BRUNO GIULIANI

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BRUNO GIULIANI Abade dos c么negos regulares lateranenses

Uma Vida... um romance: da It谩lia ao Brasil.



Índice Capitulo I - Capestrano, Minha Cidade Natal................................. 3 Capitulo II - A minha família........................................................... 7 Capítulo III - O tempo de formação................................................. 13 Capítulo IV - Finalmente Padre....................................................... 20 Capítulo V - Viva as montanhas....................................................... 26 Capítulo VI - Um Brasil acolhedor.................................................. 33 Capítulo VII - A mulher que revolucionou minha vida pastoral..... 42 Capítulo VIII - Uma tarefa imprevista: superior geral................... 52 Capítulo IX - A volta para o Brasil.................................................. 57


Apresentação

Aqui está minha biografia. Foi por vaidade? Por desejo de ser conhecido? Por mostrar que a vida do padre é bem diferente do pensamento comum, que, quando se quer falar de vida fácil, fala-se de “vida de padre”? Nada disso. A ocasião veio por pura coincidência. Como poderão constatar da leitura do livro, trabalhei no mundo da saúde por muito tempo. Essa paixão ainda hoje me acompanha. Quando fui eleito Superior geral da nossa Ordem religiosa e me mudei para Roma, minha vida mudou totalmente. Mas, de volta para o Brasil, voltou a preocupação para a urgente necessidade de ajudar os doentes pobres, tão numerosos. Encontrei o local da creche, que eu mesmo tinha projetado e subsidiado com a ajuda da Itália, fechado e sem uso. Fiquei triste e revoltado, sobretudo quando me contaram os motivos do fim do convênio com a prefeitura de São Paulo. A Vila dos Remédios está dividida entre os municípios de São Paulo e Osasco, e, como linha divisória, foi escolhida a avenida principal, que passa no meio do bairro. 1


A creche estava no lado de Osasco, mas atendia a crianças de toda a região. Por este motivo, assim pelo menos me contaram, o município de São Paulo não pôde renovar o convênio conosco. O que fazer? Logo tive a ideia de criar um Centro Assistencial para ir ao encontro de tanta gente com problema de saúde. Com a aprovação dos Superiores, procurei pessoas e meios para realizar o meu sonho. Transferi logo uma pequena farmácia comunitária, que os Vicentinos administravam, ampliando o espaço e condições de atendimento. Graças a pessoas voluntárias, hoje atende diariamente um número grande de necessitados. Convidei alguns profissionais da saúde para atender, na medida do possível, doentes e pessoas com deficiência física e idosos. Adaptei também um espaço para uso de laboratório, e outro para consultório dentário. Finalmente, criei um bazar de roupas, calçados e outros objetos a serem doados para famílias pobres. Porém, o peso econômico tornou-se insustentável. Onde procurar dinheiro? Foi aqui que alguém lançou uma proposta impensada: por que não escrever uma biografia do Pe. Bruno, que tem uma história tão interessante? A ideia, lançada por acaso, encontrou apoio de todos. Somente eu não acreditava. Era a última coisa que podia acontecer. Pouco tempo depois eu tive de sujeitar-me a uma difícil intervenção cirúrgica no coração. A recuperação todo mundo sabe que é demorada. O que fazer? E como ocupar o tempo? Foi assim que me decidi a pôr no papel minha vida, para ocupar bem o tempo. O resultado está nestas páginas, que ofereço à leitura de amigos e leitores anônimos. Espero que transmitam otimismo e o gosto pelo bem.

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Capitulo I

Capestrano, Minha Cidade Natal. Capestrano: que nome curioso! É por que os seus moradores têm cabeça estranha? Gente original e diferente? Nada disso. O nome vem do latim: caput trilem amnium, que quer dizer: cabeça de três nascentes. A cidade encontra-se na região central da Itália, chamada Abruzzi, conhecida agora por um terremoto que, em 6 de abril de 2009, destruiu sua capital, l´Aquila, cidade rica de história e de arte. A região dos Abruzzi é uma região montanhosa, famosa pelas montanhas mais altas da Itália central e conhecidas como “Gran Sasso d´Itália”, de quase 3.000 metros de altitude. É lá onde existe a única geleira da Itália central. Aos pés da montanha, diante de uma esplendida planície, encontra-se Capestrano. Aos seus pés surgem três nascentes de agua límpida e fresca que, juntando-se, formam um rio, o Tirino, com águas que podem ser provadas com gosto e sem medo, pois são puras e frescas. A presença de tanta e gostosa água, desde a antiguidade, reuniu povos em busca de uma vida tranquila e fecunda. Uma prova disso temos na descoberta de uma antiguíssima estátua conhecida como “O Guerreiro de Capestrano”. Um agricultor, que estava preparando o terreno para plantar uma vinha, encontrou um grosso boneco de pedra. Tirou o boneco da terra, e continuou seu duro trabalho. No fim do dia, amarrou o boneco com uma corda e o puxou com o cavalo até sua casa. Chamou um amigo professor, estudioso de antiguidades, e mostrou-lhe o boneco. Qual foi sua surpresa quando o professor o pegou pelo pescoço, como para esganá-lo, examinou a estatua, e lhe disse furioso: 3


- Como foi que você trouxe essa estátua pelo pescoço? Poderia tê-la quebrado durante o caminho! Graças a Deus, a estátua chegou intacta. Dois dias depois, uma comissão arqueológica examinou atentamente a estátua e definiu sua idade: Século 8 antes de Cristo! Era uma preciosíssima e raríssima estátua, conhecida hoje como “O Guerreiro de Capestrano”, conservada no salão nobre do museu de Chieti, outra cidade abruzzesa. Capestrano é conhecida por outro motivo para os católicos: Foi lá que nasceu São João da Capestrano, (1385-1456), cuja festa é celebrada no dia 23 de outubro. Filho de um barão alemão e de uma mulher nobre de Capestrano, ele estudou na universidade de Perugia, formando-se em direito civil e eclesiástico com 25 anos. Devido à sua forte personalidade, o rei Ladislau de Nápoles o nomeou primeiro ministro de estado. Mais adiante, se tornou também vice-governador de Perugia. Durante uma missão delicada, foi feito cativo. Na prisão teve uma visão de São Francisco. Deixou o mundo e dedicou-se à vida religiosa, entrando na Ordem franciscana. Ordenado padre, dedicou-se a predicação. O papa Martinho V em 1427 o enviou a lutar contra a heresia dos “fraticelli”. O papa Eugenio IV o enviou como inquisidor contra os Saracenos. O imperador Federico III de Alemanha pediu sua ajuda para fazer a paz entre vários príncipes. Finalmente o papa Callisto III lhe confiou a organização da cruzada contra os Turcos muçulmanos, que queriam ocupar a Itália e acabar com o cristianismo. O padre João participou de maneira forte e decisiva na batalha de Belgrado. Mas ficou doente e morreu de peste no mosteiro por ele construído em Iook no ano de 1456. Sua permanência na cidade natal está viva no mosteiro que ele mesmo mandou construir e que continua a ser o centro da religiosidade para tantos católicos. Na ocasião da criação da União Europeia foi proposto como padroeiro da mesma, mas São Bento foi escolhido. O papa São João Paulo II o proclamou, no ano de 1984, patrono de todos os capelães militares no mundo. 4


Cada festa litúrgica em sua honra conta com a participação de representantes militares de vários países e de numerosos capelães. Digno de recordação é também o castelo, construído em 1400, ainda hoje em pleno funcionamento para uso da prefeitura e para outras manifestações culturais e artísticas. Hoje, Capestrano vive como tantas outras cidadezinhas italianas, num ritmo reduzido a poucos habitantes, porque faltam atividades artesianas e a agricultura é toda mecanizada. Mas, longo o rio Tirino está instalada uma grande criação de trutas. Continuamente viajam caminhões carregados de trutas para todas as cidades da Itália. Em Capestrano, todos os anos, acontece a festa da truta, perto das festas juninas, que recolhe cidadãos de Capestrano, residentes em muitas cidades próximas e distantes. É a festa do reencontro. Para muitos, é a festa da saudade, quando se saúda, fala, canta, e reconecta antigas amizades, assim como se apresentam novos amigos. O país reanima-se e quem permanece sente-se menos solitários. Os visitantes prometem voltar quanto antes. Foi lá que nasci, no dia 23 de novembro de 1930.

Capestrano

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O guerreiro de Capestrano

Budapest (Hungria): estatua de Sテ」o Joテ」o

Catedral de Viena (テ「stria): estatua de S. Joテ」o 6


Capitulo II

A minha família. Uma flor bonita e perfumada nasce de uma planta robusta e forte. Com certeza é o meu caso, pois tive o privilégio de nascer em uma família unida e virtuosa. Meu pai, Dante, era filho de um carpinteiro. Não um qualquer carpinteiro, mas um verdadeiro artista. Ainda hoje, em muitas famílias de Capestrano, pode-se admirar seus lindos móveis para quartos de casais e salas. Trabalhava a madeira com verdadeira arte, esculpindo figuras e ornando os móveis com mosaicos coloridos e esculpidos. Essa habilidade, meu pai herdou de meu avô. Enquanto esperava para se casar, nas horas menos empenhativas, ia preparando os móveis para sua futura casa. Mas um dia o pai lhe ordenou de entregar os móveis para sua irmã, que decidiu casar antes dele. Não foi fácil desfazer-se de um trabalho feito com tanto amor, mas obedeceu ao pai e passou tudo para a irmã. Ainda hoje os móveis de grande beleza ornam os quartos da tia: maciços, entalhados, de madeira nobre. Quando meu pai decidiu casar, teve de preparar depressa móveis mais simples e menos trabalhados. Foi a sua sorte, por que, como veremos, quando foi obrigado a mudar frequentemente de lugar, em duas horas desfazia e remontava os móveis de casa. Devo dizer que sua obediência ao pai e sua doação para a irmã foram bem compensados de maneira imprevista. Minha mãe, Elvira Celli, era de família mais humilde: era filha de agricultor. No início, a avó paterna não aceitou com simpatia a escolha do filho: como podia seu filho, bem de vida, casar com uma moça filha de agricultor e semianalfabeta! Mas

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logo mudou de atitude, quando descobriu suas esplendidas qualidades humanas e femininas. Sua história também era interessante: nasceu-nos E.U.A., na pequena cidade de Hurley-Wiskonsin, região de Minneapolis, durante uma das tantas emigrações do pai. Ele viajava em busca de dinheiro e, quando achava oportuno, voltava em pátria para comprar terrenos e gado. Minha mãe era a primeira de dez filhos. Seis faleceram jovens, mas, sendo a mais velha, foi obrigada a ajudar a mãe em casa. Por causa disso interrompeu os estudos logo no segundo ano primário. Mas, quanta bondade e quanta dedicação exerceu em sua vida! E quantos exemplos pode dar, ainda hoje, a tantas moças só em busca de vaidade e falsos valores! Meus pais casaram no ano de 1929. Meu pai sonhava em emigrar para os E.U.A. em busca de uma vida melhor, seguindo o exemplo de tantos patrícios, disseminados pelo mundo inteiro. Mas não deu em nada: o ano de 1929 foi o ano da tremenda crise econômica na América e na Europa.

A economia estacionou, o dinheiro ficou curto, o

desemprego se alastrou de todo lado, deixando muitos trabalhadores na pior miséria. Por isso, meus pais desistiram de aventurar-se num mundo tão incerto. Porém, meu pai não desistiu de tentar outros caminhos. Frequentou um curso noturno e foi contratado como funcionário estatal para recolher impostos. Foi assim que toda a família começou a viver uma vida nova, cheia de transferências de cidade em cidade. Com dois anos de idade fiz a primeira viagem para uma cidadezinha chamada Castel del Monte. Logo depois, nasceu meu segundo irmão, Nino. Mas ele também não teve muita paz: viajamos para outra cidade, chamada Secinaro. Em seguida mudamos para Farindola. É dessa cidadezinha que, com apenas três anos, guardo a mais antiga lembrança de minha vida. Nessa cidade havia uma central elétrica. Um dia o diretor foi fazer uma inspeção seguido pelo seu cachorro. Não se sabe por qual razão, o diretor caiu na agua. O cachorro correu de volta e começou a morder as calças dos 8


funcionários, puxando-os para o lago. Os funcionários se assustaram, mas seguiram o cachorro e conseguiram salvar o diretor. Em pouco tempo toda a cidade foi para o lago. Meu pai também foi, levando-me a cavalinho. Não esqueci nunca deste fato tão extraordinário, que gravou na minha memória. De Farindola fomos transferidos para uma outra cidade de nome AnversaScanno. Aqui nasceu meu terceiro irmão, Ercole, em 1935. Uma noite, quando minha mãe estava ainda na cama após o parto, eu não queria comer as batatas da salada. Meu pai insistiu, mas diante da minha recusa, não duvidou e me jogou o prato na cabeça, dizendo: ” você acha que estou dando-te o veneno? Nunca mais faça isso. ” Passei a noite sem jantar, mas aprendi a nunca mais recusar alimento algum. Hoje como tudo. De Anversa-Scanno viajamos por outra cidade, de nome Sante Marie (não me perguntem por que o plural). Aqui fui crismado com sete anos de idade. Mas as peripécias não terminaram. Mudamos de uma cidade para outra, mas sempre na mesma região, chamada Abruzzi. Um belo dia meu pai avisou para preparar-nos para uma longa viagem: tinha chegado uma ordem para que ele fosse trabalhar muito longe, na Calabria, extremo sul da Itália, numa cidade de nome Fabrizia. Os avôs choraram, porque diziam que os calabreses eram violentos, vingativos e retrógrados. Minha mãe ficou triste, mas nunca se recusou a seguir meu pai. Que belo exemplo de amor conjugal e de fidelidade! Viajamos de carro até Napoli, e de lá até a Calabria de trem. Meu pai veio nos buscar e nos levou até a destinação, Fabrizia, cidade a 1.000 metros de altitude no meio de bosques de castanhas. Lugar delicioso pelo ar puro no meio das montanhas, chamadas “Sila”. Alugamos um apartamento, que fazia parte de três imóveis de uma mesma família.. Atrás da casa havia uma horta com galinheiro. Foi-nos dado em uso uma parte do balcão. Fomos proibidos de ir à horta, e a porta que comunicava com o apartamento do velho dono foi fechada com uma tábua para maior segurança. 9


Mas a bondade de minha mãe logo acabou com as barreiras e venceu toda a desconfiança dos donos de casa. Logo no primeiro domingo, antes do almoço, minha mãe foi oferecer a eles um prato típico de nossa terra. Os donos apreciaram tanto este, e outros pequenos gestos de amabilidade, que em poucos dias abriram o espaço no balcão, tiraram a madeira da porta divisória e nos deixaram visitar a horta. Entre nós e eles criou-se um clima tão familiar e fraterno, que acabamos formando uma só família. Com o tempo, fomos descobrindo também algumas tradições próprias do lugar, que nos chocaram. No domingo, quando iam na Missa, cada um levava sua cadeira ou banquinho para sentar-se. Havia cadeiras na igreja, mas precisava pagar um pequeno aluguel. Outra tradição, que chocou meus pais, foi o fato de a mulher do casal ter emitido um voto de nunca mais sair de casa, após a morte de um filho na guerra. Meu pai tentou várias vezes fazê-la sair de casa, mas quando finalmente conseguiu convencê-la a participar de uma festa religiosa, teve que leva-la de volta, pois ela se sentiu mal. Foi a novidade? Ou a falta de um voto? Não sei responder. Outra tradição, praticada nos tempos de Jesus, mas não mais vivida nos nossos tempos, era a presença de mulheres choronas na ocasião de funerais. Eram mulheres convidadas e pagas para acompanhar o morto e contar sua vida, chorando e cantando tristes melodias. Nós crianças ficávamos escondidas atrás da janela para não rir diante daquele espetáculo. A mãe ficava de guarda para não criar problemas. Hoje, acho que essas tradições desapareceram diante das mudanças tão rápidas do mundo moderno. Foi naquela cidade que eu fiz minha primeira Comunhão. Um ano depois, meu pai foi transferido outra vez, destinado a trabalhar na cidade de Pescara, uma cidade abruzzese, moderna e bela, perto do mar Adriático, e, portanto, com esplendidas praias e muita areia. Não ficamos muito tempo. Desta vez foi meu pai quem pediu a transferência, por motivos familiares. Um dia minha mãe tinha de se ausentar por muito tempo, e me levou até o escritório do pai. Eu estava sentado, tranquilo num cantinho, quando o 10


diretor me viu e disse a meu pai: - O que essa criança está fazendo aqui? Este não é seu lugar. Meu pai, irado, respondeu: - Se este não é lugar para meu filho, não é lugar nem para mim. Peço a transferência. E assim foi.

Poucos dias depois, mudamos mais uma vez para uma

cidadezinha não longe de Pescara, de nome Spoltore nos sentimos bem, porque voltamos a viver num clima simples e sem muita burocracia. Lembro ainda o dia em que viajamos: era o primeiro do ano de 1939. Mas nem nesta cidade permanecemos tanto tempo: poucos meses depois, justo na quinta-feira santa do mesmo ano, estávamos mudando para outra cidade do interior: Pereto, perdido no meio das montanhas, longe de qualquer meio de comunicação. E foi aqui que terminei o meu curso fundamental de ensino, com uma inesquecível professora, bondosa e dedicada. Em Pereto nos adaptamos muito bem. Fizemos muitas amizades e ficamos anos no mesmo lugar, devido à guerra, que começou na Itália exatamente no dia 10 de junho de 1940. Que dia triste e inesquecível para mim!!! À tarde, às 15 hs Mussolini, o ditador da Itália, ia fazer um discurso no rádio para comunicar a entrada da Itália na guerra, ao lado da Alemanha de Hitler e do Japão, contra a França e a Inglaterra. Na época, poucas famílias tinham o rádio, e nossa casa encheu-se de vizinhos e amigos para ouvir o discurso de Mussolini. Ao termino, eu vi mães chorando, pois seus filhos faziam parte do exército e elas temiam o pior. Não deu para enxugar as lágrimas. O tempo estava nublado. Obscureceu tanto em poucos minutos. Veio uma chuva de granizo tão forte e tão abundante, que acabou com as colheitas e encheu casas e porões de água. Todos foram para casa, para tirar o gelo e limpar os pátios. Tinham passado mais ou menos duas horas, quando começaram a gritar. - Gente, a creche das freiras está pegando fogo! Venham todos ajudar! Graças a Deus o fogo foi apagado, mas, para nós crianças, foi uma 11


experiência terrível, que nunca mais se apagou da memória. Aquele 10 de junho de 1940 foi um dia histórico e maldito. A chuva de granizo passou, o fogo da creche foi apagado, mas começou a grande tragédia da Segunda Guerra Mundial, que provocou o choro de milhões de mães, matou milhões de soldados, e destruiu inúmeras cidades e países. Deus não permita que tal tragédia se repita nunca mais. Para fechar este capítulo sobre minha família, devo acrescentar o nascimento do meu quarto irmão, Gianni, que foi uma bênção de Deus, pelas suas qualidades intelectuais e éticas, nascido no ano de 1947. Eu estava no seminário, longe de casa, e não o conheci se não depois de muito tempo. Não foi fácil ganhar sua confiança, por que me viu com o hábito talar, e teve medo. Agora é o irmão mais próximo e mais afetuoso, pois foi o único que veio visitar-me no Brasil, gostou do país, e adquiriu até um apartamento. Sua simpatia ganhou muitos amigos, e sua esposa Pina é admirada pela sua arte culinária.

A Mãe preparando a polenta

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Capítulo III

O tempo de formação Já disse que Pereto é uma pequena cidadezinha do interior. A escola pública oferecia somente o curso primário. E depois, o que fazer? Foi o grande problema que meu pai teve de enfrentar. Deixar seu filho continuar sem os estudos? Enviá-lo em casa de parentes para continuar os estudos? Ou obriga-lo a viajar todos os dias para a cidade mais próxima? A solução veio imprevista e inesperada: no mesmo ano de 1940 um jovem sacerdote de Pereto veio celebrar sua primeira Missa. Que festa! Todo o povoado foi acolhê-lo na entrada da cidade, os sinos batiam festivos, o velho pároco se desdobrou para ornar a igreja onde o jovem padre ia celebrar sua primeira Missa na presença de seus familiares e da população toda. Nunca se viu uma cidade tão alegre, unida, festiva e orgulhosa: um filho seu tinha chegado ao sacerdócio! Nem imaginava que um dia ele se tornaria um grande estudioso bíblico, escrevendo vários livros. Mais tarde, esse mesmo jovem sarcedote foi convidado para ser um dos quatro conselheiros biblistas do Papa. Imaginem a maravilha de nós crianças diante de tamanho espetáculo. Seu nome era Pe. Ângelo Penna, religioso dos Cônegos Regulares Lateranenses. Na semana seguinte, meu pai procurou o padre e pediu-lhe se era possível acolher-me no seminário de sua família religiosa. O padre respondeu que era possível a uma condição: o menino manifestava o desejo de um dia tornar-se padre como ele? Meu pai ficou um pouco embaraçado, e respondeu que não podia responder a tal pergunta. Mas falou que eu era um menino obediente, estudioso, que frequentava a igreja, acrescentando que, se um dia o filho quisesse tornar-se padre, teria sido uma honra e um prazer para ele, e para a mãe, muito religiosa.

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O resultado foi que, poucos meses depois, eu estava viajando para o seminário menor, situado em uma cidade longe de Pereto, próxima da França, chamada Andora. Acostumado a mudar de cidade em cidade, não senti a distância da casa e da família. A viagem de trem foi longa demais, mas não estava sozinho: havia outros quatro jovens e um padre que nos acompanhava. Andora era uma bela cidade à beira do mar, localizada em um vale com um riacho no meio. Os terrenos eram cultivados com plantas de frutas e flores. O seminário era uma bela construção, com igreja aberta ao público, com um campo de futebol e uma horta. A acolhida foi bem fraterna, tanto que me achei logo à vontade. O ritmo de vida, entre oração, estudo, alimentação e recreio, enchia bem o nosso tempo. As matérias escolares eram bem dadas pelos padres, muito dedicados ao ensino. A comida era variada e abundante. Os jogos, bem organizados, satisfaziam nossos desejos de parecer verdadeiros jogadores. Vivi um tempo feliz. As cartas, que escrevia aos pais, reproduziam tanta felicidade e tantas novidades. A guerra, no início, nem se sentia: chegavam notícias de batalhas na África, bem longe de nós. Nas férias, não íamos em família, mas não me queixei. Todos os dias íamos na praia para tomar banho, fazer mergulhos, e brincar com a areia. Nunca tinha tido tantos privilégios. Mas, com o passar do tempo, as coisas começaram a piorar. Quando também a América entrou em guerra, as notícias que nos chegaram não eram mais entusiasmantes. Começamos a ouvir os padres falar de aviões abatidos na África do Norte, de naves afundadas, de soldados que abandonavam antigas fortalezas. Para nós crianças eram notícias inéditas: nunca tínhamos vivido uma experiência de guerra e tínhamos plena confiança em Mussolini, amado e respeitado pela maioria da população italiana. Mas não demorou que os sinais da guerra chegassem até pertinho de nós. Durante a noite era proibido ter luz acesa nos quartos por medo dos bombardeios. As cartas para e da família começaram a chegar com um intervalo muito maior, a comida começou a ser mais escassa, sobretudo o pão, já que a farinha vinha de longe. 14


Os padres ficaram mais preocupados e, muitas vezes, falavam baixinho para não nos transmitir más notícias. Até que um dia tivemos a prova que a guerra estava chegando perto. Uma tarde estávamos tendo aula de latim, quando a casa começou a tremer por causa de dois tremendos golpes vindo do mar. Ficamos assustados e logo nos falaram que um submarino inglês afundou um navio de guerra diante da nossa praia. Foi um grande susto e a confirmação de que a guerra já estava perto com todas as tristes consequências de ruina e de morte. Mas, com notícias tão ruim nos chegavam também fatos inimagináveis: um dia um padre nos mostrou uma caneta que não precisava de tinta para escrever. Será que podíamos dispensar a tinta, que sujava cadernos e até nossas camisas? Todos quisemos experimentar a nova caneta.... Outro dia o mesmo padre nos falou que haviam inventado uma corda feita com petróleo. Ninguém acreditou: como era possível fazer um solido com um liquido. Com o tempo, começamos a ver fitas, cordas e objetos de plástico. Era o novo mundo que começamos a conhecer. Passados dois anos, em1943, as coisas começaram a precipitar para os alemães e os italianos. Mussolini e Hitler estavam no fim. Na Itália, soldados e civis começaram a organizar-se como guerrilheiros, chamados “partisães” para combater a ditatura fascista. Os alemães, retirando-se da Itália, estavam levando consigo muito material saqueado. Um dia, estávamos terminando a Missa de abertura do ano escolar, quando chegaram correndo alguns jovens para nos convidar a ir até 'a estação ferroviária, onde estava um trem cheio de material sendo levado para a Alemanha. Os “partisães” obrigaram os soldados a fugir e toda a cidade estava esvaziando o trem. Nós fizemos a nossa parte: pegamos caixas de alimentos, vários materiais, uma estufa e quatro rolos de pano. Que aventura! Os alimentos comemos, e os panos serviram para fazer lençóis e roupas. Ao término da guerra, depois de mais de três anos, conseguimos, com enormes sacrifícios e muitos dias de viagem, voltar para casa e visitar nossas 15


famílias. Quantas peripécias! Tentamos uma primeira vez, mas, chegando a Genova tivemos que voltar atrás: um bombardeio noturno tinha acabado com a linha de ferro. Tentamos uma secunda vez, viajando num carro de mercadoria, sem assento, e nem toilette. O espaço era mínimo, não se sabia aonde pôr os pés. Ninguém pode imaginar os sofrimentos: sem comida, sem segurança, com gente que ia perto, e com gente que ia longe. Ninguém sabia se ia encontrar parentes vivos, ou mortos. Quando toquei a campainha de casa, minha mãe não me reconheceu. Mas foi um instante, e logo me abraçou e choramos de emoção. Fiquei na minha casa mais de um ano e meio, até a guerra terminar. A Itália estava destruída, ferrovias e estradas ficaram intransitáveis, muitas cidades bombardeadas e semidestruídas não ofereciam segurança, a política em plena desordem, a fome continuava a matar como as armas. Lembro que uma senhora, fugida de Napoli para Pereto tinha apenas uma batata fervida para comer no dia em que deu à luz. Outro dia chegou de Roma, a pé, o superior geral de meu pai, em busca de alimentos para sua família. Nós estávamos discretamente bem por que, antes do desastre final da guerra, meu pai escondeu muito trigo e farinha em um buraco perto de casa. Até que um dia, o mesmo padre Ângelo Penna chegou em Pereto e me perguntou se eu ainda estava disposto a ingressar no noviciado. Falei que sim, e repetimos mais uma viagem para longe de casa, até a cidade de Gubbio, sede do noviciado. Foi uma viagem aventurosa: de Pereto até Roma viajei sobre um caminhão cheio de carvão. Imaginem vocês como cheguei. De Roma, lavado e descansado, viajamos de trem até Fossato de Vico, e de lá até Gubbio em um caminhão, cheio de operários. Gubbio é uma cidade belíssima, cheia de história e de antigas tradições, localizada a uns 150 km de Roma e a 30 km de Assisi. A nossa casa era um mosteiro antigo. Acolheu o jovem S.to Ubaldo, no sec.XII, ordenado padre, foi também superior, antes de ser eleito bispo da cidade. 16


Gubbio também é cheia de construções medievais. Seu palácio, conhecido como palácio dos Consules, ainda é bem conservado, com um enorme sino, que toca nas circunstâncias mais importantes da cidade. No alto do monte Subasio ergue-se o santuário dedicado a S. Ubaldo e meta de continuas visitas de peregrinos. Os cidadãos têm para ele uma devoção incomum. A cidade para no dia de sua festa, em 16 de maio. Grandes e pequenos vestem roupa tradicional e repetem cada ano a famosa Festa dos Círios. Começou como devoção ao Santo para oferecer ao mosteiro cera, óleo e velas para iluminar o templo. Depois, se tornou uma tradição única no mundo. A população, dividida entre agricultores, artesãos e governantes, homenageava três protetores: S. Antônio, protetor dos agricultores, S. George, protetor dos artesãos, e S. Ubaldo, protetor da cidade. Os círios são formados de madeira bem trabalhada, têm cerca de cinco metros de altura e adornados com estátuas de santos no topo. Os devotos, com suas roupas diferentes, carregam as estátuas correndo por toda a cidade e sobem a montanha em alta velocidade. É um espetáculo inesquecível: em menos de 10 minutos sobem a montanha, que normalmente exige uma caminhada de 40 minutos. Quem quer visitar a Itália, não pode perder este espetáculo, único no mundo. Começamos o noviciado em outubro. Éramos cinco jovens dirigidos por um padre, Giovanni Dani, considerado como um santo. A ele foi dedicada uma praça na parte nova da cidade. A formação que ele nos deu para a vida religiosa foi tão profunda e eficaz, que os cinco nos tornamos padres e os cinco celebramos juntos, em Roma, os 50 anos de sacerdócio em 2006. Claro, não faltaram dificuldades, sobretudo o frio, que nos castigou durante todo o inverno. Durante 15 dias a temperatura desceu a 15 graus abaixo de zero, dia e noite. Nem tínhamos aquecimento em casa. Até a agua, que guardávamos nos quartos para nos lavar durante a noite, congelava. No dia se corria e se trabalhava, e à noite se colocava na cama quantos cobertores era possível achar. O ano de noviciado correu bem. Fomos aprovados para a profissão religiosa e fomos transferidos para a cidade de Vercelli, perto de Turim. Chegamos no fim de 17


outubro de 1947 para continuar os estudos superiores. Em Vercelli nossa moradia também era um mosteiro, anexo a uma basílica maravilhosa do séc. XII, de perfeito estilo gótico. Foi construída por um cardeal, Gualabicchieri, que a confiou aos cônegos regulares franceses para instalar um centro cultural. O primeiro superior foi o abade Tomaso Gallo, que vinha do instituto teológico de Paris, transformado em seguida em faculdade “La Sorbonne”. O seu tumulo está ao lado direito do altar maior, e aparece sentado dando aula a um jovem, que estavam nas costas. Quatro eram de habito branco, o habito dos cônegos, e um era de habito marrom: era nada menos que santo Antônio de Pádua. Quando jovem, estava no mosteiro dos cônegos de Coimbra, mas um dia passou por aí um grupo de franciscanos em caminho para as missões na África do Norte. O jovem Antônio juntou-se aos missionários, mas nunca chegou na África pelos ventos contrários do mar. Chegando em Pádua, foi enviado a Vercelli para terminar seus estudos. A permanência em Vercelli foi magnifica. O ambiente de casa era acolhedor, o superior, Pe. Luigi Carnicelli tinha sido confessor de santa Gemma Galgani na cidade de Lucca. A basílica de Santo André era o centro religioso e cultural de Vercelli. Os estudos filosóficos procediam sem problemas. Mas havia uma hora, que nunca esqueço: era a última hora de terça-feira. O professor achava que todos devíamos estar cansados para estudar filosofia. Assim, nos apresentava cada semana uma resenha cultural e social, como aparecia nos jornais e nas revistas italianas. Quanto material variado e interessante! Que curiosidade nos despertou e quanto amor para o conhecimento da realidade¹ para nós, seminaristas fechados no nosso pequeno mundo. Nunca esqueço aquele professor Pe. Vallaro para tanta abertura mental que me deu com as suas aulas. Um momento particularmente desejado era, quando em alguns dias de festa, íamos fazer uma bela merenda em cima da torre central da basílica. Ao redor, podíamos olhar um panorama grandioso. De longe podíamos ver também os imensos campos cultivados com arroz, em terrenos submersos na água, que 18


produziam o melhor arroz da Itália. Em 1952 chegou para nós a ordem de transferência para Roma, a fim de terminar os estudos teológicos numa das melhores universidades, chamada “Angelicum”, dirigida pelos dominicanos. Foi uma experiência nova: os textos escolares eram em latim. Os professores, muitos deles estrangeiros, falavam em latim, o que dificultava a compreensão. Entre eles, havia um célebre estudioso dominicano que escreveu muitos livros conhecidos no mundo inteiro, o Prof. Garrigou Lagrange. Em casa, o ambiente não era de menor espírito cultural. O nosso superior, Pe. Carlos Egger, era um dos maiores latinistas daquele tempo. Trabalhava no Vaticano e era o tradutor de todos os documentos oficiais do Papa e do Vaticano. Um dia, leu para nós a narração de um jogo de futebol em latim. Que surpresa! Além dele, outro professor era célebre. O abade Giuseppe Ricciotti era um grande estudioso da bíblia e da Igreja. Escreveu cerca de 20 livros e mais de 600 artigos em revistas e nas enciclopédias. O seu livro “A Vida de Cristo” foi um bestseller, traduzido em mais de 40 línguas. O interessante é que nós seminaristas corrigíamos as “bozzas”, participando de certa maneira dos seus escritos e dirigindo-lhe mil perguntas. Passamos assim os últimos anos de preparação ao sacerdócio, nas melhores condições possíveis, adquirindo sempre mais amor aos estudos e à Igreja. Finalmente chegou o grande dia. Foram momentos de intensa preparação. Para mim, havia mais uma circunstância familiar: a celebração, no mesmo ano, dos 25 anos de casamento de meus pais, alegrados, também com a colação de grau de dois irmãos, Nino, na vida militar, e Ercole como professor. E, para não deixar o menor, Gianni, sem participação ativa, foi preparado para sua primeira Comunhão. Nossa mãe estava tão ansiosa que meu pai acreditava que teria um infarto, de tanta graça que a família recebia ao mesmo tempo. (pensava de ter um golpe. Tanta graça junta¹) A ordenação sacerdotal foi no dia 27 de junho de 1945, em Roma, e a primeira Missa solene na minha cidade de Capestrano no dia 27 de julho do mesmo ano. 19


Capítulo IV

Finalmente Padre Ordenado padre, me senti como um navio que, saindo do porto, entra no imenso mar. Abriam-se para mim todas as possibilidades de realizar os meus sonhos. Na minha frente estava o mundo todo, precisando de amor, de socorro, e de luz. Sentime como um farol acima do monte para ensinar o caminho aos navegantes, meio perdidos no meio de um mar em tempestade. É um sentimento diferente de quem se casa e se sente feliz com sua jovem esposa, depois das festas, finalmente sós em casa própria. Eles sonham em construir uma família, enfeitar a casa, dar vida aos filhos, e ganhar dinheiro para ter uma vida serena e tranquila. Eu, ao contrário, abri portas e janelas para o mundo afora. Coloquei-me a total disposição para os outros, e fiz a promessa de nunca dizer não a quem precisava de mim. Pedia ao Senhor para que me doasse luz suficiente nas confissões. Na primeira vez em que confessei tremia como uma folha e me perguntava: será que vou entender bem a situação do penitente? E que conseguirei dar as orientações certas? Hoje, a situação é diferente. Os seminaristas desde cedo vivem em contato com o povo, prestam serviço ao altar, fazem celebrações na falta do padre... Na minha época, a formação era totalmente fechada. A preparação era apenas teórica, sem nenhuma pratica. Por isso, precisava preparar detalhadamente tudo: liturgia, sacramentos, bênção dos mortos e das casas. Durante quase dez anos preparei a homilia do domingo começando desde segunda-feira para decorá-la. Guardei centenas de envelopes com as homilias para os casos de necessidade. Passado o primeiro mês em família, fui enviado ao seminário de Andora para assumir a função de assistente e professor. Me senti privilegiado em poder viver 20


ainda em comunidade, só com os jovens, sem ter de assumir a responsabilidade de uma paróquia, tarefa para a qual não me sentia preparado. Continuei a viver uma vida bem organizada, com horário e compromissos definidos. Lecionei várias matérias escolares, como italiano, latim, história geografia, e, enfim, francês. Essa última matéria me encontrou despreparado. Havia estudado a língua na infância, mas sem um grande aprofundamento. Porém, o professor da língua, um querido confrade holandês e poliglota, teve de voltar urgentemente na sua pátria. Alguém tinha de assumir seu lugar. O mais novo dos padres era eu: não podia recusar-me. Enfrentei o novo compromisso preparando com atenção cada aula. Mas, no fim do ano escolar, pedi para passar um período em algum lugar de língua francesa. Merecido ou não, fiz uma experiência excepcional na Suíça. Os cônegos regulares, nossos confrades, operavam em várias localidades suíças, e há muitos séculos, possuíam o mosteiro do Monte São Bernardo. Fui lá para aprender o francês, no meio das montanhas, num clima gostoso e fresco a 4.000 metros de altitude e tendo o privilégio de passear todos os dias com duas cachorras da raça São Bernardo que estavam gravidas. Quem nunca ouviu falar destes cachorros famosos, representados com um pequeno barril no pescoço, para salvar os viajantes perdidos no meio da neve? No mosteiro, logo na entrada, conserva-se o corpo embalsamado de um cachorro famoso chamado 'Biarriz', que salvou a vida de 14 pessoas perdidas e quase congeladas na neve. Elas beberam o licor que o cachorro transportava e, seguindo-o, chegaram até o mosteiro. A passagem alpina do Grand São Bernardo era famosa desde a antiguidade. Hannibal, o africano, tentou entrar na Itália através desta passagem. Numerosos exércitos da Europa, na idade média, passaram também por ali, assim como comerciantes e peregrinos. É interessante ver no museu as moedas antigas que os viajantes deixavam como agradecimento ao Santo. As aulas de francês melhoraram e pude aproveitar o meu conhecimento da língua em frequentes contatos com os confrades de língua francesa. A escola também progredia. A vida dos jovens tinha um clima de 21


fraternidade. Juntos eles participavam de aulas de canto, cerimonias religiosas, competições etc. Ao fim do curso escolar, os jovens se submetiam a exames públicos. Os estudos no colégio eram particulares e precisavam de reconhecimento oficial. Era uma verdadeira satisfação ver os jovens aprovados e elogiados. Passei três anos em Andora plenamente realizado. Amava os jovens e eles me amavam. Estava demonstrado que a dedicação supre as deficiências técnicas e que o amor cria um clima de fraternidade, em que cada um se encontra à vontade com suas qualidades e seus limites. Após três anos fui transferido ao Vêneto, uma região ao norte da Itália, na cidade de Castelfranco, onde a Congregação tinha aberto um outro seminário. O Veneto era considerado como uma terra muito religiosa e, portanto, com mais vocações para a vida religiosa. Foi verdadeiramente uma outra experiência de vida sacerdotal. O povo veneto era religiosíssimo. O centro das cidades eram as igrejas com suas torres altas. O ritmo da vida era dirigido pelos sinos que tocavam todas as horas. As igrejas estavam sempre cheias. As famílias eram numerosas e viviam felizes. Aprendi muito com os padres de lá. Eram verdadeiros guias espirituais. As comunidades estavam bem organizadas, como nunca tinha visto antes. A sede do seminário, adquirida com muito sacrifício, era uma antiga sede das famílias nobres de Veneza. Ela tinha espaços grandes, salas ornadas com estuques, e ao redor, parques com jardins e árvores raras. Em um lado havia uma estrebaria quase abandonada, com ornamentos de ferro e bronze, sinal de sua antiga nobreza. Foi lá que passei mais 11 anos de minha vida, cuidando dos alunos, ensinando, brincando, organizando jogos, campeonatos e passeios. Um passeio de 10 dias para as montanhas dolomites foi um dos mais memoráveis daquela época. Os alunos eram divididos em equipes: a equipe da comida, da enfermaria, do dinheiro e do guia nos caminhos montanhosos. Uma noite, dormindo numa estrebaria no meio da palha, caiu tanta neve que perdemos o rumo. Mas, com a ajuda 22


de camponeses que vieram ver o gado, e com a colaboração dos guardas de montanha, que nos levaram até a cidade mais próxima, vencemos a neve e voltamos para casa, pedindo carona aos carros que passavam por lá. No Natal íamos sempre a Veneza, a 40 km de distância. Na cidade havia uma tipografia, que preparava caixas para “panettoni”. Um dia, falando com o diretor, combinamos que os alunos iam dobrar as caixas. Por cada caixa dobrada ganhávamos uma pequena quantia de dinheiro, que, no fim cobria, as despesas do passeio. Além dos seminaristas, fui encarregado da pastoral vocacional nas cidades da redondeza. Visitava os párocos, os grupos jovens e as famílias. O meu meio de transporte era uma moto, que nunca me criou problemas. Nunca abusei da velocidade, porque era um motorista amador. Mas, estas viagens me propiciaram tantos compromissos pastorais: confissões, retiros, missas festivas. Eu era feliz com todas as belas oportunidades para viver plenamente meu sacerdócio. Uma experiência interessante foi a pregação de retiros mensais, que o jovem pároco de Piombino Dese, uma cidade desenvolvida e industrial, organizava para homens e mulheres comprometidos no campo do trabalho. Eram os primeiros passos de um movimento católico, as ACLI (Associação Cristã dos Trabalhadores Católicos), que se difundiu no mundo do trabalho, levando a doutrina social da Igreja. Tais encontros me abriram a mente a um mundo quase desconhecido. A minha atual sensibilidade aos problemas sociais e políticos nasceu naqueles encontros mensais. No fim do primeiro ano escolar surgiu um grande problema para alunos padres: os alunos que moravam longe não tinham como chegar em casa para as férias. Como resolver o problema? Um amigo nos ajudou, falando de um prédio a venda em uma cidadezinha próxima, Tonadico, no meio das dolomites. Fomos ver a casa, o lugar e o preço. Deu certo. Adquirimos a casa de montanha para passar alegremente as férias escolares. Tratava-se nada menos do que uma antiga central elétrica do império austríaco. No subsolo corria bastante agua para movimentar as turbinas. Para nós foi fantástico. Trabalhamos no primeiro 23


ano para adaptar a casa às nossas necessidades. Nos anos seguintes, fomos conhecer as montanhas da redondeza, fazendo escaladas alpinas. Infelizmente, dois anos depois, um tremendo temporal derrubou árvores e pedras, até invadir nossa casa e quebrar a pequena ponte que a ligava à estrada principal. Foi um verdadeiro desastre. Quando eu e um colega fomos visitar a casa, ficamos espantados. Tivemos de abrir uma parede da casa para permitir que uma escavadeira limpasse a casa. Com calma, reconstruímos as partes destruídas e a ponte. Foi um duro trabalho, mas não pagamos um tostão: o poder público nos deu a verba necessária para a reconstrução. Porém, com tanto trabalho material e espiritual, os resultados vocacionais eram escassos: muitos vinham para estudar, e no fim nos deixavam com um triste “adeus”. NÃO ENTENDI. POR QUE OS RESULTADOS VOCACIONAIS ERAM ESCASSOS? Muitas vezes fiquei desanimado. Só depois de muitos anos pude ver que o trabalho não foi perdido. Os primeiros alunos, já adultos e com família, decidiram reencontrar-se para relembrar os tempos do seminário. Todos estavam compromissados nas comunidades, nas escolas, no mundo político e em sindicatos, decididos a introduzir nestes ambientes o espirito cristão. Ainda hoje, continuam a encontrar-se com esposas e filhos, relembrando os cantos de montanha que nós cantávamos. No início de 1968, os superiores italianos voltavam de uma visita ao Brasil, onde viram grandes obras criadas por nossos missionários e acharam necessário enviar um reforço. Eles escreveram uma carta a todos os padres italianos pedindo disponibilidade para o Brasil. Eu, buscando novas experiências, mas ao mesmo tempo com receio de um futuro incerto, respondi que estava disposto a ajudar os colegas no Brasil. Um mês depois recebi a notícia de que, entre os candidatos, havia sido escolhido. Foi um susto. Terminei o ano escolar, entreguei trabalhos e documentos, e fui para a casa de minha família para repousar. 24


Capítulo V

Viva as montanhas Nos brasileiros encontrei tantas belas qualidades, como a hospitalidade, o otimismo, o espirito de colaboração nas iniciativas comunitárias. Mas não encontrei grande interesse pelas atividades de montanha. Será a rotina da vida urbana, que não permite mais ver o alto, será a paixão do futebol, que entusiasma jovens e adultos, e enche todos os fins de semana? Para mim, italian, e nascido numa região montanhosa, as montanhas sempre tiveram uma atração particular. Desde criança subi montanhas, para admirar a beleza da natureza, para admirar plantas e flores, para apanhar pássaros e insetos. As montanhas têm uma mística especial, nos afastam da rotina enjoativa da vida cotidiana, nos levam mais perto do céu, nos fazem penetrar no coração da natureza, nos fazem respirar um ar mais puro e mais perfumado. Subir nas montanhas foi para mim, desde criança, um desafio e uma conquista. A gente sofre o cansaço da subida, a irregularidade das pedras das ruas, sofre a sede e o peso da mochila, mas, quando chega ao topo se goza a vitória conquistada, se admira o panorama vasto e variado, sente o céu mais perto. É uma experiência que precisa ser vivida, para sentir tudo isso e começar a amar as montanhas. Minha primeira subida em montanha foi quando, ainda criança aos sete anos, fiz uma marcha de mais de três horas com minha família e os amigos para ir visitar um santuário situado no topo. Nós crianças éramos como animais soltos: sempre na frente, colhendo flores, apanhando bichinhos e olhado os pais, que nos seguiam com passo mais lento. Lembro ainda de um pormenor, que me entristeceu enormemente. Meus 25


Passei dias de entusiasmo e de dúvidas, de amor e de medo pelas novidades que me esperavam. Meus pais me perguntaram muitas vezes se estava certo da decisão. Quando parti, no início de agosto, meu pai passou mal. Porém, minha mãe, uma mulher forte e de grande fé, me abençoou, pondo-me nas mãos de Deus.

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pais, junto com os amigos, tinham decidido fazer aquela escalada com espirito de profunda fé, e com o propósito de participar da Missa e receber a santa Comunhão. Avisaram-nos logo para não matar bichinhos, não brigar, não falar palavrões, não comer e não beber antes da Comunhão. No passado, havia a regra do jejum absoluto desde a meia-noite até a Missa. Muitos leitores de idade lembram-se desta norma. Num certo momento eu vi uma moita com belas amoras maduras. Sem pensar, comi algumas amoras. Isso me impediu de receber a santa Comunhão. Nos anos de formação não faltaram experiências de montanha.

O

seminário se encontrava numa cidade perto do mar, na região da Liguria, bem perto da França. Mas, nas férias não faltavam excursões nas montanhas. Uma vez realizamos uma caminhada de dez dias, para alcançar duas montanhas entre a Itália e a França. Para nós adolescentes foi uma vitória: tínhamos entrado no território francês. Quando adulto, aproveitei as férias em família para escalar montanhas em diferentes regiões. Meu irmão Ercole é um verdadeiro alpinista e fazia parte do Conselho alpino da minha cidade. Durante todo o ano este Conselho organizava excursões aos domingos e feriados com muitos apaixonados pelas montanhas. As escaladas eram divididas em médias e grandes dificuldades, segundo a capacidade dos participantes. Foi por isso que pude aproveitar para aprender todo tipo de escalada. Não era sempre fácil, mas nem extremamente difícil. Para conquistar o objetivo era preciso ter coragem, equilíbrio e sangue frio. Aprendi a subir em cordada, quando havia perigo de precipitação. Aprendi a usar sapatos especiais com pregos na soleira, quando havia neve e gelo nas montanhas. As dificuldades existiam para serem enfrentadas, o que nos dava maior satisfação e orgulho. Assim, além do exercício físico, a montanha oferecia uma ocasião para fortalecer o caráter quanto às dificuldades da vida. Quantas vezes, diante das dificuldades da vida a gente desanima e desiste? O alpinismo nos ensina a ir em frente até a realização do projeto programado. Na Itália temos muitas possibilidades para escalar montanhas. Há os Alpes ocidentais na divisa com a França e a Suíça; há os Alpes orientais, chamados 27


Dolomites, entre a Itália e a Áustria; e há o grupo apeninico, com o Gran Sasso d'Itália no centro, de 3.000 metros de altura. Eu tive a oportunidade de subir todas essas montanhas, graças às muitas regiões em que vivi. Nos alpes ocidentais cheguei a contemplar subir o monte mais alto dos alpes, o monte Bianco, que tem 4800 metros de altitude. Faltou-me o tempo para subir até o cume a pé. É possível alcançar o topo com um teleférico, mas a experiência é, claro, muito diferente. O monte Bianco está entre a Itália e a França, e pode ser escalado partindo de ambos os países. Em baixo há uma longa galeria, que hoje liga as duas nações. Mais ao oriente há o monte Rosa, um pouco mais baixo, mas igualmente majestoso e mais fácil de ser escalado. Além das escaladas, meu tempo vivendo no monte Gran San Bernardo colaborou para que eu me apaixonasse ainda mais pelas regiões montanhosas. A vida por lá não é fácil. Durante muitos meses a neve cobria parte do mosteiro e era preciso sair pela janela. Mas, no verão, a região fica cheia de alpinistas italianos, suíços e de outros países. O mosteiro oferece hospitalidade, o que facilita a escalada aos cumes ao redor. Descendo a montanha pelo lado suíço, chegamos à famosa cidade de San Maurice, onde há apenas um mosteiro há 1500 anos. É, portanto, muito rico em história. Descendo do lado italiano se passa pelo Valle d´Aosta, cheio de lindas cidades come castelos e torres. As dolomites, montanhas entre a Itália e a Áustria, são consideradas uma das maravilhas do mundo por terem uma vegetação rica. Tive a oportunidade de visitá-las durante quase 15 anos, o tempo em que trabalhei perto da cidade de Treviso. Quantas recordações!

Nas costas das

montanhas havia enormes florestas de pinheirais, conservados pela república de Veneza, que castigava com a morte quem cortava uma arvore sem autorização. Nos pinheirais crescia uma quantidade enorme de cogumelos bons para comer. No meio 28


das florestas apareciam frequentes lagos de água azul e límpida que espelhavam as montanhas. As montanhas e as florestas eram locais de descanso, sobretudo quando eu viajava com grupos de jovens. Quando encontrávamos outros grupos de pessoas, inclusive estrangeiros, era uma festa. Tentávamos nos comunicar trocando informações e presentes. Outras vezes visitávamos os lugares com galerias e trincheiras onde, infelizmente, morreram tantos italianos e austríacos. Se aquelas montanhas pudessem falar, teriam contado histórias de dores, de frio, de doenças e de morte. Numa destas montanhas, durante um verão muito quente que provocou o derretimento da neve e do gelo do topo, encontraram uma mão humana. O episódio aconteceu uma semana após eu, meu irmão e minha cunhada termos feito uma escalada. Logo conseguiram liberar o corpo inteiro da vítima, uma múmia muito bem conservada. Ninguém imaginava a importância da descoberta, que foi de interesse histórico e científico. Otzis, ou a múmia do Similaum, foi um homem que viveu há 5.300 anos e é o cadáver mais antigo já encontrado, conservado no museu arqueológico de Bolzano. As montanhas que mais escalei foram as da região de Gran Sasso d'Itália, onde morava minha família. Foi ali que realmente me aventurei no esporte. Confesso que as primeiras vezes que fazemos a escalada gera nervosismo, mas o resultado é indescritível. Foram também nessas montanhas, conhecidas como Campo Imperador, para onde foi levado Mussolini no final da guerra. As montanhas significam muito não apenas para mim, mas para toda a minha família. Meu sobrinho, Cesare, conseguiu subir uma das pontas mais difíceis e perigosas do Himalaia há alguns anos. Depois de subir 6.000 metros, sendo 2.000 rochosos, fincou uma bandeira da cidade de Tivoli, onde moram meus irmãos, no cume.

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A Cruz com a neve congelada: uma vis達o celestial.

Com meu irm達o no monte Velino 30


Meu sobrinho subindo corajosamente com as cordas

Sobre o monte Similaum na vigĂ­lia da descoberta do corpo humano

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A descoberta do corpo congelado no monte Similaum

O corpo bem conservado hรก 5.300 anos, hoje no museu de Bressanone

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Capítulo VI Um Brasil acolhedor Viajei de Genova no mês de agosto, numa viagem até São Paulo de 15 dias. O transatlântico era enorme: quase 2.000 passageiros e 800 membros da tripulação. É preciso mesmo viajar assim para ter uma ideia do que é um transatlântico. Salas enormes, refeitórios de luxo, biblioteca, salas de leitura, teatro, piscinas etc. Leva-se tempo para conhecer tudo e ambientar-se. O que me alegrava era a tolda no alto do navio, de onde podíamos contemplar o céu e as estrelas durante a noite. Junto com outros passageiros vivi horas e horas de felicidade observando o céu e conversando com os amigos. Cada um tinha uma história e todos cultivavam um sonho para o futuro. Alguns já viviam no Brasil e voltavam de uma visita aos parentes. Outros emigravam pela primeira vez em busca de uma vida melhor. A terra brasileira era, para todos, uma terra abençoada e acolhedora. Estávamos todos impacientes para chegar. Quando o navio atracou no porto do Rio de Janeiro nos sentimos no paraíso. Foi uma maravilhar ver os ilhotes, as praias, as montanhas e, sobretudo, o Corcovado com o Cristo Redentor, que nos acolhia de braços abertos. Foi uma festa geral, pois alcançamos a meta sem problemas na viagem. Um marinheiro me confessou que, em 26 viagens realizadas, nunca tiveram um mar tão calmo. Eu viajava com um velho colega, o Pe. Roque Castellano, que já havia vivido por muitos anos no Brasil. Foi ele quem me deu as primeiras aulas de português e que, no Rio de Janeiro, me fez experimentar o guaraná, uma bebida desconhecia na Itália. Foi ele também que me levou até o Corcovado. Olhando a estátua do Cristo, 33


fiquei orgulhoso quando li em uma placa que a primeira iluminação do monumento foi por mérito do grande cientista italiano Guglielmo Marconi, que da Itália conseguiu realizar o feito, como comando à distância. O dia no Rio de Janeiro correu rápido. A visita foi acelerada, pois continuaríamos viagem até o porto de Santos. Quando saímos do navio tive outra surpresa. Meu colega, o Pe. Guerrino Ricciotti me esperava com uma comitiva de quatro carros. A acolhida fraternal, assim como a atenção que recebi dos amigos, me deram a sensação de estar em casa. Parecia que os milhares de quilômetros de distância entre eu e a Itália haviam desaparecido. Eu estava entre irmãos. Senti que realmente estava em casa quando, chegando a São Paulo, pude abraçar os padres Domingo Tonini e Giuseppe Losciale, velhos amigos. Passei os primeiros dias no Brasil olhando e admirando as obras que estavam crescendo ao redor da casa religiosa. Parecia que estava em um mundo irreal. Um colégio para as crianças do bairro, uma creche para os filhos das mulheres trabalhadoras do bairro, uma igreja nova. Tudo isso era obra dos padres, uma história recente que estava sendo criada. Me senti pequeno perto dos colegas missionários, corajosos e criativos. Vi ali um cristianismo prático e encarnado em realidades novas, algo muito diferente do que eu via na Itália, onde as obras já existiam de muitos séculos passados. Tentei inteirar-me logo nas atividades daquela comunidade. Fazíamos várias reuniões por semana para que eu entendesse melhor o trabalho e me encaixasse nas tarefas. Foi assim que soube da origem do colégio. Quando o governo instituiu o salário educação para assegurar a alfabetização de operários e seus filhos, o diretor de uma firma próxima à igreja, opositor ao governo, fez críticas duras à medida, mas reparou que havia uma cláusula permitindo que empresas privadas usassem o dinheiro para organizar estudos. O empresário, Jairo, procurou o Pe. Guerrino e fez a proposta para construir uma escola. O padre concordou, mas confessou que estava sem dinheiro. O Sr. Jairo 34


afirmou que tomaria conta da questão e, vinte dias depois, realizou uma reunião com donos de fábricas da redondeza e os convidou para colaborar com o projeto. Todos aceitaram. Um deles, o Dr. Fuchs, entregou ao padre um cheque que correspondia ao imposto educacional de um ano. Quando a construção terminou, os alunos começaram as atividades, mas precisavam de um diretor. O escolhido para assumir a função foi Orlando, um homem de grande capacidade. Os responsáveis por fazerem do colégio uma realidade eram todos de diferentes religiões, mas o bem sempre se soma, nunca se divide. A igreja ainda estava no início das obras e momentaneamente parada. O Pe. Guerrino dizia que uma igreja não faz uma escola, mas uma escola pode fazer muitas igrejas. Eu tinha trazido um bom dinheiro da Itália e, junto com a colaboração do povo, consegui levar a construção da igreja para frente. Reiniciamos os trabalhos no mês de setembro e, no dia de Natal do mesmo ano conseguimos inaugurá-la. Foi um milagre, fruto da dedicação e da generosidade do povo. Eu, que conheci pouco da língua portuguesa, vestia o macacão e ajudava nas obras assim que terminava de celebrar a missa. Hoje, após algumas melhorias, temos uma basílica. O engenheiro que idealizou o projeto foi Vaccari, que era professor e funcionário da prefeitura. Ele se inspirou na basília de São João de Letran para valorizar a nossa origem lateranense. A pequena creche foi criada na própria casa paroquial, quando os padres, ouvindo os pedidos de muitas mães trabalhadoras, cederam a casa e foram habitar locais improvisados da igreja. Para facilitar a vida das mães que precisavam chegar cedo ao trabalho, a creche abria às 5h, graças a Cenira Rissatto, uma senhora que se ofereceu a começar o trabalho bem cedo. Os pedidos por vagas cresciam a cada dia, mas não tínhamos um espaço muito grande para acolher os mais de 300 pedidos que recebemos. Decidimos aproveitar um terreno atrás da casa e construir um novo edifício, confortável e acolhedor para mais de 300 crianças. Graças a um convênio com a 35


prefeitura, pudemos garantir as vagas gratuitamente. Com a ajuda de amigos italianos foi possível equipar a creche com um sistema de aquecimento solar, o que reduziu bastante o custo da energia. O ambiente criativo e sempre a serviço das necessidades do povo pareciam, para mim, um sonho. Não eram apenas os santos que faziam milagres. Os milagres se repetiam todos os dias, graças à dedicação dos padres e a colaboração dos fiéis. Com a boa vontade, tudo é possível. Um exemplo disso é um posto de saúde na Vila dos Remédios, que funcionava em uma casa pequena e pouco apropriada para realizar atendimentos. Um dia, o Dr. José Ruben de Alcântara Bonfin, médico sanitarista, conversou comigo sobre a preocupação que tinha com relação ao espaço. Eu tinha um espaço bom para um posto de saúde e mostrei a ele, que ficou entusiasmado com a proposta. Em menos de um mês projetamos o ambiente, fizemos as adaptações e logo o posto começou a funcionar. Era para ser algo provisório, mas funcionou por mais de 30 anos, até que a prefeitura construiu o posto de saúde do bairro. A espera valeu a pena e, mais uma vez, demonstramos que quando se trabalha com amor e união para o bem da comunidade, Deus abençoa e ajuda. Quando terminamos as obras na igreja, um outro problema se apresentou. Na Itália as vocações começaram a diminuir. Como seria possível dar continuidade às obras sem preparar um futuro? Eu, que tinha trabalhado por 15 anos com a formação de futuros padres, apresentei um projeto. Me ofereci para acolher e acompanhar os jovens que tinham iniciado o caminho religioso em nosso seminário menor e que, por falta de estruturas adequadas, estavam se dispersando. O resultado foi que, durante a metade de janeiro de 1969, reunimos 10 jovens que iniciariam o noviciado. Nós os acomodamos da melhor forma possível, no andar térreo, mas também dedicamos algumas horas por dia para construir outros dois andares na casa. 36


Três jovens dentre esses dez chegaram ao sacerdócio. Os resultados parecem poucos, mas a semente estava lançada. Hoje, já com muitos padres brasileiros, temos jovens no noviciado, na filosofia e na teologia. O futuro está garantido. Um ano depois, um novo capítulo se abriu em minha vida. Fui participar de um movimento chamado “Crusilhos de Cristandade”, que estava fazendo sucesso no Brasil. O movimento consistia em convidar homens e mulheres de todos os ambientes sociais: político, trabalhista, educacional, da saúde... Todos participavam de um retiro de três dias, liderado por padres e pessoas da comunidade que davam um testemunho sobre a vida cristão. Muitas conversões aconteceram nos cursilhos e muitas lideranças surgiram na igreja. Do movimento nasceram belas iniciativas para os hovens nas favelas, nas escolas e nas prisões. Um grupo de cursilhistas de São José dos Campos em prol dos presos é mundialmente conhecido e teve sua história narrada no livro “Parceiros da Ressurreição”, de Mario Ottoboni. Em 1972 ele fundou a APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Uma iniciativa como essa seria muito bem-vinda hoje. Trabalhei por muito tempo com esse movimento, até ser convidado para assumir a direção espiritual de toda a cidade de São Paulo. A coordenação era formada por pessoas de grande prestígio. Um grande empresário, o Sr. Baumer, e sua esposa, Dona Luiza, nos acolhiam em sua casa, onde fazíamos reuniões para aprovar fichas e organizar Cursilhos. Luiza era, na prática, a verdadeira secretaria. Após um acidente de trabalho, perdeu o movimento das pernas e andava com dificuldade, mas atendia com entusiasmo todas as necessidades. Uma vez realizamos um retiro dentro da fábrica da família. Os frutos dessa amizade e parceria foram abundantes, pois conseguimos marcar presença em muitos aspectos da vida da comunidade. A igreja se beneficiou imensamente do esforço e passou a ser uma instituição totalmente voltada para a população, dando mais espaço aos leigos. 37


Foi nessa época em que foram ciados os Conselhos de Pastoral e os Conselhos administrativos, em que os cursilhistas participavam com grande dedicação. Hoje o movimento perdeu parte de sua eficácia. As lideranças passaram a acolher todos os tipos de pessoas, que participavam do grupo com o intuito de resolver problemas pessoais, não comunitários. Assim, o grupo perdeu sua força inovadora. Com os cursilhos, viajei pelo Brasil. Fui uma vez para Foz do Iguaçu, onde um amigo sempre pedia minha presença. Nunca me esqueço de um episódio em que esse amigo me apresentou duas filhas já adultas. Estranhei porque em visitas anteriores havia conhecido apenas uma das meninas. Diante da minha surpresa ele explicou o ocorrido. Contou que em uma sexta-feira ele e os amigos, também empresários, decidiram ir a um motel. Ele foi alvo de chacota dos amigos. “Está vendo? O nosso amigo se acha um bom católico, mas não recusa um motel”. Entrando no quarto, enquanto a moça começava a tirar a roupa, ele pediu para que ela parasse: - Moça, pare. Eu não vim aqui para te explorar. Me diz, por que você está vivendo essa vida miserável? Ela respondeu que foi por causa do pai, que bebia e maltratava a esposa e os filhos. Na casa dela faltava até comida e, por isso. Ela resolveu fugir de casa. Sem estudos e sem uma profissão, a moça não encontrou outra saída. - Eu te ajudo. Está disposta a sair dessa vida? – Perguntou meu amigo. A moça aceitou e foi morar na casa dele. Voltou a estudar e aceitou ser adotada como filha. O mundo não seria melhor se tivéssemos mais homens com vontade de fazer o bem e ajudar a quem precisa? Permaneci no movimento até a minha transferência para Caxias do Sul, em 1978. Meu novo cargo era a formação dos noviços e o cuidado de uma paróquia em um distrito pequeno, chamado Santa Lúcia do Piaí. Quando o bispo soube da minha atuação no cursilho, me convidou para 38


assumir a coordenação espiritual da diocese. Lá também consegui recolher ótimos frutos. Hoje perdi contato com os colaboradores, mas não esqueço os exemplos de vida cristã que tive o prazer de testemunhar. Um dia um dos casais coordenadores me comunicou que estava programando uma viagem à Europa para festejar 25 anos de casamento. Eram donos de uma grande fábrica e não lhes faltava dinheiro, por isso me confessaram que doariam à caridade um montante equivalente ao que gastariam com a viagem. Quando retornaram, passavam todos os dias diante de uma casa de repouso e resolveram parar por lá e perguntaram se os velhinhos tinham alguma necessidade. As necessidades eram tantas que os moradores tinham até vergonhar de contar. O casal pagou todas as despesas de uma reforma e, quando passavam diante da casa para ir até a fábrica, ouviam o agradecimento das velhinhas. “Deus lhes pague. Obrigada por tudo o que fizeram por nós”. Para eles, a gratidão das senhoras foi um presente maior do que a viagem. Como pároco de Santa Lúcia do Piaí, consegui realizar um bom trabalho. O distrito tinha cerca de 800 habitantes espalhados por uma vasta zona rural. O ambiente era simples, formado por gente trabalhadora. Havia por ali um pequeno hospital que estava fechado, mas com a permissão do visco consegui reativá-lo. A farmácia dava um pequeno lucro. O consultório odontológico atendia todos os dias. O médico do hospital, muito prestativo e dedicado, me ajudou a colocar em funcionamento uma sala cirúrgica. Para o aniversário de 50 anos da paróquia, restaurei a escola da comunidade, que precisava de muitas reformas. Ficava muito entristecido com a orientação dos professores, que incentivavam os melhores alunos a continuar os estudos na cidade grande. Eu defendia o contrário. Acreditava que os melhores alunos deviam aprofundar os conhecimentos agrícolas para que a produção rural progredisse. Realizei um congresso da juventude rural de Santa Lúcia, convidando técnicos e políticos de Caxias do Sul e Porto Alegre. O resultado foi um aumento na produção de leite, pois a população passou a escolher melhor a raça das vagas. 39


Um técnico em agricultura passou a acompanhar a produção agrícola e o comércio. Com a colaboração de alguns moradores, também consegui instalar iluminação elétrica em vários locais distantes do centro. Todos os moradores daquela cidade eram de origem veneta, região onde eu morava na Itália, e falavam o dialeto de lá. Eu me sentia em casa. Gostei muito daquele tempo e do trabalho que fiz para pessoas boas. Ainda hoje, 30 anos depois, tenho saudades dos anos passados no Sul e dos amigos que fiz por lá, que tinham uma conduta honesta, muita dedicação à família e ao trabalho.

A antiga igreja do Bairro dos Remédios

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A igreja atual, construída em 1968

O colégio N. Senhora dos Remédios, construído em 1957, chegou a atender 3.000 alunos, jovens e adultos..

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Capítulo VII

A mulher que revolucionou minha vida pastoral. O título deste capitulo parece exagerado. Que mulher é essa? E que tipo de pastoral revolucionou? Depois de tantas experiências nas minhas atividades sacerdotais, haverá ainda algo a acrescentar? Mas, por favor, termine esse capitulo e opine se ela não foi responsável por uma verdadeira revolução. Uma senhora chamada Ivaní Espindola tinha uma filha com talassemia e se encontrava mensalmente com outras mães para acompanhar a filha, que precisava de transfusões no banco de sangue. Lá, em 1984, encontrou a Sra. Neuza Cattassini, que também tinha uma filha com a doença. Diante do desconhecimento dos médicos e dos problemas enfrentados no tratamento oferecido pelas autoridades sanitárias, Neuza fundou, com outras mães, a Associação Brasileira de Talassemia (ABRASTA). Ela ficou sabendo que a doença tinha origem na Europa e na Itália a terapia estava mais avançada. Ivaní sugeriu que Neuza pedisse ajuda a mim, o pároco italiano. Foi dias depois nos encontramos. O assunto estava totalmente fora dos meus conhecimentos, mas meu irmão era policial e trabalhava no quartel geral de Roma. Enviei a ele uma carta pedindo que nos desse notícias sobre a doença, uma possível cura e qualquer outra informação. Em menos de 20 dias recebi a resposta com todas as informações e alguns endereços para contato, para os quais escrevi rapidamente. Recebemos uma resposta com uma grande quantidade de material sobre a doença e, surpreendentemente, uma passagem de São Paulo para Milão, onde seria 42


realizado o primeiro encontro internacional das associações de pais com filhos talassêmicos. Quem nos havia respondido era ninguém menos do que a Dra. Bianca Silvestroni, uma grande pesquisadora da talassemia e diretora de um centro de atendimento em Roma. Ela era católica e participante ativa de nossa paróquia de São José em via Nomentana. Tivemos muita sorte! Neuza aceitou o convite, mas exigiu que eu fosse junto para Milão, como guia e intérprete. Com a licença de meus superiores, viajei para a Itália com Neuza, sua filha e Ivaní. Na viagem conheci melhor a Sra. Neuza, que tinha uma longa experiência como voluntária no hospital Matarazzo, onde trabalhava em favor de doentes sem família e sem recursos. No hospital, começou a conhecer as falhas administrativas e o modo como os funcionários agiam de maneira fria. O hospital passava por uma fase difícil. Em razão de falhas burocráticas, as freiras que administravam a instituição deixaram a função de lado. Os voluntários chegaram a fornecer aos pacientes remédios recolhidos gratuitamente em outros lugares. Um dia, eles conheceram a paciente Lourdes Guarda, que há mais de 40 anos vivia deitada em um leito, vítima de um erro médico. Totalmente imobilizada, mas com grande fé, Dona Lourdes organizou um grupo de deficientes físicos junto com um padre jesuíta parapsicólogo, Geraldo. Assim criaram a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes Físicos. Muitas voluntárias do hospital não aceitaram o convite para participar do grupo, pois ajudar pessoas com deficiência é um trabalho duro. Mas Neuza aceitou fazer parte. Uma pessoa frágil pode se espantar diante de situações que parecem insuportáveis, mas outros aceitam o trabalho duro em prol dos que mais sofrem. Neuza abraçou a causa. Lutou por melhores condições no hospital, lutou para conseguir material e aparelhos úteis para os deficientes, participou da organização de encontros formativos e viveu sob o exemplo e as palavras fortes de Lourdes. Com tanta prática, ela fundou, em 1982, a ABRASTA, que foi uma 43


associação especial. A associação foi responsável por inúmeras iniciativas sociais e científicas destinadas à cura de doentes. Mexeu profundamente na política do sangue, questionou métodos de infusão dos médicos brasileiros, introduziu o uso dos filtros para evitar contaminações e importou um remédio que não existia no Brasil e anulava os efeitos negativos das transfusões. Foram muitas as ações de ABRASTA e de Neuza, que sempre foi totalmente dedicada à causa dos portadores de talassemia e anemia falsciforme. Com uma parceira inspiradora, foi assim que entrei no desconhecido mundo da saúde e das enormes dificuldades que o setor enfrenta no Brazil. Participamos de diversos congressos internacionais. O italiano foi só o primeiro. Conhecemos um mundo novo e aproveitamos o contato com outras associações para iniciar um diálogo que rendeu bons frutos. O trabalho com Neuza garantiu algumas melhorias no tratamento de pessoas com talassemia. Revolucionamos a coleta de sangue, traduzimos o protocolo para o tratamento, criado por Dr. Rio Vullo de Ferrara, e conhecemos a existência do Tribunal do Doente. Ao lado de Neuza, conheci outras pessoas importantes para essa luta. Uma delas foi a Dra. Model, representante da ONU. A ela, apresentamos o Dr. Naun, um brasileiro especialista em anemias hereditárias e em tratamentos preventivos de baixo custo. Em nosso colégio na Vila dos Remédios fizemos um exame preventivo em 1.200 alunos. O exame era muito simples. Em cada vidrinho de coleta existia um grão de arroz. Com a reação era possível descobrir se havia uma anemia ou não. Só que o exame não distinguia se a anemia era hereditária ou carencial, aquela que se dá por falta de ferro. Somente 180 alunos tiveram alguma alteração no exame. Quando a anemia foi investigada, 6 ou 7 alunos foram identificados como talassêmicos. Nos anos seguintes, participamos de congressos realizados em várias cidades italianas e europeias. Esse trabalho acabou por me levar ainda mais para a área da saúde. Em 1986 participamos de um congresso em Chipre. Conosco foi o 44


Dr. Fabron, um médico hematologista que se sensibilizava com a questão dos talassêmicos. Neste congresso nasceu a FIT (Federação Internacional dos Talassêmicos), um organismo mundial que, posteriormente, foi muito benéfico para os doentes no Brasil. Ganhamos a simpatia dos participantes da organização, que nos ofereceu mini-infusores e desferal, um medicamento revolucionário para pessoas com talassemia e que enfrentava muitas barreiras para ser importado. No Chipre ficamos chocados quando descobrimos que a ilha era dividida em duas partes: uma autônoma e outra dependente da Turquia. Era uma tristeza ver famílias separadas e lutando para se encontrar. Mesmo com a situação inusitada, houve uma confraternização entre os participantes do congresso. Foi um jantar solene, com a presença do presidente de Chipre e o Ministro da Saúde do país. Era também o dia do meu aniversário. Não sei quem foi que revelou, mas ao final do jantar um cantor italiano improvisou uma versão de Garota de Ipanema em minha homenagem: “Dom Bruno de Ipanema”. Em 1987 fomos a um congresso em Atenas. Jamais imaginei que visitaria a cidade, a capital da história e da cultura antiga. Quando subimos no cole para admirar o Partenon, tínhamos a impressão de reviver a antiga história grega. No congresso, um médico disse que a talassemia poderia ser evitada. Um exame genético na mãe era capaz de identificar o gene da doença ainda durante a gravidez. Em caso de confirmação de que o bebê tinha talassemia, podia ser feito um aborto. Cerca de 150 jovens com a doença estavam presentes e se levantaram para afirmar que sabiam das dificuldades na vida, mas que eram gratos aos pais por suas vidas. Foi uma vitória da vida contra a morte. Em 1988 a Sra. Neuza, aproveitando as amizades criadas em vários eventos que fomos, organizou um congresso ítalo-brasileiro em São José do Rio Preto. Da Itália, vieram ao Brasil o Prof. Rino Vullo; o Dr. Masera, descobridor da cura da leucemia, e o Dr. Giansanti, representante de uma organização italiana CRIC. Mais de 150 pais participaram do congresso, que apresentou propostas de melhorias para a cura dos talassêmicos. Os presentes também sugeriram que 45


houvesse uma colaboração maior entre a Itália e o Brasil. Foi triste ver a recusa de médicos para participar de reuniões com pais, mas a presença de especialistas italianos convenceram os brasileiros a permanecer nos encontros. Foi um episódio que comprovou, mais uma vez, a situação retrógrada da classe médica brasileira. Nossa participação constante e ativa nos congressos nos levou a conhecer uma ONG de Reggio Calabria, no sul da Itália. Tivemos dois encontros com a diretoria da ONG, com a qual elaboramos um projeto de US$ 1 milhão para melhorar o conhecimento da classe médica no Brasil. O governo italiano aprovou o projeto e nos deu o dinheiro, que serviu para ajudar na pesquisa, contratar médicos para estudarem a doença e para produzir material de divulgação sobre a talassemia. Além disso, tínhamos a intenção de criar um laboratório de hemoglobinopatia, que denominaríamos “Centro de Pesquisa para Anemias Rino Vullo”. Antes não existia um laboratório apropriado para a pesquisa de anemias em nenhum país da América Latina. O Hospital Matarazzo, também conhecido como Humberto Primo, foi o local escolhido para instalarmos o laboratório. Porém, não conseguimos o alvará. O hospital estava em dívida com o estado e até hoje não tem destino certo. A negativa foi um duríssimo golpe contra nosso desempenho. Mesmo assim, não desistimos de apoiar a Federação Internacional dos Talassêmicos. Estabelecemos bons contatos e continuamos a participar dos congressos. Fomos para Sardegna, uma ilha italiana; para Nice, na França e também para Nova York, em 1990. Em Nice, tínhamos pouco dinheiro. Para economizarmos na hospedagem, encontramos uma agradável solução. Quase na divisa da Itália com a França morava um casal parente de um colega italiano e missionário no Brasil, Pe. Novaro. Pedi ajuda a ele e aos parentes, que nos arrumaram acomodações e ofereceram até mesmo o carro para irmos ao congresso todos os duas. Neuza, ótima motorista, era quem dirigia o carro, mas na fronteira oferecia o meu passaporte aos policiais. É muito bom ter amigos! Em Nova York o desafio foi outro. Pedi hospedagem ao superior da nossa 46


comunidade no Bronks, um bairro que, na época, era bastante perigoso. A senhoras não gostaram do local, mas assim que chegamos o pároco nos disse para fazermos um passeio pela região, para que todos soubessem que éramos seus hóspedes. Muito desconfiados, visitamos as ruas no entrono da paróquia e o pároco me deu as chaves da casa. O congresso não apresentou muitas novidades e terminou em um restaurante fora da cidade. Não foi fácil encontrar um táxi disposto a nos levar até o Bronks. Cansados, chegamos à casa perto da meia noite, mas eu não encontrava as chaves. Havia perdido o molho por culpa de um furo nas calças. As mulheres ficaram apavoradas. As acalmei dizendo “Não estamos aqui para turismo, massa para uma obra boa. Tenham fé em Deus e vamos rezar uma Ave Maria”. Todos rezamos, com medo de um homem que se aproximava. - O que vocês querem? – Ele perguntou Expliquei o porquê de estarmos lá e o problema que estávamos tendo para entrar na casa. Ele nos acalmou. - Não tenham medo! Eu abro. – Pegou uma chave e entrou. Ele era o tesoureiro da paróquia. Ao longo dos anos seguintes, o bispo, conhecendo meu interesse na área da saúde, me convidou a organizar a pastoral da saúde diocesana. Eu precisava organizar tudo: encontrar voluntários, formar grupos e orientar o trabalho. Não foi nada fácil, mas também não era um desafio impossível. Depois que reuni a comissão diocesana, ocupamos uma sala da cúria para realizarmos reuniões mensais, organizarmos atividades, retiros e cursos de formação. Para facilitar o trabalho dos voluntários, também compilamos um livro, “A Pastoral da Saúde na Diocese de Osasco”. Nele detalhamos as diferentes dimensões da pastoral da saúde, a dimensão samaritana, a dimensão comunitária e a dimensão político-sanitária. Chegamos até a enviar um representante da pastoral a Lourdes, no dia mundial dos enfermos. Na época ninguém poderia imaginar que uma viagem como essa poderia acontecer, mas foi um sucesso. Mesmo com muito trabalho, não deixei de atuar ao lado de Neuza. 47


Participamos da criação de algumas associações, entramos em contato com outras já existentes e formamos um fórum de patologias do estado de São Paulo. Quando apresentamos o projeto ao Secretário Estadual da Saúde, o Dr. Guedes, ele nos concedeu uma sala para nossas reuniões mensais. Com um grupo de senhoras compilamos um livrinho com todos os diretios do doente. Ficamos surpresos quando soubemos que um deputado estadual apresentou nossas propostas à Câmara e elas se tornaram lei. Também enfrentamos outro problema. Muitas famílias do Norte do país, quando descobriam que os filhos tinham alguma doença grave ou rara, como a anemia falciforme, vinham a São Paulo em busca de tratamento. Aqui, entretanto, não encontravam dinheiro ou apoio. Como poderíamos ajuda-las? Um dia me deparei com um grande prédio abandonado na rua Guaicurus, no bairro da Lapa. Descobri que o chamado “tendal” havia sido um depósito de carne para a cidade. Localizado próximo de uma estação de trem, com fácil acesso a ônibus e bastante espaço, achei que poderíamos criar ali um centro de acolhida para as pessoas que vinham em busca de apoio. O Secretário Municipal de Saúde daquela época, Eduardo Jorge, adorou a proposta e me deu a planta do prédio para que realizássemos as devidas reformas. Fui para a Itália em busca de dinheiro e, quando voltei, descobri que o prédio tinha sido destinado como sede da subprefeitura da Lapa. Foi uma oportunidade perdida. Em 1988 Neuza me convidou para participar da constituinte em Brasília. A Comissão das Minorias visava a participação popular nas decisões que impactavam diretamente na sociedade. Tivemos a possibilidade de participar da implantação dos conselhos de saúde e criamos conselhos gestores para garantir a participação democrática da população em políticas de saúde. Um ano depois, tivemos de lidar com um problema que ainda hoje é recorrente no Brasil. Uma epidemia de dengue se alastrava por todo o Brasil e as medidas tomadas pareciam insuficientes. Quando questionamos as autoridades, ouvimos que faltava dinheiro. Respondemos que não precisávamos de dinheiro, mas de colaboração. A pastoral da saúde assumiria o tabalho, mas precisavam da 48


orientação que somente os técnicos da secretaria poderiam dar. Assumi pessoalmente a coordenação da campanha na zona norte de Osasco, onde viviam cerca de 400 mil pessoas. Partimos ao ataque em um domingo nas 13 paróquias da região. Na minha paróquia, na Vila Jaguara, a pastoral me pediu um tempo de fala após a leitura do evangelho. Em poucos minutos organizaram um quarto com cama, um doente, vasos de flores e recipientes com água. Senhoras vestidas com asas de pernilongo voavam de um objeto para outro, simulando que tiravam a água depositada. Todos os fiéis aprenderam a lição. No domingo seguinte, em todas as paróquias, as equipes da pastoral da saúde vestiam camisetas decretando a “Campanha contra a dengue”. Eles visitaram todas as casas, mostrando como o mosquito se multiplicava e convidando os moradores a jogarem fora vasos e recipientes que poderiam acumular água parada. Os jovens da comunidade iam ao encontro da equipe para oferecer água, café e bebidas. Ao final do dia, a pastoral familiar preparou um almoço para todos os envolvidos na campanha. A campanha não custou nada ao governo, mas foi um exemplo da dimensão comunitária da pastoral da saúde. Termino o capítulo com a pergunta inicial. Entende por que disse que a revolução da minha vida pastoral se deu por mérito de uma mulher, a Sra. Neuza Cattassini? Sem ela, nunca teria saído do meu pequeno mundo.

Hospital Matarazzo, sede da ABRASTA, aonde foi construído o laboratório de hemoglobinopatias para as talassemias, com a verba do Governo Italiano.

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Capítulo VIII

Uma tarefa imprevista: superior geral Em 2000 a minha vida mudou de maneira imprevista e radical. A família religiosa dos Cônegos Regulares Lateranenses realizou, em julho, uma assembleia geral para eleger um novo superior geral. Para uma congregação religiosa, um capítulo geral é um momento de suma importância. Nele avaliamos a caminhada do último sexenio, projetamos os futuros planos de ação e, por último, elegemos o novo superior para o sexenio seguinte. Como conselheiro do Brasil, participei do capítulo. Foi um grande prazer encontrar velhos e novos colegas, representantes dos países onde a congregação atua: Itália, Espanha, França, Bélgica, Inglaterra, Polônia, EUA, República de Santo Domingo, Porto Rico, República Central da África, Argentina e Brasil. O capítulo aconteceu em Gubbio, uma cidade onde morei no início de minha vida religiosa e da qual guardava ótimas lembranças. Depois de uma apresentação geral sobre as novidades positivas e negativas, que fazem parte da vida religiosa, chegou a hora de eleger o novo superior geral. Assim como as eleições no Brasil, o eleito precisava alcançar 51% dos votos e, depois, podia ser eleito com a maioria simples. Foi nesse momento que levei um susto. Meu nome apareceu como candidato. Pedi um tempo para refletir e decidir se deveria escolher o cargo e renunciar às atividades no Brasil, que me deixavam muito satisfeito. Dei o meu consentimento no dia seguinte, entregando tudo nas mãos de Deus. Eleito, voltei ao Brasil para entregar minhas tarefas a outras pessoas. Não foi fácil, sobretudo quanto ao trabalho no campo da saúde. Era difícil achar alguém que tivesse a mesma experiência que eu. No dia 28 de dezembro, na presença de dois bispos, dos confrades e de muitos fiéis e amigos, recebi a bênção abacial e, finalmente, viajei para Roma. 52


Todos já ouviram falar dos franciscanos, salesianos ou jesuítas, mas você sabe quem são os Cônegos Regulares Lateranenses? Hoje somos uma minoria de religiosos e sem atividades específicas, mas a nossa família é a mais antiga, tendo surgido antes mesmo dos beneditinos do século V e dos franciscanos, do século XII. A congregação surgiu após as perseguições contra os cristãos na época do Império Romano. A Igreja, que até então operava clandestinamente, começou a se organizar. Alguns bispos recolheram padres, que trabalhavam como podiam. A maioria era casada, mas havia também homens solteiros, dedicados ao trabalho missionário. Houve então bispos que convidaram esses sacerdotes para trabalharem e viverem juntos, para facilitar a organização das ações. Santo Eusébio, bispo de Vercelli, uma cidade localizada ao norte da Itália, foi um dos primeiros a reunir os sacerdotes e outros bispos seguiram o exemplo. Um deles foi Santo Agostinho que, quando eleito bispo, pediu a presença de padres a seu lado, criando uma regra conhecida como a Regra de Santo Agostinho. Em pouco tempo aumentou o número de padres em toda a Europa e também na África. No século XII existiam cerca de 3 mil comunidades, algumas ligadas a bispos, outras formando mosteiros autônomos. A família canonical deu à Igreja 20 papas, dois quais 10 foram canonizados. O trabalho dos cônegos e a criação de centros culturais filosóficos e teológicos deram origem às célebres universidades de La Sorbonne, em Paris, e de Oxford, na Inglaterra. Pouco tempo atrás, festejamos os 800 anos da abadia de Carcóvia. Em 2015 comemoramos os 1.500 anos de abadia canonical de São Maurice, na Suíça. Foi em meio a tanta história que fui projetado a Roma, na basílica de São Pedro “in vincolis”, que significa “as correntes”. O nome se dá pois é na basílica que estão as correntes do apóstolo São Pedro, que foi perseguido pelo imperador Nero. A igreja também tem uma história extraordinária. Foi inauguraa em 438. As colunas de sua fachada, em estilo dórico, foram doadas pelo imperador Valeriano a 53


pedido de sua esposa, Eudossia. No interior, além das correntes de São Pedro, encontra-se a estátua de Moisés, de Michelangelo. A escultura atrai milhares de visitantes e admiradores. A antiga moradia dos cônegos, no tempo da supressão das ordens religiosas no século XVII, é sede da universidade de engenharia de Roma. Foi lá onde foi realizada a primeira ligação elétrica, via fios de cobres, de Tivoli até Roma. Para a sede central de nossa congregação foi reservado o lado esquerdo da basílica. O prédio acolhe um rico acervo com 3 mil pergaminhos antigos, várias coleções de livros, óperas, manuscritos preciosos e uma coleção de 200 cópias do famoso livro 'Imitação de Cristo”, do confrade Tomaso da Kempis. O livro é fonte de espiritualidade e foi traduzido em todas as línguas. A basílica também abriga um dos mais antigos órgãos de Roma, datado do século XVI. Pessoalmente, conversei com o cardeal de Washington para que patrocinassem a reforma. O instrumento foi considerado pelos técnicos o mais antigo e original de Roma. Diante de tanta riqueza histórica, artística e cultural, me senti pequeno. Porém, com boa vontade e com a graça de Deus, dei início ao meu mandato como superior geral. Por meio da nossa revista “Il Salvatore”, iniciei um contato com meu confrades. Em seguida, visitei as comunidades da Itália e da Europa. Finalmente, tomei coragem e visitei as comunidades na América do Norte, na América do Sul e na África. Essas visitas me enriqueceram bastante. Percebi como tudo é relativo nesse mundo. Vi como alguns costumes considerados ultrapassados na Europa continuam vivos em outros países. Vi também expressões religiosas diferentes, que podem nos escandalizar, mas que expressam a religiosidade de alguns povos. Na República Centro-Africana, pude constatar algumas dessas enormes diferenças. Lá não existem cidades, mas aldeias, sem ruas, sem luz e sem água. Nçao existe uma organização social e os costumes são primitivos. Nem mesmo um cemitério existia. Os mortos eram enterrados sem sinais de reconhecimento. As Igrejas eram os únicos espaços nessas comunidades em que havia a manifestação de 54


uma cultura própria, mas organizada. As mulheres vestiam hábitos variopintos. os ajudantes se vestem bem e todos participam dos cantos. Testemunhei um mundo diferente, mas muito bonito e com expressões profundas de fé. Passei a admirar ainda mais nossos missionários, que se dedicam inteiramente à construção de pequenos ambientes adibidos à escola. Nessas comunidades não existem livros, ou cadernos. Os alunos levam pequenas lousas de ardósia e escrevem com pedaços de gesso. Com essas visitas, pude admirar o quanto os méritos da Igreja são grandes. A instituição se preocupa em transmitir cultura, educação e valores cristãos a todo o mundo. As mulheres também fazem parte de nossa família religiosa. As Cônegas Regulares Lateranenses são irmãs de vida contemplativa, dedicadas à uma vida de oração. Hoje, há mosteiros na Itália, Espanha e nas Filipinas. Graças às orações delas, enfrentei com confiança tantas dificuldades. O poder da oração é grande. Outro compromisso que atendi com amor e fidelidade foi a participação em assembleias trienais nos diferentes países. Eram momentos importantes para a vida canonical. Não faltavam problemas. Era especialmente difícil conciliar mentalidades antigas com a atual. A sociedade mudou bastante, principalmente em países em desenvolvimento. Na Argentina testemunhei um caso doloroso. Um padre de nossa congregação foi acusado de pedofilia. Intervi imediatamente, como era meu dever, suspendendo-o de suas funções e impondo um ano de retiro. Os jornais de Buenos Aires relataram o caso e minha foto apareceu nas páginas dos jornais. O processo foi severo e a investigação intensa e o padre foi absolvido. A acusação foi uma vingança pelas duras decisões que o padre havia tomado contra funcionários de um colégio que dirigia. Mas minhas funções também promoveram momentos de alegrias, como as reuniões semestrais com os superiores gerais de todas as famílias religiosas, que terminavam com um encontro no Vaticano com o Papa. Em um desses encontros eu estava usando um hábito de pano branco, igual 55


ao do Papa Bento XVI, que me perguntou: - Mas quem é você? - Santidade, eu sou o rascunho – respondi. Ele deu uma risada e me abençoou. O hábito branco era, antigamente, o mais barato e não representava nenhum luxo. Custosos eram os tecidos coloridos, que exigiam tinturas. Meu mandato durou 12 anos. Em 2012 passei o bastão ao meu sucessor. Bem ou mal, cumpri a minha missão. Nosso estatuto permite que o ex-superior geral escolha onde quer morar. Não poderia escolher outro lugar que não o Brasil, minha segunda pátria.

Visita ao papa São João Paulo II.

Encontro com o papa Bento XVI

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Capítulo IX A volta para o Brasil Voltei para o Brasil em outubro de 2012. Minha família não gostou da escolha. Mas não podia ser diferente. Com mais de 30 anos de permanência, com tanto trabalho realizado, com tantos amigos, não podia escolher outra sede, sobretudo por que me sentia ainda em pleno vigor para retomar muitas antigas atividades pastorais. Em janeiro de 2013, na assembleia provincial, fui eleito prior da casa na Vila dos Remédios e formador dos seminaristas teólogos. Assumi os dois cargos com coragem e dedicação. Sobretudo o de formador. Era meu desejo preparar os jovens para que vivessem plenamente nossa dupla vocação: a vocação sacerdotal e a vocação religiosa. Reparei que a as exigências da vida religiosa haviam sido deixadas de lado nos últimos anos. Para viver uma vida comum não basta morar sob o mesmo teto e comer as mesmas refeições enquanto cada um vive um projeto de vida pessoal. Isso acontece em um hotel, onde as pessoas dormem no mesmo edifício, mas não têm nada em comum uns com os outros. Nós cônegos, que temos como carisma a vida comum, devemos dar mais ênfase a esse aspecto da nossa vocação e, para isso, existe apenas um caminho: colocar a nossa vida em comum, planejando e avaliando em comum o nosso trabalho e executando-o segundo as funções determinadas em conjunto. Para isso, é necessário realizar reuniões semanais e aprender a arte do diálogo, para que exista a liberdade de não concordar, mas sem ofender quem discorda. Pedi a dispensa da função de formador um ano depois. Me sentia muito velho e distante das novas gerações. 57


Cada dia mais vejo a dificuldade do diálogo entre as velhas gerações e as novas, mas tenho a esperança de que os mais novos encontrem o caminho para viver o nosso carisma. Visitando velhos amigos do bairro encontrei de tudo. Alguns haviam falecido, outros estavam em situação debilitada, outros haviam se mudado e muitos outros continuavam a me receber com saúde. O bairro também tinha mudado. Novos centros habitacionais surgiram, as lojas da região melhoraram e passaram a oferecer produtos que só encontrávamos em bairros centrais. Os padres tinham realizado o velho sonho da construção de uma torre muito alta na igreja, visível de todos os lados. Também descobri a sede de um canal de TV. Infelizmente, também encontrei sinais de falso progresso. Acredito que cada bairro deve ter um coração, um centro de convivência e de encontros familiares. A Avenida dos Remédios sempre foi esse coração. Era ali que os moradores se encontravam, plantavam árvores, passeavam e tomavam sorvete com os amigos. Quando voltei ao Brasil encontrei a calçada reduzida. O espaço foi destinado ao estacionamento de carros. A praça, que recepcionava os visitantes do bairro, também piorou. Grandes seringueiras, que haviam sido plantadas por alguns dos primeiros moradores da região, cresceram descontroladamente. Os galhos das árvores passaram a esconder a fachada da igreja e as raízes destruíram o piso, o que dificulta a caminhada pela calçada. A mudança mais triste, entretanto, foi o fechamento da creche Padre Guerrino. O projeto havia sido feito por mim pessoalmente, com o dinheiro que trouxe da Itália. Quando voltei, encontrei a creche fechada. Explicaram que uma lei federal, que proíbe o município de realizar convênios fora da área municipal, era o problema. De fato, quando o município de Osasco foi criado, a Av. dos Remédios foi escolhida como divisória entre os dois municípios. 58


A creche estava fechada, mas meus colegas pensavam em soluções. Eu apresentei uma proposta: transformar a creche em um Centro Assistencial. Assim nasceu o Centro Assistencial Padre Guerrino, graças à boa vontade de todos os confrades. Não foi fácil adaptar os espaços. Convidamos um jovem fisioterapeuta, Dr. Riccardo, a mudar para a nova sede. Também convidamos o Sr. Nil, dono de um laboratório, a ocupar uma sala do centro. Os vicentinos, que tinham uma pequena distribuição de remédios aos pobres, passaram a ocupar duas salas para armazenar e distribuir os medicamentos que recebíamos de alguns benfeitores. Também oferecemos um consultório à Dra. Mônica, dentista que passou a atender a comunidade mais pobre a preços baixos. Por último, acolhemos também a entidade “Instituto de Ação Comunitária”, que atua no campo habitacional em prol de famílias sem teto. Mais uma vez, a coragem, a união e o sacrifício de pessoas boas propiciou a oferta de serviços imprescindíveis para famílias pobres da periferia. Voltei ainda a acompanhar uma equipe de casais cristãos do movimento “Equipes de Nossa Senhora (ENS)”, que resgata valores cristãos da família: a fidelidade e a perseverança. Quando iniciei o movimento, em Alphavile, eram apenas duas equipes. Hoje são mais de 20 equipes. Em reuniões mensais, os casais estudam a família no mundo moderno. O Papa Francisco convocou um grande encontro de cardeais e bispos para estudar os problemas da família moderna. Cristãos foram convidados a preparar o encontro mediante a resposta de um questionário sobre o tema. Juntos, refletimos sobre o assunto e, no fim, tivemos uma bela surpresa. O casal responsável pelo movimento em São Paulo foi convidado a participar do encontro em Roma. Esse é um sinal da promoção de leigos na condução da Igreja. Deus me concedeu a graça de uma vida variada, cheia de experiências e repleta de pessoas dedicadas à causa do bem. Sempre levanto a bandeira do otimismo. O mal faz muito barulho. O bem é 59


mais silencioso. Mas não tenha dúvidas: existe muito bem no mundo. Para descobrir boas ações, basta percorrer o mundo. Pais e mães, cultos e analfabetos, ricos e pobres, todos estão motivados a fazer o bem.

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BRUNO GIULIANI Abade dos c么negos regulares lateranenses

Uma Vida... um romance: da It谩lia ao Brasil.


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