Mal tinha passado dos 10 anos, quando finalmente o telefone desembarcara em casa, quinta-feira sim e quin ta-feira sim, eu ligava para revista Placar para propor pautas. Olha a petulância do moleque. Passei a ser atendido pelo Guanxuma, que era sempre atencioso comigo. A ideia REVISTA me encantava. Eu dava pitaco em tudo, era um mala mesmo, mas nunca fui maltratado por ninguém daquela redação. Mais: uma vez, eu estava tão triste com a derrota do Flamengo no Brasileiro de 1986 para o Central de Caruaru que liguei para Placar para perguntar se meu time ainda tinha chance... e o repórter me acalmou... Guardo com carinho essas memórias de quando descobri que a REVISTA seria a minha profissão.
Uma década depois, entrei na revista Atenção e tudo me levou até hoje quando celebro cinco anos de vida de um projeto de escola desenvolvido com um colega e que virou de fato um espaço para aqueles que nunca são ouvidos serem agora... aliás, pautei minha carreira sempre em apontar o microfone e câmera fotográfica para aqueles que sempre são ignorados. Sim, continuo petulante....
Caramba, cinco anos de Portrait Fanzine. Eu sempre fui apaixonado pelo conceito revista e poder fazer uma me enche de orgulho e satisfação. Ahh, mas ela atinge um público pequeno!! Um nicho de um nicho! Será? Se sim, e daí? Ela chega à pessoas e, para mim, isso é o que importa.
É claro que essa caminhada sofreu baques dignos de fim do mundo. A eleição daqueles que não quero mencionar o nome e, meses depois, a pandemia de covid . Tanta tragédia me fez mudar muito o caminho da revista. Era no início, um veículo muito mais voltado para o esporte. Hoje, resistir a esse mundo estranho e triste virou a principal notícia... basta ver a linha do tempo das capas da PF ao longo de sua história... Quero e vou continuar... mesmo que o mundo diga não... estou do lado certo da história... Embarquemos.
SUMÁRIO
CARTA ABERTA
Ale da Costa 06 18 22 O circoAs capas As fotos
Assim foi...
Uma dura constatação. Num belo dia, quase no final de 2003, percebi que minhas ideias como jornalista e fotógrafo não serviam mais para o mercado brasileiro. Não que meu trabalho fosse ruim, bom, acredito que não era. A verdade era que o Brasil daquela época via gradativamente o número de revistas (e depois, jornais) diminuir. No caso das publicações que tinham a reportagem como suporte, então, es tavam fadadas à extinção. Vou fazer o que da minha vida?
Anos antes, havia me formado em Comunicação Social, mas durante a faculdade eu já estava trabalhando como auxiliar de redação naquilo que eu sempre sonhara. Eu fazia par te de uma revista, no caso a Atenção. Sempre sonhei com esse tipo de jornalismo e, portanto, investi minha carreira nesse caminho. Passei ainda pela Já, Placar, Explorador e trabalhos esporádicos nos mais variados veículos como freelancer. E o que era mais bacana é que contava as histórias que queria contar, no tempo certo. Tive sorte nessa época.
O mundo digital se estabeleceu, a inter net tomou o poder e as linguagens mundo a fora mudaram. Não estou fazendo uma crítica não. Mudar é bom também. Com tudo isso, porém, o jornalismo também teve que se adaptar para encarar uma realidade de praticamente cobrir uma história, um fato, um evento de forma online, instantânea. Não havia mais espaço para a pesquisa de campo, o famoso colocar o pé na lama. A agilidade desse admirável novo mundo engoliu a reflexão. Isso é tão verdadeiro que de
todas as publicações em que trabalhei vinte anos atrás apenas a revista Placar, da editora Abril, ainda existe. Uma tristeza profunda preenche meu coraçãozinho cansado de guerra.
Aprendi nesse tempo todo que não adianta chorar as pitangas, as contas do mês sempre chegam para pagar. Em 2004, virei professor de História e fui dar aula. Mas você conhece aquele vazio que fica no peito e nunca se preenche? Se não, fique sabendo que isso não é nada agradável. Faltava algo para me completar. Há dez anos, comprei uma câmera digital e passei a cobrir – mesmo sem o equipamento ideal – tudo que é esporte olím pico, as mais diferentes histórias (algo que eu queria já ter feito antes, mas nunca con segui um espaço para publicar).
O que era diferente agora é que ao in vés de ficar reclamando dessa tal modernidade fui aprender como usá-la. Fiz um blog, transformei ele num site tempos depois, e dia sim, dia não, estava na rua de novo agora para fotografar basquete, vôlei, rugby, tudo o que eu podia. Ah, vazio cheio, né?
Na verdade, não. Anos atrás, uma alu na me apresentou um curso de design gráfi co, que não era tão caro e até ficava perto da minha casa. Poderia estudar de sábado. E lá fui, voltar a ser aluno em algo completamente novo. Nas redações, eu até acompanhava o trabalho dos editores e diretores de arte, mas eu não mexia no software. Agora não, eu aprendia como a magia se fazia. Conheci
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Uma breve história de um sonho doido de resistir enquanto o mundo diz não
ALE DA COSTA texto
José Carlos Machado e viramos uma dupla no curso para fazer uma revista digital para apresentar. Uau... Eu já dominava a ferramenta, falei para o Zé que cuidaria sem problemas de toda a criação da revista e ele ficaria com a parte operacional - como encontrar uma gráfica para imprimir o resultado final, por exemplo.
Em julho de 2016, nas minhas férias da escola, mergulhei nessa atividade. Cara, agora faria a minha revista com a cara que quisesse. Como era um número zero, usei reportagens e fotos que já tinha nos meus arquivos. A capa seria sobre o rugby, trabalho que havia sido produzido primeiramente para uma nova fase da revista Placar que abarcaria todos os esportes, mas que não vingou. Para completar o recheio, reeditei minha escalada ao Monte Fuji, da época que fui correspondente no Japão e construí um portfólio com fotos de shows e apresentações teatrais. Você não imagina o tamanho da minha felicidade. Mandei o trabalho pronto para o Zé que correu para uma gráfica. No sábado marcado, entregamos nossa revista para a profes
sora, que não disfarçou o quanto gostou. Acho até, modestamente, que ela foi pega de surpresa com a qualidade do produto. Ela dava cada sorrisão enquanto folheava o trabalho. A ideia sempre foi repetir o processo de feitura dos antigos fanzines. A única diferença, claro, é que agora seria tudo digital. Eu lembro de falar para o Zé não se preocupar com a cria ção e produção da revista. “Relaxa, acho que vou levar adiante a ideia de fazer uma revista”... E essa ideia se tornou realidade em abril de 2017. Foram oito meses maturando as razões que eu tinha para mergulhar nesse oceano. Mais uma coisa pra fazer? E como ganhar di nheiro com isso? Não ganhar dinheiro? O fato é que para o número um comecei a produzir ar tigos sobre os Jogos Olímpicos do Rio e sobre o basquete brasileiro. Deu um trabalho gigan tesco afinal a vida na escola não foi abreviada para eu fazer minha revista. O fato é que cinco anos depois e 24 números tenho a certeza que fiz a escolha certa. Histórias ainda existiam e eu precisava/preciso contá-las.
A capa da edição zero: tudo começou como um trabalho de escola que levou um sorrisão para o rosto da professora
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Todas as
6 2017 2018
capas
7 as
20192018
8 20202019
9 2021 2022
Era preciso ser
Nos cinco anos da Portrait Fanzine, uma breve história do
“Eu não gosto de ser pessimista...Um grande exemplo do esporte na escola é o Estados Uni dos. Uma potência. Um dos fatores que possi bilita isso é o esporte na escola. Eles conseguem ter boas notas, uma sociedade boa, uma política bacana, tá melhor do que a nossa. Eu sincera mente não vejo um futuro muito bom por esse caminho (esporte na escola) aqui no Brasil. Os Jo gos Estudantis são uma coisa pouco enraizada.”
Andre Avallone edição 04 (janeiro de 2018)
“ser mulher no esporte brasileiro... é desafio todo dia! O espaço é bem restrito, mas se a gente vai no caminho certo, a gente consegue. Dá um pouco mais de trabalho sim. Quase todo final de se mana, eu olho pro lado e só tem homem. Se eu gosto dessa posição? Não. Acho que tinha que ter uma equidade. Mesmo tempo que se desen volve o esporte na escola, por que não desen volve a menina ali na escola? Agora estou escre vendo e comecei a debater essas questões. Mas realmente é difícil. Teve um jogo, eu estava em pé falando com o meu time. O Phelipe, meu as sistente, estava sentado do meu lado. Passou um árbitro que ficou conversando com o Phelipe uns cinco minutos. Ele dava dicas para nosso time, onde poderia melhorar e por aí. Eu continuei do lado dele e olhando a cara do árbitro. Em nenhum momento, ele se dirigiu a mim. Eu estava falan do com o time o tempo todo. Eu virei pra falar com ele e o árbitro não falou comigo. Quando eu passo por situações assim, eu penso: ‘realmente isso acontece mesmo? Será que isso é coisa da minha cabeça? Coisa de mulher? Será que é neu ra minha porque eu sou mais feminista?’ Não é.” Sarith Anischa edição 08 (setembro de 2018)
“A base de qualquer sociedade é a educação. Já faz muito tempo que nossos governantes largaram o en sino. Pouco tempo atrás, tivemos uma proposta do então presidente Michel Temer para retirar dinheiro do esporte e da cultura para colocar na segurança. Isso é uma tremenda ignorância. A forma mais fácil e direta para se cuidar da segurança é você investir no esporte e na cultura. Desse jeito, você está criando cidadãos melhores, dando um futuro... Estão deturpadas as questões sociais. A gente não investe em educação. Esse é o reflexo: uma sociedade sem educação é violenta, com números altíssimos de assassinatos, roubos... Gustavo Lima edição 11 (abril de 2019)
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“Por mais que eu tenha morado a maior parte da minha vida no centro de São Paulo, o que nunca foi uma maravilha, o basquete salvou minha vida. Eu tenho vários amigos de infância que se envolveram com drogas, foram presos e, ao invés de estar com eles, eu estava na quadra jogando basquete.. Como diz Sergio Maroneze, ‘o basquete é uma ferramenta de salvação social’.” Diego Silver edição 06 (abril de 2018)
ser dito... e foi
do Brasil a partir do que foi falado nas entrevistas da revista
“Viver de cultura no Brasil é uma luta a cada dia. A cultura não é valorizada assim como acontece com a saúde, a educação, mas falando só de arte são poucas as instituições públicas que fornecem subsídio e respaldo profissional para o bailarino. A gente busca uma profissionalização e arregaça as mangas e corre atrás... Dança é disciplina também, fazer e dar aula. Repassar conhecimento, expandir as possibilidades. Desenvolver projetos sociais com dança, sensibilizar pessoas com a dança e viver de cultura no Brasil é viver acreditando na arte... é muito difícil falar sobre isso, mas a gente persiste...” Carlos Veloso edição 08 (setembro de 2018)
Você foi campeã brasileira no domingo e na se gunda-feira foi trabalhar. Não é doido isso? “(risos) Eu tive que trabalhar na segunda (risos). Surreal. Foi difícil. Muita gente nem sabia que eu jo gava, me viram no Sportv, (nota da redação: emis sora que transmitiu as finais da Liga Nacional de Handebol naquela temporada) perguntaram se era eu. Eu cheguei no trabalho, ‘nossa, você joga han debol, te vi na TV, era você mesmo? Nossa, você foi campeã. Era você na TV?’ Surpresa de todo mun do. Todo mundo me perguntou no trabalho. O han debol despertou curiosidade, eu expliquei que esta va passando as finais, que foi um título inédito do Pinheiros em cima do São Bernardo... o que era o esporte. O pessoal ficou sem acreditar, sabe: ‘exis te esse esporte?’ É um outro mundo pras pessoas!” Isabelle Medeiros edição 08 (setembro de 2018)
“São 200 alunos todo ano. Várias famílias conhecem o projeto e vão ficando. Já existe um legado. É um caso es pecial, dá muito orgulho fazer parte. A bola oval cai no gosto de qualquer um e em Paraisópolis isso foi muito rápido. O rugby envolve o instinto, o físico. Provar pra você mesmo que você pode. Sou grande, sou peque no, mas aguento. Minha velocidade prevalece sobre o cara grande, enfim. Conceitos desse esporte. Cada um usa sua característica. No rugby tem espaço pra todo mundo. Aqui fica mais fácil entender isso porque já há um senso de comunidade inerente ao lugar. A dedica ção deles é tremenda. O rugby representa muito mais pra eles aqui. É muito mais significativo pra eles.” Fabricio Kobashi edição 09 (janeiro de 2019)
“A base de constituição psíquica do Bra sil é violenta, uma violência que surge no encontro e confronto entre os colo nizadores, os povos originários e povos africanos pra cá trazidos e submetidos à escravidão. Falamos de um país constitu ído com base em desigualdades, racismo, sexismo, extermínio, genocídio e estu pros recorrentes. A violência contra as mulheres foi construída social, cultural e historicamente. Para mudar esse para digma é necessário criar e sustentar uma maior conscientização sobre a violência doméstica, capaz de mudar pensamento e comportamento de todas as pessoas, sejam elas homens autores das agressões, agen tes do sistema de justiça e mulheres agre didas como testemunhas dessa agressão.” Ivani Oliveira edição 11 (abril de 2019)
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“O ódio a Paulo Freire ocorre pela concepção de educação libertadora que ele defende. As elites brasileiras se acostumaram com a desigualdade do país e convivem bem com a miséria e a pobre za. A educação emancipadora desvela a realida de e apresenta às pessoas que as expressões da questão social decorrem do sistema capitalista, o qual se alimenta da desigualdade social. Essa elite quer a escola da mordaça, do silêncio, escola pri vatizada, destruindo a educação pública – aliás, destruindo tudo o que é público. Pretendem con solidar a escola de pensamento único, não plural.” Francisca Pini edição 12 (julho de 2019)
“Eu tinha uma certa resistência com a linguagem digital. Sempre gostei de ver fotografia, exercício que faço até hoje, e via as fotos digitais e achava tudo achatado, perdia pro fundidade, volume. Isso me incomodava, toda minha vida trabalhei com cromo, negativo pb e cor. Quando você via a foto, via o rosto da pessoa, volume do rosto, as expressões. Resisti em mudar, fui obrigado, o mercado exigiu isso.”
Jesus Carlos edição 12 (julho de 2019)
“É menosprezo. É ser ignorante no sentido não de ser leigo, mas por maldade mesmo... porque não acontece com a pessoa que está próxima a ele ou mesmo se acontecer parece que ele não ligaria. São vários mundos dentro da cidade de São Paulo que é tão grande... Muita gente levou essa história de ser uma “gripezinha” pra vida. Para o seu João é uma gripezinha. Mas pra mãe do seu João, que é mais idosa, ela pode morrer.” Aline Miranda edição 16 (julho de 2020)
“É tentador entender que a revista possa acabar jus tamente por estar num país como o nosso (o país dos últimos anos, para ser mais preciso). Um país em gra ve crise econômica, em transformação veloz do con sumo de notícias e, atualmente, ameaçado por ideias obscurantistas que elegeram o jornalismo, a ciência e a conservação ambiental como inimigos. Quem con some fake news – um público que me parece crescen te, é uma pena – não está interessado em publicações que “reflitam sobre a sociedade” e suas questões, como você aponta. Pois as notícias falsas servem jus tamente para que não precisemos mais nos informar e refletir: elas vão de encontro às crenças de cada um, em direção àquilo que eu QUERO acreditar, ainda que não tenha base real. O resultado desse processo, no longo prazo, ainda é incerto – parece assustador.” Ronaldo Ribeiro edição 13 (dezembro de 2019)
“Eu descobri a questão de ser ne gro no Brasil quando tinha 11 anos. Eu e meu irmão (um ano mais velho) estávamos voltando do clu be em que treinávamos de carona com nosso técnico que é branco. Ele dava carona até o meio do cami nho e aí, eu e meu irmão, pegávamos um ônibus para casa. Então, quando estávamos no Ibirapuera, um policial parou o carro. Eu sentado na frente. O policial mandou a gente sair do carro e apontou a arma pra gente, duas crianças!!!!” Marcus Toledo edição 17 (janeiro de 2021)
Será que vivo mais
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“Eu não sei se o Brasil não formulou uma política cultural porque eu não sei se chegamos a formular um projeto de país, um projeto de nação. A cul tura vem com a consolidação de uma sociedade, a ocupação cultural de um território e não a ocu pação predatória de um território que é o que nós vemos nesse pedaço de terra chamado Brasil. É uma terra de pilhagem. Se destrói. Se tira do solo, se tira do mar. É um roubo de nossas riquezas. O Brasil até hoje é um território de pilhagem.”
José Asbeg edição 20 (setembro de 2021)
“Eu pude observar que a minha inclusão no projeto, a minha participação no boxe, na Forja, ter trazido essa medalha pra casa, trouxe esperança mesmo para as mulheres verem que todas nós podemos. Recebi inúmeras mensagens, várias pessoas foram procurar o projeto para se inscrever, e eu digo que 70% das pessoas que se inscreveram são mulheres. Quando há uma divulgação positi va, essa imagem da mulher, do empoderamento feminino traz pra outras essa esperança, traz a visão de que ‘EU TAMBÉM POSSO’, pra mim, tem sido muito gratificante. To das nós, mulheres, podemos... independen te da idade, desde que a gente acredite...” Patricia Chaves edição 15 (março de 2020)
“Tem o abandono e a tortura. Sansão é um produto da sociedade, um estudo sobre a vio lência das instituições, aquilo que o social entende que deveria ser o papel dele e o pa pel dessa sociedade foi de destruir uma pes soa, de desconstruir, não dar nenhuma chan ce a ela de uma possibilidade de mudança...”
Sidnei Corocine edição 15 (março de 2020)
“Me fazia de engraçada fazendo piada com os meus, para dar palco aos meus amigos brancos ‘tinha que ser preto’. Eu não sentia essa dor que me corrói a cada vez que vejo uma mãe preta chorando por perder seu filho para a polícia que mais mata pessoas pretas no mundo. Preciso comentar sobre os 111 mortos, Marielle Franco ou Agatha Felix? Saber que elas foram os alvos atingidos, e que meu alvo ficava cada vez maior a cada grau de aceitação que alcanço e o grau de consciência que alcanço, cresce a cada momento que me aceito mais. Já me olharam torto em restaurantes, já me confundiram com um pedinte. Já fui rejeitada numa entrevista de emprego contra três pessoas brancas, mesmo tendo o melhor currículo e a melhor apresentação, pois ‘não tinha o perfil’, sou sexualizada quase 100% do meu tempo, já apanhei da polícia na rua sozinha...”
Tati Simone edição 21 (dezembro de 2021)
Sansão (setembro de 1997)
três anos antes de sua morte no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha (SP)
mais 50 anos?
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ABERTURAS
Cada reportagem, cada entrevista, cada artigo, um novo
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ABERTURAS
novo começo e trabalhado com um olhar diferenciado
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Histórias fotográficas
O momento no qual as palavras não são necessárias
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No Brasil de Bolsonaro, num mundo de pandemia: anos de tragédia, perdas e vazio
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ALE DA COSTA fotos
Em meio a tanta maldade, o esporte nos faz gritar, festejar, vibrar e pular alto no meio do mar azul do céu
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Respeitável
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23 Respeitável público!!
O som do alto-falante anuncia a grande novidade: “Respeitável público, o circo chegou!!” O bairro é o Parque Novo Mundo, na Zona Norte da Capital, mas poderia ser Perus, Capão Redondo, Itaquera... Não importa. Os cirquinhos mambembes so brevivem na periferia da maior cidade do país, apesar da concorrência de seus pri mos ricos e do revolto mar de loiras que deixa as crianças hipnotizadas em frente à TV.
Durante o quente inverno paulistano, desembarcaram na Pauliceia, cheios de novidades, espetáculos que lembram a
Broadway. Beto Carrero montou nada menos do que duas tendas: uma na Radial Leste, outra em São Bernardo do Campo. Tihany, depois de doze anos, voltou ao Brasil para mostrar suas atrações internacionais uma nova linguagem de picadeiro.
Enquanto isso, na periferia, Sandro Gelli e sua família levantam sua lona para mais uma temporada de incertezas em um bairro afastado. “Antigamente, a gente chegava e os próprios moradores ajudavam a montar o circo. Hoje, ninguém se interessa pelo nosso trabalho”, conta, magoado. O Circo Gelli foi criado há cin-
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Os circos mambembes lutam contra a extinção nas periferias brasileiras
ALE DA COSTA texto e fotos
co anos. Remanescentes de uma tradicio nal família circense, Sandro e sua irmã, Adriana, administram um negócio ameaça do de extinção. Sem receber qualquer tipo de apoio, eles admitem que é cada vez mais complicado manter seu cirquinho. “Não ganhamos nada aqui. Até a lona nova veio de trabalhos que fizemos fora. Mas, por outro lado, mesmo com tantas barreiras, não conseguimos abandonar o picadeiro. Está no sangue”, confidencia Adriana.
Em cada bairro, os Gelli ficam pelo menos três semanas. Esse período varia conforme a presença de público e a boa
vontade do dono do terreno. No Parque Novo Mundo, foram 40 dias. O ingresso custa R$ 2, equivalente a 25% do valor cobrado pelo Circo Tihany. Dependendo do dia, a pipoca sai de graça. Mesmo assim, os resultados não foram satisfatórios.
O público médio nas sessões no Parque Novo Mundo girou em torno de 60 pes soas. As matinês não empolgaram. Apareciam no máximo 20 testemunhas. Com as arquibancadas de madeira quase sempre vazias, a solução para evitar um prejuízo maior foi recorrer a programas de televi são. No dia de maior público, 200 pessoas
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assistiram ao show dos Bananas de Pijama, personagens de um programa infantil do SBT. “Para essa apresentação dos Bananas, fizemos um tremendo trabalho de divulga ção. Saímos com o carro de som, distribuí mos cartazes. Esperávamos umas 500 pessoas, mas vieram 200. Não dá para entender. Há muito preconceito contra o circo pequeno”, esbraveja Adriana, que além de dona, é malabarista.
Na matinê do Dia dos Pais, o espetáculo começou com 40 minutos de atraso. Motivo? Escassez de público. No entanto, em respeito às poucas pessoas que aguar davam pacientemente nas arquibancadas, o show aconteceu. “Essa ansiedade acaba com a gente. Meu maior medo é não ter ninguém para ver meu show. Elas podem até não rir de minhas palhaçadas, mas é bom vê-las aqui”, desabafa Osnir Casarin, de 33 anos, mais conhecido como palhaço Mingau. Osnir acompanha a família Gelli há 15 anos, mas já admite a possibilidade de abandonar a vida mambembe.
Não é só falta de dinheiro e de apoio que o leva a pensar em parar. Nem sempre a receptividade da plateia é boa. Em um sábado de agosto, a apresentação do pa lhaço Mingau foi marcada pela presença inconveniente de um morador do bairro. Depois de xingar o palhaço, ele foi reti rado do circo, mas continuou a provocá-lo, do lado de fora. “O cara queria aparecer. Talvez o preço baixo do ingresso faça as pessoas acharem graça em bagunçar nossa apresentação. Não vale a pena se incomo dar com esse tipo de gente, mas tem hora que dá vontade de sair do sério”, reclama Adriana.
Situações como essa são comuns no dia-a-dia de um circo de periferia. Há três anos, o Circo Gelli tentou se apresentar em Barueri, na Grande São Paulo. Tudo arrumado, mastro erguido, lona montada. Era a hora do espetáculo começar. A polícia apareceu e não deixou a trupe trabalhar. Alegação: não havia sido feito um pedido formal, ou seja, por escrito, para a utili-
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zação do terreno. Segundo Adriana, foi o momento mais humilhante de sua carreira. “Nunca tivemos tanta gente na frente do circo quanto naquele dia. Foi uma grande sacanagem e só conseguimos ficar no lugar depois de muita briga. Naquele momento, achei que não devia continuar.” Apostando na simplicidade, a família Gelli faz do contato próximo com seu público o ponto alto de suas apresentações, sempre muito simples. Tem malabaris mo com Adriana. Equilibrismo com Bruno Gelli, de 11 anos. Talita, mulher de Sandro, faz o tradicional número dos pratos. Min gau e seu companheiro Mexerica (Leonardo Gelli, de 8 anos) comandam a criançada com gincanas e rápidas comédias. A gran de atração, porém, é o garoto Júnior, que é filho de Sandro e tem apenas dois anos. O menino participa com o pai do número de monociclo. Faz piruetas, saltos e agradece feliz o aplauso da plateia. “É muito gra tificante ver um filho seguindo nossos passos. E mais emocionante ainda é sentir o aplauso sincero do público para o garoto. Enfrentamos muitos problemas, mas nesses momentos do show temos certeza de que continuaremos nosso legado”, avalia o
pai coruja.
A primeira semana de setembro foi a última dos Gelli no Parque Novo Mundo. Começava, então, mais uma árdua tarefa para os proprietários do circo: encontrar uma área em outro bairro para levantar a lona. Contatos com vereadores, Prefeitu ra e clubes, no entanto, mostraram que há falta de terrenos e de interesse por parte de todos para com esses artistas populares. “Não há espaço para o nosso trabalho. Por causa da falta de terrenos, não po demos montar um cronograma para o ano. Podemos amanhã estar na Vila Maria ou no Tucuruvi. Quem sabe?” revolta-se Sandro. Em poucos mais de duas horas, as lo nas são abaixadas pela dupla de técnicos, José e João, com a ajuda do incansável Paulinho. A magia circense acaba no Par que Novo Mundo. Dessa vez, porém, a angústia para encontrar outro terreno foi menor. “A caravana da alegria”, como gri tava o estridente alto-falante no dia da chegada do bairro, seguiria para um clube na Vila Maria. Mas não importa! Poderia ser Perus, Capão Redondo, Itaquera...
Reportagem publicada originalmente na revista JÁ em setembro de 1997
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