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Título original: A loira do banheiro, Bia, Alice e outras histórias Portrait (http://aledacostaportrait.wordpress.com/) Produção editorial: Ale da Costa
COSTA, Ale da. A loira do banheiro, Bia, Alice e outras histórias. São Paulo: Portrait Imagens, 2017 1. Contos. II. Título. 2. Coletânea. Literatura brasileira
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
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Para leo, bia e alice...
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“... nunca fomos amantes, e agora jamais seremos. Mas isso eu não lamento. Lamento as conversas que nunca tivemos, o tempo que não passamos juntos. Lamento jamais ter revelado que sua companhia me alegrava. Que o mundo era melhor porque ela existia. Agora lamento apenas isso: coisas que não foram ditas. E ela se foi e eu estou velho."
Sandman de Neil Gaiman
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Embarquemos...
06 a loira do banheiro 10 lilica 16 it’s ok 22 cidade 26 o sótão 30 cor de rosa na avenida 34 a família 38 o câncer 42 o carro da morte 46 maria 50 um cara 54 aquela tal felicidade 58 o fim do mundo 62 eu só tenho olhos pra você 66 a professora 70 especial 74 um outro final feliz 78 a última casa
82 o autor
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a loira do banheiro
e sua versĂŁo da histĂłria
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Quando aqueles garotos arrancaram minha calcinha, percebi de fato que não se tratava de um sonho. Fechei os olhos com toda a força do mundo e consegui sair de mim. Me lembrei do tempo em que papai batia na mamãe. Eu sempre fechava os olhos e voava longe. Com aqueles meninos, naquele banheiro fedido, não foi diferente. Eu tinha 13 anos. Quando papai esmurrava mamãe, tinha cinco. Mamãe morreu. Papai, não sei. Ao ficar órfã, minha vózinha chegou do interior para cuidar de mim. O cheiro dela é inesquecível, doce, acalentador. Quando estou de “bico”, procuro pensar na sensação que tinha quando ela chegava perto de mim. Era bom. Vovó sempre me arrumava para a escola. Dizia que eu precisava estar sempre linda. Ela penteava meus cabelos “dourados” de uma princesa. Ela dizia isso e me deixava feliz. Meu uniforme estava sempre bem cuidado, merenda gostosa dentro da lancheira. Fui feliz nesses anos. Me complicava em matemática, mas no resto ia bem. Vovó se orgulhava dos “10” que tirava em redação. Eu adorava escrever cartas melosas, cheias de romantismo barato, para ninguém. As escondia numa caixa de papelão rosa, em formato de coração. Tinha virado mocinha aos 11. Não foi um susto ver aquele sangue escorrendo pelas minhas pernas porque a vovó e a tia Ceci (minha fessora) já haviam me explicado que isso aconteceria. A partir daquele momento eu era uma mulher. E a vovó completou: “uma mulher dos cabelos dourados”. Foi um dia bacana. Eu seguia crescendo e me apaixonava pela primeira vez. Guto era bonito, forte, esperto, tinha 16. Já bebia e dizem que já tinha até feito sexo. Eu gostava dele. Contei para vovó e ela pediu para eu me cuidar. “Não sei se gosto desse rapaz!”, disse. Não era ciúme ou implicância dela. Era apenas uma sensação... Um dia criei coragem e fiz um poeminha para ele. Coisa boba, coisa de menina. Mas totalmente sincera. “Meu Deus, ele quer me encontrar!” Nunca me senti tão doida quanto naqueles segundos antes de ver o Guto, sozinha. Eu estava apavorada. Queria, porém, estar com ele. “Será que ele já tinha me notado antes?” Eu mal podia me segurar dentro do meu corpo. Queria voar longe de felicidade. Naquela época, estudávamos à tarde. Ele queria se encontrar comigo quinze minutos depois do último sinal. Daria tempo para a gente conversar bastantão antes da turma da noite chegar. “Não sei se gosto desse rapaz!” Lembrei da minha vózinha. Deixei meus cabelos soltos. Uma amiga emprestou um batom bem clarinho e discreto. Estava cheirosa. Meu sapato novinho estava brilhando. Presente da vovó. “Ele ia gostar de mim?” E sentada ali fiquei entre os pavilhões dois e três. Estava frio. Eram quase seis horas e a noite já tinha chegado. 07
Coloquei o casaquinho que minha avó tinha feito. Estava com o cheirinho dela. Senti saudades. Levei um susto. Deixei minhas coisas caírem no chão, mas não tive chance de pegá-las. Foi tudo muito rápido. Dois amigos do Guto me seguraram com força. “Cadê ele?” Eu tinha medo desses garotos. Eram grandes e encrenqueiros. Estavam sempre na diretoria. Um deles tinha mais de 18. Me apertaram com força e me jogaram para dentro do banheiro do pavilhão dois. Caí de joelhos e bati o queixo no chão. Não estava entendendo nada. Aí, uma voz doce e conhecida quase me acordou daquele pesadelo que se iniciava: “Quer dizer que a putinha loira quer me dar?” Era o Guto. Seus amigos riam alto. O eco daquelas risadas naquele banheiro fedido me fez ver papai matando mamãe de novo. Foi ali na minha frente. Tinha cinco anos. Estava novamente paralisada. Não conseguia gritar, chorar. Tremia, tremia, tremia. “Vovó, segure minha mão...” Quando aqueles garotos arrancaram minha calcinha, percebi de fato que não se tratava de um sonho. Fechei os olhos com toda a força do mundo e consegui sair de mim. Tinha 13 anos. Não estava mais em mim e isso aliviou toda a dor daqueles minutos que não acabavam. “Olha Guto, é cabacinha!” “Oba, é minha. Não tem mais isso no mundo”. “Eu primeiro, eu mando, esqueceram?” Tentei escapar mais uma vez. Um dos amigos do meu primeiro amor acertou um soco no nariz. Me afogava no meu sangue. Num instante, tão instante que quase não percebi, uma gota desse sangue caiu no meu sapato novo. “Deixa, vovó, eu limpo quando chegar em casa”. Tanta dor. O cheiro horrível daqueles animais em cima de mim. Solidão. Quando um deles quebrou meu pescoço não senti mais nada. “Desculpa, vovó, não vou conseguir limpar o sapatinho novo...” Ao acordar num mundo estranho, sentia frio. Estava presa naquele lugar. Meu cativeiro eterno. Nunca soube como fora meu enterro. Não vi mais vovó. Não sei há quanto tempo estou aqui. Não sei o que aconteceu com o Guto. Às vezes, me olho no espelho e choro com o que vejo. Meu rostinho todo machucado. Um rastro, um pequeno rastro de sangue que sai do nariz em direção ao queixo que nunca limpa, por mais que eu tente. Olhos fundos. Olhar perdido. Cabelos dourados não mais dourados. Enfim... ... confusa como toda menina de 13 anos. Tenho medo do escuro. Aprendi com o passar do tempo a deixar a luz desse banheiro acesa quando todas as outras do colé08
gio são desligadas. Não durmo e para não ficar louca, ando em círculos, acompanhando o caminho que a luz faz ao bater no piso. Solidão. Uma vez, duas, três, tentei me comunicar com um menino. Nem todos são maus ou cruéis como o Guto. Nunca quis fazer nenhuma maldade com eles. No entanto, o susto que levavam era tão grande que os paralisava. Dois morreram de medo. Outro, enlouqueceu. Juro, não era minha intenção. Apenas queria contar a minha história... Poxa...
Você quer ouvir a minha história?
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lilica 10
O manto negro da morte. Minha avó usava bastante essa expressão. Ela – a frase – me assustava quando pequeno. Havia noites que a cortina do meu quarto escurecido para o sono me remetia instantaneamente a essa ideia de manto negro da morte. Na verdade, não compreendia muito o seu significado, mas a escuridão das histórias que minha avó contava deixara marcas. Hoje, eu velho lembro com saudade daqueles tempos em que a morte era só história e nada além disso. Lilica era uma pastor alemão. Pelagem bonita, cinza, branco, manca da pata esquerda traseira, olhar intenso e triste, era velha como todos nós éramos. Ninguém sabe direito dizer quando Lilica chegou ao asilo. Estou aqui há alguns anos e a cadela já frequentava seus corredores há tempos. Um dia apareceu na entrada, a porta esquecida aberta e pronto: a cachorra perambulava pelos corredores do abrigo. Silenciosa, sem escândalos, calma, carinhosa até, deixaram ficar. Se mal não fazia, deixa estar, é o que diziam e ela ficou. O abrigo Nossa Senhora de Guadalupe tinha 39 velhos. Toquei a campainha do lugar quando me vi definitivamente só há três anos. Deixei meu cartão de aposentadoria na secretaria para pagar minhas contas. Me deram um quartinho de 6 metros quadrados com espaço pra uma cama e um pequeno armário. Pra mim, de verdade, era mais do que suficiente. Éramos 40 agora. Eu, talvez, o mais novo deles com 63 primaveras. Mas o que interessa, de fato, é Lilica e dela falarei mais agora. Sendo bem honesto não gosto de cachorros, aliás, de nenhum tipo de animal incluindo o homem. O cheiro do cachorro me incomoda e assim sempre foi. Por isso mesmo, logo que vi a cadela me mantive distante, observador, sem ação alguma, como sempre fizera em minha miserável vida. Todos do lugar, funcionários e moradores, no entanto, tratavam o bicho com extremo carinho. E ela, do seu jeito, retribuía. Lilica nunca entrava nos quartos que permaneciam sempre com suas portas abertas – norma da direção. Ela se mantinha no jardim mal cuidado (havia até uma casinha que a cachorra nunca usava) e, como já disse antes, andava pelos corredores ciscando aqui e ali. Nada de mais, vida tão miserável sem sal quanto a minha fora. Há seis meses, o manto negro da morte caiu sobre o asilo. Fato, claro, que não era de se estranhar afinal nós todos já estávamos com os dois pés praticamente nas covas do cemitério Vila Matilde. O estranho não foram as mortes mais do que aguardadas (e não sejamos hipócritas). O esquisito foi como ela – a MORTE – fez o seu trabalho. O inverno acabara de começar. O frio era intenso, inesperado até. Tanto que não havia cobertores para todos os quartos. Foi 11
uma correria danada da administração para resolver o problema. Na primeira noite em que os termômetros baixaram a casa dos 10 graus, Lilica perambulou pela ala C por uns bons minutos. Sim, estava frio até para ela. No terceiro quarto, da direita de quem entra, a cadela encontrou seu refúgio. Pela primeira vez, Lilica aportava em um quarto. Levava na boca sua inseparável galinha de borracha sem cabeça. Lá ela ficou por três noites. Lembro que durante a segunda noite, tive uma forte dor de barriga. A enfermaria é na ala C. Passei pelo corredor e vi a cachorra deitada aos pés da cama do terceiro quarto. Ela olhava atentamente para o velho Batista enquanto esse dormia. Assisti a cena e senti um arrepio e as histórias de terror da minha avó voltaram do passado. Na manhã do quarto dia, Batista não acordou. Com 70 anos, o carioca torcedor do Flamengo era dos poucos que não tinha doença alguma. Reclamava dos dentes que faltavam e nada mais. Morreu dormindo assim em paz. O inverno pegava fogo e muitas cidades viam nos trópicos a neve cair. Aqui não nevou, mas o frio aumentava. Lilica mancava mais e sua galinha sem cabeça não imitia mais som algum. A cadela passava tempos deitada, pensaram até que adoecera. Numa noite de julho, ela se levantou, em três patas e passeou pela ala C, foi até o pátio central e rumou para o corredor A. Lá, no quinto quarto da esquerda de quem chega, arrumou guarida. Sebastiana a recebeu feliz. Sebastiana fechava seus olhos e ao seu lado Lilica permanecia desperta, atenta, velando o sono da velhinha. Nada de mal poderia acontecer com Sebastiana tamanha a proteção do bicho. Lilica dormiu por três noites ao lado da velha. Na manhã do quarto dia, a vovó de 92 anos não acordou. Foi o coração disse o médico. Lembro que a morta tinha um leve sorriso no rosto enrugado e passado. Julho terminava, o frio esmorecia um pouco, no entanto, era pesado, constante, com seu vento cortante. Nada de neve, porém. Alberto era um dos moradores mais antigos do asilo. Quando ele viu Lilica deitada ao lado de sua cama não achou estranho. Foi divertido até. Alberto não sorria, não falava, tímido demais, mas com a cadela se abria num entusiasmo sem fim. Lilica gostava dele também, parecia ao menos. Alberto acarinhou a cabeça da cadela antes de dormir e assim foi por três noites. Lilica atenta, de olhos bem abertos, cuidando do velho morador. Na manhã do quarto dia, o primeiro de agosto, o enfermeiro achou esquisito Alberto ainda dormir. Foi ao quarto, o chamou três, quatro vezes e nada. “AVC”, disse o médico. Só eu havia percebido que Lilica levara a morte àqueles velhos. Só eu notara que aquele que a cachorra escolhera não acordaria 12
na manhã do quarto dia. Não contei a ninguém porque de fato isso era uma ideia absurda. Mas a morte estava à espreita, em cada canto daquele asilo, sim sim a morte estava ali, rondando, ansiosa, perniciosa. A morte estava lá e Lilica era sua agente. Agosto acabava, o inverno amainava e o vento já não cortava. Vestíamos blusas quentes, no entanto. E foi numa manhã dessas sem sol que Lilica cruzou meu caminho. Eu estava sentado num banco na sala de visitas do asilo. Ficava lá horas, lendo revistas de fofoca, tomando chá, vendo TV. Lilica surgiu na porta, fiz que não a vi, mas ela me viu. Lançou aqueles grandes olhos castanhos – que percebera pela primeira vez traziam a maior tristeza do mundo – em mim. Minha espinha gelou, tremi de medo. Ela me escolhera. No dia seguinte, na fila do remédio – minha pressão subira um pouco – Lilica ficou ao meu lado o tempo todo. Fingia que não era comigo, mas todos perceberam e até piada fizeram. Naquele dia, qualquer lugar que fosse, a cadela estava ao meu lado. No entanto, na hora de dormir, Lilica sumia, eu respirava aliviado. Essa perseguição durou mais alguns dias. No último deles, Lilica deixou pra trás sua galinha descabeçada. A peguei e isso foi a senha. Levei o brinquedo pra ela, que começou a brincar comigo. Jogava a galinha, a cadela rodopiava, mordia meu chinelo, parecia sorrir feito uma criança. Naquele mesmo dia, eu sentado, folheando um livro bobo, Lilica enfiou o focinho no meu colo e lá ficou. Pela primeira vez, não resisti e acarinhei aquele animal. Ela dormiu alguns minutos, roncou até. E eu, depois de muito, mas muito tempo, me senti alguém. No domingo, depois da missa, fui eu quem procurou Lilica. Cuidei da sua comida, levei-a pra passear. Onde eu ia, Lilica ia atrás. Arrumou namorada, velho turrão? Perguntavam. Me doava a um ser como nunca fizera antes. E gostava disso. Me afeiçoei àquele bicho que parecia sentir o mesmo por mim. Até que na última noite de agosto, quando me preparava para dormir, ouvi os passinhos mancos de Lilica pelo corredor da minha ala. Meu coração disparou. Ela parou em frente à minha porta. Me olhou com aqueles olhos tristes, fingi que dormia. O bicho entrou em meu quarto e se deitou no chão ao meu lado. Lá ficou. Tive vontade de chorar quando senti o bafo dela quase na minha cara. Sabia que era o fim. Repassei toda a minha vida. Cheguei a conclusão de que nada vivera. E o pior: ninguém sentiria a minha falta. Não chorei então. Quando finalmente peguei no sono, sonhei o sonho dos mais lindos. Acordei na manhã seguinte em paz. Lilica já não estava mais no quarto. A blusa pesada eu já guardara. Andei procurando a cachorra por alguns minutos quando ela me encontrou na velha fila do remédio. Fi13
quei feliz de vê-la. Me ajoelhei à sua frente, brinquei com ela, tirei a galinha descabeçada de sua boca, joguei longe pra buscar. Não percebi que minha atitude paralisara todo asilo. Não havia pessoas naquele lugar que não via a cena perplexo. O que deu no velho chato? Com certeza, se perguntavam. Na segunda noite, esperei acordado por Lilica. Pontualmente, os passinhos mancos pelo corredor, a cara deprimida na porta, o bafo quente na minha cara. Nana bem, cachorrinha, fechei meus olhos. Sonhei que tinha 20 anos. No sonho, eu decidia ficar, não entraria no avião. Estava feliz com a minha decisão e abraçava a moça com intensidade. Meu coração acordou feliz e Lilica bobona me encarava com um quê de com que diabo sonhou esse velho? Brincamos o dia todo. Não lembrava de um dia mais lindo. Havia o inverno, havia frio, mas o céu era de um azul tão forte, tão vivo, que me deixava levar por ele. Lilica ia junto ao meu lado. Dividi meu almoço e minha janta com ela. Roubei um pão de queijo na cozinha e dei pra minha companheira antes de seguir para o quarto. Era a terceira noite chegando e eu estava feliz. Lilica foi comigo. Escovei meus dentes velhos e amarelados. Passei um pente pelo ralo cabelo branco. Escolhi um pijama dos menos desbotados. Deitei na cama. Lilica tomou seu posto. Virei de lado e assim conseguia acarinhar minha cachorra. Ela fechava seus olhinhos parecendo gostar do chamego. Adormeci. Sonhei com meu filho. Sonhei com aquele moleque de covinha no queixo e olhos claros. Estávamos na praia. Ele empinava pipa e eu babava a minha cria. Como eu amava aquele moleque. Um orgulho imenso. Meu filho me olhava pra ver se eu o olhava empinando o quadrado que voava longe, longe, longe. Ele ria. Eu ria. Amor. Na manhã do quarto dia, Lilica não acordou.
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it’s ok 16
O garçom me conhecia pelo nome. Depois de um tempo, virei um cara que bebia sempre, muito, às vezes, talvez um alcoólatra, mas acho que não. Eu só bebia a minha cerveja quieto no meu canto e o garçom sabia meu nome. Tudo muito simples. Não vou ficar me justificando também. O boteco não era grande. Da calçada, você descia três degraus de um projeto de escada, empurrava uma porta de vidro e lá era o bar. Quatro mesas, um espaço para vender vinis, cinco, seis bancos, para beber no balcão. Era isso. Eu bebia sempre a mesma marca de cerveja. Nunca fui fã dessa bebida. Encarava, porém, minha marca preferida porque ela era amarga, azeda, “dura”, cruel. Lembrava a mim. Segurava a maldita pelo longo pescoço e entornava pequenos goles, espaçados, sentidos, doloridos, ouvindo rock in roll na vitrola velha do lugar. Frequentava o bar há cinco anos, por aí. Sempre sozinho, eu comigo mesmo. Não via mais sentido em socializar ou conversar ou sei lá o que. Eu estava velho.
Foi lá que encontrei Bia.
Tinha sido uma semana terrível. Aquele tipo de semana em que tudo dá errado e você só vê a montanha de merda aumentando. Fazia um tempo que eu não brigava mais. Sabe aquele negócio de falar alto, bater porta, ter a razão de tudo? Pois é. Eu resolvi me calar, vestir uma carapuça cheia de sorrisos. Aprendi a dissimular tudo. Eu era tão bom nisso que acreditei também. Então, brigar pra quê? Mas esses dias, antes do meu aniversário de 43, me encheram o saco. Não bati portas, não gritei, não provei estar certo. Morri um pouco mais apenas e fui pro bar. Lá o garçom conhecia meu nome, minha bebida e sorria tão dissimuladamente como eu. Cheguei por volta das cinco. Fui pro balcão. Tirei a tampa. Procurei ar pra respirar. Virei um gole. Na mesa do lado da lojinha de vinis, três moças celebravam qualquer coisa. A mais alta chamou minha atenção porque simplesmente notou que eu existia. Foi gozado porque olhei pra trás pra confirmar se não havia alguém ali olhando pra ela. Ela sorriu. Pra mim. Eu sei lá ofereci a cerveja e a moça veio na minha direção. Era bonita. Bia. E mais nada. Era bonita. E vinha na minha direção. Sorriu de novo, chegou perto, pegou minha cerveja pelo pescoço e virou um gole – do jeito que eu fazia. Achei engraçada a arrogância da moça. “Oi”, “Oi”. Assim conheci Bia, do jeito mais insólito que poderia ser. Pensando bem, não havia outro jeito de conhecer Bia. Sempre tive muita dificuldade na vida em me relacionar com as pessoas. Antes de tudo, acho que minha timidez bloqueava boa parte do processo. Porque eu tímido, não sorrio, estampo uma cara de mau e, claro, ninguém se aproxima. Depois de um tempo, 17
desencanei também de toda a etiqueta de se conhecer e se relacionar com as pessoas. Elas me cansavam. Ou eu as cansava. Das vezes, no entanto, que me aceitei o fardo, estraguei tudo com palavras, atos e desvios irônicos de olhar do tipo “que porra eu to fazendo aqui?” Estar sozinho então foi o que deu pra arranjar e nunca me incomodou de fato. Eu me bastava. A merda com a Bia foi que ela justamente foi tirando meu chão e minhas certezas a respeito de tudo isso. Ela me irritava porque me fazia tornar a cada noite dependente do estar com ela. E o estar com ela eram horas de papo furado sobre séries de tv, cinema, hqs, músicas velhas, sonhos de um futuro melhor (que talvez nós dois nunca tivemos intenção de tê-lo). Nunca nos beijamos. Nunca fizemos sexo. E mesmo assim, que caralho, eu sentia uma porra de vida saindo de mim toda vez que tinha a atenção dela toda pra mim naquele boteco. Eu sabia tudo da vida dela. Ela quase tudo da minha. Nunca contei da noite em que tomei a caixa toda... Naquele microcosmo, vivemos eu e ela juntos por quase seis meses.
Aquilo me bastava.
Numa quarta-feira, era quase julho, estava frio, a barba tinha três semanas, depois do primeiro gole, meu garçom lembrou do recado que Bia havia deixado escrito num guardanapo. “Preciso resolver aquele assunto. Desculpa...” Cara, vou te dizer. Não acredito nessas coisas, mas quando entrei no boteco naquela noite e não a vi ali meu coração congelou. Quando o garçom (ok confesso não sei o nome dele) me entregou o recado, então meu ar acabou. Fudeu, pensei. Mas tudo bem. Bebi o que tinha que beber, fui pra minha casa e a vida seguiu. Eu não amava Bia (e dizia isso tanto pra mim com tanta força nesses seis meses, que no fim acreditava nisso).
Eu não amava Bia.
Por isso mesmo, não me importei com seu sumiço de três semanas. Quando Bia reapareceu foi como se não tivesse sumido quase 21 dias. Viu? Eu não me importava com o sumiço dela por isso eu não contava as horas sem vê-la. Querer alguém o tempo todo ao seu lado pode ser tão idiota. Eu era um idiota. Era evidente que não era mais a mesma Bia. Na mão esquerda dela, a aliança estava de volta. Claro que eu sabia que ela tinha sido casada, que bonita do jeito que era não ficaria sozinha por muito tempo, e, oras, por que não voltar com o ex-marido? Eles voltaram!!! Ignoramos tudo isso, porém. Não tocamos nesse assunto. Nos calamos sobre a verdade que estava ali na mão esquerda dela. E apesar do estranhamento crescente, agimos como se fôssemos os mesmos da primeira vez. 18
De verdade, o jeito dela me confundia todo. Da boca saía uma coisa, mas o olhar dizia outra e essa outra coisa me fazia sentir cada vez mais dentro dela. Aquele olhar parecia me querer. Mas no fim, como sempre, eu nunca soube se o que aconteceu, aconteceu de fato. Tenho uma imaginação fértil. O fato é que eu a esperava no bar, ela chegava esbaforida, com aquele sorriso e aquele olhar (que bosta de olhar), pegava minha cerveja pelo pescoço, roubava meu gole e seguia nossa pequena tradição. Mas, porra, agora, havia um elefante na sala. E finalmente toquei no assunto, quando agosto quase acabava. Caralho, falei pacas. Falei tudo. E a Bia olhando... com aquela cara. “Eu não posso te perder”, ela disse. Não sei o que houve depois, mas sei que fiquei puto, deixei a grana da cerveja no balcão, virei as costas e fui embora. Nossa primeira briga. Noites depois foi a vez dela. Assim foi por quase dois meses, eu e Bia nos enfrentando numa guerra ridícula e imatura. “Você é um grosso!” “Você não me viu ser um grosso ainda!” “...” “Vai à merda! Agora fui um grosso!” Ela se calou, fez um bico que eu não conhecia, achei que ia chorar, não chorou, olhou pra baixo e ali naquele momento eu sabia que havia estragado tudo. O que poderia ser uma boa coisa porque eu não tinha saúde para amar uma mulher casada. Metodicamente, mandei à merda e assim foi. Me levantei de nosso canto. “acho que deu pra gente!” “Não há ‘gente’ nessa história” “É você de um lado, eu do outro” ”Você não sabe a confusão que está dentro de mim” “Você não sabe a confusão que está dentro de mim” “Eu não quero sofrer por sua causa” “Eu não imaginei que você fosse tão idiota” “Vai à merda (porra, falei de novo e aí eu sabia que havia de vez estragado tudo)”. Eu estava calmo porque sabia que enquanto descontruía nossa história, ela me odiaria. “Olha nos meus olhos e diz o quanto de ruim fui pra sua vida”. Eu não olhei nos olhos de Bia. E fim. Bia me deixou doente de fato. Acabei de cama por causa de um resfriado interminável por umas duas semanas. Dezembro já estava na folhinha. Voltei ao meu bar, à minha rotina, à minha vida. Sabia que Bia não estaria ali. Não estava. Meu peito doeu por um segundo, tirei a tampa da garrafa, dei meu gole e esqueci tudo. Tocava Black na vitrola numa versão linda ao vivo, no final dela, ele dizia it’s ok e eu concordava quietinho do meu canto.... it’s ok... Foram 53 dias até Bia reaparecer. Eu não havia sentido falta dela, não havia contado as horas, nem dias, nem nada. Eu não amava Bia. E eu continuava a mentir pra mim porque assim era tudo mais fácil. Eu sabia mentir muito bem. Foi Bia quem me viu antes. Ela cruzou o boteco, não notei se estava sozinha, de onde tinha vindo, sei lá. Ela cruzou o boteco, não sorriu dessa vez ao olhar pra mim, se aproximou, pegou minha cerveja pelo gargalo 19
e aí o relógio passou a andar bem devagar. Eu segurava a garrafa também e toquei sua mão de leve. Dois segundos talvez. Ela nem percebeu. Nos olhávamos apenas. Ela deu seu gole. Soltou a mãozinha da garrafa que eu já segurava há tempos. “Oi!” “Oi” Mais nada. Caralho, nunca senti uma tristeza tão grande. Ela disfarçou mais esse estranhamento, sorriu de mentira e disse adeus. Não a segui com o olhar. Não disse “fica”. Não disse nada. Ouvi a porta de vidro bater e sabia que Bia nunca mais passaria por ela... Tomei o resto da cerveja. Meu primeiro gole ainda tinha o gosto de Bia. O garçom novo do boteco não sabia meu nome e ignorou meu pedido “de mais uma” três vezes.
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cidade 22
Não acredito em fantasmas. Quando algo morre, morre. Acabou.
Ninguém percebeu quando o fim teve início. Nem eu mesmo havia notado que tudo começara a ruir. Hoje, agora, ainda não sei explicar. Lá fora, só um balanço que vai pra cima e pra baixo empurrado pelo vento que não cessa. Ele range, seu movimento não é suave. Além das cercas, nada. Um vazio numa cidade que está morrendo. Lugar esse esquecido por Deus que não se foi ainda porque aqui estou. O último. O sobrevivente. O remanescente. Sei lá, o último cara numa porra de cidade que acabou. O primeiro parágrafo dessa tragédia tem cores. Progresso. Dinheiro fácil. Novidade. Modernidade. O século não conhecia a luz elétrica quando a cidade recebeu seus primeiros habitantes. Não era uma cidade ainda, é verdade. A estrada de ferro. A mina. Tudo ali por perto. Grandes pedaços de terra a preços surreais. Impossível não acreditar que o sonho poderia se tornar real. Foi o que meu pai pensou. E outros pais também. Mães e avôs e avós. Nascia uma cidade. Uma praça. Uma igreja. No centro. O comércio, os bares, o banco, a escola. Ruas. Uma avenida. A vida. As fazendas, ranchos, chácaras se estabeleciam. Plantavam, colhiam. Vendiam. E o tempo passava como se passa uma vida. Meu pai conheceu minha mãe. Se casou naquela igreja, que era a única e que marcava o início de tudo. O ouro reluzia e prosperávamos como nunca. Trens passavam por nossa cidade (agora sim CIDADE) e passageiros, que nada tinham além da vontade, não embarcavam rumo à próxima estação. Cena repetida por décadas. Já nos contávamos em milhares. Não tão milhares, alguns. Não éramos grandes, no entanto, crescíamos. Cada vez mais. O século novo conhecera duas guerras gigantes. Uma bomba que traria o fim do mundo. Papai morria. Mamãe também. O vento mudava de direção e a chuva não caía mais como antes. Claro, não percebemos isso na hora. O ouro acabara há décadas. Mas, as pessoas trabalhavam e seguiam suas vidas. Me casei. Fiz uma família. Três filhos. Por enquanto, os problemas ficavam do lado de fora das casas. As partidas eram individuais. Um. Depois aquele. O outro. Mais um. Aquele. E não notávamos que a cidade não crescia como antes. A chuva insistia em não cair. Os trens não eram tantos e suas paradas eram rápidas. Ninguém mais ficava na estação. Meus filhos embarcaram em um que levava para qualquer lugar quando as fazendas, ranchos e chácaras pouco tinham o que vender do que produziam. E assim dezenas partiam num ano, depois num mês, depois numa semana.
Bancos, lojas, bares, escola. A igreja. Tudo abandonado, 23
fechado, deixado para trás. O vento passeia sem resistência. Invade casas desamparadas. Solitárias. Na estrada construída atrás da minha terra, carros surgem separados por décadas. Penso na teoria do vírus e logo esqueço. Os mais velhos ficam. Eu fico. Não há outro lugar no mundo para mim. Minha mulher morre. Silvio morre. O padre morre. Agora é ela com seu manto negro quem apunhala a cidade. Fecho o portão do cemitério. Vagueio pela cidade quase morta. O peso de eras nas minhas costas. Ando devagar. A avenida central. Trinta minutos das minhas terras. Lembro da primeira vez que dirigi até ali. Meu pai ao meu lado. Agora ando. Sozinho. O vento não está. O mato cresceu naquele canto, aqui, acolá. Não sei que horas são. Há um banco da praça vazio. Que bom. Preciso descansar. Sento. Olho para o rastro que deixei ... vai lá longe. Ninguém percebeu quando o fim começou. Nenhuma alma ali.
Nenhum som.
O balanço no parque não balança.
Inerte.
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o sรณtรฃo 26
Tinha que decidir um monte de coisas. Era tanto pra minha cabeça e ninguém percebia de fato que eu não queria decidir nada. Último ano na escola. Vestibular chegando. Boletim parecendo um matadouro em dia de festa de gente. Tanto pra pensar. Não gritava, não pedia um tempo, não fugia. Seguia a correnteza. Não era feliz, mas isso também não importava. Quem sabe de fato o que é ser feliz? Eu poderia estar enlouquecendo naquela época, vai saber. Sétima aula na quinta-feira, véspera de feriado. A professora falava, falava, falava e aí num segundo parou de falar. Tudo meio que tomou uma outra cor, um outro nível de consciência. Então, eu vi. Onde os olhos deveriam ser verdes, azuis, castanhos, pretos, o vermelho. Destacavam-se na escuridão. Podia vê-los perfeitamente e sabia que aqueles olhos vermelhos me olhavam de volta. Não tive medo. Há tempos desconheço isso. Uma das placas do teto da minha sala havia se soltado. Ninguém deu muita importância pra isso. Ninguém reparou nada. Mas aqueles olhos vermelhos estavam ali em cima, me diziam algo, diziam sim, não sei o que diziam. Vislumbro a fileira do outro lado. As carteiras a minha frente. A professora que ainda falava, falava, falava. Nenhum deles percebera a menina no sótão, nem que eu havia a descoberto. O sinal tocou. A manada saiu em disparada. A professora ainda falava, mas o som de sua voz já ia distante.Eu ficara para trás. A menina escondida no breu. “Oi”
Demorou um pouco... e
“Oi”
“Você existe?”
Escuto os passos acima de mim. Ela se ajoelha, um rostinho pálido, doente, aparece no vão da placa perdida.
“É, parece que você existe...”
“Você quer ouvir minha história?”
Ela perguntou de um jeito tão delicado, tão intenso, que meu peito sentiu um corte profundo, um aperto tão grande, que meu deus, não sei... Olhos vermelhos perdem o brilho, um rastro de sangue passeia do canto da sua boca até o queixo. Sangue antigo, sofrido, de outros tempos. O olhar é tão triste... mas é a menina quem diz antes.
“Teu olhar é tão triste...” 27
Esboço um sorriso falso ou talvez o mais verdadeiro que eu tivesse pra ocasião. A loira faz o mesmo. Cabelos compridos, escorridos, básico se é assim que se fala de cabelos de meninas. Aí, ela fala coisas, tantas coisas e ouço atentamente, me esqueço do tempo, de ir embora. A menina loira perdida no sótão conta a sua história. Eu perdido em qualquer lugar só quero estar ali e ali fico. O sinal toca e a dormência na minha perna faz eu gemer alto. Todos riem. A professora não. Depois não reclama se repetir de ano, ela sempre diz isso. Vermelho de vergonha, guardo as coisas na mochila, parto sem dizer nada. Fazia tempo que não passava nessa rua. Sabia que o prédio seria demolido, não tinha certeza da data. Era noite já bem noite. Paro o carro na esquina e dois minutos a pé estou em frente ao meu antigo colégio. Avisto lá no segundo andar a janela em que encostava a minha cabeça tão vazia de sonhos. Me distraio um segundo com a buzina do ônibus e quando volto meus olhos pra janela, velhos tristes conhecidos olhos vermelhos me encaram. Como antes, eles ainda dizem coisas. Eu amo aquela menina e me pergunto em qual momento tudo desandou. “Quando eu peguei o caminho errado?” Ela, de longe, parece querer responder, mas sua boca não se mexe. Aceno um tchau bobo, respiro fundo, sigo para minha vida e quando olho para trás, dos olhos vermelhos que me seguem da janela apenas uma tristeza tão triste que ainda não inventaram um nome pra ela. As gotinhas caem uma atrás da outra. Dois canos machucam meu nariz com o ar que não consigo pescar sozinho. Uma linha sobe e desce no monitor. Fim da linha e tenho certeza que nunca imaginei que seria diferente. O remédio alivia a dor, não alivia a dor da alma que ainda dói. Mas tudo bem. Está acabando... “Oi”
Demoro pra responder, penso não dizer nada, digo...
“Oi”
Os olhos vermelhos sorriem.
“Vai ser diferente da próxima vez”
O sinal toca. Estridente. Me assusta, quase caio da carteira, o caderno desaba no chão. Todos riem. A professora também. Me atropelo, saio correndo, estabanado, tudo jogado na mochila. Não 28
olho pra trás, as risadas ainda persistem e por tudo isso, apenas por isso, não percebo a menina loira que não ri, mas que está ali, estará ali no mesmo lugar, sentada em sua carteira, seus cadernos cor-de-rosa, como sempre estivera, só que agora vai ser diferente.
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cor de rosa na avenida 30
Zuuuuuuuum. Faço a curva brincando de Ayrton Senna. Até canto a musiquinha e imito o Galvão Bueno. Ainda o dia não chegou na Vila Maria e tenho as subidas e descidas do bairro todas para mim. Opa, desculpa a falta de educação, chefia. Não me apresentei. Minha mãe, a santa dona Amélia (que Deus a tenha) batizou-me (preciso manter a estampa) de Cleidnelsonn. Assim mesmo, com dois Ns no final. Os mano, todavia, chamam-me de Fittipaldi. Zuuuuuummmmmm. Eu ainda não sabia, mas esse seria meu último dia de vida. Dei azar, claro. Sou do bem, gente honesta, entrego leite todas as madrugadas nas casinhas dos portuga do bairro. Ganho uns trocadinhos com uns bicos também. E no final do mês, tiro o da sobrevivência. Você sabe, porém, que os dias atualmente são de estresse total. Qualquer coisa, mano tá puxando o cano ou tiozinho ta te apavorando. A desculpa de todo mundo é a tal da violência. Bom, me dei mal com ela. Senta aí, puxa a cadeira porque vou te contar o acontecido. A Cerejeiras estava acabando, desembocando na ladeira bacana da Araritaguaba. Ali me divirto. Desço a milhão e a cachorrada fica doida com o meu voo. Olha moço, sou doidão na bike, mas nunca desperdicei a mercadoria. Claro, têm uns clientes que acabam acordando, reclamam, xingam a santa dona Amélia (que Deus a tenha) e voltam a dormir. A maioria, no entanto, nem nota a minha chegada. Muito menos, a minha partida. Só a cachorrada que fica naquelas de Mozart. Olho no relógio. São três e meia e só faltam as casinhas ao lado do Colégio Sion. Estou um pouco atrasado hoje. Seu Joaquim vai reclamar. Ele reclama sempre. Aquele velhinho acorda com as galinhas. Dou um show nas pedaladas, zuuuuuuummmmm, e só falta a casa do Maneco antes de chegar no seu Joaquim. Detono o freio da bike, seguro o bicho no braço e quase me acabo no muro do Maneco. Veterano da guerra do Timor, o Maneco chegou na Vila Maria bem antes de eu nascer. Acho que ainda havia o Figueiredo na presidência. Sei não, nunca fui bem nessas coisas de história. Então, o português é boa gente, mas teve a vendinha roubada três vezes mês passado. Por isso, dorme com o trezoitão do lado da cama. Ficou mais traumatizado com São Paulo do que com a Guerra do outro lado do mundo. Que coisa louca né? E continuando nosso plá, não me acabei no muro do velho. No entanto, derrubei o vaso, entortei o portão, acordei o gato e enlouqueci o pitbull. Cara, era melhor ter batido no muro. Com todo o escarcéu, seu Maneco levantou assustadão da cama. Pegou o meu carrasco (que Deus tenha piedade da minha alma) e saiu dando 31
tiro feito louco. Era balaço pra todo lado. Poxa, três garrafas se quebraram e o pior: duas balas me acertaram. Doeu. Ai como doeu. Caí duro no chão, já de cara com a saudosa santa dona Amélia. Deu tempo de ouvir o coitado do seu Maneco gritando “meu deus, matei o leiteiro. Matei um inocente”. E, antes de bater as botas de vez, antes do laranja do sol ganhar firmeza no céu, deu pra ver o vermelho do meu corpo se misturando com o branco das garrafas. Um cor de rosa bonito e alegre antes do fim. Zuuuummmmmmmmmmm.
IMPORTANTE: Esse texto é uma adaptação do poema MORTE DO LEITEIRO do gênio Carlos Drummond de Andrade. Só espero que ele não fique puto com a homenagem. Tenho a desculpa de que era um trabalho da faculdade....
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a famĂlia 34
Não tenha pena de mim. Sou totalmente responsável pelos meus atos e fiz o que fiz porque quis. Estava enfastiada, irritada, sem saída. Então abri a caixa e deixei saírem todos os demônios. Confesso apenas que me assustei por um ou dois segundos quando percebi que eu era a irmã do meu irmão. Eu era como ele.
Quinze anos antes...
Quando nasci, Igor já tinha seis anos. Claro que não lembro disso, mas a primeira coisa que ele fez ao me ver foi arremessar um molho de chaves que acertaram a cara de minha avó (para a minha sorte e azar dela). Ouvi minha mãe contando essa história para uma amiga. Eu crescia e sempre ao lado de Igor, as ofensas e agressões se avolumavam. Não havia por parte dele - e disso me recordo - nenhum desejo de cuidar de mim, de ser bom pra mim. Quando fiz cinco, ganhei uma boneca linda. Ela vinha com duas roupas. Eu até chorei de emoção rasgando a embalagem cor de rosa com o nome da loja. Igor não estava em casa naquele dia. Teve a boneca, bolo e brigadeiro e um monte de amiguinhos da escola. Eu usava um vestidinho azul escuro e uma tiara que combinava com os sapatos. Estava feliz de verdade. Mas, todos foram embora, meu irmão chegou. Ele não sabia do meu aniversário e estranhou aquele ar de festa que preenchia cada sombrio canto de nossa casa. Eu havia esquecido a porta de meu quarto aberta e ficou fácil para o Igor. Ele viu os presentes, o vestido novo e a minha primeira boneca - toda linda. Demorei para perceber que Igor estava em casa. Só quando ouvi o estridente barulho de alegria de sua risada demoníaca que corri para o meu quarto. Lá, numa pequena fogueira, derretia minha boneca, queimava meu vestido, tudo. A fumaça preta tomava conta do lugar e Igor ria, ria, ria. Paralisada de medo (seria tristeza?) via todo o meu mundinho se desfazer. E não entendia minha culpa nisso tudo. Aos 15, papai e mamãe saíram de casa para espairecer. Me deixaram sozinha com Igor. Eu ainda sonsa, pouco entendia das razões que levavam meu irmão tanto me odiar, me castigar, me punir. Antes de entrar no carro, mamãe gritou da calçada “seu remédio tá em cima da pia, Igor!” Meu irmão não estava resfriado. Tranquei a porta de meu quarto, deitei na cama e lá fiquei horas, dormi e fui capturada dos braços de Morpheus graças aos gritos terríveis que vinham do quintal. Meu coração acelerado de um jeito que nunca ficara e aquele grito, aquele grito, meu deus, aquele grito. Mesmo aflita corri para o quintal, o dia já tinha ido e o quintal não era dos lugares mais convidativos da minha casa durante a noite. Mesmo assim, fui... fui sabendo que algo 35
meu irmão fizera e que isso marcaria de vez toda a nossa família. Encostado no muro, Igor fazia desenhos abstratos usando o sangue da filha da vizinha como tinta. Tanto sangue. Ela tinha só sete anos. Igor jogou pra longe o pequeno corpo, olhou pra mim com tanta fúria “agora é tua vez, sua vadia!” Corri, mas não consegui sair do lugar. Um soco me acertou o olho direito, outro meu estômago e desabei feliz sabendo que não estaria acordada dali a um segundo porque o pior ainda aconteceria. E aconteceu. Meus pais voltaram no dia seguinte, encontraram o corpo da filha da vizinha, eu ainda deitada de bruços exausta, sem forças no quintal, toda quebrada em todos os sentidos. Igor na sala banhado em vermelho sangue assistia futebol na sala, indignado com o “juiz filho da puta que só rouba contra meu time!”
Um grave transtorno de personalidade, disseram sobre ele.
Minha volta para casa depois de anos coincidiu com uma breve saída do manicômio para Igor. Ele passaria os feriados de fim de ano em casa. Parecia outro quando entrou pela porta de casa. Abraçou papai, beijou mamãe que chorava emocionada. Ao se aproximar de mim, disse aos prantos “não era eu, me perdoe, me perdoe, agora estou curado!” me abraçou. Eu nada falei e apenas esperei as luzes de toda casa serem desligadas. Estava na cozinha olhando o vazio da minha vida e o quanto dela (a minha vida) havia restado depois de 15 anos vivendo com Igor e pais que não me protegeram. Percebi que a minha vida não existia mais e que eu era apenas um resto, um nada, um fantasma daquela menina que queria ser médica. Eu agora não era nada e abri a caixa e deixei saírem todos os demônios. Gaveta da pia aberta. Uma faca grande, afiada. O fim desenhado na minha cabeça. Subi as escadas, a porta do quarto de Igor encostada. Ando devagar porque já tive pressa e sei todos os passos e caminhos que darei e seguirei. Sorrio. Sento ao lado do corpo quente do meu irmão. “Igor, acorda!” Ele abre os olhos, sonolento, não entende direito e só percebe que o fim é agora quando leva a segunda estocada no peito. Enfio a faca fundo, sinto o colchão. Trabalho na perfeição daquele momento durante uma hora. Nada do pouco de humano de Igor restou. Agora ele sabe no que me transformou.
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A porta do quarto de meus pais está fechada. “Por quê não?”
Mamãe se afogou no próprio sangue. Papai nem abriu os olhos.
“Polícia”
“Eu terminei a história do meu jeito. Eles estão lá em cima... “
“Moça, não entendi...”
Quando a PM chegou, eu estava sentada no sofá da sala olhando meu reflexo na TV... pensava nas ondas do mar batendo nos meus pés e do quanto eu gostava dessa sensação ...
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o câncer 38
O cara brincava com meu mamilo esquerdo quando se deu conta de algo estranho. Um caroço, foi o que ele disse. Não lembro seu nome. Isso pouco importa também. O telefone tocou naquele instante, botei o mané para correr e nem me preocupei. O que os homens entendem de caroços no seio? No dia seguinte, dia aliás que não deveria ter deixado a cama, quando cheguei do trabalho, me sentia mais do que cansada. Não tinha força alguma. Estava sem fome, joguei a bolsa no sofá, nenhuma mensagem na secretária, fui para o chuveiro. Lembrei da noite anterior e do comentário do rapaz. Em frente ao espelho, toquei meu seio esquerdo. De fato, havia algo ali que não deveria existir e que eu nunca tinha dado conta. Seu tamanho me assustou. Isso foi há dez anos. Eu tinha 22, estava perdida, com raiva do mundo, extremamente sozinha. Sem perspectiva alguma. Na gavetinha da mesa ao lado da minha cama, deixava para o dia da grande coragem comprimidos para nunca mais acordar. Estava verdadeiramente cansada. Bebia muito, dava muito, vivia a 300 por hora. Nem sei direito o por quê daquilo. Era inquieta mesmo. Triste não, só estava cansada. Quando encontrei o caroço, não liguei para minha mãe. Não liguei para ninguém. Fui ao médico sem marcar consulta. Cheguei lá e esperei. Era evidente que eu tinha câncer. Não me foi surpresa quando o gatinho do doutor disse, escolhendo as boas palavras. “Quimio, operação, enfim, tratamentos que já deveríamos ter iniciado meses atrás”, falou o bonitinho. Meu coração não acelerou, não me emocionei, não tive medo. O que me surpreendeu é que naquele instante eu tive uma vontade louca de viver. Sabe, partir pra porrada contra essa doença maldita. Quis algo como há tempos não queria. Ia vencer o meu câncer, falei e sorri um sorriso honesto. Marcamos a operação. Antes, iniciei a quimioterapia. Meu entusiasmo nesse embate contra algo maior do que eu se foi logo depois da primeira sessão. Peguei um táxi para casa e lá vomitei minha alma e algo mais. E uma dor por dentro me arrancava do chão, nem sei descrever direito. Só sei que me sentia fatiada, engolida, os remédios me detonavam. Diarreia avassaladora. Se já não comia antes, agora então nada. Anemia feroz. Olha que tinha sido apenas a primeira sessão. Me internei sozinha. Minha cirurgia seria das radicais. Não havia como salvar minha mama. O médico gatinho fez o que tinha que fazer. Acordei horas depois no quarto. A TV estava ligada no Chaves. Consegui até rir. A quimioterapia continuou. O inferno continuou e acho que até piorou. Sei lá. Ficava mal por quatro, cinco dias. Me sentia mais detonada do que nunca. Sem peito e agora sem cabelos 39
também. Eu sabia que isso ia acontecer, mas rolou um certo choque quando saí do banho e na toalha tufos e mais tufos. Chorei ali de verdade, sentida como nunca. Naquela noite, liguei pra casa. Falei oi pra minha mãe. Não contei sobre a doença, não falei sobre nada. Só a ouvia falar de suas coisas e como a vida estava difícil. Pois é, mãe, viver é perigoso. Tchau. Você vem para o aniversário do seu pai, né? Vou. Não fui. Como é do ser humano se adaptar a qualquer coisa, comigo não foi diferente. Dois anos de tratamento entre idas e vindas. Me acostumei a toda aquela desgraça. Usei perucas, usei nada. Sorria quando queria. Chorava quando dava. Ia vivendo, assim, como se podia. Até que os médicos (eram três nesse dia e nenhum bonito) me garantiram que eu estava curada. Lembro que me senti vazia. Coisa estranha. Aquela doença por tanto tempo esteve ali comigo, contando minhas horas, me amando, me odiando, sendo parte de mim, que quando disseram que ela tinha partido, só senti o vazio. Me levantei. Andei alguns metros, parei no boteco e bebi uma garrafa de vinho. Meu primeiro porre em meses. Minha mãe morreu três anos depois. Meu pai meses depois dela. Fui ao enterro dela. Dele não. Acho que ninguém me reconheceu. Parti como cheguei, sem dizer palavra alguma. Mudei de emprego três vezes. Consegui um trabalho numa revista bacana há dois anos. Voltei a fotografar. Até me disseram que aqueles olhos tristes do primeiro dia tinham sumido. De verdade, eu era mais mulher ali. Achava que a tempestade cruel havia passado. Até reconstruí meu seio. Fiquei gostosa. Os homens voltaram a me desejar. Não fui pra cama com mais ninguém desde a doença, mas estava finalmente em paz. O vazio do câncer tinha sido preenchido por tantas coisinhas bobas, livros, cinema, minhas fotos, um bebê lindo da vizinha que eu sempre cuidava quando ela saía. Não pensava no amanhã, mas navegava em águas tranquilas, desconhecidas águas tranquilas. Viajei à África para um trabalho. Fiquei um mês por lá num campo de refugiados. Quando voltei havia uma mensagem na secretária. “Oi Sofia, sou eu. Então, você tá no outro lado do mundo, e me deixou aqui me sentindo tão sozinho. Preciso falar contigo. Quero falar muito falar com você. Liga assim que chegar. Saudade demais. Beijo”. Eu parecia uma adolescente boba. Pulei, gritei, estava ali vivendo FELICIDADE. Tinha 32 anos. O pior ficou para trás. 40
No dia seguinte, acordei tarde. Estava de folga, não ia para a revista. Quando me levantei da cama, uma tontura gigante me atirou ao chão. Tudo girava. Senti um gosto ruim na garganta e pelo meu nariz escorria sangue em alta velocidade. Me engasgava com ele. Deu tempo apenas de ligar pra emergência e pedir socorro. Apaguei. Mas mesmo apagada, sentia um cansaço imenso. Algo tão forte que desejei não seguir adiante. Apaguei. O gosto de sangue ainda estava ali quando acordei no hospital. Eu até sabia para onde me encaminhava novamente. Não chorei e esperei o inferno surgir na minha frente. Exames, exames, exames. Nenhum médico bonito. Flores do pessoal da revista. Flávio do lado da cama, beijando minha mão. “Estou com você”, ele disse e achei tão sincero. “Quero ver isso depois que vomitar em você três dias seguidos”, só pensei. Estava cansada demais, distante. O doutor careca, com cara de bobão, me visitou no dia 20 de janeiro. Trazia os resultados. Eu e ele apenas no quarto. Havia uma cópia barata de um quadro famoso de não sei quem na parede. Eram cores bonitas... “Sofia, ...” Olhei para o quadro colorido, para a cara de bobão do médico, para a janela. Olhei para dentro de mim.
Sorri assim um sorriso sincero. Sorri, apenas...
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o carro da morte 42
Vi meu reflexo no vidro traseiro de um carro funerário. Pude perceber todos os detalhes de um rosto velho, pisado, primitivo. Pude ver lá no fundo um olhar sem brilho algum, sem futuro, sem presente, com um passado sem perdão. Era um cruzamento qualquer de uma rua sem nome. Tinha um número apenas, não lembro qual. Fora de foco um caixão em silêncio. Sem vida como o corpo que dentro carregava. Não havia cabelos brancos na primeira vez. O carro do passageiro morto era todo preto, elegante, altivo. Causava arrepios a todos que o viam. A velhinha da outra esquina fazia o sinal da cruz. Com as mãos nos bolsos da calçola, chiclete amassado mil vezes, indo pra cá e pra lá dentro da boca, triturado por dentes de leite, nada podres, brancos, puros. De longe, vi o carro da morte, reluzente de um preto quase casto, brilhava de um jeito estranho quando refletia a luz do sol ao virar à esquerda na praça. O recebo com minha curiosidade imensa. Quero saber tudo. Há sim alguém que não é mais alguém na parte de trás. Um caixão branco, mas nesse tempo não sabia que artefatos como esse serviam para crianças como eu. Ninguém o seguia. O motorista barbudo, mascava um charuto velho. Quando apontou sua máquina para a avenida central, que levava ao cemitério de nossa cidade, o impulso, o instinto, a piedade, me fizeram correr atrás do cortejo inexistente. Ele reduz a velocidade, percebe carregar alguém não mais sozinho. Estou com o morto, corro atrás, aceno Adeus e choro porque chorar era a única coisa a se fazer numa hora dessas. Quando o ar de menino acaba, paro, o carro segue e tenho certeza que do banco traseiro, uma menina loirinha de olhos pretos imensos acenava o tchau mais triste que eu conhecera ou conheceria a partir de então. Acordo e ao abrir os olhos percebo rapidamente que tinha sido o fim. Cheiro gostoso de madeira nova. Estou até alinhado, tratando-se de um cadáver. Num segundo, sem entender como, sento-me ao lado do caixão, noto as rosas amarelas ao lado, um bilhete que não me interessa ler. Encosto a cabeça sem pensamentos, sem vida, sem nada (mas não fora assim antes?) na janela do carro funerário. Vejo as pessoas lá fora sem me notarem. A velhinha não se benze mais. O trânsito vagaroso não é obra minha, nem uma pretensa homenagem. Assim como na vida, na morte estou ali, invisível, imperceptível. Até sorrio meu sorriso mais sincero. Duas quadras antes do cemitério, olhei então para a calçada e vi aquele homem, parado, sem força para mais um passo. Pude perceber todos os detalhes de seu rosto velho, pi43
sado, primitivo. Puder ver lá no fundo um olhar sem brilho algum, sem futuro, sem presente, com um passado sem perdão. Um aperto de dor doeu no lado esquerdo do peito. Lá longe um cachorro uivava, não sei se por fome, medo, tristeza ou apenas saudade...
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maria 46
Maria corria da vida. Alguns (ou todos) diziam se tratar de um grande pecado afinal a moça nunca fizera questão alguma de abraçar a graça que lhe fora concedida por aquele que de todos ri. Cansada, ela de verdade não se importava e por isso apenas fugia, se lançava pra bem longe daquele que acreditavam ser o bem mais precioso. Maria não queria viver, nunca foi sua escolha, nunca foi sua intenção, não queria agora nessa vida, nesse momento, com essas roupas, cabelos e gírias. Maria não pertencia a nada, a ninguém, a lugar nenhum. O não pertencimento é o que enchia seu peito vazio do desejo de viver. Poxa, essa menina nunca quis a luz... nunca. Os nove meses já haviam passado. A primeira filha daquela família já deveria ter vindo ao mundo. Que nada. Enfurecido, o bebê se escondia o quanto podia naquela escuridão que lhe aquecia, alimentava, protegia. Por isso, antes de ser chamada Maria, a criança se recusava a fazer o que os outros queriam que ela fizesse. Não vou nascer e pronto, disse. Se enrolou no cordão de sua mãe e lá ficou esperando pelo fim. Roxinha, roxinha, roxinha. Quando saiu de dentro de sua mãe, agora sim, Maria não chorou, apenas desapontada ficou. O médico feliz disse que ela tinha apenas mais três horas de vida. Foi salva por Deus, um milagre, um milagre. Olha só, Maria, só mais três horas e nada do que aconteceria depois, aconteceria. Aí, Maria, tadinha, chorou sentida, de tristeza, pela primeira vez. Dias faltavam para a Copa do Mundo começar. Maria gostava de poucas coisas, uma delas era o futebol. Era uma menina diferente, seu cabelo sempre curtinho, os peitos crescendo e sua ira idem. Saiu da escola, um frio com cara de frio mesmo gelava seu sangue, ela tinha onze anos e sua cabeça voava longe sempre. Aqui, no lugar em que ela estava, nunca era o lugar, entende? Ela sabia que era de lugar nenhum. Descia pela rua, rumo ao ponto de ônibus, olhava pro céu nublado que tinha uns rasgos bonitos de sol que tentavam, tentavam, tentavam passar, mas não conseguiam. Gosto dessa nuvem que não deixa o gigante passar, disse a menina. Ela não percebeu em instante algum, só no segundo final e aí já não interessava mais, que no caminho contrário subia um daqueles caminhões imensos, pesados, cheios, mas esse estranhamente veloz. Maria fechou os olhos e sorriu, ufa - que bom, agora acabou. Que nada. Alguém (que droga), a puxou no momento exato como acontece naqueles filmes feitos de açúcar. 47
Maria sentiu só o sopro daquilo que sempre quis. Caramba, Maria, será você imortal? Ela não acreditava nessas coisas. E foi tirar a dúvida quando chegou aos 20, na verdade, 21. Dessa vez, ela correria tão rápido da vida que só a morte poderia alcançá-la. Era o que a doce e raivosa menina queria, por quê raios ninguém entendia esse seu desejo? Maria não gostava da vida, da dor que sentia forte no peito que nada tinha além dessa dor que não passava nunca. Maria zumbiava e nada mais. Invisível. Quem no mundo pensava em Maria ao menos uma vez num dia qualquer? Quem? Quem? Quem ao dormir falava baixinho como uma oração espero que Maria esteja bem? Ninguém. Maria poderia ser qualquer coisa, não fosse essa estranha maratona que trazia consigo desde sempre. Então, a moça, decidiu por um último teste. Ela não viveria pra sempre, que é isso sim uma maldição e não o contrário. Viver no lugar errado, no tempo errado, na vida errada não é viver. Maria alcançou o topo desse mundo que não lhe pertencia e lá de cimão olhou pra baixo. Viu tudo, todo o planeta, em silêncio, parecia que agora todos acordavam e notavam aquele pequeno corpo pisado, maldito, de olhar triste que não é ódio, talvez, apenas cansaço, nem sei mais. Maria não queria viver pra sempre. Ela precisava provar que não era imortal. Então, corajosa como sempre, sim senhor, corajosa e não me importa a sua opinião, ela chegou bem na beirinha do fim daquela que era a montanha mais alta daquele mundo. Maria poderia voar se quisesse. Mas ela não queria brincar agora. Chegou ao final da linha. Olhou para baixo novamente. Não sou imortal, pensou e pulou.
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um cara 50
Descobri o tipo de homem que ele era numa manhã de segunda. Na saída da estação Komagome, tropecei e caí, esfolando meus dois joelhos. Estava de saia. Sangrou muito e doeu muito. Sentada na sarjeta, liguei pra ele. Três quarteirões nos separavam. Chorona, disse o primeiro alô quase sem dizer alô. Ele sabia que algo havia acontecido. Estou indo, disse. Ah, cadê você? ... Então ele chegou, esbaforido, dois minutos depois. Algumas pessoas já me ajudavam. Uma senhora até emprestara uma caixa de lenços de papel para estancar o sangue, que já nem era tanto. Mas ele chegou. Me pegou com jeito, beijou minha testa, me levou para o trabalho. Ele gostava de trabalhar de manhã cedo. Não havia ninguém no escritório. Só nós dois e os joelhos abertos. Doce, “senta aqui na mesa”. Assoprou meus joelhos – quase beijou como se fosse curá-los. Passou água, desinfetou, secou, passou mercúrio cromo com o cuidado de que não ardesse. Pegou dois band-aids e terminou a breve operação. Meu herói. Bobo, né? Claro, no início de tudo, muitos me avisaram que era roubada. Eu sabia disso. Ele me disse também. Sabe quando você não liga e se deixa levar? Eu fiz isso. Pela primeira vez na minha vida não medi consequências. O episódio da “operação” provava que escolhera certo. Me levava embora todos os dias. Ligava quando viajava. Dizia sentir saudades e sabia que não era mentira. Comprava chocolates quase sempre. Ajudava na escolha de minhas roupas sem fazer cara feia (de fato, ele curtia fazer compras comigo). Nunca me traiu, ele não saberia esconder isso. Sabia direitinho onde tocar para me fazer ir ao paraíso. Nossa, como gozava gostoso com ele. Fazíamos planos. Sim, fazíamos planos. Numa noite de bebedeira, escolhemos até os nomes dos bebês. Foi uma noite bacana. Como sempre, quase hábito, depois do amor, ele me cobriu até o pescoço. Está nevando, nana bonitinho, disse, me fazendo parecer sua menina. Amei esse homem como nunca nesse instante também. Ele gostava de andar de mãos dadas. Beijos no meio da rua, com chuva, neve. Cinema. Teatro. Passeio no parque. Natais. Uma aliança com uma pedrinha discreta de diamante – não faço ideia de como pagou isso. Ele se cuidava pra mim. Corria. Academia. Brincava de tênis. Meus pais – tão chatos quanto aos meus relacionamentos anteriores – o adoravam. Brigas pra valer nunca. Mas os roxos safados do fogo dele ficavam nos meus braços, no pescoço, na nuca, nas costas. Era gostosa aquela mordida. O que posso dizer mais? Seus cabelos branqueavam a cada dia. Brincava comigo dizendo que ia tingi-los de preto. “Ridículo”, apostava e ria. Depois dos cabelos brancos, uma ansiedade o perseguia todas 51
as madrugadas. Ele sempre dormiu muito mal, mas agora piorara de vez. Inquieto. Inquieto. Inquieto. Inquieto. Inquieto. Inquieto. Inquieto. Calado como nunca. Não distante, em outra estação, talvez. As olheiras profundas. No entanto, pra mim, sempre havia um sorriso, que sim era sincero. Apesar do evidente cansaço que já se acumulava em seus ombros. Era a madrugada do seu aniversário e acordei com frio. De pé, encapotado numa jaqueta velha, com a calça azul surrada de pijama, ele olhava pela janela. Distante, distante, tão distante, que pela primeira vez nessa história de amor senti um calafrio de fim. Ele percebeu que eu acordara, sorriu como sempre e lá ficou me encarando como se dissesse tudo. Nada disse. Fechei os olhos e sabia que quando os abrisse, meu homem não estaria mais ali. Abri meus olhos...
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aquela tal felicidade 54
Nunca entendi direito como a vida funcionava. Em vários momentos, lutei contra ela, contra as coisas, bati demais e apanhei muito mais, me perdi, uma overdose aos 24, sanatório aos 30, até que me calei, parei de falar alto, bater as portas e procurar desesperadamente por sentir algo que não fosse ódio ou raiva. Aí, Bia apareceu, pagou minha fiança, me trancou num quarto, fez prometer que nunca mais me furaria, me mataria, cheiraria... Não disse nada, mas ela viu em meus olhos que não havia mais força para o combate. Me rendia, de joelhos, clássico, um clichê. Então Bia me lavou, me amou, cortou meus cabelos, limpou todas as minhas feridas, engravidou e morreu. E ficamos eu e o menino. Queria tanto aquele menino que o luto se esvaía a cada sorriso bobo ou a cada brincadeira no parquinho. Por tanto tempo entorpecido e aquele menino me fazia tomar banho, virar um professorzinho de periferia, jogar fora toda a tequila e vodka (o vinho não joguei não, ninguém é de ferro). O mundo estava mais estranho do que sempre fora, a intolerância era a ordem, os falsos profetas clamavam por seus deuses, os carros engoliam as pessoas, a polícia decidia quem vivia quem morria, o bandido decidia quem vivia e quem morria, os jornais diziam que tudo estava bem. Demorei pra abrir os olhos para esse mundo afinal meu mundo era um garotinho órfão de mãe e isso me bastava. Numa tarde de domingo, depois de um temporal e uma soneca imensa no sofá da sala, ouvi barulhos no meu quarto. O menino brincando, claro. Fui de mansinho para não assustá-lo. A porta estava apenas encostada, pela fresta podia vê-lo. Não posso dizer que não me surpreendi. Na verdade, nunca havia pensando nessas coisas, nas possibilidades, desejos, carências de meu filho. Eu era tosco, às vezes. Sei lá. O menino vestido como a mãe, passava um batom na boca, imitava trejeitos de uma moça da novela. Fiquei ali vendo meu filho transvestido. Não posso dizer que fiquei chocado. O moleque tinha sete anos, deixa brincar. Ponto final. Alguns anos depois, a diretora da escola me chamou. “Puta que pariu, vou ser demitido!” Meu coração pulava no peito porque precisava daquele emprego, talvez não porque gostasse, mas o dinheiro era fundamental pra cuidar do meu menino. Fazia conjecturas, criava desculpas, imaginava o pior cenário quando ao abrir a porta da sala de reuniões dou de cara com meu filho, todo machucado, olho roxo, nariz escorrendo sangue, chorando em silêncio. “Ele atacou um colega!”, disse a inspetora. Caralho, se meu filho estava detonado daquele jeito imagina o outro então, “atacou um colega?”. Quando a inspetora terminou a frase imbecil, o menino levantou a cabeça e o olhar que tinha naquele rostinho... ah aquele olhar... aquilo foi como uma estaca no meu peito... 55
“Nunca mais meu filho terá aquele olhar na cara!”. Deixei a besta falando sozinha, peguei o menino, fomos pra casa. Em silêncio. Tirei sua roupa. Lavei seu corpo. Não curei a dor, incapaz eu de cuidar do meu filho. “Pai, o Miguel estava pelado no vestiário, sem querer, eu juro, fiquei olhando, eu só fiquei olhando, aí aconteceu algo comigo, os meninos viram... e...” te espancaram covardemente ... respondi pra mim mesmo. Enxuguei o corpinho machucado do meu moleque, mas sabia que tudo estava apenas começando. Eu precisava voltar a ser aquele homem que não levava desaforo pra casa, aquele animal precisava voltar, sim, era o jeito de proteger minha cria. Mudamos de escola. Os roxos sumiram do corpo, mas a alma do menino estava incomodada, ele não se encaixava, ele queria voar livre, não se esconder, queria encontrar um sentido, um caminho. Tudo isso passava pela cabecinha do meu filho. Eu apenas deixava “todas as portas abertas” pra que ele soubesse que seu pai estaria ali pra qualquer coisa e que se fosse necessário o animal que seu pai fora um dia, voltaria pra protegê-lo. Aquele mundo não aceitaria aquilo que meu menino queria... Eu estava pronto pra briga... “Pai”, ele tinha 14 quando decidiu falar comigo de homem pra homem. Eu sabia o que vinha a seguir, não me importava, eu o amava tanto, tanto, tanto. “Pai, eu gosto de meninos...” Olhei pra ele com tanta coisa (amor?) que não sei descrever, mais do que preocupado com aquilo que via na TV e que se referia também ao meu filho, senti um orgulho tão grande dele ter confiado naquele podre pai... Eu o abracei, não precisava dizer nada. Ele sabia que o pai estava ali... Dois anos depois, na noite de Natal, o menino chegou em casa com um moço mais ou menos de sua idade. Eu terminara de fazer uma lasanha esquisita (?) pra janta natalina, estava tenso, sei lá o que pensava quando abri a porta. “Pai, esse é o Luca... meu amigo...” Luca olhou com um carinho imenso para o meu filho. Meu coração se acalmou, meu menino encontrara o amor de sua vida, a tal da paz que tanto procurei me abraçava, me aceitava...
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o fim do mundo 58
Fato consumado. Quando acordamos naquela manhã, sabíamos há tempos que seria a última manhã. Porque futuro não existiria depois desse dia. Essa realidade, cruel talvez, que pode causar dramas, lamentos, pesares, não surgira da noite para o dia. Avisados fomos, muitos correram feito barata para qualquer lugar, outros rezaram, rezaram, mas Deus – como sempre – não ouviu ninguém, alguns deram de ombros e poucos, quem sabe apenas eu, disseram “finalmente”. Não havia saídas, resoluções diplomáticas, milagres. O mundo tinha seus dias contados e não importa de verdade a razão disso. Como o fim era certo, e assim sempre foi afinal o fim era a nossa única certeza desde o início, as pessoas, depois do choque inicial, levaram suas vidas como faziam todos os dias. Alguém de outro mundo que desembarcasse no planeta terra e não soubesse de seu canto dos cisnes, jamais imaginaria que o tempo corria e que não correria mais logo ali, daqui a pouco. Absorvermos a dor, aceitamos, fizemos o nosso melhor e por isso mesmo, acredito, nunca viver nesse espaço foi tão VIVER. O caos não houve. As classes sociais se dissolveram. Trabalhava-se pelo prazer. Fome não se passava. Frio idem. Solidão não se via. Um admirável mundo novo se fez diante do apocalipse iminente. E fomos felizes. Alguém (para celebrar? E por quê não?) vislumbrou nosso acabar com luzes, som, abraços, beijos, festa, cachaça, cannabis, pecados, mas não uma orgia de Calígula, desesperada e solitária... Ninguém deu nome para a despedida. Ninguém criou contratos, aceitou dinheiro ou colocou empecilhos. Não, na verdade, todos queriam estar presentes. Então, imensos telões foram montados nos maiores estádios do planeta. A celebração da vida começaria com o fim do dia no norte. Havia sol – mais vermelho do que de costume – no sul. Aqueles irlandeses do cantor de óculos escuro foram os primeiros. Onde tocavam ao vivo pouco importava. Todo mundo voltava seus olhos para eles. Aquela guitarra, ah, aquela guitarra, antes do fim do mundo. Nem todos, centenas quem sabe, não foram às arenas. Para eles, templos, igrejas, mesquitas, mantinham suas portas abertas. Havia cinco crentes numa, outros 12 noutra, mais 3 naquela ali. Se Deus a todos abandonou, todos resolveram também abandonar Deus. Amém... Agora, o som triste de uma gaita de fole ecoava e sete bilhões de seres humanos suspiravam. Shouganai, dizia os japoneses. E mãos dadas se viam como nunca em nossa história. Uma moça bonita, de olhos 59
castanhos, pequena, frágil até, pegou o microfone. Suavemente declamou os mais belos poemas e “no meio do caminho tinha uma pedra”. Com a madrugada que se aproximava do norte vinha o fim. Todos os corações dispararam, se fosse possível ouvi-los o barulho seria ensurdecedor, os dois que sobraram dos quatro de Liverpool subiram ao palco e o mundo bateu palmas uníssono, sufocando os corações tumtumtumtumtumtum. Paul disse Hi e cantou o que todos queríamos cantar. Mais sorrisos no mundo do que desespero. Não havia alma sozinha. Não havia boca fechada enquanto os dois dos quatro comemoravam, sim, comemoravam. E se os dias todos antes tivessem sido como o último? The last song, disse Paul. Meu filho apertou minha mão. Apertei sua mão. Todo mundo fez isso. Era a deixa, era a certeza de que amanhã não seria amanhã. Leo disse tudo bem, eu disse tudo bem. E the last song, uma suave ironia com um doce sorriso no canto, gracejou com simplicidade assim “and in the END, the love you take is equal to the love you make” No sul, o sol morria no mar para nunca mais...
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eu sĂł tenho olhos pra vocĂŞ 62
Play...
“My love must be a kind of blind love I can’t see anyone but you Sha bop sha bop...”
Não irei ao encontro da guilhotina de Robespierre. Não. A sensação, no entanto, não deve ser muito diferente. A gravata me aperta, quase separa a cabeça do resto do corpo. Será mesmo? Estou tão nervoso, ansioso, que de verdade, tudo incomoda poucos segundos antes da magia. Mãos suam. Coração acelera. Não sou mais um menino, mas lembro do gosto... medo, um medo bom, sabe. Gela a barriga. Barba feita direitinho. Cabelos penteados, finalmente. Ou quase. Nem tudo é perfeito. Rostos conhecidos. Felizes. Roupas alinhadas. Casais. Casais. Casais. Cadê ela? Procuro. Não quero encontrar. Ah, sei lá. E se estiver acompanhada? Putz. Vai ser foda. Procuro. Encontro.
“Are the stars out tonight I don’t know if it’s cloudy or bright I only have eyes for you dear”
Num instante, tudo se apagou e aquela luz perfeita de hollywood cai sobre ela. Uau. Uau de novo porque sim foi uauuuuuuu. Discreta, elegante, linda. Cabelos num penteado diferente deixavam o pescoço livre para os meus piores pensamentos. Ai...
“The moon may be high”
bus
Ela está conversando bem longe. Não sei
com meninas e isso é bom. Uruse ela me viu. Poxa e agora?
Cruzo o salão remoendo todos os clichês que já li outras vezes sobre o ato de se cruzar o salão rumo à uma garota. Cara, que foda.
Então... a música...
“My love must be a kind of blind love I can’t see anyone but you Sha bop sha bop...”
Então... ela levanta os olhos que caem direto nos meus... é a senha...
Não preciso
dizer nada.
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Hum...tá, eu digo um oi totalmente idiota. Prontamente, respondido com um sorriso que me tira qualquer chance de ter um mínimo de sanidade. Mão gelada de um se encontra com a mão gelada do outro. O baile é só nosso... O cara na vitrola canta gostoso e nos deixamos cair... Parece que conheço esse corpo há séculos... Mãos em sua cintura. A puxo pra mim. Ela é só minha. Viva o egoísmo!! Minha. Ela envolve meu pescoço no seu perfume... Sentiu? Nossa, eu ainda sinto... Por milésimos, nos encaramos, bocas tão próximas, tão longe. Quente e frio tudo junto. Rápido e devagar. Tudo se mistura. Eu e ela. Ela encosta a cabeça no meu peito... e...
Um passo pra cá...
Outro pra lá...
Gira devagarzinho, gostoso, quase parado...
Outro passo pra lá...
Pra cá....
E nada existe mais...
Dançando. De leve. Sem pressa. diz “eu só tenho olhos pra você...”
No ritmo. Hummm.. O cara
E sussurro no ouvido, como uma brisa, te amo...
“You are here and so am I Maybe millions of people go by But they all dissappear from view And I only have eyes for you”
e sinto seu sorriso preencher todos os vazios da minha vida...
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a professora 66
Luna era a última. Depois, antes, ao lado, ninguém. Não importa de verdade como chegamos a essa situação e nem quem foi Luna. O que nos interessa nesse breve relato é que essa jovem senhora de 48 anos era aquela que apagaria a luz, como dizia um antigo provérbio usado por nossos ancestrais. Dito, não faz sentido entender as razões de Luna, muito menos descrevê-la por dentro e por fora. O que vem a seguir é apenas a história do fim. Como Luna era a última, sob seus cuidados, num grande teatro, havia mais de dez mil alunos. Todos a circundavam como naquelas velhas arenas que há eras deixaram de existir. Para a mulher sozinha de tudo, havia uma mesa de madeira da velha floresta que só conhecíamos por fotos. Tinha também um quadro negro pintado de verde. Giz quebradiços. Não havia mais ninguém naquele mundo que sabia fazer o que Luna fazia. Mas os lobos sentados esperando os leões romanos não se importavam. A doce senhora olhava, rodava seus olhos intensamente de leste pra oeste e ninguém, ninguém percebia sua presença. A professora tentou uma vez. Dois mais ... e os gritos à sua direita foram gigantescos. Alguém fizera uma piada e todos comemoravam como gol em final de temporada. Luna nunca gritara, nunca perdera a calma, nunca tantas coisas. Tentou mais uma vez. Quando os portugueses invadiram... sua voz agora era sufocada pelo trins e tiques e tacs de celulares tocando ao mesmo tempo e ao mesmo tempo todos eram atendidos e as palavras se perdiam num ruído imenso. Luna suava frio agora. Ela finalmente tomara a sua decisão. Daria apenas mais uma chance, mais uma, só uma... Como podemos ver a nossa atmosfera é formada ... De seu canto esquerdo da imensa sala bolas de papel que ninguém sabe de onde vieram já que árvores não existiam há décadas passaram por sua cabeça para atingir o lado rival. Cansada, vencida. Nada mais por se fazer. Luna deixou o giz branco escorregar de sua pequena mão. Ela viu seu instrumento deslizando milésimo de segundo atrás de milésimo de segundo. O giz caiu no chão de terra batida. Um som seco, duro, ecoou pelo coliseum. Como se milagre existisse o silêncio se fez. Todos, os dez mil, olhavam atônitos aquele pedaço de giz caído no chão. Quem o atirou? De onde veio? Como pode acontecer isso? Alguém, não se sabe quem era ou onde estava, gritou: “A professora foi embora!” Outro silêncio, mas agora a resposta a ele veio num estrondoso espocar de rosnados, latidos, grunhidos, gritos. “Festa!!!!!!!!!!!!!” E todos deixaram suas carteiras, cadeiras, alguns mais afoitos arremessaram a velha mesa contra o quadro negro de cor verde. Ruídos. Ruídos. Ruídos. Liberdadeeeeeeeeeeeeeeeee.
Luna não olhou pra trás e ninguém nunca mais perguntou ou soube 67
dela. Quando o tempo passou tempo demais, os mais velhos que a tinham conhecido, com o restinho de memória que ainda havia desenharam seu rosto em paredes pela cidade perdida. Os cabelos amarelos, a boca cerrada, os olhos caídos, tristes, em silêncio... Assim Luna ficou marcada em muros e cavernas... Foi o que restou dela. Antes, porém, a liberdade, a festa, a comemoração. Não havia mais professores para pegar nos pés dos pobres alunos. Não havia mais “encheção de saco desses velhos frustrados”. Não havia mais escola para atrapalhar. Férias eternas. Celebrações eternas.
Assim foi por semanas, talvez anos.
No entanto, o tempo de felicidade extrema cobrou um preço alto. As máquinas pararam de funcionar. Ninguém sabia delas, ninguém as conhecia, ninguém as havia tocado. O que aquela sociedade civilizada sempre soubera é que as máquinas existiam e faziam todo o serviço sozinhas. Nada mais. O que parece ter acontecido foi que num efeito cascata, dominó, enfim, uma atrás da outra, a máquina falhou, engasgou, quebrou e parou. Claro, havia manuais para consertá-las e tudo voltaria ao normal. “Como se lê isso?” “Que língua é essa?” “Como abrimos essa máquina?” A festa cessou e a tensão se fez presente naquele mundo que não sabia ler nem sequer um simples manual. Mais tempo, mais silêncio de objetos que não faziam mais os trabalhos dos humanos. As fábricas empoeiraram, mas a tragédia maior ainda viria. No campo, a colheita não existia. O sol cada vez mais perto queimava qualquer coisa. Não havia comida vinda direto da terra há 50 anos. E a indústria eclodira. Fome, fome, fome. Havia livros que diziam o que fazer, que apresentavam alternativas, que explicavam como as coisas funcionavam. Ninguém os conheceu, ninguém os procurou. Quando o mais terrível inverno aportou no planeta, o último livro foi queimado para aquecer os ignorantes...
“Ocê, comida ?” “Fio muito agora!” As conversas não existiam mais.
Todos esfomeados, devastados, perdiam também as palavras... “Huhuh” “Huhars” “Mrteis” “Aiiii” 68
As histórias, os períodos, as frases, as palavras, as letras tudo virou pó. Ninguém mais lembrava como o fim tinha começado. ... Tê batia uma pedra sobre a outra. Alguém, um louco talvez, teria dito que desse ato o fogo emergiria. Tê bateu pedra contra pedra por horas. Se cansou, jogou-as longe, o frio gigantesco. Tê, como todos os outros, não teria o dia seguinte... E nenhum planeta, nem a Terra, sentiu falta de Tê e dos outros.
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especial 70
Um fantasma me disse uma vez que o menino saberia sim do meu amor por ele. Pensei nessas palavras nos primeiros dias e também no último e um pouquinho mais depois do último. Meu filho nasceu com uma deficiência mental daquelas que têm nomes estranhos. Para todo mundo era um retardado, pra mim, meu moleque Leonardo. Simples assim. A mãe morreu no parto no mesmo instante que ouvi o chorinho do bebê. Uma estranha mistura de emoções, vida e morte, perfeita sincronia. Virei pai solteiro e toquei a vida. Eu e Léo, Léo e eu. Li tudo o que pude sobre seu dodói. Aprendi coisas, procurei médicos, vi programas de TV, participei de mesas redondas sobre o assunto. Não havia cura, claro, sabia disso desde o primeiro diagnóstico ainda no pré-natal. Não me importava de verdade com a doença. Queria saber cuidar dele. Larguei o jornalismo porque viajava demais, virei professor, poderia assim levá-lo comigo sempre. Éramos só nós dois e o mundo e acho que eu precisava dele ao meu lado, o tempo todo. Sempre que dava fugia para vê-lo no berçário, pegava no colo, cheirinho de bebê, levava bronca da tia porque sempre o acordava. Éramos fortes ali. Léo crescia. Não conseguia falar, mas emitia uns sons diferentes para cada emoção que sentia. Pouco chorava. Era introspectivo desde sempre, mas o pai também era. Quando começou a andar, arrastava a perninha direita, isso, no entanto, não o impedia de correr e pular quando ouvia suas músicas preferidas. Tinha bom gosto o moleque. Reagia com entusiasmo ao som da voz de Kurt Cobain e do Renato Russo. Ficava feliz. Pulava, pulava, pulava, pulava, pulava. Caía sentado de bunda e sorria feliz com o olhar perdido para qualquer lugar. Aprendi com o tempo a me comunicar com ele. De certa forma, me adaptei às limitações dele. Ele crescia bonito, ficava doente com frequência, o médico já tinha avisado antes. E tocávamos a vida como dava. Dormia de boca aberta deitado de lado igual à mãe. Tinha pesadelos, acordava gritando, suado, chorando, eu o abraçava, pegava no colo, falava no ouvidinho que tudo ia ficar bem, sentia no meu peito o coração dele se acalmando, se acalmando, aí menino dormia, quietinho. Quando isso acontecia, eu deitava ao seu lado. E não dormia mais, pronto para espantar qualquer coisa ruim que chegasse perto dele. Ninguém ia fazer mal ao meu menino, nem um pesadelo perdido. Na escolinha, dificuldades motoras foram surgindo e o menino se limitava a rabiscar folhas em branco, amassar massinhas e fugir da tia. Era fácil encontrá-lo sentado no banco do pátio que dava de frente à sala em que eu dava aula. Ele ficava ali me vendo falar, trabalhar, ficava bonitinho, sentado como 71
gente grande, com o cabelo loiro da mãe jogado na testa. Aí batia o sinal, eu o pegava no colo – como ta ficando pesado e eu ria sozinho – e levava pra tia, mais broncas. Era divertido. Uma vez, num shopping, ele ficou um tempão vendo dois pivetes colando figurinhas. Léo nem piscava. Eu poderia ir até a lua e o moleque estaria ali concentrado na brincadeira dos outros. Comprei o mesmo álbum e dez pacotinhos. Escondi dele. Quando chegamos em casa, dei banho, comida, vimos TV um pouco, coloquei na cama. Antes de apagar a luz, dei o álbum e as figurinhas. Não sei como tudo aquilo aconteceu, até hoje não entendo, mas o pirralho pulou na cama feliz como nunca, tentou abrir o pacotinho, rasgou um pouco, eu abri, ajudei com os adesivos, abrimos as páginas e ele colava do jeito que sabia e se orgulhava disso, sabe. Na carinha do meu filho naquela noite, eu vi apenas VIDA e isso pra mim bastava. Nunca mais teve pesadelos. O tempo seguia e a areiazinha da ampulheta acabava. Leleco ficava cada vez mais fraquinho e nossas visitas aos médicos só aumentavam. Precisei tirá-lo da escola – choramos os dois tanto. Ele em seu quarto, eu no chuveiro. Era necessária uma internação. Estava fraquinho demais, sabe. Tirei uma licença da escola. Fomos nós dois de mala e cuia para o hospital. Seu aniversário de nove anos foi lá, cheio de enfermeiras, médicos. Foi até bacana. Léo se lambuzou de bolo e foi nessa noite que lembrei das palavras do fantasma, não sei por quê. A festinha improvisada acabou, ele ainda tinha pique para desenhar, foi um desenho rápido, e silenciou como sempre fazia. Beijei sua testa e apaguei a luz do quarto. Peguei o papel do desenho e o guardei no bolso sem dar muita atenção. Adormeci rápido no sofá. Sonhei um sonho assim: Sentado, as mãos cruzadas entre joelhos, a sua frente o mar e o menino chutando ondas. Cabelo do pai/menino escorrido na testa. Entorpecido com a vida e tudo o que ela é e não será. O menino tem medo do mar, mas só quando o pai não está por perto. O menino quer voar. Posso? Vai!
E ele foi... perdido entre as ondas.
Quando acordei, eu já sabia. Deitado de lado, boquinha aberta. Chamei a enfermeira. O peguei no colo. E não lembro muita coisa depois disso. No enterro, usava a mesma cal72
ça e senti o último desenho do menino ainda em meu bolso. Tinha um negócio amarelo lá em cima da folha. Mais embaixo, algo azul e bem no meio da página dois riscos verticais, tortinhos, um grande e outro pequeno. Entre eles uma linha que os unia. Eu e Léo, Léo e Eu. Assim, simples como sempre foi.
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um outro final feliz... 74
Oi, eu sou a Bia. Tudo bem? Faz tempo que eu não escrevo, né? Estava cuidando da minha mãezinha. Ela foi enterrada ontem. Tinha câncer, sofreu bastante, mas eu e o papai ficamos do lado dela até o fim. Mamãe foi muito forte, sabe. A última coisa que fez antes de partir, rumo à estrada que leva ao meu irmão, foi dar um sorriso lindo. Mesmo magrinha, dodói, aquele sorriso foi a coisinha mais linda que já tinha visto. Aí, ela fechou os olhos. Então, meu peito doeu, minha barriga virou toda. Achei que ia cair, mas precisava ser forte desde aquele segundo que ela fechou os olhos. Isso porque mamãe deixou papai sozinho. Claro, eu vou cuidar dele, mas os dois juntos sempre viveram um para o outro. Papai me ama muito. Papai ama meu irmãozinho, que tá no céu, muito. No entanto, em relação à mamãe, não tem como explicar o que aqueles dois sentem, sentiam. Mamãe era a realidade para ele. O chão. A vida. Tudo. Mamãe sorriu pela última vez. Papai sorriu pra ela. E aí, quando ela foi embora, meu paizinho chorou tão baixinho pra eu não ouvir, tão baixinho pra eu não ficar preocupada, que o mundo todo fez silêncio. Eu não disse nada, sabe. Papai beijou as mãos da mamãe, ainda quentes. Beijou seu rosto, sua testa, como fazia sempre. Aí ele encostou a cabeça em seu colo e ficou lá... perdido... Tenho dez anos, ainda não sou uma mocinha, fico sem saber o que fazer às vezes. Mas ali, naquela hora, fiz cafuné no papai, beijei seu rosto já barbudo e fui para o corredor do hospital. Papai precisava daquele tempo com mamãe, pela última vez... Foi um velório lindo. Estava cheio. Todo mundo do hospital que ela trabalhava estava lá. Todos da escola do papai também. Meus amigos da escola. Sim, estavam todos tristes, no entanto, mamãe era tão bacana e ajudou tanta gente que eu só ouvia coisas lindas das pessoas que visitavam ela. Papai estava bonito. Mamãe, antes de ser internada pela última vez, foi ao shopping comigo. Lá, além de comer no McDonalds, compramos uma camisa para o papai. Foi um segredo meu e dela. O último. Preta, linda. Mamãe sempre comprou as roupas do meu pai. Ela tinha bom gosto e ele, como é preguiçoso, não reclamava não. Comprava um livro, mas não trocava a calça velha de jeito nenhum. Mamãe brigava com ele (risos). Depois faziam as pazes. Ali, no velório, no cemitério, papai usava a camisa preta, último presente da nossa princesa. “Bia, não quero seu pai de barba. Nunnnnnnnnnnnnca!” Isso foi difícil, no entanto, papai fez a barba. Rosto triste que me fez chorar, escondida no meu quarto. “Bia, você cuida dele. Nada de só jan75
tar. Ele tem que se alimentar direito!” Papai era tão teimoso. O caixão baixou. Papai procurou minha mão. Segurou ela como se não tivesse mais nada na vida. Eu apertei a dele com força pra ele saber “paiiiiii, estamos juntos, você não ta sozinho!” Acho que ele entendeu porque sorriu para mim, com sinceridade. Todos foram embora. Ficamos eu e ele. Então, papai me pegou no colo. Eu abracei seu pescoço, me segurei com força porque a tempestade ainda não tinha passado. Não deu para segurar e eu chorei, chorei, chorei, chorei.... e o papai disse, com carinho, “calma, calma, passou, passou...” ele estava mentindo, claro...Nunca vai passar, mas aquilo me acalmou. Papai está na sala agora, mudando os canais da TV há umas duas horas. Ele acha que dormi, mas não consigo. Tenho medo do amanhã. Ele disse que não preciso pensar nesse tal de amanhã. “Viva agora, Bia...amanhã a gente vê o que faz!”...
Agora, ele não estava mentindo.
Hum, ele desligou a televisão. Uma música toca bem baixinho para não me acordar. A música deles... “Bia?”
Ops, ele me descobriu acordada...
“Não me enrola, menina, eu sei que você não está dormindo!” (risos)
“Oi, pai...”
“Vem aqui pra sala, vem dançar comigo!!!!!!!!”
Obaaaaa, adoro dançar com o papai...
.... Da cozinha, como sempre fazia, mamãe nos olha, nos acaricia, nos protege, segurando no colo meu irmãozinho. Estamos juntos, todos, mais uma vez...
e meu coração não dói mais de saudade. :)
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a Ăşltima casa 78
Era um corredor extenso, grande mesmo. Saía da cozinha e levava aos dois quartos, um maior outro menor, e ao banheiro. Havia tapetes nesse caminho. Todas as cores do mundo, se você olhasse com atenção poderia ver que eles – os tapetes – brilhavam no escuro e um par de olhos verdes dizia todos os segredos impublicáveis sempre depois da meia-noite. Mas era preciso acreditar, antes de tudo. Quase sempre, a lâmpada que ficava no meio desse corredor se apagava sozinha, se acendia depois com força quase de um sol inteiro, se apagava novamente pra nunca mais. Em noites de pesadelo e de chuva forte, que bate na janela com força de um grito dizendo “eu sou a sua morte e te quero bem...”, aquele corredor não tinha fim e nenhuma de suas milhares de portas se abriam. Nenhuma porta se abria. E o desespero só aumentava porque simplesmente nenhuma porta se abria e o corredor não tinha fim. Você sabe que eu não minto muito. Essa história é a história de um velho e de uma velha casa. Tudo que virá a seguir é verdade. Ambos demoraram séculos para se encontrar. Me sinto triste quando lembro do velho. Ele não era de todo mau, tinha um humor peculiar e via a vida com olhos verdadeiros, sem filtros, sem pudores, sem medo ou com o maior pavor de todos. Ele era um velho que conheceu o mundo. Sim, o velho não tinha mais idade e por causa desse detalhe, não ter um fim, decidiu numa bela manhã de abril, quando a lua tinha dito adeus, partir sem rumo. Ele partiu a pé, se foi, sem dizer adeus, não havia ninguém para dizer adeus. Ele foi. Antes, porém, queimou suas asas, queimou seus quadros, discos e livros, queimou seu coração. Andou, andou e andou e andou porque não servia para nada correr desembestado feito um besta. Ele estava cansado, só isso. Andar era o remédio para não pensar em mais nada, naquilo que havia deixado para trás (teria deixado algo para trás mesmo?), naquilo que não prestava pra mais nada. Conheceu então o mundo inteiro. Sem saber, enquanto percorria montanhas, oceanos, rios, campos, sistemas solares, ele procurava algo... ele não sabia, mas procurava sua casa, seu lar, o lugar no qual fincaria suas raízes e finalmente encontraria paz. O lugar em que fecharia seus olhos e se deixaria levar como alguém que decide na hora do afogamento parar de lutar e deixar toda aquela água fluir pra dentro de si. O local que fecharia o imenso buraco de seu peito, buraco esse que existia bem antes de tudo. Um buraco invisível que nunca se fechara, que nunca se contentara, um buraco que nunca deixara o velho quando era apenas um homem comum se aquietar num canto qualquer. Esse buraco trouxe inquietação, desejos, perdas. Com o seu vazio, de certa forma, esse buraco matou o velho, mas não conte pra nin79
guém porque ele nunca percebeu que na verdade não existia mais. O velho andou anos-luz. Viu estrelas nascerem, cometas colidirem, anjos fazendo anjos. O velho viu deus morrer. Ninguém se lembra como, quando e por que a casa foi construída. O que todos garantem é que ela sempre esteve lá, desde a aurora dos tempos, desde quando aquela mulher comeu o que não devia ou teria sido aquele homem, ninguém sabe mesmo traçar uma linha do quando essa casa apareceu na face da terra. O fato, ela está lá, sempre esteve, estará quando nós partirmos dessa pra melhor ou pior. Na sala, há uma cortina vermelha, bonita, que impede, quando totalmente fechada, que a luz entre e clareie toda a escuridão. Ninguém também nunca viu aquelas cortinas abertas ou pelo menos não se lembram. Na sala, há um sofá, pequenas estantes, duas portas, uma para entrar outra pra sair. A lâmpada nunca se apaga sozinha. Em uma das paredes, um quadro queimado pela metade que talvez tenha sido salvo de algum incêndio, quem sabe? No que sobrou desse quadro, um coração também queimado servido aos demônios como prato principal. Percebe-se numa análise mais detalhada que os demônios não aceitam o coração. Se você encostar seu ouvido, se aproximar do quadro, ouvirá o coração lamentando... “nem eles me quiseram...” Se você tivesse coragem de abrir as cortinas vermelhas veria uma bela janela de ouro que te levaria a outros mundos, bastava para isso dizer sim, eu quero ir... As cortinas nunca foram abertas... Na cozinha, uma grande mesa, talvez comportasse em seus bons tempos 500 soldados, quem sabe mil donzelas em seus vestidos rosa e azul anil. Hoje, a mesa não recebe mais ninguém. Um forno antigo, que dizem ter acolhido o primeiro fogo do mundo, jaz sozinho no canto pedindo um pouco de atenção. Há uma janela ali também, sem cortinas. Quando você olha por ela, vê o futuro, tudo aquilo que poderá ser e não o é agora, mas ninguém, nunca, em nenhum tempo, olhou por aquela janela. Se assim tivesse feito, qualquer pessoa, nossa história hoje seria diferente, no entanto, claro, essa é uma outra história. O chão dessa velha casa é de terra batida, terra tão velha quanto a casa, quanto a Terra, quanto o velho. Milhares andaram por esse chão. Agora não mais, apenas sombras e uma boneca, brinquedo de criança, que insiste em viver mesmo sabendo que bonecas não podem viver, não faz sentido um brinquedo viver, mas aquela boneca é danada, quer viver e quando a meia-noite bate, depois dos olhos verdes proclamar todos os segredos do mundo, 80
ela passeia pelos cômodos, rindo alto, correndo feito moleque, brincando com cachorros imaginários e filhos perdidos, que se foram antes de seus pais. Aquela boneca quer viver, poético isso, ela quer viver, mas não pode, não dá, não faz sentido algum... onde já se viu uma boneca de brinquedo querer viver? Antes das bestas saírem para caçar, alguns minutos antes, a casa para de ranger. Tudo silencia. O corredor. A boneca. A janela. A chuva. Os grandes e tristes olhos verdes. A cachorra manca que não existe mais. Quando o relógio toca três da manhã shuuuuuuu nada mais se move naquele pedaço de mundo esquecido por deus ... Numa manhã fria, gelada mesmo, de neve nos trópicos, finalmente, o velho parou em frente ao portão daquela casa. Os dois finalmente depois de eras se encontravam. O portão rangia pra lá e pra cá como o vento e o velho pensou um pouco se deveria entrar ou não entrar na casa. Ele sabia, não sei como, que ela o esperava, que ela de certa forma, seria o fim da linha. O velho pensou e pensou. Concluiu que nada poderia ser pior do que tudo fora antes. Ele, portanto, decidiu entrar na casa. Como por mágica, no instante em que decidiu dar o primeiro passo, um raio cruzou todo o céu cinza. Teria sido uma bela foto. Me esqueci de falar como se entra na casa. Há duas portas. Bom, antes, você abre o portão, segue pela trilha de cruzes plantadas metodicamente por uma senhora que vivera muitos anos antes. Essa trilha se bifurcará. Então, as duas portas. Uma levará à cozinha. A outra à sala. Se você está esperando alguma surpresa quanto à escolha de uma das portas, me desculpe, nada de especial acontecerá. O velho sabia disso, de alguma forma, ele sabia que qualquer porta era uma porta e ponto final. Escolheu a da sala. Ah... não havia chaves para essas portas. Bastava girar a maçaneta e pronto.
O velho escolheu a porta da sala, girou a maçaneta... Dois passos para dentro, o velho na casa, a casa no velho. a porta se fecha...
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o autor
Ale da Costa trabalhou durante dez anos como jornalista. Nesse período, lançou dois livros com pesquisas sobre futebol. Em 2004, largou as redações burocráticas e chatas, se transformou em professor de História. Participou de quatro antologias de contos de novos autores brasileiros. É formado em Comunicação Social e História. Foi correspondente internacional em Tóquio entre 2000 e 2002. Produz o site Portrait (http://aledacostaportrait.wordpress.com/) há doze anos, local em que publica seus trabalhos como fotógrafo e escritor. Contato: aledacosta@gmail.com
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