Portrait Fanzine nº 25

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CARTA ABERTA

Escrevo essa carta sob a emoção da morte do Rei Pelé. Na tarde de 29 de dezembro de 2022, ele se foi. Não o vi jogar. Mas não posso negar o impacto dessa notícia. Triste. O homem Edson Arantes do Nascimento errou como todos nós. Sua recusa (e rejeição mesmo), durante anos, de receber a filha Sandra Regina me incomoda ainda. Sua relação esquisita com o poder e os poderosos, idem. No campo de futebol, no entanto, tudo o que fez, o tanto que brilhou... O rei está morto... Homenageio o Rei do único jeito que sei na última página.

Escrevo essa carta dois dias antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, o novo presidente do Brasil. Há uma sombra sobre esse momento da história brasileira e nunca a ideia de terrorismo esteve tão latente. Tentar entender a cabeça do bolsonarismo, que ganha espaço a partir do Golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência em 2016, é um dos desafios dessa edição de Portrait Fanzine. Como digo no artigo desse número, analisar a “seita bolsonarista” é trabalho longo para as próximas edições também.

Sou colecionador de gibi há algum tempo. Coleciono e leio, claro! Gosto de garimpar algumas preciosidades e uma delas foi UM GRANDE ACORDO NACIONAL, de Robson Vilalba, lançado em 2021 e que traz, provavelmente, o mais fiel relato sobre como as elites brasileiras derrubaram uma presidenta eleita democraticamente. Eu tinha que falar com Robson. E consegui fazer com ele uma das minhas melhores entrevistas da minha vida. Papo sem frescura e meias palavras, Robson apresentou a sociedade brazuca do jeito que ela é... o que, obviamente, incomodará muita gente.

E para fechar esse número, um ensaio fotográfico sobre o GRITO, sobre a vitória, sobre a derrota. Fotos convertidas em preto e branco, poesia dentro das quadras e campos. Dez páginas de liberdade, alegria e tristeza. Poxa, como me sinto vivo registrando esses momentos... Embarquemos.

SUMÁRIO
04 14 18 Êxtase O golpe Seita
Ale da Costa

ANATOMIA DE UM GOLPE

Um Grande Acordo Nacional, jornalismo em quadrinhos escrito por Robson Vilalba, lança luzes sobre o processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff da presidência

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ALE DA COSTA texto e fotos

Uma peça de teatro encenada pelos deputados. Eles tiravam Dilma Rousseff, presidenta eleita democraticamente, do poder em nome da família, de Deus, do Brasil... Cenas bizarras. Um circo de horrores. Uma piada de mau gosto. Em 31 de agosto de 2016, o Senado Nacional terminava o processo de impeachment, iniciado meses antes, e cassava o mandato de Dilma. Fogos de artifício por todo o país, panelaços, buzinaços celebravam o GOLPE. Não liguei a televisão nesses dias. Me encolhi na cama, triste como se um parente tivesse morrido. O que mais me doía, além da sensação imensa de injustiça e de que um crime estava sendo cometido, era o quanto o país como um todo crucificava Dilma. De longe, a presidenta me passava a ideia de uma solidão sem fim. Claro que eu sabia o tamanho da força dessa mulher. Mas qual a razão do golpe? As famosas pedaladas fiscais a derrubaram. Continuo desafiando qualquer um a me explicar que raios são essas pedaladas... Uai... isso não é rotineiro? Por que só ela pagou o preço?

Ao ler Um Grande Acordo Nacional, jornalismo em quadrinhos de qualidade ímpar produzido por Robson Vilalba, todas aquelas sensações de vazio e tristeza e impotência que senti em 2016 ao ver um ato que não fazia senti-

do algum vieram à tona. O gibi (e falo gibi porque é o jeito mais carinhoso que conheço de chamar essa forma de arte) de Robson não é fácil de digerir. Entre outras razões porque sabemos qual o fim dessa história: Jair Bolsonaro.

O segundo livro de Robson (já havia lançado Notas de um Tempo Silenciado, em 2015, sobre a Ditadura Militar), da editora Elefante, chegou ao mercado em 2021. E como o próprio autor disse na entrevista que segue não pede benção para ninguém. Sim, é um livro de esquerda, mas não faz disso um dogma, uma doutrinação. Ilustrador e animador, Robson é formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Recebeu o prêmio Vladimir Herzog de jornalismo e direitos humanos em 2014.

O mais importante de Um Grande Acordo Nacional é que ele nomeia o impeachment de Dilma como deve ser nomeado: um golpe... e ponto final. Uma atualização: na semana do Natal, a Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou as contas do governo Dilma Rousseff em 2014 e 2015. Entre outras coisas, o relatório aponta que a então presidenta foi afastada do cargo por um golpe com base em falsas alegações de “pedaladas fiscais”.

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PORTRAIT FANZINE: Foi difícil ler Um Grande Acordo Nacional. Eu não esperava que aqueles capítulos fossem me tocar do jeito que me tocaram... me deram um nó na garganta. Eu via o governo Dilma Rousseff de longe e tentava entender o que ela tinha feito de errado para que estivesse sendo perseguida do jeito que estava. Vieram as ofensas, as piadas de muito mau gosto, o impeachment... Seu livro me levou de volta para aquele período entre 2014 e 2016. E isso é um elogio!!! Mesmo havendo dúvida sobre se ela participaria ou não da campanha de Lula para presidente, em seu lançamento em 20 de agosto de 2022, no Vale do Anhangabaú na cidade de São Paulo, Dilma foi ovacionada por 70 mil pessoas que lá estavam. Ela se emocionou bastante... o Brasil deve um pedido de desculpas, de perdão, para a ex-presidenta?

ROBSON VILALBA: Você não precisa de muito esforço para dizer que o Estado Brasileiro deve uma desculpa à presidenta Dilma Rousseff e ao ser humano Dilma Rousseff porque foram muitas as atrocidades que o Estado Brasileiro, em diferentes momentos da história, cometeu contra ela. Por mais que a desculpa suceda a tragédia. A gente já cometeu várias tragédias contra Dilma Rousseff. Agora, no entanto, uma

desculpa em relação ao processo de impeachment da presidenta seria melhor para nós do que para ela. A Dilma tem consciência de tudo o que ocorreu. Quem não tem, somos nós, sabe? O golpe/impeachment de 2016 marcou na nossa história uma exceção no comportamento das instituições e uma permissão feita, por exemplo, por parte da imprensa... pensando já não só o Estado Brasileiro, mas pensando o Brasil como nação. Uma permissão para que aqueles fatos fossem cometidos... eles até bloqueiam nosso entendimento sobre os processos sucedentes. É difícil você não entender que foi permitido ao governo Bolsonaro tantos absurdos, sem admitir que houve um absurdo original que foi o golpe de 2016, entendeu? Nós só conseguimos olhar para o governo, para o que aconteceu de lá até aqui. E aí até aqui. E eu não sei ainda exatamente o que pode acontecer. A gente só consegue olhar para isso se entendermos que foi permitido um regime de exceção em 2016 para retirada de uma presidente democraticamente eleita. Uma vez isso aceito e tolerado, tomado como razoável por parte da sociedade como órgãos de imprensa, capital industrial, capital financeiro, os “farialimers” da vida, as forças armadas, uma vez que esses grupos admitiram o pecado

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original que foi o golpe contra Dilma, todos os outros golpes passaram a ser banais, passaram a ser possíveis. Porque o pior já estava feito por essa gente que cometeu a exceção. Então, nesse sentido, reconhecer o erro seria uma primeira forma de entender. ‘Olha, só aconteceu tudo o que aconteceu depois porque a gente cometeu esse erro aqui na nossa história’. A gente só consegue explicar o que veio depois, quando a gente olha para isso aqui (o golpe em 2016). Se continuarmos ignorando essa verdade, a gente vai arrastar isso como uma espécie de trauma ao longo da vida. E aí você vai repetindo ele novamente ao longo do tempo, entendeu? Um pedido de desculpa seria importante para nós porque talvez nos permita a não errar novamente como erramos com ela. Esse é o grande intuito da desculpa, né? A gente não pede desculpa pelo erro que cometeu. A gente pede desculpa porque entende que errou e que não quer errar novamente. Mas isso, a galera não entendeu.

PF: O presidente eleito Lula nem assumiu ainda e já está levando porrada de inúmeros editoriais de jornais/revistas do Sul/Sudeste do país. É impressionante e me faz pensar: essa dita “grande imprensa” não aprendeu nada com

o golpe e o resultado que nos gerou a breve era Bolsonaro, que ela ajudou a promover? Ela não fará sua autocrítica?

RV: Você traz o exemplo da opinião política. Na imprensa, não tem nenhum problema, vamos dizer assim, ter uma determinada opinião política, sabe? A Folha de S. Paulo reagir da maneira como reagiu (em relação ao discurso do presidente Lula sobre responsabilidade social) é da surpresa de zero pessoa, né? Porque a gente imagina que a Folha vai fazer isso. Mas, eu acho que a gente tem que olhar para uma outra coisa. Por exemplo, como o governo Bolsonaro e o próprio presidente e seus comparsas tratam a mídia e o comportamento que a mídia colocou em prática durante o governo Dilma... ‘Galera, a gente quer isso aí para o resto da vida, entendeu?’ ‘Eu quero que vocês tratem o PT dessa forma e tudo o que vem do PT dessa forma’. Quando vem o governo Bolsonaro e aí tem reportagens, mais do que opiniões de editoriais e tudo mais, que começam a desvendar escândalos do governo Bolsonaro, aí os eleitores do governo Bolsonaro falaram ‘pô, cadê aquele tratamento que vocês davam? Eu achei que vocês estavam do nosso lado. Eu achei que vocês defendiam os nossos interesses’ e pas-

A imprensa brasileira, de uma forma geral, baixou o nível na cobertura sobre o impeachment de Dilma Rousseff. As capas das revistas ao lado, como exemplos, trazem tudo aquilo que aprendemos na faculdade de comunicação do que não devemos fazer como jornalistas. Vergonha e mau gosto e nada de autocrítica por parte da mídia nacional

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sam a atacar, até fisicamente, funcionários desses grupos de imprensa. Reconhecer que houve um golpe, reconhecer que houve um comportamento velado em relação ao golpe, é só através disso que a gente consegue admitir que essa violência toda que é feita hoje, que foi feita durante quatro anos contra funcionários desses mesmos grupos, é fruto desse apoio que eles deram lá atrás. Têm pessoas que simplificam isso de maneira extraordinária e muito didática como o caso da jornalista Vera Magalhães, que durante tantas oportunidades tratou de maneira muito horrível a presidenta Dilma Rousseff. Fez todos os tipos de piada, por exemplo. Ela teve o mesmo tratamento em relação ao presidente Lula, quando estava preso. E aí, quando ela encontra o Bolsonaro e recebe o mesmo tratamento agressivo não só dele, mas de toda a sua quadrilha, ela fica surpresa, entendeu? Você só pode se surpreender com isso se não entendeu o que você fez lá atrás. Se você não entendeu que contribuiu para a origem disso que hoje se tornou normal. Quando a gente criou aquela exceção, uma série de outras exceções passaram a ser criadas. Pior do que a imprensa emitir a opinião dela, qualquer que seja, usa-se o ovo da serpente que ela ajudou a chocar. Hoje, a imprensa é vítima da própria serpente que ajudou a chocar. ‘Ah, mas esses extremistas são exceções’. A questão não é essa. A questão é que nós passamos a tomar a exceção como regra desde 2016. Inclusive, a forma como a imprensa cobriu a operação Lava Jato. Não viam, por exemplo, ‘será que esses caras têm algum outro interesse que não só o interesse de desvendar crimes? Será que esses caras têm, por exemplo, o intuito, um dia, de virar presidente da República ou virar ministro do supremo? Será que eles não estão nos usando como meio para chegar aos seus verdadeiros intuitos?’ Se a imprensa não entender isso e olhar para isso pelo que ele é, a gente vai continuar com esse buraco na história de achar que nada daquilo aconteceu.

PF: A capa da revista Veja dizendo “Tchau, querida!” é de uma covardia sem igual. É jornalismo de baixo nível se é que podemos usar o termo jornalismo. Os crimes de Jair Bolsonaro são inúmeros e já apresentados por muitos. Mas não se viu na mídia brasileira aquele afã para propagar pedidos de impeachment nesses últimos quatro anos. Dilma ser uma mulher, nessa sociedade machista em que vivemos, norteou a

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O presidente do Brasil que deixa o cargo em 31 de dezembro de 2022, no domingo da votação do impeachment de Dilma, resolveu homenagear o maior torturador da Ditadura Militar nos anos 1960/70 antes de seu voto. Não mencionarei o nome dos dois

cobertura da imprensa e a instalação do próprio processo de impeachment? De novo, coloco a questão da mídia nacional fazer sua autocrítica... quando ela reconhecerá o mal que fez?

RV: Talvez, leve 50 anos igual a carta da Rede Globo se desculpando pelo golpe militar de 1964. Hoje, ela reconhece que apoiou o golpe. Talvez, como várias outras coisas no Brasil, só depois que já é tarde demais. E por sorte, a gente não perdeu essa eleição de 2022, ou seja, poderia estar muito pior. De certa forma, isso acaba ajudando a história a ser recontada. Claro que tem o componente misógino, claro que tem o componente machista, sim, porque a gente tá falando da sociedade brasileira e ela é misógina e machista, no entanto, eu acho que o tempo inteiro que o governo Dilma esteve no poder e acena com a volta do Lula, o interesse dos proprietários dos grupos de imprensa do sudeste é contrário e o seu objetivo é tirá-los do poder. Eu tenho comigo que a elite brasileira, em geral, é mais aristocrática que burguesa, sabe? Eles não têm nenhuma visão. Por exemplo, quando a gente vai olhar, sei lá, para os Rockfellers, nos Estados Unidos, os Fords ou, mesmo na Europa, pra burguesia francesa ou inglesa, você tem uma ideia de que algumas coisas têm que ser mantidas ... a burguesia tem muita coisa do indivíduo e o indivíduo se estabelecendo por esforço próprio... e que aqueles indivíduos por esforço próprio têm que ser respeitados e até admirados para que outros indivíduos, na lógica burguesa, tracem metas e as alcancem porque isso é fruto do seu esforço individual. Eu acho que nem isso existe no Brasil. O que existe nesse país é um pensamento muito mais aristocrático. Ou seja, não importa seu esforço individual, importa o sobrenome que você tem. Para essa aristocracia, uma mulher que era contra um regime totalitário durante os anos 1960, com a ideia da vanguarda, um homem nordestino, operário, esse tipo de gente ocupar o poder assim é inadmissível, sabe? Mas também para esse mesmo grupo é inadmissível um capitãozinho Zé Ruela, envolvido com o crime organizado no Rio de Janeiro. Para eles, quem é admissível? Os nobres de puro sangue, um Dória da vida, mesmo um Cardoso de Mello da vida. Os interesses deles são muito mais aristocráticos. Meu livro tem esse objetivo. Quando ocorre uma série de eventos em acordo que permite que o golpe seja realizado, para eles era tipo assim, ‘galera, vamos ajudar a empurrar’. Você causa, mas tem a

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consequência, né? Se você olha para o abismo, o abismo vai olhar para você. Ao mesmo tempo que eles fazem isso, em seguida, a história vem e devolve para eles assim: ‘ou agora vocês têm esse mesmo comportamento ad eternum ou a gente vai ter esse mesmo comportamento com vocês agora’. Eu acho que foi o que aconteceu. A imprensa conseguiu construir a ideia de que ou você tem um determinado comportamento e só um determinada opinião ou a gente vai te aniquilar porque é essa a grande questão. ‘A gente vai te impeachmar da vida’. O comportamento que foi criado a partir do golpe de 2016 é exatamente esse. Eles estão sendo vítimas daquela prática que ajudaram a construir.

PF: Todo esse processo de confecção de um golpe que tirou Dilma da presidência sempre me fez pensar na solidão que ela viveu. Ela foi abandonada por quase todo mundo. Isso me tocou demais naquela época. Toda aquela injustiça. Seu livro é muito certeiro ao mostrar isso. Qual a imagem que a presidenta te passou naquela época?

RV: Quando a vi pessoalmente... ela transmite muita força. Ela me lembra aquelas diretoras de escola bem bravas (risos). Pra você ter uma ideia como é a coisa do machismo, só depois que eu a vi pessoalmente é que fui perceber que a Dilma era muito mais alta que o Lula. Eu nunca achei que ela fosse tão alta, muito menos, mais alta que o Lula, porque quando eu olhei, ela de perto, eu falei, ‘caraca, essa mina é grande pra caramba’. Ela tem uma presença física muito forte, sabe? E a força dela espiritual também... uma história muito forte que exigiu muito dela em vários momentos da vida. A sensação que eu tinha não era nem de solidão propriamente dita, era de que ela olhava/pensava ‘vocês estão fazendo cagada, eu vou aguentar, não vou sair daqui não, eu vou continuar aqui igual aguentei em outros momentos da minha vida. Vocês vão se ferrar (com o que aconteceria no Brasil depois!)’. Ninguém ganhou... ninguém ganhou. E se houve quem ganhou, perdeu também e ela tinha essa consciência o tempo inteiro, uma certa sensação... O discurso dela no Senado foi muito, muito pesado ‘gente, vocês estão fazendo cagada, vocês estão queimando os barcos, um monte de coisa (ruim) vai ser possível depois disso aqui’. Eu tenho a sensação de que ela tinha essa lucidez, talvez não de maneira consciente, sen-

do planejada como quem prevê o futuro, mas como uma experiência de quem já viveu muito a história do Brasil, que estava vendo uma espécie de repetição dessa mesma história. Eu tenho essa sensação de alguém que tinha uma espécie de calma, mas uma calma melancólica.

PF: Numa era de crescente negacionismo e um revisionismo insano, seu livro ganha um papel importante. Tanto na própria construção desse momento da nossa história como no ato de trazer referências e bibliografia para que as pessoas de fato que queiram entender aquilo tudo tenham possibilidade. Já se deu conta disso?

RV: Eu não sei exatamente o que vai acontecer com o meu livro. Pra mim, já é muito importante o fato de você estar falando comigo, isso já diz que o livro existe. Eu tinha um compromisso com o livro e tentei levar esse compromisso até o fim. Por conta desse compromisso, tive vários problemas, inclusive o de encontrar editora para publicar. O compromisso era o de ser um livro sério, que não pede benção para a direita, mas também não faz uma apologia à esquerda. Ele é um livro de esquerda, mas é um livro crítico. Sempre tive como postura pessoal tentar ser racional. E até mesmo para falar com esse interlocutor que não concorda comigo. Esse livro, em muitos momentos, quis fazer pra essa pessoa. Não, eu não queria fazer para o convertido. Eu queria falar assim: ‘Cara, vamos fazer o seguinte: você acha que realmente foi um processo de impeachment legal? Vamos olhar para tudo o que aconteceu. E vamos ver se você concorda. Então, olha esses eventos que foram sucedidos, olha o que aconteceu nesse dia. Olha o que vai acontecer naquele dia. E se você achar que estou errado, olha aqui também as referências bibliográficas, você pode consultar elas, ver se cometi algum equívoco quando consultei essas mesmas referências. Você pode, inclusive, questionar essas referências, levantando outras que falam sobre esse mesmo evento que eu descrevo aqui porque eu coloco o evento e dou dados sobre ele e aí vamos até o final. Eu quero ver se realmente você ainda vai conseguir achar certo o que aconteceu (o impeachment de Dilma), se foi um processo legítimo...’ Sou formado em Ciências Sociais e tenho mestrado em Sociologia. Quando terminei o livro, fiquei imaginando: ‘se esse livro fosse uma defesa de Ciências Políticas, por exemplo,

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Dilma Rousseff assumiu a presidência do Brasil em 2011, no rastro de um governo de oito anos de Lula. Nos anos de 1960, ela militou na Organização Revolucionária Marxista Política Operária, a Polop. O grupo se fundiu a outros surgindo o Comando de Libertação Nacional, Colina. Dilma é presa pela ditadura civil-militar em janeiro de 1970. As torturas não demoraram a acontecer. A futura presidenta do Brasil ficou na prisão até 1973. A página acima faz parte de uma espécie de extra de Um Grande Acordo Nacional, que poder ser encontrado no site da editora: https://elefanteeditora.com.br/um-grande-acordo-nacional-outras-historias-dilma-rousseff/

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eu diria que o objetivo da minha pesquisa seria o seguinte: se a gente pegar um processo de impeachment, ele é jurídico e político. Se nós pegarmos o aspecto jurídico desse processo de impeachment de 2016, a gente vai ouvir especialistas a respeito e a gente não vai ter uma unanimidade. Existem alguns especialistas que questionam, tem especialistas que defendem. Não, não foi um processo legal, ele tem uma série de falhas. Beleza? Então o aspecto jurídico é esse, não há uma concordância, não há um acordo. Sobre o aspecto político cabe à Ciência Política analisar o que é um fenômeno político. Se você for pegar os verbetes do dicionário de Ciências Políticas do Norberto Bobbio, ele vai dizer o seguinte: o conceito de golpe muda ao longo do tempo. Mas o golpe é sempre quando você usa as instituições para derrubar um presidente eleito. Quando o povo derruba o presidente é uma revolução. Como vamos poder nomear um acordo firmado entre o vice-presidente e o presidente da Câmara para derrubar uma presidenta eleita? Se isso não se chama golpe, como a ciência vai nomear este evento? O Michel Temer, então vice da Dilma, nunca escondeu que tirou ela porque a presidenta não colocou seu programa no poder. E se a história se repetir? Vem o Alckmin coloca outro programa, tira o Lula, como vamos chamar esse fenômeno? De qual conceito nós vamos tratar? Este tipo de fenômeno, uma vez que do ponto de vista jurídico não há acordo, do ponto de vista da Ciência Política, a gente tem que olhar pra esse fenômeno para que possamos entender quando ele se repetir. E que tratamento nós vamos dar? Uma coisa que a gente não pode dizer é que foi um evento natural. Agora, você vai me dizer que o impeachment da presidenta eleita democraticamente foi natural? Não, isso não foi natural. Você

não quer chamar de golpe? Tudo bem, vamos chamar do quê? Como a gente chama um acordo firmado entre vice-presidente e presidente da Câmara dos Deputados para deslegitimar, retirar e colocar um outro programa no poder? Qual é o outro nome? Se a gente for usar o dicionário de Ciência Política, está lá muito simples, se chama GOLPE. Tudo nos indica que a gente precisa de um outro tratamento para olhar para a forma como as instituições democráticas criam mecanismos de controle autocrático, mesmo dentro de uma aparência democrática, como também destituem presidentes democraticamente eleitos de forma democrática. E isso não é um problema nosso. Isso é um problema global. Isso também tem que ser entendido. Não é exclusividade do Brasil não saber lidar com um fenômeno atípico da democracia porque tem cara de golpe, mas fachada democrática. Isso aconteceu no Brasil. Isso aconteceu na Turquia. Isso aconteceu no Egito. Isso aconteceu na Venezuela. Então, a gente precisa entender. A gente precisa olhar com seriedade, como quem pede desculpa, sim, desculpa... nós erramos, a democracia errou.

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VAMOS AOS FATOS...

...o legado de Jair Bolsonaro é nefasto e vai além dos péssimos números que seu governo produziu ao longo de quatro anos

Jair Bolsonaro perdeu a eleição para Presidente do Brasil em 30 de outubro de 2022. Luiz Inácio Lula da Silva teve 50,85% dos votos, Bolsonaro fechou com 49,15%. Resultado apertado. No entanto, Lula foi eleito e ponto final. Mas, nessa distopia chamada Brasil, para a ideia de que “contra fatos não há argumentos”, sempre há uma resposta do tipo “não é bem assim!” No dia seguinte à derrota bolsonarista, seus seguidores passaram a produzir um material vasto, repleto de surrealismo e insanidade. De verdade, seria cômico se não fosse tão trágico: o fulano adesivo de caminhão, os golpistas cantando hino nacional para o pneu, celebração de prisão fake do ministro Alexandre de Moraes, saudações nazistas, troca de mensagens nas quais adolescentes combinam de pegar armas do pai para matar petistas... e na última da semana de Natal, bolsonarista golpista colocou bomba em Brasília para criar terror na posse de Lula, fora o arsenal gigantesco que seria distribuído entre os comparsas. Tudo isso atrelado ao desejo golpista nas portas dos quartéis para que o Exército assuma o poder, além do pedido de socorro feito para os ETs, com celular na testa apontado para o espaço, para salvar o país do comunismo... sim, isso aconteceu...

Por que pessoas que se proclamam “cidadãos do bem”, “cristãos”, “patriotas”, “devotos da tradição, Deus e Família”

abraçaram essa “retórica do ódio” sem se importar com o mal que ela produz? Por que essa fé cega sem nenhum tipo de questionamento?

Esse artigo é apenas uma introdução para conversas futuras que a Portrait Fanzine fará com intelectuais que têm estudado essas manifestações da “mentalidade de seita” no Brasil há pelo menos quatro anos. Agora, me proponho apresentar fatos. Não haverá achismo. O que pretendo provar é que o governo Jair Bolsonaro foi um dos piores da história desse país recheado de histórias de péssimos governos. O que ficou latente na era Bolsonaro é que as elites brasileiras “mostraram a cara”. Concordo com Robson Vilalba, nossa entrevista dessa edição, que diz que a classe média brasileira é mais aristocrática do que de fato burguesa. Aqui, os ricos se valem de seu nome. É a prática do “você sabe com quem tá falando?” E essa forma de pensar nega o debate e a possibilidade de uma divisão de riqueza mais justa. Uai, ser cristão não significa dividir o pão? Pois é... essa minoria não acredita de fato nesse princípio e viu em Jair Bolsonaro seu melhor representante. Afinal, entre outros argumentos, seus ministros enfatizaram que, por exemplo, “a fome no Brasil era fake news”. Tiveram a coragem de dizer isso e continuam dizendo. Você viu a campanha de fim de ano do Governo Federal dizendo que o país melhorou muito nesses qua-

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tro anos? Chego a pensar que estou louco porque não é possível que haja tanta desfaçatez na construção de um discurso. Não, o Brasil não melhorou com Bolsonaro. O Brasil piorou em todos seus índices sociais. O Brasil da maioria chegou no fundo do poço.

Em novembro passado, o IBGE lançou dados mais chocantes ainda que contradizem todo esse falatório verde e amarelo de paraíso de Bolsonaro e seus comparsas. Segundo esses números sobre 2021, 29,4% são pobres no Brasil e vivem com cerca de US$ 5,50 por dia. São 62,5 milhões de pessoas que mal têm acesso ao básico para sobreviver. Desse montante, a tragédia ainda é maior porque 17,9% dessa população estão em situação de extrema pobreza e vivem com menos de US$ 1,90 por dia. Um salto de 48,2% em relação ao ano de 2020. Esses dados são os percentuais mais elevados desde 2012. Definitivamente, o Brasil voltou para o Mapa da Fome que havia abandonado na década anterior, o que é muito maluco afinal o país tem produzido cada vez mais comida que é exportada em dólar (que não baixou da casa dos R$ 4,50 de jeito nenhum na era Bolsonaro).

Diante desse paradoxo, como aceitar calado que o Brasil está melhor hoje depois de Bolsonaro? Pode até haver um país melhor, mas não é o nosso, não é o da maioria. Não se esqueça que a inflação na casa dos dois dígitos voltou e tudo ficou muito mais caro. Fazer uma feira, por exemplo, virou exercício de desapego. E a sacola volta cada vez mais vazia...

Agora, o que mais me choca nisso tudo... lembre-se que esse texto não se propõe a responder questão alguma, ele é uma introdução para um debate futuro mais aprofundado. Aguarde... Então, voltando ao tema, o que mais me choca nisso tudo é que apesar da pobreza ser um fato, há uma parcela que não é pe-

quena da população (mais de 57 milhões votaram em Bolsonaro novamente em outubro passado) que acredita que a miséria brasileira é invenção de comunista e que a riqueza sim seria privilégio apenas desses “seguidores do Messias”. E que não há problema algum nisso. Como assim? Há brasileiro morrendo de fome enquanto há brasileiro vendendo comida pra gringo e ficando cada vez mais rico. Tudo bem com isso? Ah “mas o rico trabalhou pra ser rico!!” Sério que você ainda acredita nessa falácia?

Mais números. As projeções do PIB (a soma de bens e serviços de um país) apontam para um crescimento de 1,6% do Brasil em 2022, bem distante, por exemplo, da “malvada” Venezuela que deverá alcançar os 10%. Esse “pibizinho” deixa evidente que não vivemos no paraíso. E nem vou falar de todo desmonte da educação, em todos os níveis, cultura e saúde. O quanto esses orçamentos foram reduzidos ao nível de ter dinheiro para comprar um, sim, um, apenas um ônibus escolar no ano que vem.

Se os parágrafos acima ainda não te convenceram de que foram quatro anos de desgoverno de Bolsonaro, um fato não pode ser negado e esquecido e perdoado. O número inaceitável que traz as vítimas do Coronavírus. São mais de 693 mil mortos desde a chegada da pandemia no país em fevereiro de 2020. Como você, que esbraveja o Poder de Deus contra o PT, pode aceitar isso? Seu presidente poderia ter salvado boa parte dessas pessoas se mantivesse a boca fechada e não desdenhasse da doença. “Gripezinha”, “Não sou coveiro!”, “É velho... vai morrer mesmo!” E mesmo assim, foram mais de 57 milhões de votos na eleição desse ano... Lula venceu, mas o bolsonarismo está longe de ser extirpado. Mas para isso acontecer, um primeiro passo deve ser dado: Jair Bolsonaro preso por genocídio. Amém!

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Passeatas contra o presidente que deixa o cargo em 31 de dezembro de 2022 se tornaram rotineiras e deixavam evidentes os fatos de um desgoverno de quatro anos

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Ê X T

A S E

substantivo masculino: condição daquele que está emocionalmente fora de si ou tomado por sensações adversas, intensas e contundentes como: prazer, alegria, medo, etc.

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ALE DA COSTA fotos
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