tr3sdoi2 #05

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literatura, HQ, design, humor, arte

out_2017



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ssa edição da tr3sdoi2 será um pouco diferente. É que há muitos anos guardo uma HQ muito legal feita por um primo extremamente talentoso, Ale­ xandre Albu­quer­que, que, parece, não seguiu nessa árdua atividade de fazer quadrinhos. Acho que a história nunca foi publicada e considero uma sacanagem isso ficar escondido do mundo. Por isso, decidi publicá-la. Como a HQ é relativa­ mente longa (são 18 páginas), o fanzine terá, esse mês, um volume menor de textos, distribuídos nas páginas restantes. Além do Alexandre, teremos Ana Farrah Baunilha, com três textos intensos, curtos e grossos. Ela mostra tudo nos blogs mallarmargens e Boneca quebrada. Outro escritor de quem gosto muito, e que escreve artigos e crônicas para a revista Veja, é Jerônimo Teixeira. Possuidor de um estilo crí­ tico refinado e preciso, publicou no blog Intervenções o texto que escolhi para enriquecer essa edição, sobre as virtudes da alienação. E fechando a tr3sdoi2 desse mês, mais um capítulo da saga heróica de Saci-Pererê, cliente de garotas de programa, envolvido até o ultimo centavo de sua carteira com Paulinhagata, uma moça cheia de curvas sensuais e comportamentais. Na capa e contracapa, uma homenagem a uma pessoa bem especial, e que ilumina qualquer dimensão em que esteja sorrindo. Beijo, Marlen.


Escritos

Ana Farrah Baunilha

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Hoje morreu uma amiga Roda gigante e ferrugem Ultraviolento Artigo

Jerônimo Teixeira

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As virtudes da alienação HQ

Alexandre Albuquerque

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Arien Roth Relato

Saci Pererê

Paulinhagata (Parte 5)

Email tr3sdoi2@gmail.com Facebook www.facebook.com/groups/tr3sdoi2/ Editor Alfredo Albuqerque Capa Marlen

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ESCRITOS

ANA FARRAH BAUNILHA

H

oje morreu uma amiga. Chorei, porque ela tem filhos lindos e imaginei a tristeza deles como se ela fosse a minha mãe. Senti uma dor aguda e depois um ódio tremendo. Quando digo ninguém acredita, mas aquele lugar desgraçado, onde morei durante quase dez anos, tem uma energia manicomial, de loucura e de morte. Vi vários ali pirarem de vez e não voltarem. Teve quem se suicidou. Vários morreram, todos conhecidos. Saí de lá quando estava entrando na insanidade. Consegui escapar à tempo. Tava quase era bem louca. Ninguém me tira a ideia de que a culpa é do lugar. Um condomínio amaldiçoado, construído sobre ‘terra sagrada’. Era um grande cemitério de loucos e assassinos. Todo mundo sabe. ninguém fala. Ninguém aceita que essa carga toda de ódio e melancolia paira sobre o lugar. Tenho amigos queridos que aguentam no osso, por força de cabeça ou por não sintonizarem. Sinto a falta deles. Eu sou fraca, Sou esponja que absorve a vibração ao redor. Não sei transmutar isso. Só sei sofrer a mágoa alheia. Queria avisá-los, dizer que saiam de lá, como eu fiz. Mas já quando saí estava estigmatizada pela 3


loucura. Ninguém dava crédito. E hoje não darão a mínima. Sou a falsa profeta que vê as coisas acontecendo e não tem legitimidade alguma no discurso. Queria gritar, fazer abaixo assinado, manifesto de desocupação na frente do lugar. Cartazes de FUJAM PARA AS MONTANHAS!. Mas eu sou só uma desertora. Saí fugida. Temo por eles. Sei que aquela morada um dia vai se afundar. Junto com a Ilha. Aquela maldita Ilha da magia negra.

Roda gigante e ferrugem tenho o útero invertido chorando as ausências na umidade recorrente das minhas calcinhas passei tanto tempo sem botar um caralho na boca que já nem lembro mais que gosto tem e se eu cuspia ou engolia treino a língua no pulso e no espelho belisco minha coxa pra fingir a mão alheia beijo o box quando tomo banho e maltrato o travesseiro quando vou pra cama só durmo de quatro e sem calcinha pra ver se alguém me pega desprevenida 4


ninguém aparece sou um parque Tupy alagado e abandonado num terreno qualquer

Ultraviolento Aquela proposta ainda tá de pé? Hoje eu aceitaria ser barrigueira na Colômbia e você me encontrando na fronteira pra pegar a estrada na motinho de 50 cilindradas de Ponta Porã até Itajaí. Com a grana a gente pagaria nossa cocaína durante um ano, fora a comida e o aluguel. O cigarro deixa que eu garanto fazendo programa e você pode me agenciar e escolher com quem eu transo. Imagina você de cafetão e eu chegando toda arregaçada como sempre e você me daria banho e a gente se amaria com desespero.... Hoje eu toparia. Toparia você de novo. Tudo de novo. Fora o soco.

* Textos extraídos do blog mallarmargens, ou Boneca quebrada (não me lembro de qual dos dois), de Ana Farrah Baunilha.

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ARTIGO

JERÔNIMO TEIXEIRA

Em meio à exigência perene de atualização, do debate surdo e burro das redes sociais, os grandes livros às vezes nos acenam com um silêncio do qual não somos dignos

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J

ohn Updike, ao resenhar no New York Times, em 1995, a edição póstuma dos Contos Reunidos, de Vladimir Nabokov, dizia que Sons, de 1923, é o primeiro conto “plenamente realizado” do autor russo. Nada mal, se considerarmos que Sons é apenas o terceiro conto de um livrão organizado em ordem cronológica (e os dois primeiros contos não chegam a fazer feio). O conto trata de um caso entre o narrador e uma mulher casada na Rússia pré-revolucionária. Nas notas da edição, Dmitri, filho de Nabokov, diz que a história provavelmente evoca um caso que seu pai teve com uma prima. Pois bem: a certa altura, o narrador e a amante vão tomar chá com Pal Palych, que administra uma escola de província. E então temos esse primoroso parágrafo (“você”, neste trecho, é a amante): 7


“Esfregando os olhos, nosso anfitrião fez você sentar. Ao fazê-lo, derrubou da mesa um álbum com uma batida do paletó. Pegou-o de volta. Chá, iogurte e uns insípidos biscoitos apareceram. De uma gaveta, Pal Palych retirou uma lata florida de balas Landrin. Quando se curvou, uma dobra de pele arrepiada formou-se na parte de trás do colarinho. A pelugem de uma teia de aranha no peitoril da janela continha uma mamangava, morta. ‘Onde fica Sarajevo?’, você perguntou, de repente, sacudindo uma folha de jornal que pegara distraída de cima de uma cadeira. Pal Palych, ocupado a servir o chá, respondeu: ‘Na Sérvia.”” Nossa heroína entediada pega o jornal como quem pisa os astros – distraída – para em seguida expor sua trágica ignorância de geografia. E assim, pelas frestas desse idílio em paisagens campestres russas, infiltram-se os fluidos insalubres da História. Como os personagens tomam chá, cabem aqui os versos de W. H. Auden: “And the crack in the tea-cup opens / a lane to the land of the dead”. (Em tradução literal: “E a rachadura na xícara de chá abre uma estrada para a terra dos mortos”).. Imagino um comunistão da velha guarda, daqueles que não queriam saber de periferia ou cidadania: era a revolução proletária ou nada – imagino esse tipo ortodoxo lendo Sons. Suponho que ele ficaria irritado com os preciosismos do estilo burguês e decadente de Nabokov. Teria inflamado desprezo por sua representação bucólica da velha Rússia czarista. Mas daria um sorrisinho perverso, como quem antecipa um fuzilamento, ao ler o parágrafo que citei no 8


post anterior. Eis aí a típica mulher de uma classe condenada: trai o marido (Marx e E por que Engels já falavam dessas falhas da moral não dizer burguesa no Manifesto) e não percebe, que há um ignorante que é dos mecanismos que elemento de fazem girar a roda dialética da história, que a Europa caminha para a guerra e a desafio Rússia para a revolução. heróico em A elite – ou talvez mais particularmente tocar Bach a mulher de elite – olimpicamente alheia enquanto o aos sinais da dissolução iminente da ordem social que a sustenta já se tornou lugar mundo comum. Maria Antonieta é a encarnação desmorona? maior do clichê – pouco importa que nunca tenha dito “se não tem pão, que comam bolos”. Mas sejamos realistas: seria de se es­perar que a mulher que bebe chá em Sons soubesse discernir, nas notícias sobre o arquiduque assassinado em Sarajevo, presságios da desgraça de sua classe? O próprio Nabokov, em um conto posterior, O Pináculo do Almirantado, faz pouco da pretensão de identificar no tempo presente sinais da catástrofe futura. O personagem, um escritor russo exilado (como o próprio autor), conta que certa vez, em São Petersburgo, viu um caminhão carregado de “alegres agitadores” esmagar propositalmente um gato que atravessava a rua: “Na época, isso me tocou com algum profundo sentido oculto, mas desde então tive ocasião de ver um ônibus, em uma bucólica aldeia espanhola, achatar com exatamente o mesmo método um gato 9


exatamente semelhante, de forma que me desencantei com significados ocultos”. E mesmo que a personagem fosse dotada de presciência sobrenatural, mesmo que ela conseguisse discernir as nuvens vermelhas no horizonte, o que poderia, sozinha, fazer para deter a marcha da guerra e da revolução? Lembremos o poeta brasileiro, então de esquerda, que se resignava a aceitar “a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição” porque não podia, sozinho, “dinamitar a ilha de Manhattan”. A personagem de Nabokov está em posição oposta: não pode, sozinha, evitar que explodam seu continente e seu país. Só lhe resta tomar chá. Talvez em uma xícara rachada. *** Sons começa com a mulher adúltera tocando uma fuga de Bach ao piano, em um dia de chuva. Piano e chá são decerto dois perfeitos e previsíveis emblemas do descolamento aristocrático em relação à realidade. Essa personagem em particular mostra-se alheia não só às complexidades da geopolítica europeia: também falha na avaliação dos sentimentos de homens que a cercam (mais não direi, para não entregar todo o enredo do conto). No entanto há um charme irresistível na nonchalance com que ela lê as notícias de Sarajevo. E por que não dizer que há um elemento de desafio heróico – mesmo que não intencional – em tocar Bach enquanto o mundo desmorona? 10


Joseph Conrad (1923) Há um exemplo mais extremo de elegância heroica em Coração das Trevas, de Joseph Conrad. No Congo (a palavra “Congo” jamais aparece no livro, mas sabemos que é, sim, o État Indépendant do imperador Leopoldo), Marlow, o protagonista, chega a uma estação a meio caminho do rio onde ele deve comandar um barco até outra estação mais distante – aquela comandada pelo ensandecido Kurtz. Descortina-se nesse passo todo o horror, o horror da exploração do trabalho escravo no Congo. Aquele era o lugar para onde carregadores nativos, exauridos pelo trabalho forçado, vinham morrer: “Eles estavam morrendo lentamente – isso estava muito claro. Eles não eram inimigos, eles não eram criminosos, eles não eram mais qualquer coisa terrena – nada a não ser sombras negras de doença e fome, espalhadas confusamente na penumbra verdejante”. (Minha tradução improvisada perde as notas eufônicas do escritor-marinheiro: greenish gloom). Afastando-se daquele lugar de morte em direção à estação, Marlow dá de cara com uma figura de elegância tão esdrúxula – considerados o lugar e a situação – que lhe parece uma visão. Colarinho engomado, cabelo repartido, calça branca, gravata, botas bem engraxadas: é o contador da estação, responsável por verificar os números da lucrativa extração de marfim. Muito diferente da bela russa que não sabe onde fica Saravejo, este personagem não desconhece a realidade. É impossível que não tenha jamais visto os nativos que agoni11


zam ao redor da estação. Sua elegância é resultado de um esforço consciente de se manter alheado ao crime cujos resultados ele contabiliza com diligência. Mas aqui vem um desses lances de ousadia e ultraje que só se encontram nos grandes escritores: Marlow declara sua admiração por essa figura incongruente. Está sendo irônico, mas só em parte. O contador, diz, tinha a aparência de um manequim de cabeleireiro. Manter-se assim naquele lugar, no entanto, exigia espinha dorsal (backbone). E, detalhe especialmente significativo no desenvolvimento da novela, o contador é o primeiro a falar de Kurtz. “Um homem notável”, diz. (E.D Morel, um guarda-livros que nunca pisou no Congo, foi quem deu início, na Europa, àquela que terá sido a primeira grande campanha internacional de direitos humanos, para dar fim ao regime de horror de Leopoldo no Congo. Mas esta é outra história, com outro, verdadeiro herói.) *** Mas, claro, se estamos buscando exemplos literários de alheamento heroico, não haverá como superar a famosa entrada do diário de Kafka em 2 de agosto de 1914: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.”

*Jerônimo Teixeira é colunista da revista Veja. Texto publicado originalmente no blog Intervenção, do site de Veja. 12


HQ

ALEXANDRE ALBUQUERQUE

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RELATO

SACI PERERÊ

paulinhagata

(parte 5)

29 Jun 2010 Experiência Negativa Dois dias após a massagem tântrica, fui bombardeado com torpedos e telefonemas de Paulinha me propondo encontro. Outra vez, às 5 da tarde, ela estava embarcando na nave com destino ao Jardim do Éden. Trancados entre quatro paredes, como ela bem gosta de dizer, iniciamos as nossas atividades numa ilha da Pousada Opção ali na estrada da Terra Dura. Após muitas e gostosas preliminares eu estava completamente e literalmente de boca naquela xoxota espumante, de rara beleza, quando suas contrações me fizeram sentir nas mãos os tremores do terremoto da mulher que se desmontava ao meu toque. Sem muito o que fazer, vesti de borracha o precioso apêndice que me chocalha ente as pernas e aprumei-o na direção daquela caverna de pouca vegetação e protegida por farto e belo contorno. Tocá-la já é um gozo, fodê-la é mais que um sonho! O clima estava de vento em popa... Embalado por esse sentimento de raro prazer 31


resolvi dar uma arrumada no meio campo para criar um ambiente ainda mais propício. Pus-me a dispôr travesseiros de forma que a minha partner pudesse, deitada de bruços sobre eles, exibir o seu fenomenal traseiro e me deixasse brincar com o seu cuzinho na expectativa de fazêla ceder aos meus apelos de visitá-la entrando pela porta dos fundos. Após montado o set procurei a protagonista. Ela já estava de calcinha atendendo ao telefone. Sem nenhum pudor me comunicou, mais uma vez, que abandonaria o campo de batalha antes que as atividades fossem bilateralmente encerradas. Envolvido pelo espírito didático que floreia as evasivas de Paulinha, mais uma vez cedi ao apelo que, desta vez, acenou com a premente necessidade da apresentação em sala de aula de um Seminário sobre Administração de Recursos Humanos. Ciente de que estou financiando uma boa causa a educação - aceitei sem relutância os desígnios do meu destino. No caminho de volta ela se desculpou, e penhorou a intenção de me recompensar no dia seguinte. Mais 100 @rrobinhas foram subtraídas da minha enorme fortuna. Vai fazer falta! Vai um NEGATIVO pela falta de compromisso, pelo desrespeito, e por tentar fazer do cliente um escravo aos seus serviços. (continua...) 32




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