sempre existeram em algum lugar, e passam a existir na nossa cabeça. Não importa muito onde, mas a narrativa sempre ocupa espaço né? Nem que seja no tempo, que, também é espaço. O livro é o próprio espaço. O objeto que chamamos de livro é um dispositivo de exposição, de texto e imagem, a princípio. As dobras, a capa e outros elementos constitutivos do livro, servem para criar um espaço. Contudo as narrativas se encontram na leitura, que
Se o livro é espaço, ele pode ser um objeto com páginas, uma sala, uma mesa, uma pessoa, tudo que ocupa e se delimita , desde que ele nos conte alguma coisa, porque livro gosta de conversar. A narrativa é essa conversa. Os únicos espaços que realmente importam para que aconteça a história são o autor e o leitor. O livro, em qualquer de suas formas, é, mais do que lugar, um veículo, que contém e carrega a história, até que ela possa ser solta.
DANI FONSECA
Alar-se — Mural
Conexão com a Casa A casa foi um desvio do caminho dos livros que estava acostumada a seguir. Um lugar carregado de fantasmas de histórias desconhecidas. Ao mesmo tempo cheia e vazia. No começo a casa era como um estranho que olha nos nossos olhos e ambos desviamos o olhar. Mas aos poucos o lugar ficou aconchegante, virou local de trabalho, produção e convivência. Isso se refletiu no trabalho do mural dos pinguins, houveram esses dois momentos, de início o uso da fita, mais superficial, e por fim o uso da tinta como algo permanente. A conexão construída com a casa então permitiu a incorporação das rachaduras e texturas das paredes no trabalho final. Agora posso dizer que faço parte da história da casa, de uma forma delicada, ainda estou presente.
Uma questão que surgiu no processo
Uma resposta
Surgiu o desafio de romper o cotidiano, ao mesmo tempo a possibilidade de caminhar por outros lugares. Sobre a mudança de ambiente fui um pouco resistente, mas ao final não tenho arrependimentos. Outra questão que apareceu foi sobre qual caminho meu trabalho seguiria durante a residência. Considerando meu gosto pela criação de personagens, e suas histórias no papel, as narrativas dos pinguins já tinham seu próprio espaço. Agora o espaço era a casa, e não fazia sentido para mim apenas trazer um livro para parede. A ideia aqui seria produzir um trabalho na casa que poderia ser posteriormente levado ao livro como registro e não como suporte. Como adaptar o trabalho a algo que poderia fazer parte da casa. A casa o aceitaria em suas paredes? No último minuto “Alar-se” se estabeleceu. O mergulho e o vôo estarão com a casa o máximo do tempo que o desgaste da cor ou a estrutura dos muros permitirem.
O pinguim disse “Aqui estou, te ofereceço um pouco mais de alegria, leveza e vida. Seremos suporte à sua resistência. Decidimos ficar.” E se eu pudesse ouvir a casa, ela responderia “Fique a vontade, eu acolho sua estadia”.
O que estava invisível? A força. Como um campo magnético. Não era visível, mas existia. Sinceramente eu não sei nem uma ponta de icebergue do que aconteceu naquela casa, muitos documentos perdidos, muitas gerações diversas passando por lá, ouvi apenas alguns relatos... Dá para saber que existe algo que a casa carrega. Mesmo não conhecendo tudo que passou pelo lugar, podemos sentir sua presença nas paredes.
Comentário As linhas leves, fluidas e delicadas, não traem o método ou a precisão com que foram aplicadas, e evidenciam só o cuidado e o carinho com que foram criadas. A dureza e a dificuldade do material, e o desafio da escala, do lugar, se tornam invisíveis quando contemplamos o resultado final, feito de leveza. O mergulho foi feito, imagino, com receio, mas sem hesitação. O novo se apresenta, muitas vezes, como o vazio. Quando enfrentado, o resultado desse mergulho é o vôo.
Clara Pernambuco
JULIA LOBATO
Transbordar — Pinturas e intervenção na parede
Conexão com a Casa Dois meses de trabalho. Um mês de organização. Correria. Minha primeira residência, ou segunda. A primeira foi minha casa, mas essa não era azul. Uma residência que dividi com 8 colegas, e mais alguns do DCE , e mais muitos, dos muitos anos de história que essa casa tem. Eu não conhecia a historia dessa casa azul.
Uma questão que surgiu no processo Sábado. Várias coisas a se fazer, chego em casa, a casa azul, mas alguma coisa está estranha. As coisas que estavam ali antes não estão mais, e algumas que não estavam, agora estão. Tudo aberto, cadeiras fora dos lugares, um clima diferente. Arrumo tudo, saio novamente, E volto. Muita gritaria, e tudo aberto outra vez. Subo as escadas. Encontro outros colegas. Comprimento, eles me olham estranho. Vou pro ateliê, e meu lugar já não estava mais ali, a cadeira que coloquei... Alguns segundos depois aparece uma figura feminina, que dizia que ali, hoje, eu não poderia ficar. Me enganei, pois achei que era de todos, mas ali não é mais meu lar. Uma resposta Dois meses vivendo em uma casa com tanta história que desconheço. Essa casa já viveu muito mais meses do que eu vivi ali e até mais meses do eu existi. Queria ter me dado bem com esse azul de cara, mas ele é profundo,
e desconhecido, como todo mar... Minha contribuição pra essa história talvez tenha sido só uma gota, mas com cada gota dessa que se formou esse mar.
O que estava invisível? A agua é incolor. Mas quando se junta, milhões de litros, um oceano inteiro, ela se torna azul. Eu nunca entendi muito bem porque isso acontece, mas é azul. Nosso planeta é azul. Casa Azul. Planeta. Planeta água. Oceanos. Submersos. Juntos formando o azul, que separo é invisível. Somos invisíveis. A história de cada gota se junta, se torna azul. Cada gota é invisível, a superfície, e se tento pegar, tatear, todo esse azul, não consigo enxergar.
Comentário Julia trabalha com quadrinhos, não de uma forma convencional. São literalmente quadros, quadros pequenos de pinturas sequenciais a óleo. Eles saem do suporte tradicional e as imagens ganham um novo espaço, onde possuem a liberdade de se relacionar diretamente com o lugar onde foram colocados. Como no caso da série da casa se afundando no azul, onde a cor do rodapé vira mar e cenário da narrativa. Cada série se constitui por três quadros, como em uma tirinha. As séries sempre nos instigam sobre o tempo e espaço de alguma forma, abordam a eterna metamorfose do mundo a partir de capturas delicadas do estar de cada coisa.
Dani Fonseca
MADAMA VITORIA
Antroponóia — Video performance Sem título — Instalação, fragmentos de farinhas e cristais diversos embalados em saquinhos Ziploc
Conexão com a Casa O que é se conectar? É ser empático. Mas se tratando da Casa Azul, se conectar com ela, sendo eu, uma estudante, e ela, o diretório central estudantil, me colocou a frente de questões sociais e identitárias. Começando pela diversidade de pessoas que habitam e fazer a casa viver e funcionar. Por segundo, a narrativa de resistência que a casa permeia. Esses dois pontos me fizeram refletir sobre demandas na minha pesquisa artística, principalmente pela ocorrência do meu tema central de investigação sobre a construção da identidade do indivíduo marginalizado na sociedade. Assim, ficou evidente para mim, o isolamento que os estudantes padecem ao
coletivo social de forma geral, essencialmente sendo reprimidos e dominados pela polícia – o que não é surpresa para ninguém. Existir, ou melhor, resistir, sendo estudante, as margens de uma sociedade, implica a ausência de direitos e liberdades (julgados como direitos básicos humanos) e obscurece a luta pela sobrevivência identitária dos sujeitos.
mais em declínio para as pessoas que vivem nas bordas, seja pela cor da pele, pelas ideologias, pela classe social e até mesmo pelas escolhas e autonomia que fazem com os próprios corpos, como o consumo de substâncias ilícitas ou lícitas.
Uma resposta Uma questão que surgiu no processo Uma questão que surgiu durante o processo de ocupação da Casa Azul como residência artística Cazulo, foi a equação: indivíduo visto como rebelde ou resistente às doutrinas sociais e como essa obstinação segrega a sua existência. Uma vez que o individuo se rebela às normas sociais, expressando o seu processo de individualização, ele está fadado a opressão e a violência da marginalização dessa mesma sociedade. Ao ponderar que vivemos em uma democracia, está claro que nessa “equação social”, a liberdade e os direitos estão cada vez
Uma das respostas que se manifestou durante o processo de ocupação da Casa Azul como residência artística, foi a possibilidade de retomar em mim as demandas da individualização humana, e desdobrar essa temática dentro de minha poética mediante de uma instalação artística. Me apoderei da típica compulsão (vício) do corpo social capitalista: o consumo inconsciente, e como essa questão afeta a vida das pessoas marginalizadas. Sujeitos esses que perdem suas vidas e liberdades para levar a uma sociedade dissimulada os deleites e prazeres, que por diversas vezes, são considerados
ilegais por essa mesma sociedade. Esse corpo social consumista, sustenta uma cadeia de eventos hipócritas. Como paradigma, na instalação desenvolvida para a residência artística Cazulo, foi utilizado sacos plásticos Ziploc encontrados no porão da Casa Azul, que datavam de 2011, isto é, apesar do descarte inconsciente de plástico ter sucedido há 8 anos, ainda resistiam intactos no sublime porão da Casa. Esses Ziplocs foram deslocados para a instalação, a fim de constituir um diálogo com o ideal de pureza – o pó branco, que a sociedade busca de forma copiosa, e condena aqueles que levam até ela esse deleite. Os sacos de Ziploc foram preenchidos com a uma simulação da pureza que a sociedade procura: sal, polvilho azedo, maizena, bicarbonato, açúcar e farinha de trigo, com o propósito de simular a proibidade da cocaína, substância de uso considerado altamente ilegal e proscrita socialmente. A simulação da substância ilícita a partir de outras substâncias consideradas lícitas socialmente, possibilitam ao expectador refletir sobre o vício em cocaína, em farinhas e cristais (citados acima), onde se contrapõe
a dependência do indivíduo, por exemplo, o açúcar, que pode ser tão letal a vida, quanto a cocaína, se consumido a longo prazo, assim como as demais farinhas e cristais utilizados na instalação são tão prejudicial ao sujeito quanto a cocaína, se consumidos a longo prazo. Os sacos de Ziploc que são vomitados – ou melhor, resgatados do interior do corpo, registro em vídeo performance que complementa a instalação artística, gera no expectador angustia e diligência para constatar qual substância é regurgitada, ainda que obviamente simule cocaína. A possibilidade de ser a substância ilícita cocaína dentro dos Ziplocs que saem de dentro da boca, leva ao expectador a pensar sobre a construção de identidade e da marginalização do indivíduo. Indivíduo esse que desempenha o papel do transporte clandestino da substância ilícita dentro do seu próprio corpo, até que esse pó branco e puro, chegue ao deleite e aos narizes da sociedade hipócrita faminta por essas substâncias. A identidade velada do individuo que regurgita a substância reforça a ideia ao expectador, da marginalização das pessoas que ganham a vida
praticando tal ato ilegal perante a sociedade, de trafico clandestina como única opção de ganhar a vida. Fica evidente que, o mesmo corpo social que julga, condena, segrega e marginaliza o tráfico, é a mesma sociedade que o nutre e o alimenta, numa espécie de ciclo destrutivo para aqueles que fazem o fornecimento e o transporte das substâncias ilícitas: perdem suas liberdades e direitos para que a sociedade ganhe seus prazeres dissimulados ocultos.
O que estava invisível? Mais do que invisível, está velado o preconceito que os fornecedores,transportadores e distribuidores de substâncias, consideradas socialmente ilícitas, padecem os indivíduos, que são privados de direitos, liberdades e qualidade de vida e lazer, quando assumem essa demanda social que sempre existiu: o consumo de substâncias. Por via de regra, essas pessoas acabam se disponibilizando a fazer esse “trabalho
sujo” como um ato de rebeldia e desobediência ao sistema social. Esse mesmo sistema que os marginaliza bem antes de conseguirem outras oportunidades. “Vender droga”, como os mais conservadores dizem, é mais uma lacuna de profundidade social, do que um simples ato contra a “moral e bons costumes sociais”, e por diversas vezes, os sujeitos que se encontram nesse sistema invisível, chamado tráfico de substâncias ilícitas, se consideram anarquistas sociais e rebeldes ao sistema social que ao mesmo tempo que tenta oprimi-los violentamente, seja por questões legais como “leis anti-drogas” e a “guerra contra o tráfico”, os nutre cada vez e cada dia mais. A liberdade de escolher o que fazer com a própria vida e corpo, é um direito para poucos e quase inexistente para aqueles que estão as beiras da sociedade.
Comentário De longe era algo que se atraía aos meus olhos pelas cores ambientadas. Logo quando entrei na sala onde estava a instalação tinha um vídeo acontecendo e parecia um looping e era mesmo um looping com a transição de edição de cores ainda mais incríveis (eu gosto muito de cores) e era angustiante ver aquele objeto que ela deglutia. Madama Vitória tem a compreensão de transpor no seu trabalho seu discurso político e colocar quem observa adentro a essa absorção de senso crítico presente em suas obras. Madama Vitória cê é mais que demais!
Aidssaurus
Até quando? — Instalação
ruda adur
Conexão com a Casa A Casa Azul surge na minha trajetória há três anos atrás, quando desocupamos a Escola de Belas Artes e nos vimos artistas capazes e mobilizados, mas sem rumo. Projetos, convites, ideias, planos. Tudo surgiu. A gestão do dce na época queria recriar o cpc da une. Esfreguei aquele chão e aquelas paredes mais vezes que consigo contar. Minha relação com a casa foi meio pautada na desilusão, na decepção. E, principalmente, na descrença de que seria possível atravessar todas as pequenas tramas políticas que habitam o Movimento Estudantil no intuito de dar um uso potente para aquele espaço tão estrategicamente localizado. Me tocou o coração ver aqueles outros artistas, colegas de sala, ocupando um espaço tão simbólico e tão desconexo da trajetória de alguns. A maioria não conhecia a casa, seu contexto, sua história. Resultado latente da situação de
abandono em que ela foi posta nos últimos anos. E eu, finalmente naquele lugar de ocupar aquele espaço tão simbólico e significativo na história da luta estudantil e política de Minas Gerais, me vi sem tempo de habitar ali tal qual seria o ideal, o desejoso. Me conectei com a casa pelo trabalho des meus colegas de sala.
como instrumento todo o aparato estatal, que se espalha pelas estruturas bem articuladas e atadamente burocratizadas pela instituição. Isso não sai da minha cabeça. Nós não temos a quem recorrer. A não ser, talvez, a nós mesmos. Mas quem somos nós? Somos eu e você? Estamos de fato juntes nessa? Uma resposta
Uma questão que surgiu no processo A arte enquanto mediadora de uma latência política sempre me moveu. Mas são os raros os espaços que recebem bem alguns tensionamentos. Tem discursos que cabem melhor em certas molduras. Estar ali foi a oportunidade de sanar alguns tensionamentos que vinham me tocando desde o Vira-Voto e a eleição do atual presidente. As manchetes me atravessam como lâminas. E a morte e o sangue tocam tudo que a minha vista alcança. O Estado é agora, escancaradamente o perpetrador da morte de certas camadas da nossa população. É podre. É nítido. Uma morte social que tem
É bonito isso de ocupar um lugar. Abrir a escuta. Ver os objetos, andar pelo quartos. Meu trabalho acontece sempre no olho do furacão. O tempo me escorre entre os dedos. E o precário é a condição primeira de materialização das imagens que me habitam. A resposta que tive pra minha urgência foi a imagem de uma bandeira que pinga sangue. Pinga. Pinga. Pinga. Igual goteira de chuva. Só que de morte. Mas a obra de fato se resolveu na impossibilidade. O ideal de realização não se pautava dentre as condições de exibição da exposição. Tive que mudar os planos. A bandeira que pingava lá fora, foi pingar
dentro. O chão de dentro não podia sujar e a casa me presenteou com uma cumbuca. A parede não podia sujar. Espaço não havia. E na pressa de resolver a imagem que habitava minha mente, forçosamente a pari no braço, na força e na tristeza de ter um trabalho abortado pelas condições. A lambança foi tremenda. E de joelhos no chão, tive que limpar dali o sangue que me atormentava nas manchetes.
O que estava invisível? Engraçado. Uma casa de mais de 50 anos, mas com um quê de repartição pública. Sem identidade. Não tem história ali. Minto. Há marcas nas paredes, há tacos soltos, forros do telhado faltando. É engraçado. Tem uma precariedade palpável. Acho que por vezes o que fica invisível são todos os trâmites burocráticos e políticos que são necessários para existência e manutenção daquele espaço. Esses trâmites tão invisíveis... Talvez eles sejam de fato invisibilizados. Não sei...
Comentário A instalação concebida por Rudá Adur para a residência artística Cazulo, consistia em questões políticas. A instalação foi construída a partir de uma bandeira do Brasil dissimulada, que pingava em uma bacia vazia e preta, posicionada aos pés da bandeira: tinta vermelha, reproduzindo gotas do sangue brasileiro. A questão principal da instalação é a bandeira como representação e dramatização da máquina do Estado. Estado esse que é interpretador de uma violência e opressão escancarada de uma morte de gênero, classe e raça dos sujeitos que existem na sociedade, sendo o Estado o personagem definidor de quais corpos morrem e quais corpos vivem na socialmente, deixando explícito a atuação do Estado enquanto uma instituição de aparatos bem atados de morte, violência e dominação da população, principalmente daquelas pessoas que vivem marginalizadas. A tinta vermelha que simula o sangue que pinga da bandeiraEstado, sangue esse das pessoas que vivem
sujeitas a opressão desse Estado, cria uma espécie de comoção, desdém, repulsa e espanto pelos expectadores. A tinta que jorra da bandeira cria um caos ao redor no ambiente, marcando tudo com o vermelho vivo remetente ao sangue recém derramado, levando ao expectador a vislumbrar a ferocidade do Estado em silenciar e reprimir os corpos a beira social, ao mesmo tempo em que visivelmente essa situação é ditada como uma atividade automática e mecânica do Estado opressor.
Madama Vitória
conversa silenciosa iv
C
omo entender a influência daquilo que está fora quando ele não grita com aquilo que está dentro? Acho que hoje em dia tudo é evidente demais, fácil demais, as conexões expostas demais. Perdemos o hábito de leitura, do que nos cerca e do que nos preenche. Somos como completos estranhos. Desconhecidos. Precisamos nos esforçar para conhecer, perceber, e entender. Acredito que a empatia seja uma das grandes respostas para a humanidade. Isso se repeteem relação aos lugares, às casas, ao mundo. A casa azul mostrou que, para sermos produtivos naquele ambiente, precisamos conhecê-lo. Mergulhar, para submergir. acho que talvez tudo sempre foi muito aparente como a gente vê hoje, mas a gente precisa é tentar entender. e fazer conexões mais profundas.
Nada é evidente demais, pelo contrário, tudo está soterrado de construções, designificados. A facilidade geralmente está ligada a superficialidade, esse lugar aonde tudo desliza, nada gruda, nada te dá caldo. A leitura é importante nesse sentido, são mergulhos, lugares desconhecidos que não são fáceis. As coisas realmente parecem muito evidentes hoje, têm sido feitas? Para serem digeridas com apenas uma mordida, mas nada é tão evidente assim, tem que estar disposto para conhecer e entender as coisas.
Projeto gráfico e diagramação Brígida Campbell Madama Vitória
Agradecimentos: DCE UFMG em especial, Rudin, Thomas e Carol Als CENEX EBA Escola de Belas Artes UFMG
Brasil_novembro de 2019_em pleno golpe
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