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A palavra "Judith" vem do hebraico "‫"תיִדֹוי‬ (Yehudith), que significa "mulher da Judeia" ou "judia". É a forma feminina do nome "Judá"


Judith


"O judaísmo é uma religião de perguntas e respostas." Hannah Arendt (1963)


Preâmbulo “Do umbigo para cima tudo o que poderia vir as ser, umas pernas cruzadas do umbigo para baixo ocultando o nome.” Judith surge como o embrião de uma ideia numa conversa noturna em líquido amniótico. Foram necessários seis paus e as duas pranchas de madeira para receberem umas pernas de barro por identificar. Deu-se o encontro inesperado com uma cadeia de rebuçados feitos de plástico barato. Estava montado um abecedário de ADN que viria a conter a voz do primeiro nome tirado à sorte. Judith nasceu assim, sem pescoço, mas com um colar de planetas configurando a constelação do seu nome. A personalidade saiu à rua e começou a levantar as máscaras dos fantasmas possíveis. Em simultâneo, extraiu-se do ouro das contas o marfim de todas as cores imagináveis. E com um gesto simples iniciou-se a invocação dos sistemas galácticos para o lugar das vísceras. No tecto do ventre cravaram-se as extremidades de uns dedos que acariciaram o corpo enquanto o vestiam. Em cada esfera de Judith pernoitava um mundo provável de gestos numa meia donzela. Fomos obrigados a assumir aquilo que não se via e a tolerar os sentidos tomados pela incompreensão. A incógnita esculpindo a si mesma assumiu o lugar de repetição na história. E Judith tornou-se a protagonista. As três entrevistas publicadas neste número do fanzine retratam três momentos históricos fictícios no qual Judith assume o papel de judia e anfitriã. No primeiro momento recebe o Dilúvio no formato de pessoa conversante. A segunda entrevista em modo e reencontro acolhe o personagem bíblico Holofernes, e na terceira e última Judith convida Fátima Ahmed uma mulher palestiniana de consciência revolucionária.




Judith conversa com o Dilúvio.

Judith: Olá a todos e sejam bem-vindos a este programa. Hoje, temos connosco um convidado muito especial. Trata-se da mais célebre tempestade da história ocidental, o grande Dilúvio. Dilúvio, obrigado por ter aceite o convite. Dilúvio: É um prazer estar aqui e conversar consigo num dia de sol tão reluzente. Judith: Então, o Dilúvio. É um nome um tanto sinistro. O que é que significa? Dilúvio: Por norma, um nome significa sempre menos do que aparenta ser. Entretanto, existem diversos significados. O mais comum e citado é o eclipse aquático das formas sólidas. Há ainda quem diga que, simbolicamente, represento a mudança por meio da destruição e regeneração da vida. O único aspecto garantido é que, comigo, haverá seguramente abundância de água. Judith: Quais são as suas expectativas em relação a este programa? Dilúvio: Judith, o que posso dizer é que, até recentemente, as condições atmosféricas eram imprevisíveis e, portanto, impossíveis de manipular. Quando seu avô Noé iniciou a engenhosa epopeia com a construção da arca, a natureza ainda mantinha um equilíbrio de forças, ocultando suas profecias mais belas. Por esses motivos, sou levado a pensar que, não esperar nada pode ser considerado um acto de inteligência, pois o pensamento pode interferir naquilo que se ouve.


Judith: O clima? É um tópico bem amplo e a bíblia um livro criticável do princípio ao fim. Por onde quer começar? Dilúvio: Sabe uma coisa Judith, são dois filhos da mesma mãe e no que se refere ao pai sabe Deus quem foi. A religião e a meteorologia são irmãs separadas na infância, ainda que, de cada lado, empurrem a carroça da fé pelas estradas sinuosas das grandes seitas. A história da Humanidade é a história do medo. A combinação das condições atmosféricas com o medo do desconhecido garantiu um lugar de honra a qualquer ideia que confinasse o divino no céu. Dessa forma, Deus poderia comandar os seres humanos de uma maneira semelhante ao modo como as máfias criminosas o fazem actualmente, directamente de sua prisão.

Quanto mais segredo envolverem essas operações, maior será o carácter sacramental de suas acções. Judith, seu avô Noé soube muito bem como executar esse plano, por isso conseguiu alienar as massas com suas cantilenas para depois os nomear como animais.






Judith: Você nem imagina quantas vezes o avô nos contou essa história, e como as suas peripécias nos fascinavam, usadas para convencer aquela gente que não tinha onde cair morta. E agora, o que podemos esperar do clima do futuro? Dilúvio: Querida Judith, esta é a pergunta do milhão. E a resposta é simples: os multimilionários já estão a tratar disso. Deus ex Machina tomou de assalto a sensibilidade dos seres humanos com o propósito de desumanizá-los. É notório nos dias que correm como a raça humana está a sofrer uma regressão gradual no seu comportamento político, social e mesmo cultural. E tudo isso graças à mitificação das ferramentas que os confundem. Judith: Então é na confusão que se fazem os melhores negócios? Dilúvio: Exactamente, Judith, você disse muito e disse bem. Deixámos de sentir o movimento das luas para simplesmente enumerar o tempo em intervalos numéricos de escuridão espiritual. Esse é o grande negócio e está funcionando como um processo de acumulação. No entanto, acredito que a mão invisível da Natureza se encarregará de operar os planos de uma outra matemática. A consolidação da incompetência ocorrerá, quer queiramos ou não, uma vez que o regime do desperdício só reconhece valor naquilo que é acumulado.


Judith: Podia explicar essa ideia de uma forma mais simples? Dilúvio: A Judith faça o exercício de imaginar alguém empanturrando-se até à exaustão. Essa pessoa nunca satisfará o seu apetite, pois é tão insuficiente aquilo que consome como a vontade de privar aos demais. Este é o cardápio milenar da fome utilizado pela legião do pãodurismo. Judith: Obrigado, Dilúvio, pela ilustração esclarecedora. Não tenho dúvidas de que os nossos espectadores em casa entenderão claramente o absurdo da situação. Dada a magnitude das tragédias humanas, qual a necessidade de lidarmos com catástrofes naturais? Dilúvio: A grande necessidade actual reside em compreender a diferença entre o que é natural e o que foi artificialmente naturalizado, uma vez que é inerente à natureza do artificial desmontar-se por si mesmo. Judith: Dilúvio, diga-me que há esperança em algum momento, e que você voltará a ocupar o lugar que a Natureza lhe reservou! Dilúvio: A austeridade natural ensina uma compreensão mais profunda de nossos limites, mas nem todos os seres estão prontos para aceitar os factos que rejeitam. A grande maioria prefer sucumbir à privação artificial imposta por um sistema social de privilégios.


Judith: De que maneira os tecnocratas podem influenciar as mudanças no nosso cenário actual? Dilúvio: Sabe, Judith, após servir à Natureza, estar sob a tutela de Deus e agora nas mãos de delinquentes humanos, acredito que é hora de virar o planeta do avesso e enviar esses vermes para uma órbita distante. As correntes celestes cuidarão de reduzi-los a pequenos filamentos de luz noutras estrelas de universos distantes. A idade já pesa, estou cansado das grandes epopeias climáticas, e o espetáculo do aquecimento global parece, naturalmente, fora do seu tempo. Judith: Em que medida a capacidade de fazer profecias está relacionada à compreensão científica do futuro? Dilúvio: Sendo eu um fiel servo da Natureza, estou impedido de reconhecer qualquer profecia. A vida traz consigo um livro de instruções muito simples, e todo ser vivo possui a capacidade de compreendê-lo e extrair lições de forma livre. No entanto, deixo aqui o desafio àquele que possa comprovar cientificamente que o futuro pertencerá aos seres humanos, se é que o tempo alguma vez os considerou. Judith: Sem dúvida, Dilúvio. Certamente, ficaram no ar muitas interrogações, simultaneamente com uma atitude positiva perante o mecanicismo da vida. Quero então despedir-me agradecendo a ti e a todos em casa. Espero que tenham desfrutado deste serão, porque eu desfrutei. Muito obrigado e boa noite. Dilúvio: Obrigado.







Judith conversa com Holofernes.

Judith: Senhoras e senhores, bem-vindos a mais um episódio cativante sobre a história da miséria humana. Esta semana mergulhamos no mito que transcendeu a realidade e se converteu numa constância. O nosso convidado de hoje é uma figura intrigante, imortalizada na famosa pintura "Judith decapitando Holofernes.". Por favor, juntem-se a mim para dar as boas-vindas a Holofernes. Holofernes: Obrigado, Judith. É uma honra estar aqui e prometo que não vim para me vingar. Judith: Estamos seguros de que não o fará, Holofernes. Tenho plena confiança na nossa equipa de produção e nas normas de segurança. Vamos começar com o quadro que o imortalizou. O que se sente quando se é decapitado em pleno teatro de guerra? Holofernes: Sentem-se muitas coisas, Judith. Se um dia lhe interessar a experiência, procure algo que a seduza e simplesmente deixa-se levar. Verá quando chegar ao momento critico o valor daquilo que a seduziu. Prometo-lhe que o tempo e a percepção das consequências desaparecerão assim que o corpo se vê manchado da vergonha ao sentir-se mutilado. E você, Judith, que sentiu quando a espada que segurava atravessou a carne e os ossos alheios?


Judith: Ufa, Holofernes, não esperava essa pergunta. O que senti essencialmente foi que tinha perdido a cabeça e quando me interroguei após o acto apercebi-me imediatamente que era já tarde demais. Quando reflectimos damo-nos conta como a precipitação sai sempre derrotada frente ao tempo. Holofernes: Excelente, Judith, a sua resposta ilustra na perfeição o quadro que ainda não foi pintado pelo pintor que está para nascer. Tomo a liberdade então, de homenagear essa obra do futuro dando-lhe o título à peça, “Quando duas cabeças se perdem num acto de desespero”. Judith: Obrigada, Holofernes, é de uma generosidade imensa. Considera com isso possível repintar a cena de modo a que nenhum de nós se volte a encontrar em tamanha tragédia? Holofernes: Obviamente que sim, Judith. Consigo, imaginar os nossos corpos entrelaçados buscando a flor da moral onde os heróis a renunciaram. Consigo ter a revelação sobre como as dinâmicas de poder e resistência se extinguiriam. Consigo, porém, rever toda a autoridade empatada com a ousadia abrindo espaço para que nenhuma mulher ou outro ser fosse considerado o elo mais fraco. O social vive muito mais à superfície do que a sociedade.


Judith: Quanta teatralidade trazem as suas palavras, Holofernes! Mais que reescrever, você propõe reviver a história apena com as marcas das emoções e à mercê da liberdade? Holofernes: Isso mesmo, Judith. A história seria escrita não pelos vencedores, mas por aqueles que segurassem as cabeças entre as pernas, erguendo-se de tempos a tempos para dialogar. Acrescento, acredito que celebraríamos juntos o fim do desejo que veste o espírito do poder e nus, só com uma esperança lembrando o ser, dançávamos até que os níveis de sangue se alinhasse com as fases da lua. Judith: Como é que se sente por fazer parte de uma narrativa tão poderosa? Holofernes: O poder não está naquilo que se diz, mas sim na expressão do silêncio quando tem algo para dizer. A ideia feminista cobre de erros outros erros anteriores. Quando se enaltece qualquer tipo de empoderamento devemos saber como evitar contrapor aquele que se arremessa empoderado. Eu compreendo-a, Judith, mas lembre-se de somar a perspectiva do decapitado à distância que a cabeça guarda após o golpe. A vida dos que entram em guerra assenta sobre a cabeça dos que se defenderam com rosas e nunca sobre os espinhos das suas lanças.


Judith: Sem dúvida, Holofernes. Aquele que perde a cabeça e continua vivo, não perde simplesmente a vida simbólica, perde também a oportunidade de compreender os actos passados. Holofernes: Reforçando sua ideia, destaco que a vida não é um livro onde podemos arrancar as páginas que não nos agradam, por mais inconvenientes que sejam. Existe um código que nos guia pelos lugares e eventos, e por ser mal entendido, acontece ser confundido com o destino. Judith: Palavras sábias. Agora, uma rodada de causa e consequência. Estamos prontos? Holofernes: Pronto, Judith. Judith: O poder? Holofernes: Consequência, pois a causa está no medo. Judith: A guerra? Holofernes: Consequência, pois a causa é a cobardia. Judith: O amor? Holofernes: A única causa que todos têm, mas poucos sabem como usar. Judith: Holofernes, obrigada pela sua espontaneidade. Aos nossos telespectadores, também um agradecimento por se juntarem a nós. Até a próxima vez. Holofernes: Muito obrigado.



Judith conversa com Fátima Ahmed.

Judith: Sejam todos bem-vindos! Hoje, temos aqui uma mulher notável. A filha de um mártir, a mãe de um órfão e a viúva de um desconhecido, Fátima Ahmed. Fátima muito obrigado por ter aceite o convite. Fátima Ahmed: Obrigada, eu Judith. É uma honra poder estar aqui porque me permite imaginar livre por umas horas do campo de concentração, onde vivo. Judith: Vamos começar com a sua incrível viagem. Como mãe palestiniana, enfrenta desafios únicos. Pode falar-nos da força e da resiliência que descobriu dentro de si? Fátima Ahmed: É uma viagem do outro mundo, Judith. Há quem o faça de nave espacial outros de bicicleta, eu faço a pé e descalça. Para chegar a qualquer lado implica sempre saltar um muro, cruzar a garita ou pisar uma mina. Na Palestina, vive-se na meia metáfora de uma existência surreal. Judith: Sendo assim, a fome é escrita com figuras de estilo? Conte-nos um pouco mais sobre esses muros e o que eles representam para si. Fátima Ahmed: São como os nomes, estão por toda parte. E o que são os nomes senão os muros erguidos para nos ajudar a compreender o mundo? Depois, vieram as categorias para reforçar ,os gêneros e os subgêneros que selaram a compreensão. Cada nome representa um quartel, com seus soldados, suas trincheiras e, ao redor, seus cemitérios.


Judith: Infelizmente, consigo sentir o odor da morte em cada uma de suas palavras. Agora, Fátima, conte-nos como é sobreviver à constante repressão que, ao parecer, é paralela? Fátima Ahmed: Quando forças violentas se manifestam de ambos os lados, somos compelidos a recorrer ao “paralelo”. Atiramos pedras nas situações envolvendo a burguesia palestiniana e, por outro lado, lançamos o que estiver ao nosso alcance contra os soldados israelitas. Judith: Acho óptimo ter tocado no assunto da burguesia palestiniana porque muitas vezes os meios de comunicação social passam a imagem geral de que na Palestina só vivem pobres. Fátima Ahmed: A Palestina é um lugar, como tantos outros lugares no mundo, onde as elites se entretêm explorando aqueles que não sabem nem conseguem organizar-se. Como espécie humana estamos devastados, material e psicologicamente. A nossa miséria atingiu o seu auge, e isso é evidente quando as atrocidades se medem contabilizando as mulheres, as crianças e anciãos assassinados. Judith: É uma triste verdade, Fátima. A realidade transfigura-se de cenário em cenário, mas os protagonistas parecem desempenhar os mesmos papéis. Aqui, entre tantas desculpas que tecemos, questiono: por quê? Fátima Ahmed: O simples facto de uma pessoa conseguir questionar-se demonstra de imediato uma vontade em querer mudar. São escassas as verdades para quem encara o deserto como um jardim. Ver o mundo desde a perspectiva do espectador do real proporciona uma noção mais fidedigna daquilo que significa cada peça neste grande jogo das ideias.


Por isso, passemos à acção! Judith: Sem dúvida, minha cara Fátima. Quanto tempo lhe cobram as redes sociais e os telejornais? Fátima Ahmed: Bem, Judith! O que seria da Palestina sem as emissões televisivas? Onde estariam os palestinianos se não aparecessem nos écrans, como aqueles árabes correndo com os filhos em braços chorando e gritando. Que país poderia ser reivindicado se não existisse uma guerra com as suas diferentes bandeiras? O espetáculo mediático é o sabre que corta a carne depois do corpo estar morto. Judith: Essa é a imagem fúnebre e espectacular da realidade palestiniana. Quer nos contar onde encontram a força para resistir? Fátima Ahmed: Aquilo que nos convoca à vida está em potência dentro todos nós. Possuímos de todas as formas de vida uma parcela que nos inclui neste grande mostruário de forças. Afortunadamente as formas de poder formam-se e extinguem-se espontaneamente. Judith: Sem dúvida, minha cara Fátima. Acredita que a causa palestiniana está já a chegar a outras partes do mundo? Fátima Ahmed: Obviamente que não, Judith. E é bom que não se transfira porque seria um movimento artificial aplicado noutras regiões. O que me parece, e que não é visível a olho nu, é que a causa palestiniana está por todo o lado diluída pela exploração, o consumo, o entretenimento e a alienação dos povos.


Judith: Antes de terminarmos, gostaria de fazer uma ronda de associação de palavras. Está preparada? Fátima Ahmed: Claro, Judith! Nasci da contigência. (sorriso) Judith: Um livro. Fátima Ahmed: O livro da natureza. Judith: Um mantra ou uma citação? Fátima Ahmed: "No silêncio convergem todos os sentidos". Judith: A lição mais valiosa que a vida lhe ensinou? Fatima Ahmed: A vida não nos ensina, mas sim coloca-se à nossa disposição. Judith: Fátima Ahmed, obrigada por partilhar a sua experiência de vida e a sua sabedoria. Para o nosso público, um muito obrigado por se juntarem a nós nesta conversa inspiradora. Até à próxima vez, e continuemos a elevar as vozes uns dos outros. Muito obrigado. Fatima Ahmed: Obrigado




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