_”Ode” deriva do Latim ODA, “poema exaltatório, entusiástico”, que por sua vez forma-se do Grego OIDÉ, contração de AOIDÉ, “canção”. E esta deriva de AEÍDEIN, “cantar”.
Ode
¿Qué cosa irrita a los volcanes qué escupen fuego, frío y furia?
El libro de las preguntas, Pablo Neruda 1974
Preâmbulo
Numa manhã de inverno, o clima pode ser tão austero como artificial. Mas como distinguimos uma chuva torrencial de uma surra de alfinetes com cabeça de Marquês de Sade? Pois, gritando. Gritando alto até ensurdecer os poros do corpo e o silêncio virar raiva contra tudo e todos.
Quando não encontramos explicações para o oculto, o instinto natural levanta-se das profundezas do submundo e, com uma lista de verdades, sugere apontando os eternos responsáveis do martírio.
A história humana nunca se repetiu, não se repete e jamais se repetirá. São, sim, os actos que, nas suas relações abstractas, se copiam uns aos outros numa reprodução ávida de eternizar os momentos.
Invocar o canto e sobrepô-lo aos significados das palavras pode assumir uma autoridade tão potente que nenhum príncipe e seus exércitos chegam a tocar as muralhas da voz mais humilde e aparentemente ingénua. A força das rimas pulula sobre as cabeças das multidões, reduzindo desse modo o esforço dos facínoras e a sua malvadez contida. As relações sonoras entre palavras adquirem o poder mágico de subverter as relações abstractas entre os actos e aí a história, sucumbe. Os actos deixam de se copiar uns aos outros e a vida flui naturalmente, afastando significados e mesmo a lógica das coisas.
A Ode que apresentamos neste exemplar é um grito de guerra; é o contrário da exaltação ardente de um tema ou uma palavra. É, antes de tudo, um aviltamento da relação matrimonial entre os seres humanos e a vida. Dedicamos a seguinte Ode ao “anel” de noivado, que oculto entre as pernas e, quando irritado, cospe as maravilhosas criações Humanas: o “Ânus” essa palavra inaugurada pela primeira letra alfabeto latino e cujo ângulo é bem mais apertado que o acento circunflexo que leva em cima.
Cu puto inferno vos caia em cima
Origem bastarda, Princípio dos tempos, Pernas arriba, Natureza abortada,
Ó lugar do nome original, quem te violou a semente? Quem fugiu como um animal?
E o ovo?
O que conheceu o cu por dentro Preferiu aprisionar o filho Ao pudor do desventro.
Mais os passos
Os que cedeste o caminho, Aquele a quem ofereceste, em troca, Um sepulcro no ninho.
Cu puto inferno vos caia em cima
Sémen da infância, Berços penitentes, Raízes sem planta, Metais da ganância,
Ó fêmeas ejaculadas, Em teus olhos dançam orbitas Quão crianças embaladas.
Colhe os frutos, Leva os sonhos e as estações. Fecundados pelas bestas, Deram à luz as nações.
Que magia ordinária essa
De promover a avareza, Onde se levantam fronteiras, Se deprecia a natureza
Por isso!
Cu puto inferno vos caia em cima
Verdes onomatopeias, Génese das culturas, Etimologias noturnas, Ventres de areia,
Ó lugar das bocas em flor, Se com o êxodo evitaste as guerras, Com a fome mataste a dor.
Conta-nos, Diz-nos as preces longínquas, Fala-nos dos ecos das verdades, Das palavras escritas E das iníquas maldades.
Então,
Cu puto inferno vos caia em cima
Animais fiéis Lodo dos rios, Lugar de enterro, Abismo de bateis,
Ó amigos dos predadores, Alçaste muralhas de dentro Para defender os desertores.
As cidades são tuas e os medos, Como os rios são para as mãos, Os anéis fluindo nos dedos.
E,
Entre os mortos do momento, Se erga aquele que não tenha Guardado um segredo de sexo Em conjunto com um tormento.
Cu puto inferno vos caiam em cima
Ideias expansão
Pedras rolantes, Luz herdada, Precípua acção,
Ó ímpeto selvagem,
Cu puto inferno vos caia em cima
Gélidos agasalhos, Noites ásperas, Conversas em mantas, Diversos retalhos,
Ó materno calor humano, Altos fornos são teu peito Forjando ébrios insanos.
Olha os diálogos, Os tecidos de tentação crua, Pulando do plano do perigo
Para se agarrar á vontade nua.
Cu puto inferno vos caia em cima
Imposturas teatrais Instintos brancos Ímpetos de fogo Espelhos seminais
Ó facas de ambulatório, Quantas feridas abertas
Se lavaram no teu purgatório?
Responde, fá-lo implorando, Marcas bélicas e fulgores São presságios se queimando.
E nas lendas de salteadores, Às costas a lenha carregando, Ilustram os sonhos a cores
De espectros noctambulando.
Cu puto inferno vos caia em cima
Simbiose social, Imitação lúdica, Verbo caótico, Lógica binominal,
Ó maldade prisioneira, Se a vida preza a liberdade, Tu Ergues muros como barreira.
Vai, acumula demagogias, Enche o tanque de víboras, Armadas em quadrilhas, Com bandeiras e facínoras.
Que lógica é essa?
Objecto saltando indeciso, Vocábulo de duas vontades Entre lóbulos, cavidades, E extremo orgulho narciso.
Cu puto inferno vos caia em cima
Armas de arremesso, Golpes de sangue, Feridas cravadas, Corações de gesso,
Ó pedras do caminho, Se existe ensinamento no chão, Este passa por saber estar sozinho.
Sara então minhas mãos Das raízes da vassalagem, Por estarem erectos irmãos Indica ter arada a coragem.
Sobre esse líquido que sangra, E que não é sangue a sangrar, Usa as mãos em forma de angra Como refúgio a sede ancorar.
Cu puto inferno vos caia em cima
Claustros cerrados, Canções chantagem, Missas despidas, Sinos dobrados.
Ó arcos amorosos, No eco das alas ocultas, O ócio e os vícios pecaminosos.
Então,
Em segredo, espreita
Cu puto inferno vos caia em cima
Divida ao pecado, Inflamação social, Categoria malsã, Ânus adulterado.
Ó ilegalização da natureza
No jogo das consequências
Ajustas os ladrões à pobreza
Revela, não!
Vela pelas tuas mesinhas caseiras, Resguardada a cultura no armário, Bem longe da euforia das carteiras.
Uma fórmula, Corrobora com o grupo monetário, Que emula rebeldes a sonâmbulos, Levando ao olvido valor proletário
Falsificadores, Com manuais de ratas fuleiras, Actuando em redes de ficções, Prostíbulos de gente carneira.
Cu puto inferno vos caia em cima
Bandalhos cínicos, Ecologia do plástico, Corruptos com U, Médicos clínicos.
Ó varas que abres as feridas, Nas cadeiras sentas a ciência, Sobre a morte deitas a vida.
Dá a tua sentença maiúscula Mas reconhecendo na cegueira, A mesma a reputação crepuscula.
Urinol único no corredor da justiça, Uma escola primária no tribunal, Um cemitério de consciência postiça.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Banqueiros da banha, Juízes de azeite, Polícias de gabardine, Ladrões com manha.
Ó usurpadores da vingança límpida, Pelas goelas entram as línguas, Violando as bocas das moças ímpias.
Alerta,
Carrascos e carniceiros, Punheteiros à sombra dos ovários, O útero contém em si a balança, contra vereditos arbitrários.
E a justiça que ainda sustém a espada é estátua de um culto maldito, onde a mulher está falsificada pela religião, a injustiça e o mito.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Fosseis verbais, Silêncios fervendo, Secreções de lava, Mistérios anais.
Ó corpos estrangulados na ausência do teu ser, duram silêncios prostrados.
Vê como o fogo, Torcendo-se nas águas, Exibe os gestos das línguas, Apagando as feridas Com as mágoas.
E os afetos, Guardados então pelas víboras, Cozinham elixires de metáforas Com secreções vindas das virilhas.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Estrelas do Norte, Monstros medonhos, Cinzas que bailam, Urnas da Morte.
Ó luz, que marcas o princípio, No destino vês a estrada, Na vertigem flanco ímpio.
Recorda as vozes concisas, Enterradas em vigílias, Alvoreceram feitas cinzas.
E entre pedras e brasas, Ao redor de um suspiro, O fumo que sai da boca É legado num papiro.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Repteis marinhos, Aves de barro, Peixes que reptam, Insectos daninhos.
Ó animais eternos, Soubessem teus carrascos
O nome dos alfabetos maternos.
Mas que merda de ambições, Abandonar o fruto maduro
À intempérie do duelo Para sanear vingações.
Pistoleiros que recebem Na câmara das suas armas
O veneno das úlceras tocadas
Pelo cheiro da carne picada.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Crenças de ouro, Oráculos da fertilidade, Figuras de sangue, Cornos de touro.
Ó coração, pedra de mil pactos, Nos estilhaços dos teus gestos, Transitam desejos intactos
Confessa,
Contrasta o poder das imagens Usurpando o sentido invocado Na seiva, no sacrifício, no cálice Na oblação do divino pecado
Cu puto inferno vos caia em cima.
Abrigo rupestre, Concha espiral, Choça de assalto, Cabana fenestre.
Ó ossos intemporais, Refúgios de pedra e cal Muralhas de guerras ancestrais
Narra a história, Diz dos assaltantes Montados em seus cavalos Como agentes beligerantes.
Mais a escória, A glória dos ignorantes Homens de saias e falos Irrompendo como errantes.
Os seus nomes e batalhas Escondem a virtude infame, Para a mentira não há malha Que acolha tamanho vexame.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Pedra lascada, Dança ritual, Cura curiosa, Doença sanada.
Ó aurora do alvorecer, A noite deixaste na cama, Até a última estrela esmorecer.
Se assoma o sol dos mortos, A chamada luz que enterra, Ainda que despertos e absortos, Preferem a cegueira da guerra.
E na areia com a cabeça sobeja, Celebram os céus estrelados, Deitados sobre as dunas da inveja
Cu puto inferno vos caia em cima.
Sono hibernal, Frutos do tempo, Levedo espumado, Vinho sideral.
Ó acida vontade quimera, Se os olhos são frutos e adorno, As imagens são pena que reitera.
Por isso,
Segura nos lábios a matéria, Se as marés sobem socavam, As gargantas até sangrarem, E desbordarem as artérias.
São as forças de abolição que resistem, combatendo a eternidade armada, que entra acompanhada de ideias, louvando todos aqueles que desistem.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Fome madraça, Campos agrícolas, Servidão doméstica, Terra devassa.
Ó vida madrasta, terra impura, O negócio é conceder filhos À mais casta e à mais purpura.
Liberta da penitência os escravos, O valor é condenação à carência, Na ignorância está levantada a cela, Oficializada pela técnica e a ciência.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Caça canibal, Cascas reunidas, Pesca de anzol, Sopa laboral.
Ó carne de casta lacra, Se provas das tuas chagas, Encontrarás a infância sacra.
Assim que, Condena ao desterro o sagrado, Os contratos com a vida, Excluem bezerros degolados. E menos à fome, À fome destina-lhe a armadilha À boca chama-lhe vontade com fome E o alimento a graça concedida. Não, não há carência devida, A usurpação viola quem come, Profana a natureza e destrói a vida.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Cruz de Cristo, Punhais de corte, Cordas na garganta, Objectos de xisto.
Ó corpo simbólico, limite nos dedos, Às mãos do tacto crescem os lábios, Beijando copos de vinho em segredo.
Anda,
Toca a canção de arremesso, Melodias em deleite com facas, Atravessando instrumentos. E assim, porém, nas marcas, Ideias vindas de dentro, Reduto de metáforas e joias, Vermelhas jugulares ao vento, Soltando o adejo dos pássaros, Centelhas vestidas de cinzento.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Agentes secretos, Espectros com asas, Fantasmas do crime, Funcionários abjectos.
Ó formulários de papel mortalha, São de seda os véus defuntos, Cobrindo de vermes e a palha.
Ouve os desejos dos surdos, Lê nos lábios os desejos, O que dizem os verbos mudos, Obedece a astros e cortejos.
Surdo rima com mudo, Orelhas rima com ovelhas, Analfabeto há neste mundo, Rimam quentes com vermelhas.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Reis e monstros, Filhos ilegítimos, Barões barrigudos, Condes sinistros.
Ó país nação dos abjectos, A legitimidade do crime Deixará o destino sem tecto.
Assalta os amantes na estrada, E se o carro leva um monarca, Dá-lhe de imediato uma facada.
E se, se puser em fuga a baronesa Casa-a sem festejo com a pobreza.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Mulheres pleonasmo, Feminismo minúsculo, Deusas prostitutas, Divas do orgasmo.
Ó extravagância feminina, O excesso provoca as guerras, A propriedade é assassina.
Guarda pelo menos as cinzas Essas fumadas no cinzeiro, As da urna são de chumbo, As do orgasmo são teu cheiro, E mais ainda o sexto sentido
O feitiço do oculto cavalheiro, Macho alfa extrovertido Corrompendo com dinheiro.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Devoradores de filhos, Relógios machos, Machados lógicos, Anéis nos gatilhos.
Ó crianças com sonhos de papel, O devir é um serão absurdo, Escutando lendas ao som do mel.
Assim que as chamas e as lanças Estejam no ponto de inflamar, Levanta o espírito com danças, Fundindo a voz com o cantar.
Cu puto inferno vos caia em cima.
Acidentes viários, Cirurgias científicas, Auto autópsias, Crematório diários.
Ó coincidências festivas, O mais estranho nos encontros Vem escritos na face das feridas.
Volta no tempo para trás, O tempo para trás não volta, A revolução da carne é o gás, Acendo a luz da revolta.
Cu puto inferno vos caia em cima.
História esquecida, Memória rância, Biografia anónima, Amnésia mentida.
Ó tabela periódica das perguntas, Se as verdades tivessem indício, As respostas nasciam defuntas.
Então levanta essas técnicas ancestrais, Cria romances de amor com o vento, Tentando as bocas com a fome dos canibais.