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literatura, HQ, design, humor, arte
abr_2018
a
novela seriada paulinhagata já se encaminha para a sua conclusão. Para quem não acompanha o fanzine desde a primeira edição, trata-se do relato verídico do cliente de uma garota de programa. Há fóruns de discussão na internet dedicados à troca de informações sobre esse universo, e o relato do usuário autodenominado Saci Pererê foi extraído de um desses fóruns. Com o final desse relato, o fanzine fará uma pausa por tempo indeterminado, com a promessa de uma retomada. É que há outros projetos que estou desenvolvendo e que demandam dedicação. O fanzine tr3sdoi2, portanto, terá essa primeira série encerrada no número 10. A edição 8 traz uma questão importante. Através da publicação de um conto do escritor John Cleever, acompanhado de um ensaio de Mario Sérgio Conti (na verdade, a introdução à edição de “28 contos de John Cleever”, da Companhia das Letras), propõe-se um reflexão. Após um caloroso acolhimento de sua obra pela crítica, a revelação de aspectos “negativos” de sua vida pessoal interferiu na forma como a obra do escritor passou a ser tratada. Posto isso, cabe a pergunta: por que o mérito literário de um escritor deixa de ter valor face à sua vida pessoal? O que está, na verdade, em julgamento? No mais, um texto meu, e alguns desenhos da artista plástica Laurie Lipton, que também está na capa.
Contos
John Cleever
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O bicho da maçã Alfredo Albuqerque
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Verboputos e coroalhos Desenhos
Laurie Lipton
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Lápis grafite Ensaio
Mário Sérgio Conti
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John Cheever - prosa invencível Relato
Saci Pererê
Paulinhagata (Parte 8)
Email tr3sdoi2@gmail.com Facebook www.facebook.com/groups/tr3sdoi2/ Editor Alfredo Albuqerque Capa e contracapa Laurie Lipton
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CONTO
JOHN CHEEVER
O bicho da maçã
O
s Crutchman eram tão, mas tão felizes, e tinham hábitos tão moderados e se encantavam tanto com tudo que surgia em seu caminho que você era levado a suspeitar que a maçã vermelha deles estava bichada e que a extraordinária vermelhidão da fruta servia apenas para dissimular a gravidade e a profundidade da infecção. Tomemos a casa, por exemplo, situada na rua Hill, com todas aquelas janelas enormes. Você tinha que sofrer de algum complexo de culpa para desejar tanta luz invadindo os cômodos. Os carpetes iam de parede a parede, como se um centímetro de chão exposto (não havia nenhum) pudesse tocar numa recordação enterrada de desencontro e solidão. E havia um certo furor necrófilo no jardim. Por que tanto afã de cavar buracos, plantar sementes e vê-las brotar? Por que esse cuidado mórbido com o solo? Ela era uma mulher bonita dotada da alvura marcante que se vê muito nas ninfomaníacas. Larry era um grandalhão que tinha o costume de trabalhar sem camisa no jardim, o que podia denunciar uma tendência ao exibicionismo infantil. Eles se mudaram rapidamente para Shady Hill depois da guerra. Larry tinha servido na marinha. Tinham dois filhos felizes: Rachel e Tom. Mas já surgiam nuvens em seu hori3
zonte. O navio de Larry fora afundado na guerra e ele havia passado quatro dias à deriva num bote no Mediterrâneo, uma experiência que certamente lhe dava uma visão cética dos confortos e dos passarinhos cantantes de Shady Hill e lhe causava pesadelos apavorantes. Mais sério que tudo isso, talvez, era o fato de que Helen era rica. Era a filha única do velho Charlie Simpson — um dos últimos bucaneiros industriais —, que lhe deixara uma renda superior ao que Larry jamais tiraria de seu emprego na Melcher & Thaw. Os perigos de uma situação desse tipo são bem conhecidos. Como Larry não precisava sustentar a família — como lhe faltava o incentivo —, ele podia ficar numa boa, passar tempo demais nos campos de golfe e ter sempre um copo cheio na mão. Helen poderia confundir a independência financeira com a emocional e danificar o delicado equilíbrio do casamento. Mas Larry aparentava não ter pesadelos e Helen distribuía sua renda a projetos de caridade e levava uma vida confortável porém modesta. Larry saía para o trabalho toda manhã com um entusiasmo tão grande que se poderia pensar que ele estava fugindo de alguma coisa. Sua participação na vida da comunidade era tão vigorosa que não devia sobrar quase nenhum tempo para ele pensar em si próprio. Ele estava em toda parte: no púlpito da igreja, na linha das cinquenta jardas, tocando oboé com o Clube de Música de Câmara, dirigindo o caminhão dos bombeiros, no conselho escolar e pegando o trem das oito e três para Nova York toda manhã. Que desgosto o movia? Talvez ele desejasse ter uma família maior. Por que ti4
nham apenas dois filhos? Por que não três ou quatro? Será que o nascimento de Tom tinha provocado alguma crise na relação? Rachel, a mais velha, foi terrivelmente gorda na infância e um tanto agressiva em suas tendências mercenárias. Toda primavera, arrastava uma velha penteadeira da garagem até a calçada e punha um aviso dizendo: LimONaDA GelaDA. 15 ¢. Tom teve pneumonia aos seis anos e quase morreu, mas se recuperou e não restaram complicações visíveis. As crianças podiam ter se rebelado contra o conformismo dos pais, pois eles eram conformistas rigorosos. Dois carros? Sim. Iam à igreja? Ajoelhavam todo domingo e rezavam ardorosamente. Roupas? Não podiam ser mais meticulosos em seu zelo pelas leis suntuárias. Clubes do livro, arte regional e associações de amantes da música, esportes e cartões — estavam mergulhados até o pescoço em tudo. Mas, se os filhos eram mesmo rebeldes, disfarçavam sua rebeldia e pareciam amar os pais de bom grado e receber de bom grado o amor deles, mas pode ser que esse amor carregasse o fardo de uma profunda decepção. Talvez ele fosse impotente. Talvez ela fosse frígida — improvável, com aquela alvura. Todo mundo que estava sobrando na comunidade havia arriscado alguma coisa com eles, mas todo mundo foi rechaçado. De onde vinha essa constância? Eles tinham medo? Eram recatados? Eram monogâmicos? O que sustentava essa aparência de felicidade? À medida que os filhos cresciam, alguém poderia procurar neles o bicho da maçã. Seriam ricos, herdariam a fortuna de Helen, e poderíamos ver assomar sobre eles aquela som5
bra que encobre, com frequência, filhos que têm uma vida de estabilidade financeira assegurada. Além disso, Helen amava em excesso o filho. Comprava tudo que ele queria. Quando levou o filho vestido em seu primeiro terno de sarja azul até a escola de dança, ficou tão absorvida na figura viril subindo os degraus que acabou batendo o carro de frente no tronco de um olmo. Uma paixão cega dessas só podia dar problema. E, se ela favorecia o filho, era inevitável que tratasse pior a filha. Podemos imaginar o que ela dizia. “Os pés de Rachel são imensos, simplesmente imensos. Nunca acho sapatos que caibam nela.” Agora encontramos o bicho da maçã, quem sabe. Como a maioria das mulheres bonitas, ela é ciumenta. Ciúme da própria filha! Não suporta concorrência. Vestirá a garota com roupas horrendas, mandará fazer um penteado indecente no seu cabelo e continuará comentando o tamanho de seus pés até que a pobre garota se recuse a ir aos bailes ou, se forçada a ir, acabe se escondendo no banheiro feminino, cabisbaixa, fitando os pés monstruosos. Será tão miserável e solitária que se expressará apaixonando-se por um poeta desequilibrado e fugindo com ele de avião para Roma, onde viverão num exílio atormentado e etílico. Mas, quando a garota entra em qualquer lugar, está sempre bela e bem-vestida e sorri para a mãe com um amor irretocável. Seus pés são bem grandes, para dizer a verdade, mas o decote também é. Se queremos encontrar problemas, talvez seja melhor dar uma olhada no filho. E há problemas. Ele fracassa no primeiro ano do ensino médio e precisa repetir a série, e como resultado dessa 6
repetência ele se sente alienado dos colegas de classe e é colocado, por acaso, na carteira ao lado de Carrie Witchell, que é o prato mais apetitoso de Shady Hill. Todo mundo está informado sobre os Witchell e sua filha linda e jovial. Eles bebem demais e moram numa daquelas casas de madeira préfabricadas em Maple Dell. A garota é realmente linda e todos sabem que seus pais indecentes pretendem explorar sua pele branquíssima para sair de Maple Dell e galgar posições sociais. Que situação perfeita! Já devem estar sabendo das riquezas de Helen. Na escuridão de seu quarto, calcularão o acordo que estarão na posição de exigir e, na cozinha malcheirosa onde fazem todas as suas refeições, eles instruirão a linda filha a permitir que o garoto avance até onde bem desejar. Mas Tom se desapaixonou de Carrie tão rápido quanto havia se apaixonado e em seguida se apaixonou por Karen Strawbridge, Susie Morris e Anna Macken, e alguém poderia concluir que ele era um rapaz muito instável, mas no segundo ano da faculdade ele anunciou o noivado com Elizabeth Trustman, com quem se casou logo depois da formatura, e, já que em seguida ele precisou prestar serviço militar, ela o acompanhou ao seu posto na Alemanha, onde os dois estudaram, aprenderam o idioma, fizeram amizade com as pessoas e deram orgulho ao seu país. O percurso de Rachel não foi tão fácil. Quando a gordura se foi, ela ficou muito bonita rápido demais. Fumava, bebia e provavelmente fornicava, e o abismo que se abre diante de uma jovem bonita e destemperada é incomensurável. Só o acaso a impediria de se tornar hostess num salão de dança 7
da Times Square. E o que pensaria o pobre pai ao ver o rosto da filha, vestida com um tecido transparente que mal lhe cobria os seios, dirigindo a ele um olhar mudo do alto de uma dessas vitrines numa manhã chuvosa? Mas o que ela fez foi se apaixonar pelo filho do jardineiro alemão dos Farquarson. Ele tinha vindo com a família para os Estados Unidos depois da guerra, na cota de refugiados. Chamava-se Eric Reiner e, para ser honesto, ele era um jovem excepcional que encarava os Estados Unidos como um verdadeiro Novo Mundo. Os Crutchman devem ter ficado tristes com a escolha de Rachel — para não dizer magoados —, mas eles ocultaram seus sentimentos. Os Reiner não. O casal de alemães trabalhadores acharam que o casamento era impróprio e fadado ao fracasso. A uma certa altura, o pai bateu na cabeça do filho com um tição da lareira. Mas o jovem casal continuou se vendo e agora eles fugiram. Foram obrigados a fugir. Rachel estava grávida de três meses. Nessa época, Eric era um calouro na Tufts, onde recebera uma bolsa. O dinheiro de Helen se provou útil nesse momento e ela conseguiu alugar um apartamento em Boston para o casal e pagar suas despesas. O fato de o primeiro neto ter sido prematuro não pareceu perturbar os Crutchman. Quando Eric se formou na faculdade, conquistou uma bolsa no MIT, obteve Ph.D. em física e foi contratado como funcionário do departamento. Poderia ter trabalhado na indústria por um salário maior, mas gostava de dar aulas e Rachel era feliz em Cambridge, onde eles permaneceram. Com a partida de seus queridos filhos, seria natural esperar que os Crutchman fossem padecer da privação espiritual 8
típica da sua época e posição social — o bicho da maçã estaria, enfim, desmascarado —, embora a visão daquele simpático casal recebendo os amigos em casa ou lendo os livros que tanto adoravam pudesse nos fazer suspeitar que o bicho da maçã estava mesmo é no olho do observador, que, protegido pela timidez ou pela covardia moral, era incapaz de aceitar aquela vasta gama de entusiasmos naturais e de admitir que, apesar de Larry não tocar Bach nem jogar futebol americano muito bem, o prazer que ele obtinha fazendo as duas coisas era genuíno. Você esperaria encontrar neles, pelo menos, a notória destrutividade do tempo, mas, fosse sorte ou resultado da vida comedida e saudável que tinham levado, o fato é que nenhum dos dois perdeu os dentes nem os cabelos. A pedra de toque da sua euforia manteve a potência, e, apesar de Larry já ter abandonado o caminhão dos bombeiros, ele ainda era visto no púlpito da igreja, na linha das cinquenta jardas, no trem das oito e três e no Clube de Música de Câmara, e graças à prudência e à astúcia do corretor de Helen eles foram ficando mais e mais e mais ricos e viveram felizes, felizes, felizes, felizes. “The worm in the apple” Trad. Daniel Galera
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ENSAIO
MÁRIO SÉRGIO CONTI
Aclamado em vida por uma obra rica em referências à vida norteamericana de meados do século XX, o escritor John Cleever perdeu prestígio após sua morte e a publicação de sua biografia, em que foram revelados sua homossexualidade e alcoolismo
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L
ançada em 1978, The stories of John Cheever, a coletânea da qual foram selecionados os contos aqui publicados, é considerada um fenômeno editorial até hoje, mais de trinta anos depois. Nunca, até e desde então, um livro de contos, gênero que raramente chega às listas de mais vendidos, obteve tamanho sucesso nos Estados Unidos: vendeu 125 mil exemplares na edição de capa dura e figurou por seis meses na lista de best-sellers do New York Times. O triunfo se estendeu ao circuito da literatura institucional e à imprensa. The stories of John Cheever ganhou três dos prêmios literários mais prestigiosos, o Pulitzer, o National Book Circle Critics Award e o American Book Award. O Washington Post afirmou que “os contos de John Cheever são, simplesmente, os melhores”. A revista Time estabeleceu que a antologia “mapea11
va uma das obras mais importantes das letras contemporâneas”. E o New York Times Seus decretou que o livro não era “apenas o melhores acontecimento literário do momento, mas contos soam um evento maior na literatura inglesa”. A celebração de John Cheever começacomo críticas ra no ano anterior, 1977, com a publicação inexoráveis do romance Acerto de contas (Falconer, no do vazio de original), que levou a revista Newsweek a seus estampar na sua capa a manchete “Um personagens grande romance americano”. E prosseguiu até a morte do escritor. Em abril de 1982, Cheever recebeu a National Medal for Literature. “Uma página de boa prosa permanece invencível”, disse ele ao aceitar a honraria no Carnegie Hall, em Nova York. Passados menos de dois meses, morreu de câncer. Obituários que o qualificaram de inventor e mestre foram postos na primeira página de grandes jornais. A revista New Yorker o descreveu como “uma das maiores figuras literárias do país nos últimos cinquenta anos”. A celebração apontava para duas verdades, uma biográfica e outra literária. No plano existencial, ele seria o ápice de uma vida produtiva e feliz. Morador durante décadas de uma casa antiga em Ossining, subúrbio de classe média alta à beira do rio Hudson, em Nova York, o escritor teve um casamento duradouro, três filhos bem encaminhados e viveu apenas da sua arte. Uma arte da qual não se desviou. Que preservou do comercialismo e das modas. E na qual persistiu até ser admi12
rado pelos críticos, pela academia (apesar de não ter terminado o curso secundário, recebeu em 1978 um título honorário de Harvard) e pelos seus pares — entre eles, Philip Roth, Saul Bellow, John Irving e John Updike, para o qual Cheever “escrevia como com a pena da asa de um anjo”. Sua obra investiga aspectos à primeira vista específicos da vida americana de meados do século XX: a aridez espiritual dos subúrbios ricos e, concomitantemente, a possibilidade de transcendência do indivíduo numa sociedade cujo fundamento é a alienação. Colados à realidade, seus melhores contos soam como críticas inexoráveis do vazio de seus personagens, das vidas anódinas a que estão condenados. Ainda assim, em situações extremas, e por meio de rupturas líricas da narrativa realista, Cheever abre caminho para epifanias: a existência não seria só isolamento sem sentido; o amor, as relações familiares e a natureza, transformados pela arte, são motivo de alumbramento. Em outros termos, a consagração de The stories of John Cheever e os obituários apoteóticos serviriam de alavanca para colocar a sua obra no cânone americano, na condição de clássico da literatura contemporânea. Daí Cheever ter sido rotulado de “o Ovídio de Ossining” e “o Tchekhov americano”. Nem a verdade biográfica nem a literária se confirmaram. Nas últimas décadas, a máscara pública do John Cheever lhano e modesto, o americano tranquilo por excelência, deu lugar à figura angustiada de um alcoólatra agressivo. Saiu o anjo e entrou o demônio que atormentou a mulher e os filhos, abusou de dezenas de amantes de ambos os sexos (admirado13
ras e jovens protegidos) e se ressentia na surdina do sucesso dos colegas que, de viva voz, enaltecia. Quanto à obra, ela praticamente não é estudada nas universidades, não foi assunto de nenhum crítico de renome e parece não entusiasmar os novos leitores. The stories agora vendem 5 mil exemplares por ano. Um número “excelente para um livro de contos, mas desprezível para um clássico do pós-guerra”, conforme observou o seu biógrafo Blake Bailey em Cheever - A life, publicado em 2009. O que aconteceu? A boa prosa não é invencível? John Cheever nasceu numa família branca, anglo-saxã e puritana de Massachusetts e se vangloriava da sua estirpe, por assim dizer, aristocrática. “Nunca esqueça que você é um Cheever”, repetia ele aos filhos, querendo dizer que um Cheever sabe de onde veio e quem é. Só que ele engrandecia as suas origens e não aceitava ser quem era. Seu pai foi um vendedor de sapatos que sucumbiu à bancarrota e à depressão. Para manter a família, sua mãe abriu uma loja de enfeites e presentes, algo que Cheever considerava uma “humilhação abissal” (o mundo heroico do passado que se condensa em comércio de quinquilharias para turistas é um tema do seu primeiro romance, A crônica dos Wapshot). Foi um segundo filho indesejado: a mãe lhe contou que, se não tivesse tomado um drinque a mais numa determinada noite em Nova York, ele não teria sido concebido; e que o marido a aconselhara a procurar um aborteiro. Sua maior ligação na infância foi com o irmão mais velho, Fred. É assim que John Cheever o descreve, numa anotação de 1967 do seu diário: 14
Meu único irmão, depois de vinte e cinco anos enchendo a cara e de duas crises alcoólicas terminais; depois de ter perdido o emprego e todos os seus bens na Terra, a mulher, e a confiança e o afeto de pelo menos dois dos filhos; depois de ter considerado todos os que o empregaram estúpidos e insensíveis; depois de ter cambaleado à deriva em quartos de pensão, vendendo anúncios para uma pequena estação de rádio; depois de ter sido aleijado pela artrite; depois de chegar aos sessenta e dois anos de idade, me telefona às nove da manhã, quando ainda estou jogado na cama, nauseado pela ressaca. Sua voz é exclamativa e calorosa. Atencioso, pergunta como vou indo, exatamente como fazia quando ficava bêbado uma semana inteira. Agrada-me pensar que temos em comum a compleição resistente. Lembro como, misteriosamente, a nossa relação virou uma competição. Ele vai dirigir até o Colorado no sábado, enquanto eu, o moderado, o sóbrio, o laborioso etc., mal posso guiar até o vilarejo vizinho. O diário deixa entrever que Fred foi a bússola de Cheever até o fim da adolescência: “Ele era o centro da minha vida, minha moral, meu sentido de bem e mal”, escreveu. O diário também permite supor que tiveram uma relação incestuosa, possivelmente carnal. Que se desentenderam de maneira irremediável na juventude, e que a ruptura provocou em Cheever um remorso que ele carregou até o túmulo. Que, além da compleição resistente, compartilharam o alcoolismo, a fúria autodestrutiva e casamentos conturbados, para não dizer infernais. E que nunca deixaram de se amar. O primeiro conto desta coletânea, “Adeus, meu irmão”, se baseia na ligação entre Fred e John. 15
John Cheever foi um aluno medíocre (seus originais estão repletos de erros ortográficos) e popular entre os colegas devido à capacidade incomum de inventar e contar histórias. Era um dom inato. Chamado à frente da classe, narrava uma história fabulosa à medida que a criava. Foi expulso da escola por ter sido pego fumando. Usou a experiência para escrever o conto “Expulso”, que enviou para a New Republic. Um editor da revista reconheceu no escrito a “voz de uma nova geração” e o publicou. Cheever tinha dezessete anos. Vendeu mais um conto, “Buffalo”, para The New Yorker. A ele se seguiriam, por mais de quatro décadas, 120 outros. Desde a sua fundação, em 1925, a New Yorker publicou todas as semanas contos e trechos de romances. Aos poucos, deixou de ser uma revista de humor leve, esnobe e marcadamente nova-iorquina para virar uma publicação cosmopolita. Com o enriquecimento americano no pós-guerra, o seu público decuplicou. E migrou de apartamentos de Manhattan para casas espaçosas nos subúrbios de Nova York. O fundador e primeiro editor da revista, Harold Ross, acreditava que ela deveria publicar contos brandos, que, em vez de espicaçar a inteligência dos leitores, os entretivessem suavemente. Não admitia palavrões, descrições de sexo, violência e ousadias formais. Nesse credo, a ficção pacata de um John Updike ou de um Richard Yates rendiam mais do que os sobressaltos de um Norman Mailer ou de um Jack Kerouac. Em todos esses aspectos, John Cheever era o autor ideal para a New Yorker. Com duas vantagens adicionais. Primeiro, o universo físico e emocional dos seus contos, o dos subúrbios 16
afluentes (que se generalizariam em torno de quase todas as metrópoles americanas), era o mesmo dos leitores da revista, possibilitando identificação. E, depois, porque Cheever, sem forçar a mão, ecoava lendas da Antiguidade clássica e parábolas bíblicas. “O nadador”, por exemplo, alude tanto ao mito de Narciso como ao périplo de Ulisses. Com isso, ele como que enobrecia os leitores. A New Yorker, escreveu Cheever, “me deu o presente inestimável de um grupo grande, sagaz e sensível de leitores, e Cheever, sem dinheiro suficiente para alimentar minha forçar a mão, família e comprar um terno a cada dois ecoava anos”. Nem por isso o seu contato com a lendas da revista foi fácil. Num longo ensaio sobre a Antiguidade reputação do escritor, publicado no ano passado, Charles McGrath sustentou que clássica e Cheever teve com os editores da New parábolas Yorker uma relação “do tipo que às vezes se bíblicas tem com a família — próxima e confiante no começo, e no fim desconfiada e briguenta em questões de dinheiro”. Dinheiro, aliás, negaceado. A revista era a que melhor remunerava os colaboradores, mas estava longe de ser pródiga. E os seus editores queriam que o escritor se ativesse à fórmula bem-sucedida. Entre forma artística e fórmula editorial, porém, há um espaço que, no caso de Cheever, às vezes se assemelhou a uma prisão. Ele queria arriscar-se em outras direções, como o romance. Acabou fazendo contos formal17
mente mais ousados e romances. Com intensidade crescente, implicou com as sugestões de mudança e comentários de editores da New Yorker. Brigaram feio mais de uma vez. A revista veio a reformular suas normas quanto a peças de ficção. Mas a expressão “contos da New Yorker” havia adquirido nas universidades uma conotação pejorativa, sinônimo de literatura de segunda categoria, de concessão ao gosto de um público conservador, a middle America. E Cheever foi reduzido a expoente dessa pretensa subliteratura. Com a morte do escritor, um candidato a biógrafo se aproximou da família e contou que sabia muito mais do que eles a respeito da lancinante ambiguidade sexual de Cheever, e que pretendia revelá-la. Para se adiantar, e controlar a repercussão, sua filha Susan Cheever publicou em 1984 um livro de memórias intitulado Home before dark. O livro se baseia nas reminiscências dela e nos diários que o escritor guardara num cofre do museu Morgan, em Nova York. Registrados em 29 cadernos, num total de mais de 4 mil páginas, os diários se estendem do fim dos anos 40 ao início dos 80. Home before dark provocou perplexidade por revelar o homossexualismo e o alcoolismo de Cheever. Para quem admirava o artista sempre em busca “da luz e do brilho”, como notou um comentarista, foi chocante a exposição da sua personalidade doloridamente sombria. Passados mais quatro anos, foram publicadas algumas das cartas do escritor, e elas corroboraram essa percepção. Por fim, a New Yorker comprou, por 1,2 milhão de dólares, o direito de reproduzir trechos dos diários de Cheever. Ao 18
longo de doze meses, em seis partes distintas, a revista publicou cerca de 5% dos diários. O mesmo material foi recolhido no livro The journals of John Cheever. A discrepância entre o artista e sua obra tornouse, então, esquizofrênica. As descrições minuciosas de cenas sexuais (inclusive masturbação), o ódio aos homossexuais, apesar de ser um deles, o relato frio do seu pouco-caso com os filhos, o revolver repetido do dia a dia de hostilidades entre ele e a mulher, a batalha eternamente perdida para não tomar álcool antes do meio-dia (e em seguida antes das onze, das dez e até das nove da manhã), a tristeza atroz e constante tornam penosa a leitura dos Journals. O contista lírico, o cantor da alegria da vida em família, o arauto das virtudes da contenção e da simplicidade saiu de cena definitivamente. Depois de uma internação, em 1975, e de aderir aos Alcoólicos Anônimos, Cheever nunca mais bebeu. Mais tarde, chegou também a certo equilíbrio sexual e amoroso, reconciliando-se em parte com a família e consigo mesmo. Mas, postumamente, o que ficou foi a imagem crua projetada pelos diários — a do pobrediabo perdido na treva mais espessa. Imagem que contaminou uma obra feita de nuances, alusões sutis e iluminações inesperadas. As mudanças no ambiente literário americano nas últimas décadas também não ajudaram a obra de Cheever. Nos departamentos de letras, a valorização dos artistas de comunidades e minorias (gays, negros, latinos, feministas etc.) se fez em detrimento dos escritores brancos, anglo-saxões e de classe média, e em oposição a eles. Para piorar, é difícil definir 19
a filiação literária de Cheever. Na querela entre os modernos e pós-modernos, ele fica num não lugar. Foi influenciado por Hemingway e Fitzgerald, mas não está longe de John Barth e Donald Barthelme. E, em todo caso, a reputação dos quatro já teve dias melhores. Para lá da política e das modas literárias, a obra de Cheever, sobretudo os contos, tem apelo universal. Desde os anos 50, ela foi admirada nos países submetidos ao stalinismo, a começar pela finada União Soviética, onde até hoje ele é tido como um grande escritor. Isso para não falar da França e do Brasil, países onde sua obra, exceto pelos diários, foi publicada praticamente na íntegra e continua a ser reeditada. Mesmo na China, ele tem fãs: o escritor Wang Meng, ministro da Cultura no final dos anos 80, disse certa vez que Cheever era o seu escritor favorito. A boa prosa continua invencível.
A valorização dos artistas de comunidades e minorias se fez em detrimento dos escritores brancos
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ARTE
LAURIE LIPTON
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CONTO
ALFREDO ALBUQERQUE
XXCIV Da relação dos verboputos com os coroalhos I - Se for constatada a tentativa de se comprar votos de fantochistes, por um candidato a bucelonte, com perdulites ou plistos, este deverá ter as caringolas quebradas para serem usadas em pendentes usados pelos fantochistes que aceitarem o suborno. II - Se um bucelonte em exercício se apropriar indevidamente de coroalhos obtidos de recursos públicos, deverá ter o imperígeo extirpado e posto a secar ao sol para alimentar os herobontes. III - Se um sepultáceo for flagrado recebendo coroalhos oriundos de corrupção, deverá ter as manipuletas arrancadas. IV - Se tais coroalhos forem encontrados escondidos dentro das meriolas do sepultáceo, este deverá ter também o pisoteiro direito cortado. V - Se os coroalhos forem encontrados dentro da culatri26
na do sepultáceo, este deverá ter o pístil arrancado e introduzido em seu próprio retrocúlito após ser empedrestido com lâminas de aço. VI - Se qualquer categoria de verboputo, seja bucelonte, sepultáceo, preposulcro, canivante ou bisco, utilizar coroalhos públicos para financiar festas particulares, deverá ter o corpo cortatuado com o nome de todos os convidados. VII - Se coroalhos públicos forem usados para a compra de celumóveis, deverá ser o verboputo colocado deitado numa carapilha plana e pisoteirado por cinquenta hipotofantes até que de seu corpo não se reconheça nenhuma forma. VIII - Se um verboputo tentar obter vantagens pessoais utilizando-se de seu cargo, se lhe deverá amarrar a píngula ao pístil com um fio de aço de se pescar cabralhões. IX - Se um bisco acumular capistrofes de caringolas oriundas de apropriação indevida e se justificar dizendo que ganhou na caloteria, se lhe deverá enfiar as capistrofes pela gorguela abaixo até que as caringolas comecem a sair pelo retrocúlito. X - Se for comprovada a ligação de verboputos com o tráfico de asparogas, estas deverão lhe ser introduzidas pela gorguela, até que não entrem mais, e então deverão ser queimados juntos, as asparogas e o verboputo, em praça pública, até que todo o lixo esteja incinerado.
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RELATO
SACI PERERÊ
paulinhagata
(parte 8)
04 Ago 2010 Quer ser vítima de um golpe? Após o nosso último e desastroso encontro a senhorita Paulinha me ligou Entre outras coisas eu disse que ela viesse doce, espumante e com muito beijo. Aí tudo tudo seria resolvido da melhor maneira possível. Sem rodeios marcamos no meio da tarde e, por volta das quatro, já estávamos outra vez entre quatro paredes. Depois de um sexo sem motivação e assustado pelos acontecimentos de dias atrás, a senhorita Paulinha iniciou uma perseguição às milhas aéreas que eu havia dito ter, e queria a todo custo que eu lhe desse (de graça mesmo) um trecho correspondente a 10 mil milhas (900 reais). Na ocasião fui obrigado a dizer que as milhas eram dinheiro e que eu não tinha motivos para lhe fazer tal distinção. Ora, se ela estava recebendo e me negava a boca pra beijar, que merecimento teria depois do resultado dessa história? 28
Inconformada me colocou contra a parede como se eu estivesse obrigado a financiar a parte aérea das suas viagens para alugar a boceta em outras áreas do território nacional. Expliquei que tinha outros planos para as milhas, quais fossem o de dar a volta ao mundo, de preferência com uma boa companhia para me esquentar no frio de Paris durante o inverno, e me acompanhar em banhos nus nas praias do Mediterrâneo. Ainda inconformada, mais uma vez bateu em retirada, me arrastando para o condomínio, e levando pra casa a sombrinha que havia esquecido no carro desde o primeiro encontro, além de um litro de mel de abelhas trazido diretamente da minha colméia, que levei de presente pra ela. Em todos os encontros sempre levei uma lembrança, tais como chocolates e até um talco - Granado Fresh – para aplacar os odores da transpiração durante a malhação. Tudo isso sem ela me dizer um único muito obrigado. Já havia dado tudo por encerrado quando fui abordado no msn. Alguns trechos da conversa: 19/5/2010 16:02:40 Paulinha: vamos nos ver hoje? 19/5/2010 16:02:44 Paulinha: mas só vou poder às 7. 29
19/5/2010 16:07:14 Eu: gostaria que você pudesse me dar tudo. Como você não pode, é melhor que eu fique sem nada. Não quero você pra mim, mas o sexo tem que ser satisfatório. Está faltando 19/5/2010 16:07:43 Paulinha: ok se deixei a desejar... não farei mais 19/5/2010 16:07:48 Paulinha: lhe darei o que precisa. Vou lhe receber como vc merece 19/5/2010 16:07:50 Eu: melhor assim 19/5/2010 16:08:00 Paulinha: ok, sem problemas 19/5/2010 16:08:03 Paulinha: com certeza vou melhorar 100%, pode deixar 19/5/2010 20:52:34 Paulinha: as milhas? 19/5/2010 20:52:35 Paulinha: quero saber se posso contar com vc 19/5/2010 20:53:45 Eu: Pago pra ser mal atendido 19/5/2010 20:59:56 Paulinha: isso n vai mais acontecer E foi essa lengalenga até altas horas. Ora, se pra ela receber depois está dessa forma, imagine se eu adiantar 900 reais pra receber em foda... A questão não é o valor! É a postura... No dia seguinte, mensagens e telefonemas insistiram em um novo encontro, porém entendi melhor deixar a poeira assentar. Em um mês foram investidos R$ 1.000,00 - entre cachê, acomodações e despesas gerais - o que me 30
garantiu, em sete encontros, o saldo pífio de quatro gozadas. Saiu a R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta) reais cada uma. Conclusão: Paulinha se deixou contaminar pelo pior ranço de puta. Isso se ela já for o próprio ranço e eu demorei a perceber... Ela não presta bons serviços afetivos e não quer viver da prostituição. Paulinha quer extorquir, vampirar, tomar na tora... Ela não é puta! É taíra... Fiz péssimo negócio! CUIDADO! Mas sempre de plantão para as putas de plantão. (continua...)
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Com Ti Dia Ano Sem Ti Lev Ando 32