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_"Lacus", o nome latino para "lago", deriva do grego "lákkos", que significa "fosso" ou "poço". Já no idioma grego, a palavra básica para "lago" é "limné", que deu origem ao nome da ciência Limnologia, que estuda a Ecologia das águas doces.

Lacus

"Um lago é um dos traços mais belos e expressivos de uma paisagem. É o olho da terra; e ao se olhar nele, o observador descobre a profundidade de sua própria natureza. As árvores aquáticas da margem são as pestanas finas que o enquadram; e as colinas frondosas e os penhascos em torno, as sobrancelhas proeminentes."

Walden, ou a Vida nos Bosques, por Henry David Thoreau (1854).

Preâmbulo

Desde a infância, somos atraídos por estes espelhos d'água, hipnotizados pela sua vastidão e pela vitalidade que emanam. Mais do que "corpos de água", os lagos são oásis de vida e beleza, ostentando formas, tamanhos e características que desafiam a nossa imaginação. A sua mera presença convida-nos à contemplação, despertando em nós uma profunda admiração.

A fauna e a flora encontram nos lagos um lar acolhedor, onde proliferam em perfeita harmonia. A diversidade de espécies que ali residem contribui para um espectáculo vibrante de cores, formas e sons, num verdadeiro refúgio para a biodiversidade. A grandiosidade e a complexidade dos lagos atraem também a atenção de pessoas apaixonadas pela natureza. A diversidade geológica molda paisagens magníficas, servindo de palco para uma complexa teia de processos ecológicos. Exploradores da natureza desvendam os segredos que se escondem nas profundezas e nas margens dos lagos, desvendando a sua força e contribuindo para a nossa compreensão do mundo natural.

Para proteger e preservar estes ambientes frágeis, é fundamental o estudo da Limnologia, a ciência que se dedica às águas interiores. Através da Limnologia, podemos compreender a produtividade biológica dos lagos, os factores que a influenciam e as ameaças que pairam sobre esses ecossistemas.

A contemplação e a recuperação da memória foram os pilares deste número dedicado aos lagos. Em duas ocasiões distintas, no início do outono e na entrada do inverno, fotografias, desenhos e anotações capturaram a beleza e os mistérios desses ambientes. A compilação de todo o material resultou neste fanzine que se pode ler e apreciar, se o fígado permitir.

A enciclopédia natural continua a surpreender todos os que lhe dedicam a atenção escrupulosa, enriquecendo o conhecimento original com as profundas dúvidas suscitadas pela natureza.

” Todos os caminhos levam ao mar, mas antes de se encontrarem, caminhos e mar foram distantes, mas antes do mar, caminhos chegaram aos lagos para nele se encontrar. ”

Águas_

Assim como o texto reclama a sua parcela no corpo, também a água que corre se estabelece com direito na primeira depressão para ganhar fôlego; são paragens periódicas, as chamadas mesas de escrever, de contar e comer. Profundos encontros de planos, resíduos, assentamento de sedimentos e culturas maiúsculas. Nas bacias do mundo, vivem formas de vida lúgubres em harmonia com formas de morte. Ninguém se culpabiliza por existir; todos traficam viagens à superfície, todos violam as leis da putrefacção e todos cumprem desde logo os requisitos naturais. Quando se elevam desobedecem, mas é por força maior, quando se soltam desculpam-se com a luz solar, leveza mais alta, se alcançam a chegar então, é porque se esqueceram de si.

Mas é à sinuosidade das margens que se confessa o tempo passado, é à ausência de marés que se acusa o abandono dos cadáveres em sal. À noite, se incrimina de descuidar os vestígios das operações de outubro. Também de deixar as impressas na lama as marcas do contrabando. Então, os bichos começam a trabalhar e simulam a morte, fazem camas subterrâneas pelos joelhos enquanto despistam a fome.

Os jarros, porém, forjam as bocas para romper à sede as fontes, vencendo uma vontade de dentro para fora que persuade com mel a vontade que está fora. O que no interior da fraga ferve são tabiques orgânicos ou corpos feitos de fauna e flora, mais suas proteínas coroadas.

A carcaça passa de um estado de decomposição ao de alteridade natural conhecida pela última acção caridosa da existência.

Árvores_

O poder de ver através das árvores funda uma noção linear da paisagem, ondulante evidente e contorcida. Ao fundo as cores da aguarela bebem no lago à medida da transparência, camufladas, obviamente, pelo reflexo. Colinas e árvores misturam-se tortuosamente com o céu. E quando as águas estremecem, a madeira e a carne vegetal cobrem-se com o mesmo manto. Submerso, um arrepio encarna o corpo da mulher que se abraça com a atmosfera sobre a cabeça vestida de azul. O sol, porém, conserva-o do peito para cima, desde onde as figuras arbóreas esgrimam os gestos das labaredas, para se aquecerem, fingem bailar com o fogo no acosso ao oxigênio.

Das árvores solitárias, sabe-se que gozam de uma outra sensualidade. Quando sedentas, fervem até à fissura dos troncos. Em ferida, são coroadas pelas bocas que clamam ao mesmo tempo o sopro dos instrumentos. Do ventre, vertem-se as águas tingidas de matizes caindo em arco aos pés do corpo. Um feixe de cores sinfónicas vê-se despojado pela fuga das notas, que saem correndo às cambalhotas de costas na erva sinistra. Com as pautas despidas, acordos corrompidos, os lábios desviam-se dos nós, aliviando a tensão dos instrumentos. Então, às mãos do lago pousam os cadáveres do amor, descansam a memória e as constelações, feitas de sinais e beijos em redor da boca.

Do ouro, esse que se dissemina com a tradicional filigrana termina cobrindo os arbustos, de densos fios roídos pelos dedos da totalidade da paisagem.

Quando chegam os lenhadores com os machados, cai o outono e a madeira prepara-se para a ruína. Adversos à música, cortam a única perna pelo joelho e afastam-se do sepulcro, deixando um banco que toca discos de baixas rotações.

Sombras_

Daquilo que deixam ver, as sombras da água, metade vale o engano e a outra divide-se em parcelas de burla e jactância. Começa-se pelo intervalo, um poço levantado de pedras diamante onde se guardam os fantasmas e a maquiagem feita de luz. Jamais se deve desprezar os lados da água, pois o seu reflexo é uma imitação vil da profundidade oculta detrás da máscara.

Sombras e máscaras definem-se melhor na profundidade do que nas distâncias.

No caso dos objectos, sejam eles lápide, árvores ou bancos custarão à noite o lado diurno da sua exposição. Nada escapa ao recolher obrigatório do crepúsculo. Bichos e nervos correm de boca aberta para receber a precipitação do avesso e bebem do lago. Já do outro lado onde a luz se ausenta primeiro, a humidade prepara um exército de musgo. Depois, basta sentir com os olhos o lápis lilás contornando as margens dos lábios, indo ao encontro do fermento dos dias.

Com o cair da noite as sombras recuperam o calor acumulado e a sua velha personalidade. Colocam as máscaras e realçam as veias dilatadas das árvores com que aterrorizam a imaginação simbólica. Uma contradição nas temperaturas pode assustar com um simples espectro uma geração inteira de bosques infantis. As histórias sobre a morte não encontram limites debaixo da penumbra dos objectos. Mas se o sol demorar a aparecer, as cascas enverdecem e os ovos de outro tempo rompem com a força de outra esperança.

Aves_

Soa a melodia a música que acompanha o voo dos pássaros. Nas grandes travessias é ao peito que a vertigem se agarra para escutar a ressonância dos lagos. Os imensos lagos, assim são conhecidos os mares pela sua imensidão. Enormes abismos horizontais que dobram o céu para ocultar a verdadeira profundeza dos oceanos. Tudo é plural na mensagem, até o envelope duplicado do espírito.

Mas quanto medirá essa empatia com o abismo?

A vida no ar está comparada aos sinfónicos ciclos da meditação; suspendida a respiração, calcula-se o tempo através das proporções da terra. A própria atmosfera, que cuida e modera a passagem das estações, retém em si cotas de azul, fracções de serenidade. Mas também, os intervalos do dia onde se encaixam a luz e o alento.

Mas são os pássaros, são eles que trazem consigo a magna carta sobre as migrações. São eles os anjos rudimentares, vestidos de finos filamentos quase transparentes, com suas letras ao pescoço dignificando os significados.

Falam de direitos, pacificam os deveres, reúnem-se o mais longe possível dos lugares privados. São os hipócritas originais da liberdade, alfaiates de uma segunda pele ou entranha que vem debaixo para cima; é a responsabilidade em ebulição na carne. A terra que fala depois, revelando a sensibilidade o que a obra íntima pratica junto às emoções.

O lago é um lugar de contemplação por isso raramente se vêem as libélulas famintas tocando as janelas dos olhos.

As aves que acabam de chegar, confessam-se umas às outras com alarde. Banham-se em serpentinas de cor e pavoneiam-se em tumultuosos sons. Estão vivas, felizes por regressar onde lhe aguardam as águas do lago, os arbustos, ou lugar no alto das arvores onde se dão os primeiros fogos de artifício.

Bichos_

A dimensão do mundo muda no contacto com os insectos, com a incerteza também; entre a espuma e o lago levantam-se os grandes fantasmas da inferência; constroem-se réplicas perfeitas com universos, galáxias e seres rastejantes. A gravidade contorce-se duas vezes por segundo e depois entorna-se. As constelações acomodam-se como pedras em brasa, onde se cozinham vidas e se fabricam infernos de lava. Entre os bichos e a fome prospera uma indiferença igual à guerra quotidiana. Aceitam-se anonimamente os nomes tatuados nos pulsos. Mas, as chagas abertas, essa pressão sanguínea que entorna na pele tem a origem nas palavras.

Portanto, não existe natureza na maldade, e muito menos maldade que corrompa a natureza com esse veneno que persegue a morte. O açúcar em estado puro está longe de ser confundido com o apetite do predador e consumido como uma droga. Ninguém se ofende ou se espanta se, amanhã, o derradeiro sono, suceder numa boca voraz, asseguram os animais vertebrados, em coro, com as larvas.

Os bichos sabem onde vivem e são incapazes de negar a autoridade da vida. Criam devoção ao voo dos pássaros e perseguem a continuidade do movimento sem recorrer ao fogo, ou às artimanhas do comércio. A casa é o edifício içado na gratuidade onde nascem as palavras que cobram pela vida qualquer preço.

Em torno do lago, as coisas restituem-se na transferência da essência à materialidade das cascas, aos abrigos abandonados e à força das feridas laceradas. À saída, os bichos deixam expostas as vísceras da presa, mas não faz mal, porque os novelos com que teceram a vida é um repúdio à vontade de conhecimento.

É no retorno que surgem as histórias das vidas recobradas.

Sedimentos_

A água distingue-se pela sua relação íntima com o cosmos. Entre a retração do universo e a sua máxima expansão, vive o órgão do coração; um corpo de água pode ser tão perfeito num rio quanto no veludo epidérmico de um mar.

Mas é nos lagos, é nos lagos que a maioria da vida é passada ao espelho. Olhem as aves! Vejam como se contemplam enquanto esperam à deriva pelo vento para as pôr a bailar. E os peixes? Esses lagartos ápodes de personalidade tímida que se rascam no barro para se ocultar.

Temos também as colinas, as montanhas vestidas de musas cordilheiras cortejando as fontes enquanto empurram os regatos para o mar.

Com razão e cordura, desde o interior sobem à boca as confissões dos órgãos e a espuma começa a falar. Digam que falta pouco. As cores, as sombras e o céu são a vontade derretendo-se de cima para baixo, para o espelho formar.

Os caminhos, os caminhos que ladeiam os passos com medo, preferem por cima do nível das águas passar. É o pânico, a humidade, o dever de um dia ter que, à terra que come, regressar.

2024 Belfast

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