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literatura, HQ, design, humor, arte
nov_2017
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onsegui terminar mais uma edição da tr3sdoi2 nesse mês bem preguiçoso. Muitos projetos, e cada um numa praia diferente. Encadernação de livros, lançamento de CDs, retratos em aquarela e leitura de quadrinhos. Tudo não remunerado. A vida anda difícil. Por isso vasculhei meu computador em busca de referências antigas, daquelas que ficam armazenadas em alguma pasta escondida dentro de mais dez pastas, como uma boneca russa. E encontrei o Chama Madoz. É um fotógrafo espanhol que se notabilizou por brincar com objetos do cotidiano, subvertendo visualmente suas funções convencionais. Tanto as surpresas dos novos significados quanto os efeitos visuais são incríveis. Pesquisei também um escritor a que o Marcelo Mirisola fez referência em um de seus posts no Facebook. Chama-se Ryunosuke Akutagawa, e descobri tratar-se do pai do conto japonês. Uma vida atormentada, desencadeando na deteriorização gradual de sua saúde mental, acabou levando-o ao suicídio, aos 35 anos. O texto publicado aqui é considerado seu conto mais famoso. Há também um artigo sobre uma das fotos mais famosas da história, chamada “O mais belo suicídio” (sim, suicídio novamente). Em homenagem à carta mais charmosa do baralho, uma pequena demonstração das possibilidades visuais do Ás de espadas. E, fechando essa edição, paulinhagata, barbarizando o coração de um pobre admirador.
Conto
Ryūnosuke Akutagawa
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Dentro de um bosque Fotografia
Chema Madoz
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Subversões semânticas Artigo
Alfredo Albuqerque
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O mais belo suicídio Design
Baralho
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Ás de espadas Relato
Saci Pererê
Paulinhagata (Parte 6)
Email tr3sdoi2@gmail.com Facebook www.facebook.com/groups/tr3sdoi2/ Editor Alfredo Albuqerque Capa e contracapa Chema Madoz
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CONTO
RYUNOSUKE AKUTAGAWA
Dentro de um bosque Depoimento de um lenhador interrogado pelo alto comissário de polícia. Sim, senhor comissário, é verdade. Quem encontrou o cadáver fui eu mesmo. Esta manhã, como de costume, fui cortar cedro na montanha do outro lado. Nisso, encontrei aquele cadáver dentro do bosque, no sopé da montanha. Onde foi exatamente que eu encontrei? A cerca de quinhentos metros da estrada Yamanashi. Num lugar ermo, onde cedros finos se misturam aos bambus. O cadáver estava deitado de costas, vestia um quimono de seda azul e trazia um chapéu pregueado à moda da capital. Via-se um só golpe de espada, mas, como era muito fundo e bem no meio do peito, as folhas secas de bambu ao redor do cadáver pareciam tingidas de vermelho. Não, senhor comissário, não corria mais sangue. Pareceu-me que a ferida havia secado. Lembro-me bem de que havia uma mosca lambendo o sangue e não deu mostras de perceber meus passos. Pergunta-me o senhor se não vi uma espada ou qualquer outra coisa? Não, senhor, não havia nada. Só um pedaço de corda jogado ao pé do cedro. Depois… Ah, ia-me esquecendo! Além da corda, havia um pente. Foi tudo o que encontrei à volta do corpo. Mas, como as plantas e as folhas de bambu caídas ao redor do cadáver estavam muito pisadas, não há 3
dúvidas de que o homem, antes de ser assassinado, resistiu bravamente. Como? Se eu não vi nenhum cavalo? É um lugar inacessível a cavalos. Há uma mata densa separando o local do caminho por onde eles passam... Depoimento de um monge budista peregrino interrogado pelo alto comissário da polícia. Tenho certeza de que ontem vi este homem cujo cadáver encontraram hoje. Ontem, por volta do meio-dia, creio eu. Foi a meio caminho entre Sekiyama e Yamashina. Ele vinha a pé no rumo de Sekiyama, acompanhando uma mulher acavalo. Não podia ver o rosto dela, pois seu chapéu trazia um longo véu. Tudo o que pude divisar foi a cor de suas vestes: púrpura sobre azul. Quanto ao cavalo, parecia ser um alazão de crina aparada. Qual a altura do animal? Teria cerca de um metro e trinta centímetros? Como sou monge, não saberia dizer. E o homem? Sim, além da espada, também portava arco e flechas. Ainda agora me lembro muito bem de ter visto cerca de vinte flechas em sua aljava laqueada de preto. Nem em sonhos imaginei o destino que o esperava. Realmente, a vida humana é mesmo frágil como o orvalho da manhã e breve como um clarão de luz… É, nem encontro palavras pra expressar o quanto o lastimo… Depoimento do policial interrogado pelo alto comissário da polícia. O homem que eu prendi? Não há dúvida de que é o conhecido ladrão Tajômaru. Quando o prendi, na ponte de pedra de Awataguchi, acho que tinha caído do cavalo, pois esta4
va gemendo de dor. Que horas eram? Foi logo no começo da noite. Dias atrás, quando tentei, mas não consegui, prendê-lo, vestia a mesma roupa azul-escuro e trazia a mesma espada ornada de detalhes metálicos. Como o senhor agora pode bem ver, também portava arco e flechas. É mesmo? Aquele homem também possuía arco e flechas antes de ser morto? Então não há dúvidas de que o assassino é Tajômaru. Arco revestido de couro, aljava laqueada de preto, dezessete flechas com penas de falcão… tudo, então, deve pertencer àquele homem! Sim, como diz o senhor, o cavalo também é um alazão com a crina aparada. Deve ter sido derrubado pelo animal por castigo divino. O cavalo pastava pouco adiante da ponte, a rédea comprida arrastando no chão. Esse Tajômaru, de todos os ladrões que rondam a capital, é o que mais persegue mulheres. No outono passado, na montanha que fica atrás do templo Toribe, foi encontrada morta uma dama da corte que possivelmente fora rezar pela cura de alguém, juntamente com uma jovem servente. Suspeita-se que tenha sido esse indivíduo. Se foi esse bandido aí quem matou aquele homem, vá também se saber o que ele fez com a mulher que montava o alazão. Por favor, senhor comissário, não é da minha alçada, mas peço-lhe que seja investigada esta questão. Depoimento de uma velha interrogada pelo alto comissário da polícia. Sim, senhor. Aquele é o cadáver do homem com quem casei minha filha. Ele não era da capital. Era um samurai do governo da província Wakasa. Chamava-se Kanazawa-no Takehi5
ro e tinha vinte e seis anos de idade. Não, senhor. Como era muito gentil, jamais provocaria a ira de alguém. Minha filha? Ela se chama Masago, tem dezenove anos. Sua personalidade é tão forte como a de qualquer homem; no entanto, até agora sempre foi fiel a Takehiro. Seu rosto é pequeno e ovalado, a pele amorenada, com uma pinta no canto do olho esquerdo. Takehiro partiu ontem para Wakasa em companhia de minha filha. Mas que infelicidade! Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Mas o que teria acontecido à minha filha? Quanto ao meu genro, até posso me conformar; no entanto, só de pensar nela, fico doente. Suplico-lhe, é o único desejo desta velha: descubra o paradeiro da minha filha, nem que para isto seja preciso revirar montanhas e matas. Custe o que custar, encontre-a! Tajômaru… Como o odeio! Não somente o meu genro, mas também a minha filha… (Lágrimas sufocam suas últimas palavras.) Confissão de Tajômaru. Sim, fui eu quem matei aquele homem. Mas a mulher, não. Então, onde ela está? Isso nem eu sei. Ei, esperem! Nenhuma tortura pode me fazer dizer o que não sei! Além, do mais, nestas condições, não pretendo esconder-lhe nenhum segredo à toa. Ontem pouco depois do meio-dia, depareime com o casal. Nesse momento, com o sopro do vento, o véu se ergueu e pude ver, por alguns segundos, o rosto da mulher. Por alguns segundo – foi um vislumbre, apenas isso. Pode ter sido a brevidade da visão, mas o rosto daquela mulher me pareceu o de uma deusa Boddisattva. Foi nesse 6
instante que decidi possuí-la, mesmo que tivesse de matar o marido. Ora, matar um homem não é lá grande coisa, como vocês pensam. De qualquer forma, para tomar uma mulher, sempre é preciso matar o homem. A diferença é que, quando mato, uso a espada que trago à cintura, mas vocês não. Vocês matam com o seu dinheiro. Às vezes matam apenas com palavras, a pretexto de que o fazem para o bem deles. É verdade que não corre sangue, que os homens continuam vivendo, mas, mesmo assim, vocês os mataram. Mas, se pudesse tomar a mulher sem matar o marido, tanto melhor. Aliás, meu estado de espírito, naquela hora, era o de tomar a mulher e, se possível, não matar o homem. Mas fazer uma coisa dessas na estrada de Yamashina era realmente impossível. Por isso armei um plano para fazer o casal acompanhar-me montanha adentro. Não foi nada difícil. Fazendo-me seu companheiro de viagem, contei-lhes que havia túmulos antigos na montanha do outro lado e que tinha explorado aquelas sepulturas, encontrando espelhos de metal e espadas em grande quantidade. Disse-lhes ainda que os havia escondido, enterrando-os dentro do bosque, à sombra da montanha, e que, se houvesse interessados, faria um bom preço. O homem, pouco a pouco, foi sendo atraído pela minha conversa. E depois… – a cobiça é uma coisa terrível, não acham? – e depois, em menos de meia hora, aquele casal já conduzia o cavalo rumo à montanha, juntos comigo. Chegamos em frente ao bosque, disse-lhes que o tesouro estava enterrado lá dentro e os convidei a verificálo. O homem, cego pela cobiça, nem titubeou. Mas a mulher 7
preferiu esperar, sem descer do cavalo. Não sem razão, já que aquele bosque era muito fechado. E, para dizer a verdade, as coisas caminhavam como eu queria; penetramos no bosque, deixando a mulher sozinha. Por um trecho, só havia bambus no bosque. Cerca de cinquenta metros adiante, porém, havia uma clareira entre os cedros… Não haveria lugar melhor para executar meu plano. Abrindo caminho pela mata, preguei-lhe a mentira – bastante plausível – de que o tesouro estava enterrado sob os cedros. Mal lhe disse isso e o homem se lançou em direção aos troncos finos dos cedros, que dali se enxergavam. Os bambus rareavam, alguns cedros já se enfileiravam – e foi justamente nesse local que, bruscamente, eu o derrubei e dominei. Como o homem portava um espada, poderia ser muito perigoso, mas, apanhado de surpresa, não teve como resistir. Num segundo, estava amarrado ao pé do cedro. A corda? Sendo um ladrão, sempre trago uma à cintura, pois sabese lá quando precisarei escalar algum muro. Afora encher sua boca de folhas secas de bambu para impedi-lo de gritar, não tive nenhum trabalho. Terminado isso, fui ter com a mulher e lhe disse para vir comigo ver o marido, que passava mal. Nem preciso lhes dizer do sucesso do meu plano. Com o chapéu na mão, a mulher foi penetrando no interior do bosque, comigo a conduzi-la pela mão. Mas, ao chegar ao local, o homem estava amarrado ao pé do cedro, e a mulher, ao perceber a cena, num átimo fez reluzir um punhal que havia retirado de sua roupa sem que eu notasse. Nunca antes havia encontrado uma mulher de temperamento tão violento. Bem, mesmo me esquivando rapidamente, era difícil evitar os golpes ante 8
uma investida tão feroz. Mas, como sou o famoso Tajômaru, finalmente fiz cair o seu punhal sem desembainhar sequer a espada. Por mais decidida que fosse, desarmada ela nada poderia fazer. Assim, finalmente consegui possuir a mulher sem tirar a vida do homem. Sem tirar a vida do homem – é isso mesmo. Eu não tinha mesmo intenção de matá-lo. Acontece que, quando eu já ia fugindo do bosque, deixando atrás a mulher em prantos, de repente ela agarrou-me o braço, desesperada. Com gritos entrecortados de soluços, ela dizia: “Morra você ou meu marido, morra um dos dois; expor a própria desonra a dois homens é pior do que a morte”. E dizia ainda, ofegante, que se uniria àquele que sobrevivesse. Foi nesse momento que fui tomado por um violento desejo de matar o homem. (Comoção lúgubre.) Ouvindo-me falar assim, sem dúvida devo lhes parecer mais cruel do que vocês. Mas isso é porque não viram o rosto daquela mulher. Principalmente porque não viram o ardor que brilhava em seus olhos naquele instante. Quando vi aqueles olhos, quis tê-la como esposa, mesmo que tivesse de ser fulminado por um raio. Esposá-la – era tudo o que eu queria naquele momento. Não era por nenhum desejo vil e licencioso, como vocês podem acreditar. Se tudo o que eu sentisse fosse um desejo físico, certamente me contentaria em dar-lhe um pontapé e fugir. E minha espada não teria se manchado com o sangue do homem. Mas, no momento em que fixei o olhar no rosto dela, tomei a decisão de não partir dali sem antes matar o seu marido. Bem, não há necessidade de lhes contar o fim da luta. 9
Minha espada lhe atravessou o peito no vigésimo-terceiro golpe. No vigésimo-terceiro golpe! Não se esqueçam disso… Porque essa façanha ainda hoje me impressiona. Foi o único adversário em toda a minha vida a resistir a mais de vinte golpes. (Sorriso satisfeito.) Assim que o homem tombou, voltei-me para a mulher, ainda segurando a espada ensanguentada. Nisso, o que houve? Não é que ela havia desaparecido? Andei por entre os cedros para ver por onde fugira. Mas não encontrei vestígio algum dela sobre as folhas secas de bambu. Mesmo aguçando o ouvido, só pude distinguir os últimos gemidos do homem que agonizava. Pode ser que enquanto trocávamos golpes de espada, ela tenha fugido pelo bosque para pedir socorro. Se fosse assim, minha vida é que estaria em perigo, e então, apoderando-me de espada, arco e flechas, logo voltei à estrada que antes percorria. Ali, o cavalo da mulher pastava calmamente. O que aconteceu depois não tem importância nenhuma no caso. O único detalhe é que, antes de entrar na capital, desfiz-me da espada. Minha confissão termina aqui. Já que cedo ou tarde terei a cabeça cortada e exposta nos galhos das árvores, então condenem-me à pena máxima! (Atitude desafiadora.) Confissão da mulher, que se abrigou no tempo de Kiyomizu. Esse homem de quimono azul, após ter-me violentado, riu-se com sarcasmo, enquanto olhava meu marido amarrado. Como meu marido deve ter-se sentido humilhado! Mas, quanto mais se debatia, mais a corda que o amarrava lhe penetrava dolorosamente a carne. Instintivamente, corri, cambaleando, 10
em sua direção. Ou melhor, tentei correr. Mas o homem, num golpe rápido, me derrubou com um chute. Foi nesse exato instante que percebi nos olhos de meu marido um brilho muito estranho. Realmente estranho… Ainda agora, quando me lembro daquele olhar, tremo de pavor. Não podendo emitir um único som, meu marido transmitiu somente naquele breve olhar todos os seus sentimentos. Mas o que então relampejou não foi ira nem tristeza… – não é que era um brilho gélido de desprezo? Atingida mais pela expressão daqueles olhos do que pela brutalidade do pontapé que aquele homem me deu, gritei alguma coisa, sem querer, e desmaiei. Algum tempo se passou até que recuperei os sentidos, mas nessa hora o homem de quimono azul-escuro havia desaparecido. Vi somente meu marido amarrado no tronco de cedro. Levantando-me com dificuldade em meio às folhas de bambu, fixeilhe os olhos no rosto. Mas seu olhar continuava exatamente o mesmo. No fundo do gélido desprezo, havia também ódio, vergonha? Tristeza? Raiva? Nem sei como exprimir o sentimento que passou por minha alma naquele momento. Erguime quase sem forças e dirigi-me a meu marido: – Não posso mais continuar com você depois de tudo o que aconteceu. Estou decidida a me matar. Mas… Mas rogolhe que você também se mate. Você presenciou a minha vergonha. Não posso permitir que continue vivendo após aminha morte. Isso foi tudo o que consegui dizer. E, no entanto, ele continuou a me olhar com repulsa. O coração partido de dor, procurei sua espada. Entretanto, não encontrei no bosque 11
nem espada nem arco e flechas; o assaltante devia ter levado tudo. Ainda bem que pelo menos pude encontrar o punhal, caído no chão. Levantando-o sobre a cabeça, disse uma vez mais a meu marido: – Tomarei agora a sua vida. Eu o seguirei imediatamente. Quando ele ouviu estas palavras, mexeu os lábios com dificuldade. Como sua boca estivesse cheia de folhas, não se ouvia a sua voz. Mas, num olhar, entendi o que ele queria dizer. Ainda me desprezando, balbuciou apenas uma palavra: “Mate-me!” Como em meio a um sonho, cravei-lhe fundo o punhal no peito, atravessando o quimono de seda azul. Devo então ter perdido novamente os sentidos. Quando voltei a mim, meu marido, ainda amarrado, havia muito estava morto. Através da mistura de galhos de bambu e cedros, o sol poente deixava vagar um raio de luz sobre o seu rosto lívido. Sufocando os soluços, desamarrei acorda do cadáver. Depois… O que aconteceu? Isso já não tenho mais forças para contar. Enfim, faltou-me coragem para me matar. Feri-me na garganta com o punhal, joguei-me no lago ao pé da montanha, tentei vários meios, mas, uma vez que ainda estou viva, não vejo do que me orgulhar. (Sorriso melancólico.) Mesmo o misericordioso Kannon Bossatsu deve ter-me abandonado, tão covarde que sou! Mas eu, que matei meu próprio marido, que fui violentada, o que devo fazer? O que posso eu… posso… (Soluços repentinos e violentos.) Narrativa do morto, transmitida por uma médium. “Após violentar minha esposa, o assaltante, sentando-se 12
ali mesmo, pôs-se a confortá-la de várias formas. Naturalmente, eu não podia falar. Além disso, meu corpo estava amarrado ao pé do cedro. Entretanto, várias vezes lhe lancei sinais com os olhos. ‘Não acredite nas palavras dele. Tudo o que ele disse será mentira.’ Era isso o que eu lhe queria transmitir. Mas minha esposa, sentada em desalento sobre a folhas secas de bambu, tinha os olhos fixados nos joelhos. E não é que ela parecia estar absorvendo as palavras do ladrão? Eu me contorcia de ciúmes. Mas o ladrão continuava a conversa, com muita habilidade, passando de um argumento a outro. Chegou até a fazer essa proposta atrevida: ‘Quando a mulher tem o corpo desonrado, nem que seja uma única vez, as relações com o marido nunca mais podem ser as mesmas. Ao invés de continuar com seu marido, que tal ser minha esposa? Toda a minha ousadia nasceu do amor que você me inspirou’. Ao ouvir essas palavras, minha esposa ergueu a cabeça, extasiada. Nunca vi minha mulher tão bela como naquele instante! Mas o que essa linda esposa respondeu ao ladrão, diante de mim, ainda amarrado? Mesmo vagando no limbo, toda vez que me lembrava de suas palavras, me inflamava de ódio. Minha mulher respondeu-lhe claramente: – Então, leve-me para onde você for. (Longo silêncio.) Esse não foi o único mal que ela cometeu. Se fosse apenas isso, eu não estaria sofrendo tanto nesta escuridão. Quando, conduzida pela mão do ladrão, como num sonho, ia saindo do bosque, ela de repente empalideceu e apontou para mim, ainda amarrado ao pé do cedro. 13
– Mate este homem! Se ele continuar vivo, não poderei viver com você! Minha esposa, como se tivesse enlouquecido, gritou várias vezes: – Mate esse homem! Tais palavras, como um turbilhão, ainda agora ameaçam fazer-me despencar no abismo sem fundo da escuridão. Será que alguma vez palavras tão abomináveis já saíram da boca de algum ser humano? Será que alguma vez palavras assim malditas já chegaram a ouvidos humanos? Será que alguma vez… (Riso súbito de escárnio.). Ao ouvir essas palavras, até mesmo o ladrão empalideceu. – Mate esse homem! – Assim gritando, ela lhe agarrou o braço. O ladrão, com os olhos fixos na minha esposa, não respondia nem sim nem não. No instante seguinte, derrubada por um violento pontapé, ela estava caída entre as folhas de bambu. (Novo riso de escárnio.) O ladrão cruzando calmamente os braços, voltou-se para mim: – O que você quer que eu faça com ela? Mato-a ou deixo-a ir?… Basta responder movendo a cabeça. Mato-a? Bastariam essas palavras para que eu perdoasse o assaltante. (Outra vez, longo silêncio.) Enquanto eu hesitava, por um instante, minha esposa gritou e saiu a correr para as profundezas do bosque. O ladrão foi em sua direção, mas não conseguiu agarrar sequer a sua manga. Como num sonho, eu observava a cena. Depois da fuga de minha esposa, o ladrão apanhou minha espada, arco e flechas e cortou um 14
ponto apenas da corda que me amarrava. Eu me lembro de seu murmúrio ao sair do bosque e desaparecer: – Agora, vou é tratar da minha pele… Depois, tudo foi silêncio… Não, ainda se ouvia o choro de alguém. Livrando-me da corda, apurei o ouvido. Mas não, era eu mesmo que chorava… (Pela terceira vez, um longo silêncio.) Levantei o corpo, exausto, com dificuldade. À minha frente, brilhava o punhal que minha esposa deixara cair. Tomando-o nas mãos, cravei-o de um só golpe no peito. Subiu-me à garganta um bolo de sangue acre. Mas não sentia dor alguma. Quando meu corpo esfriou, o silêncio em volta se tornou mais profundo. Ah, que silêncio! Nem um único pássaro se ouvia no céu daquele bosque à sombra das montanhas. Somente, por entre os bambus e cedros, um solitário raio de sol ainda vagava. Aquele raio ia tornando-se cada vez mais tênue… Nem enxergava mais os bambus e os cedros. Sentime tomado por um profundo silêncio. Nesse momento, ouvi passos furtivos de alguém que se aproximava. Tentei ver quem era. Mas a escuridão já me envolvia. Alguém – esse alguém, com uma mão invisível, me retirou cuidadosamente o punhal do peito. Com isso, mais uma vez o sangue aflorou à minha boca. Depois disso, mergulhei na eterna escuridão do limbo…” Dezembro de 1921
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FOTOGRAFIA
CHEMA MADOZ
Rodríguez Madoz, ou Chema Madoz, nascido em Madrid, em 1958, é um dos mais importantes representantes da fotografia atual espanhola. Mais do que fotografar objetos, ele lhes dá novo sentido, subvertendo sua função através de metáforas, paradoxos e senso de humor.
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ARTIGO
ALFREDO ALBUQERQUE
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o dia 30 de abril de 1947, Evelyn McHale saiu de Nova Iorque, onde morava com um dos irmãos, e pegou um trem para uma viagem de pouco mais de uma hora. Havia decidido visitar o noivo, Barry Rhodes, um estudante da universidade da Pensilvânia, recém-liberado da Força Aérea americana. Foi um encontro para comemorar o aniversário de 24 anos de Barry e, quando se despediram com um beijo, Evelyn estava “alegre como qualquer jovem às vésperas do casamento”, de acordo com o relato posterior do rapaz. Ao voltar para Manhattan no começo da manhã seguinte, 1º de maio, Evelyn, ao invés de voltar para casa, hospedou-se no hotel Governor Clinton. Lá redigiu um bilhete e saiu para a rua. Foi até a bilheteria do Empire State Building e, às 10h30, comprou um bilhete para o observatório panorâmico do 86º andar. Dez minutos depois, 23
um guarda de trânsito que estava na esquina da 5ª Avenida com a rua 34 avistou uma echarpe branca flutuando no alto da torre. Em alguns instantes ouviu-se um forte estrondo. Evelyn era a caçula de sete irmãos. Havia nascido em Berkeley, Califórnia, e crescido na costa Leste, entre Washington e Nova Iorque. Na pré-adolescência vivenciou o abandono da família pela mãe, que pediu divórcio do casamento, por motivo não revelado, e abriu mão da custódia dos oito filhos, que foram criados pelo pai. Após completar o ensino secundário, no auge da II Guerra Mundial, alistou-se no Programa Militar para Mulheres e, ao concluir o tempo de serviço, queimou o uniforme e mudou-se para Nova Iorque, onde foi morar com um dos irmãos. Bonita, elegante e bemeducada, Evelyn logo começou a trabalhar em uma gráfica e, no mesmo ano, começou a namorar Barry Rhodes. Na manhã em que se atirou do alto do Empire State, Evelyn redigiu um bilhete ainda no quarto do hotel e colocouo na bolsa. O bilhete foi encontrado dentro de uma nécessaire que deixou no observatório, juntamente com um casaco de tecido claro. Na bolsa, fotos de família e uma carteira preta contendo o bilhete. “Não desejo que ninguém da família nem fora dela veja qualquer parte de mim”. “Peço que destruam meu corpo por cremação. Peço a vocês e à minha família: não façam qualquer serviço funerário para mim. Digam a meu pai que tenho tendências em demasia da minha mãe”. Para o noivo: “Ele ficará muito melhor sem mim. Eu não seria boa esposa para ninguém”. 24
Do alto do 86º andar, a 301 metros do chão, Evelyn, ou Ebby, como era chamada, Digam a deu um impulso suficiente para que não meu pai batesse nos recuos no edifício. Dez segundos depois caiu deitada sobre o teto de uma que tenho limusine das Nações Unidas. A foto, uma tendências das mais famosas da história, publicada em demasia pela revista Life em página inteira na edida minha ção de 12 de maio de 1947, mostra o corpo mãe de Evelyn tranquilamente acomodado em meio às ferragens retorcidas do automóvel. Seu rosto está sereno, suas pernas recatadamente cruzadas, a mão esquerda, coberta por uma luva de couro, segura levemente um colar de pérolas que envolve seu pescoço. O único sinal de desalinho são as meias de nylon, que cobrem apenas os pés descalços. Por dentro, seu corpo está destroçado. A foto foi feita quatro minutos após a queda, por Roberto C. Wiles, um estudante de fotografia que estava nas imediações. Junto a outras fotos, foi vendida à revista Life, que optou por publicar apenas essa, e parece que foi a única publicada pelo estudante em sua vida. Batizada de “O mais belo suicídio”, a foto tornou-se icônica em todo o mundo. Além de Evelyn, há o registro de mais 36 pessoas que suicidaram pulando do Empire State Building, a última, uma estudante da universidade de Yale, em 2010. * Fonte: Revista Zum, 24 de novembro de 2014. 25
DESIGN
ÁS DE ESPADAS
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RELATO
SACI PERERÊ
paulinhagata
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05 Jul 2010 Experiência Positiva Alguns dias depois do trágico encontro, Paulinha me encontrou no MSN. Falou que o cactus que eu havia dado a ela estava lindo na janela, e que poderia me encontrar às 5 da tarde. Como sempre, ela embarcou na porta do Condomínio e rumamos para a pousada Opção. Em lá chegando, tudo transcorreu sob a mais divina paz. Ela, quando quer, é uma delícia... Beijos molhados, chupeta com pressão, rabão empinado, pedidos indecentes (mas só sussurrados dentro do ouvido), discreta, sem fingimentos, toda sadia, cheirosa, melhorzinha de cara depois que cortou o cabelo (paguei o corte e a escova – 150 reais), dada, entregue, satisfeita e, de tão lubrificada, o mel lhe escorria por entre as pernas. Fizemos de tudo, e não perdi a oportunidade de cortejar-lhe o cuzito para que eu seja lembrado no primeiro momento em que um desejo irresistível de ser enrabada abater-se sobre ela. 30
Com o celular desligado, o tempo rendeu. Parte desse tempo foi usada para desbloqueio de energias e transformá-las de cócegas em excitação, transferindo a carga energética dos terminais nervosos para o baixo ventre, onde ficam guardados os elementos mais sagrados da espécie humana: a chave do prazer e da reprodução. Com isso descobri, na planta dos seus pés, a nascente de um furacão que quando despertado varreu todos os seus vales, as suas montanhas, as suas curvas, as suas florestas, os seus medos, as suas dúvidas, as suas incertezas, além de reluzíla à menor das mortais, a mais simples das criaturas, à mais feliz do universo. Uma mulher de verdade... O final foi apoteótico! O encontro entre o rochedo e a onda trouxe o frescor da água limpa e banhou de esperança e desejo um momento em que só foi permitido homenagear a alegria. Findo o primeiro ato ela me perguntou se, na vez anterior, eu havia gozado. Respondi que, por ela haver me sentido pela terceira vez em profundo orgasmo, não precisava mais me perguntar, pois assim, urrando, é como eu faço a minha passagem para o mundo das etéreas sensações. Enquanto fui ao banheiro a Senhorita Paulinha armou-se para a guerra do outro lado das quatro paredes e saímos com ela aumentada pelos saltos 31
dos tamancos e montada em mais 100 @rrobinhas pra estocar o paiol de munição. Apesar de estar sempre faltando o segundo ato eu me dei por satisfeito, na expectativa de que dias melhores hão de vir. Melhor seria que eu tivesse opções. Mas, por uma boa foda o que é que não se faz...? Sem nunca esquecer que paciência tem limite! (continua...)
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