Peça-me para ficar - Primeiros Capítulos

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2ª EDIÇÃO – 2022
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RIO DE JANEIRO

Copyright © 2020 Malu SiMõeS

Copyright © 2022 allBook editora

Preparação e Revisão

Clara Taveira e Raphael Pellegrini

Capa

Direção Editorial

Beatriz Soares

Rebecca Barboza

Modelo

Fabián Castro

Projeto Gráfico e Diagramação: Cristiane Saavedra | Saavedra Edições

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados

Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou estabelecimentos é mera coincidência.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135

S615p

Simões, Malu

Peça-me para ficar / Malu Simões. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Allbook, 2022. 348 p.; 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-80455-32-4

1. Romance brasileiro. I. Título.

22-79186

2022 PRODUZIDO NO BRASIL. CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM

CDD: 869.3

CDU: 82-31(81)

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Dedico esta obra ao meu tio Haylton, que deu a vida em prol da sua integridade moral, e às pessoas que abdicam de seus bens materiais para viver em plenitude do amor ao próximo.

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Encontro de Olhares

Um coração em desalinho, o outro, imerso em um vazio.

Num encontro de olhares abrasador, a centelha do amor inflama.

E agora? O que fazer?

Esgueirar-se das emoções em torvelinho ou entregar-se ao sentimento que o destino emana?

Malu Simões.

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PRÓLOGO

Avida é uma linha tênue. Basta um descuido, um passo mal dado, um tropeço, um piscar de olhos no momento equivocado e qualquer dessas opções poderá nos levar a um caminho sem volta.

As portas se abriram e a movimentação urgente avançou pela recepção, carregando na maca uma mulher ensanguentada. O chamado já havia sido feito. Eu a aguardava caso houvesse algum impasse para seu ingresso no hospital particular.

Para muitos, o cheiro do éter, entre outros aromas representativos de um lugar como esse, poderia causar um desconforto orgânico, a ponto de impulsionar uma pessoa a se sentir mal, mas esse era meu mundo, minha segunda casa e onde eu encontrava felicidade. Salvar vidas era o meu mantra, o destino escolhido por mim desde a infância. E nada me impediria de o cumprir. Eu lutaria para ter entre nós qualquer paciente até onde fosse o poder do meu alcance.

— O que aconteceu? — eu questionava o residente enquanto andava a passos largos pelo corredor em direção ao centro cirúrgico.

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— Acidente de carro. O homem que dirigia infelizmente não resistiu aos ferimentos.

— Logo que vocês informaram, eu convoquei a equipe. Estão todos à espera para iniciarmos a cirurgia.

Dei uma passada de olho no rosto inexpressivo da mulher, o que me causou uma sensação de que a conhecia de algum lugar. Dei de ombros. Eu atendia a tantos pacientes em três hospitais diferentes, que a possibilidade de ela já ter se consultado comigo não era remota.

Nesses momentos, o corredor se tornava mais longo do que normalmente parecia. A explicação coerente para essa constatação é o fato de a adrenalina correr desvairada pelas veias, provocando uma onda de ansiedade e uma certa apreensão.

— Meu amor, não! Não! — gritou um homem, sendo contido pelos seguranças sob o vão da porta que nos separava dele, já a uma distância razoável.

No mesmo instante, olhei por sobre o ombro, e um vacilo fez meus passos diminuírem o ritmo. Meu coração fisgou quando ouvi o chamado permeado de dor. Entretanto os segundos eram preciosos naquele momento em que a linha da vida a que me referi anteriormente poderia se romper num piscar de olhos. Jamais eu colocaria um paciente em risco, mesmo que fosse para consolar um familiar.

Desculpe, foi o que tentei dizer àquele homem com meu olhar. Voltei a atenção para o residente. Ele aspirou o ar com tamanha força, que o som proveniente do desabafo reverberou nas paredes daquele corredor para muitos inóspito, embora contivesse as energias positivas dos trabalhadores da área de saúde.

— Vamos — informei a ele, que aquiesceu com a cabeça enquanto as portas de aço corriam em sentidos opostos no trilho diante de nós.

Após ajeitarmos a maca na cabine de aço e subirmos dois andares, a paciente em estado grave foi conduzida ao centro cirúrgico, ao passo que eu, correndo, higienizei as mãos com a água até um pouco acima dos cotovelos, para em seguida me virar para a enfermeira-chefe daquele plantão. Ela calçou minhas mãos com as luvas. Respirei fundo, tensionei os ombros e os liberei em seguida. Era um ritual que fazia para me concentrar antes de qualquer cirurgia.

A porta foi aberta com força. Meu coração deu um pulo com o susto.

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— Você não está autorizada a fazer essa cirurgia.

— Como não? Ninguém vai me impedir.

Pude notar a tensão escalando o rosto do senhor diante de mim.

— Dra. Natália, aqui quem ordena sou eu. Não passe por cima da minha autoridade — disse o homem de presença marcante, ombros alargados e nariz arrebitado na medida exata da sua arrogância.

— A vida dela vale tanto quanto os seus pacientes endinheirados — eu o respondi, afastando qualquer hipótese de o Chefe conseguir demover a minha intenção inicial.

— Já disse que não está autorizada a fazer a cirurgia. A remoção para outro hospital será realizada agora — ordenou sem uma sombra de sensibilidade no coração.

Fitei o vidro translúcido que nos separava do ambiente cirúrgico. Uma movimentação estranha ocorreu. Conforme meus olhos enxergavam e enviavam os comandos para o cérebro... Ah, não! Uma parada cardíaca estava acontecendo na paciente, e os meus colegas prontamente tomaram as providências cabíveis para o momento. O desfibrilador impulsionava a corrente elétrica necessária para reanimar a mulher acidentada.

Não dei ouvidos ao homem rude de coração. Sem pestanejar, abri a porta e me juntei à equipe médica.

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CAPÍTULO 1

Natália

Barcelona, espanha.

Minha nossa! O movimento no restaurante estava uma loucura. Eu podia ouvir o tilintar de pratos e talheres vindo do interior do pequeno salão, além das vozes dos clientes reverberando nas paredes revestidas com inúmeras fotos dos jogadores e feitos do time do Barcelona.

— Duas Paellas, por favor, para a mesa quatro. Uma mista e a outra de frutos do mar — solicitei ao chef entre o vão da janela da cozinha, ajeitei um grampo que se soltava do coque que prendia meu cabelo, e coloquei o pedido do cliente sobre a madeira.

— Só se você sair comigo no final do expediente, lindona — disse ele sem constrangimento, lançando uma piscadela para mim enquanto ainda cortava com destreza um pimentão.

Meneei a cabeça e lancei um olhar reprovador na direção do português de tirar o fôlego. Tudo bem, não foi tão censurador assim. Não era a minha intenção ofender meu colega de trabalho. Mesmo assim, em seguida, não segurei o riso ao avistar a carranca que se formou em seu rosto comprido, quando ouviu pela, creio que enésima vez em seis meses, a minha negativa:

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— Desista, Cristiano. E finaliza logo o pedido da mesa nove. O casal já está a ponto de vir aqui e criar uma contenda com o chef.

— Só se você aceitar o meu convite.

Insistente!

— Se você não parar de fazer chantagem... — Um meio sorriso charmoso escapou dos meus lábios. — Eu serei obrigada a contar para o chefe quem confiscou a foto do Ronaldinho Gaúcho do quadro do banheiro masculino só para impressionar uma cliente brasileira — disse, me divertindo. No instante seguinte, Cristiano coçou a barba castanha e estreitou os olhos para mim. Alcançou a colher de pau ao lado do fogão, mexeu com firmeza o arroz, banhado a frutos do mar, e se calou, não sem antes pigarrear de maneira descontente. Considerei que estivesse faltando palavras para ele. Contudo pude ouvir resmungos portugueses entre uma batida da colher na borda da panela de barro e o som da campainha da moça do bar convocando a minha presença.

Dei as costas a ele, me sentindo vitoriosa no embate. Eu era assim. Não admitia perder uma batalha. A palavra final invariavelmente era a minha. Por esse motivo, eu estava ali trabalhando em um restaurante na Espanha, apesar dos diplomas afixados na parede do consultório; eu os havia abandonado no esquecimento, no Brasil, há dois anos.

— Natália, as duas sangrias estão prontas para a mesa dois — informou Patrícia sobre o burburinho do ambiente, largando os copos com o líquido composto por vinho, frutas e refrigerante, especialidade dos restaurantes espanhóis.

Fui caminhando até ela enquanto os pensamentos se debatiam. Aos vinte e nove anos, me rebelei contra a minha família. Resolvi que me aventuraria pelo mundo e largaria a rotina e os problemas no Brasil. Então, após ler as experiências da escritora Elizabeth Gilbert — presente de Isadora, uma grande amiga que deixei no Brasil —, resolvi que era a hora de cessar as discussões diárias e me aventurar com a mochila nas costas, mesmo que a contragosto de todos. Confesso que já havia experimentado diversos sabores de pratos culinários de vários países e rezado com fervor no pátio do Vaticano em uma missa dominical até desembarcar na capital da região da Catalunha. Mas o amor...

Estalei descontente a língua no céu da boca e descontinuei o caminho de uma gota de suor que desceria da testa à têmpora. Era verão no continente europeu. O calor estava intenso, assim como os meus pensamentos, o que,

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de todo modo, era comum. Abaixei a cabeça com a angústia consumindo o peito e cheguei ao balcão do bar, cabisbaixa.

— Você hoje não está bem. Está dispersa, pensativa. Saudades da família? — indagou a morena de cabelos encaracolados, enquanto preenchia uma caneca de chope com a mão alva.

— Às vezes, a saudade aperta um pouco. É assim mesmo — respondi com a melancolia suturando meu coração.

— Você não pretende voltar tão cedo para casa, não é?

— Ainda preciso de mais um tempo de aventuras. — Pisquei para a espanhola.

Voltei ao trabalho e caminhei entre as mesas até o meu destino, próximo à porta de entrada, para cumprir minhas obrigações.

— As suas sangrias, senhoras.

— Obrigada, querida. Você poderia informar se estamos longe da Casa Batló? Amanhã nós pretendemos conhecê-la.

Em um movimento brusco, a porta do restaurante se abriu, e dois homens entraram em seguida, um deles parecia agitado, sugando a minha atenção, e o outro, com os cabelos castanho-claros, possuía um charme descomunal. Nossos olhos se encontraram, e eu pude notar por trás das lentes dos óculos os olhos verdes serenos, mas ao mesmo tempo intensos; olhos que denunciavam um misto de firmeza de caráter e bondade infinita. Estremeci. Era como se, no instante do nosso contato visual, toda sua aura se descortinasse para mim.

Pisquei duas vezes, ainda presa na sensação do frio que percorreu a espinha, me hipnotizando. E fora apenas com um olhar breve que todo o rebuliço de sensações assolou meu corpo.

Sacudi a cabeça e voltei a atenção para as senhoras, aborrecida comigo mesma, quando o homem relanceou o olhar para mim e sorriu, discreto.

Ah, não!

Ele havia notado o meu vacilo.

— Hum... Um pouco. — Forcei a voltar a atenção ao trabalho, ainda atordoada. — Localiza-se no Paseo de Gracia. Mas não é tão difícil de chegar lá. Podem ir andando e fazendo umas comprinhas nas lojas de grife que existem no caminho. Não será necessário recorrer a um táxi.

— Estamos hospedadas no hotel logo ali em frente. — A senhora alcançou o mapa turístico na bolsa. — Você poderia nos mostrar a localização?

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— Sim, claro.

Solícita, saquei a caneta do bolso do avental e inclinei de leve o corpo sobre a mesa para sugerir o melhor caminho a ser feito, rabiscando o percurso no folheto, ainda com aqueles olhos verdes pungindo diante de mim.

— Olá!

Uma voz grave me convocou a atendê-lo. Virei o rosto e pude notar o homem de porte atlético, falante, averiguando meu corpo. Empertiguei-me e ativei meu modo proteção contra cretinos no mesmo instante, ajeitando a coluna, já que alguns homens ultrapassavam o limite do bom senso e respeito. Fiz sinal com a cabeça que já iria atendê-lo.

— Com licença, senhoras. Se precisarem de algo mais... — Estiquei meus lábios num sorriso sincero e recebi de volta um afago na mão.

Com a expressão mais severa que antes, fui até a mesa transversal onde se acomodaram os clientes. Pelo sotaque, notei que eram da mesma nacionalidade que a minha. Evitei encará-los, o mais perigoso para mim era aquele que havia feito minhas estruturas balançarem, já que havia séculos que nenhum homem me afetava a ponto de me deixar desconcertada; meu coração se encontrava em desalinho há muito tempo.

— Sim. O que desejam? — disse em português, enquanto anotava no bloco “Mesa 3”.

— Dois chopes, por favor. — O cara com os óculos de grau pediu.

A voz rouca penetrou meus ouvidos numa melodia sensual. Ergui a cabeça e encontrei os olhos profundos e cativantes. No mesmo instante, me ative a eles, somente a eles, os olhos. Era como se a beleza daquele homem silenciasse tudo à minha volta, e eu ouvisse apenas sua respiração serena. Mas o que está acontecendo comigo?

Suspirei, e meu peito subiu e desceu num movimento prolongado. Minha libido insinuou que receberia muito bem as carícias daquele homem de voz provocadora. Considerei ser carência o motivo daqueles pensamentos descabidos. Havia um bom tempo que eu não me lançava num relacionamento, nem mesmo casual, por opção minha. Eu não pretendia me prender emocionalmente a um estrangeiro. Mas esse era brasileiro...

Inclinei os ombros.

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CAPÍTULO 2

Carlos Henrique

Após anos de estudos e dedicação extrema à carreira, fui convencido pelo meu amigo-irmão que deveria fazer uma viagem de férias com destino programado por ele: Madri e Barcelona. Ele respirava futebol. Assim, conhecer os estádios Santiago Bernabéu e Camp Nou era o seu objetivo. Eu já fazia o tipo intelectual. Não que eu não me interessasse por esportes, jogava no grupo dos médicos do hospital nos finais de semana, mas não era tão fascinado quanto Rodrigo. E a medicina era o meu principal interesse, era o que ocupava minha atenção e meus dias. Salvar vidas não tinha preço para mim.

— A próxima parada é o campo do Barça — informou Rodrigo com euforia, enquanto eu conferia a localização no mapa da empresa de City Tour. Como Barcelona era uma cidade com inúmeras atrações, optamos por subir no ônibus tipo Hop on Hop off, que são abertos em cima e nos possibilitam uma bela visão da cidade. Esse transporte faz algumas paradas em lugares específicos, para que possamos descer e subir quando bem entendermos e dar uma geral nos pontos turísticos. Assim partimos da Praça de Catalunha, lugar onde fervia gente de todo o mundo.

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— Ainda faltam duas paradas.

— Porra. Esse ônibus vai até o inferno, e não chega ao estádio do Barcelona. — Impaciente, ele largou os fones de ouvido com a gravação das explicações sobre os lugares por onde passávamos.

Ri da cara do meu amigo. Parecia uma criança ansiosa por receber o seu presente de Natal. Eu o entendia. Era assim que eu me sentia antes de entrar num centro cirúrgico. Um misto de ansiedade e prazer.

O ônibus avançava pelas avenidas descortinando os inúmeros prédios históricos diante dos meus olhos. Quando aceitei fazer essa viagem, não imaginava que receberia o banho de cultura que vinha tomando. Cada rua, cada canto de Madri me surpreendeu com o cuidado que os governantes tinham em manter as edificações com as características de quando foram construídas, fato esse que atraía os turistas que clicavam fotos e mais fotos, inclusive eu. Mas, pelo pouco que pude observar, já que era o nosso primeiro dia na cidade, Barcelona era mais rica em atrações, inclusive por ser litorânea. Ela oferecia a opção do mar naqueles dias de calor intenso, não desmerecendo as belezas da outra cidade.

— Finalmente chegamos — anunciou Rodrigo, meu melhor amigo.

Nós nos conhecemos quando éramos crianças. Ele pertencia a uma família abastada; eu vinha da classe operária. O fato é que nós nos tornamos amigos desde pequenos e seus pais financiaram os meus estudos. Eu não poderia ser injusto e negar que cheguei onde cheguei, em parte, devido à bondade dos Teixeiras.

Descemos do ônibus e fomos em direção à bilheteria. De imediato, meu coração deu um soco no peito quando entrei no estádio onde um dos melhores jogadores do mundo treinava e jogava. Eu era fã do Messi. Então ver de perto seus troféus e conquistas, em seu território, caramba, era motivo de euforia.

Rodrigo passou o celular para mim.

— Uhú! É o Barça! — Ele ergueu os braços e girou as mãos sobre os punhos. — Clica uma foto minha aqui antes de entrar no museu. Quero tirar onda com o pessoal da pelada. — Acima da cabeça dele estava escrito: Camp Nou Experience.

Fizemos o tour completo pelo museu e estádio. Avistei fotos dos jogadores brasileiros que passaram pelo clube, suas jogadas e gols na mesa digital. Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Nazário, Rivaldo, Romário e Neymar fizeram história ali, isso era motivo de orgulho. Um orgulho brasileiro.

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— Cara, olha as cinco taças da Liga dos Campeões. Só grandes times conseguem ter tantas.

— E pensar que vários brasileiros ajudaram a conquistá-las.

— Se bem que o Real Madrid tem doze troféus como esses. Nós vimos no Bernabéu. — Parecíamos dois adolescentes diante da caixa envidraçada. — Não há como comparar os números.

— Mas o Barça é o Barça — finalizei o debate e enfiei as mãos nos bolsos.

Nós dois ficamos sem palavras durante algum tempo, contemplando as taças lustrosas.

Um filme da maior parte da minha vida, quando a fartura material não existia na casa dos meus pais, se revelou em minha mente. Uma emoção chegou aos meus olhos. Controlei-me. Quem diria que eu algum dia teria condições de viajar o mundo?

Respirei forte enquanto me perdia em recordações sofridas do passado.

O celular de Rodrigo soou ao meu lado.

— Fala, mãe... Está tudo bem... O Carlos Henrique está aqui, sim, o seu filho predileto.

Meneei a cabeça e esbocei um sorriso.

— Manda um beijo para ela.

— Seu filhinho está mandando beijos.

Sorrindo, Rodrigo fez sinal com o dedo indicador que iria em direção a um painel que girava várias placas ao mesmo tempo, formando uma única imagem ao fim, quando cessavam o movimento. Um grande escudo do time catalão surgiu imponente com as letras garrafais FCB.

Não notamos o tempo passar. Ficamos ali respirando futebol durante três horas sem cessar e finalizamos o tour comprando camisas oficiais do time para usar no Brasil.

Descemos do ônibus no mesmo lugar de onde iniciamos o tour e caminhamos pela avenida Passeo di Gracia, famintos. Só aí notei o quanto estava cansado, resolvemos então jantar num restaurante em frente ao hotel, facilitaria mais as coisas.

Rodrigo ria alto da mancada que deu quando empurrou a porta do restaurante em um ímpeto. Ele simplesmente confundiu o significado da palavra raro em espanhol e disse, em forma de elogio ao segurança do Camp Nou, que Messi era um jogador raro, no sentido de precioso. Caramba, o

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segurança se sentiu ofendido porque raro, em espanhol, significa estranho, esquisito, e iniciou uma discussão desnecessária conosco.

— Só você, Rodrigo, para nos meter nessa encrenca — disse entre uma gargalhada que fez meus lábios tremularem.

O dia, apesar de ter sido um dos melhores de toda minha vida, foi cansativo. Minha intenção era simplesmente saciar a fome e me direcionar para a cama o mais breve possível, o corpo implorava por isso. Era só o que eu pretendia. Mas...

Foi então que eu a vi, e os planos mudaram. Eu me deparei com uma mulher linda, que exalava charme por todos os poros do corpo apenas com simples movimentos suaves de feições e mãos. Os cabelos ruivos estavam presos num coque baixo e alguns fios lisos e soltos emolduravam as laterais do rosto. Ela parecia pertencer à alta-sociedade. Eu identificaria uma mulher classuda de longe, pois convivi com algumas delas na casa dos Teixeiras. Mas meu faro naquele momento falhou. Ela trabalhava como garçonete, o que não desabonava sua postura elegante, a meu ver.

Nossos olhares se cruzaram quando ela notou a minha presença. Prendi a respiração e elevei uma sobrancelha. Minha mandíbula se retesou assim que apertei os dentes uns nos outros ao me prender naqueles olhos cor de mel enfeitiçadores. Eu me senti um adolescente diante de uma deusa. Uma mulher sobre um pedestal, intocável. Contudo, de alguma forma, eu a atingi tanto quanto ela me desnorteou. Pude notar em seus olhos o interesse por mim; eles não se movimentaram para desviar dos meus. A mulher estava tão em estado de torpor quanto eu.

Inexplicável!

Avaliei quão intensa fora aquela atração não premeditada. Empurrei os óculos com o dedo contra a face. Dei alguns passos e passei ao lado da mulher de pele imaculada e porte altivo. Um estimulante aroma cítrico invadiu minhas narinas, denunciando que era provável que fosse uma mulher de personalidade forte, poderia até ser romântica, mas considerei improvável. Aprendi com os últimos relacionamentos que mulheres melosas e sonhadoras usam perfumes com fragrâncias florais.

Ao sentar à mesa do restaurante pequeno e aconchegante — as paredes de pedra eram recobertas por quadros de fotos do time do Barça —, ajeitei as sacolas de compras no chão e, com os olhos ainda pregados naquele corpo com linhas e formas sensuais, meu amigo do andar de baixo resolveu

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pulsar com intensidade na calça jeans, causando dor. Eu me forcei a desviar a atenção para Rodrigo, que ainda ria da situação esdrúxula.

Peguei o cardápio e fui passando o dedo pela lista dos pratos indicados pelo chef enquanto Rodrigo checava as mensagens no celular. Era provável que vistoriasse se Isadora havia enviado alguma. Há menos de dois meses, eu apresentei os dois e me senti um cupido. Deram início a um relacionamento, e pelo que pude notar durante a viagem, Rodrigo andava bem empolgado com a morena personal travel. Após conferir o celular, ele chamou a garçonete, e ela fez sinal com um balançar de cabeça que já estava indo.

A mulher foi até nossa mesa com um gingado sensual. Puta merda! Como diria uma das minhas irmãs, eu estava no sal. Meu corpo reagiu no ato mais uma vez, quando a voz aveludada atingiu meus ouvidos, ressoando sexy, sem remorso algum por me deixar excitado. Demorei alguns ínfimos segundos para respondê-la, e disse a primeira coisa que me veio à cabeça, solicitando dois chopes. Eu necessitava jogar uma bebida alcoólica na garganta, seria uma forma de me acalmar.

— Ah, sim! Algo mais?

Ela pressionou o lábio inferior com os dentes. Segurei um suspiro. Aquilo me excitou ainda mais. Eu estava explodindo entre os quadris.

— Algum jogador de futebol costuma vir aqui? Há tantas fotos — Rodrigo perguntou.

Pensativa, ela voltou a fitá-lo e se demorou no rosto dele. Tive a nítida sensação de que ela refletia se o conhecia. Enfim respondeu:

— Eu trabalho há poucos meses aqui e ainda não vi o Messi.

— Acho que todos fazem a mesma pergunta.

Eles trocaram sorrisos.

— Sempre.

O celular dele o convocou para uma conversa, e essa foi a minha deixa para ouvir outra vez a voz.

— A senhorita poderia trazer também duas Paellas tradicionais, por favor?

Estupefato com o fascínio que a mulher causava em meus sentidos, palavras não saíam de minha boca. Ela, então, balançou a cabeça em afirmação e girou sobre as sapatilhas, direcionando-se à cozinha.

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CAPÍTULO 3

Natália

eria mais prudente que eu ficasse no seu lugar no restante do expediente, Patrícia — sugeri, já repassando o pedido devidamente anotado à mão dela.

— S

— Hum! Qual deles?

— Qual deles o quê? — respondi, ríspida.

— Que a deixou nervosa desse jeito?

— Não entendi... Só estou um pouco tonta. Ainda não me alimentei.

— Tudo bem. Eu continuo com o trabalho para você. — Patrícia esquadrinhou os sujeitos. — Mas, olha, eles não são de se jogar fora, hum, não são. Você quer mesmo que eu fique em seu lugar?

— Prefiro me afogar no Mediterrâneo a sair com algum brasileiro aqui, em Barcelona. Ahhh!

— Hum-hum. Sei. — Patrícia foi até a cozinha, rindo, enquanto eu lavava uma tulipa de cerveja e me punia.

O que deu em mim para ficar abobada na frente daquele homem? E com um simples olhar?

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Olhei acima dos ombros e o avistei me checando. Senti satisfação ao notar que eu o afetava na mesma medida que ele me impressionara. Soltei um leve sorriso e recebi outro de volta. Despendi, ainda com o coração batucado, a atenção para Patrícia, que retornou com um pedido de suco de laranja.

Esqueça isso, Natália. Esqueça isso.

As horas transcorreram, e eu perdi as contas de quantas bebidas preparei. Senti-me exaurida no final do expediente. Fiz um movimento lento e circular com o pescoço, e um estalo se fez ali, na altura da cervical. Doeu.

— Hoje o movimento foi mais pesado. Preciso apenas da minha cama.

— Por que não a minha?

Revirei os olhos e bufei em seguida. As investidas incessantes do português estavam fustigando minha paciência.

— Não recomeça, Cristiano — supliquei, já avançando pelo umbral da porta em direção à rua.

— Um dia você ainda vai implorar para ser minha, lindona. Para estar em meus braços...

— Boa noite — respondi sem olhar para trás. Trespassei a rua e alcancei minha scooter vintage azul-claro. Eu a adquiri assim que cheguei ao meu suposto último destino de aventuras pelo mundo afora. Decerto, o dever me convocaria a regressar ao Brasil tão logo as economias finalizassem; eu extrapolara a previsão do tempo em que me manteria no exterior.

Suspirei pesado.

Quando saí do Brasil, o meu propósito era sobreviver com as economias do meu trabalho como médica durante um ano somente, mas os problemas que me esperavam assim que pusesse os pés no meu país me induziram a continuar como mochileira pela Europa. E o dinheiro foi ficando escasso, mesmo assim não demovi a ideia de conhecer vários países e suas culturas, muito menos recorrer à ajuda dos meus pais.

Falando neles...

Não vou negar que quando as imagens doces da minha mãe se revezavam em minhas memórias, eu sonhava com seu afeto, mas, volto a dizer, não desejava retornar à realidade familiar que me envolveria no instante em que pusesse os pés no Brasil. Egoísmo? Não sei.

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Fitei a chave da moto na mão, meneando a cabeça em busca de jogar para longe as angústias que espicaçavam a mente, e subi na minha máquina estilosa Hora do descanso.

Ergui preguiçosamente os braços, acomodando-os acima da cabeça, sobre a cama, quando esparsos raios solares se infiltraram entre as gretas das paletas de madeira da porta, me despertando. O dia amanheceu com a promessa de sol intenso. Era o meu dia livre, e eu pretendia dar uma volta pela cidade.

Bocejei.

Não me obriguei a me levantar num pulo, muito menos dormir novamente. Eu queria mesmo era curtir cada segundo do meu dia de folga sem estresse, sem o ruído das panelas ressoando nas paredes do restaurante, ou algum cliente me convocando para o atender.

Só isso.

Eu me virei de lado e puxei a coberta fina até a altura dos seios, apertando-a contra o peito, embolada na mão. Suspirei e permiti que meus olhos se fechassem por mais algum tempo. Era tão bom me sentir leve, sem o peso da responsabilidade sobre as costas, mesmo que eu soubesse que o prazo de validade dessa sensação já havia vencido e eu teria de largá-la de mão a qualquer momento. O desejo de conhecer o mundo e agir como uma autêntica mochileira amadureceu em mim depois que presenciei uma cena deprimente na casa dos meus pais, em um dia em que fui visitá-los.

É uma tarde de domingo chuvosa. Almocei com a Isadora e, não sei por qual motivo, algo me induziu a seguir o caminho da casa dos meus pais. A água persistente bate forte no vidro do carro e o limpa-vidro range enquanto libera a visão para mim. Faz uma semana que chove no Rio de Janeiro, e uma tristeza abarca minhas emoções. Talvez seja esse o motivo que leva o carro a obedecer ao meu instinto, e não à minha verdadeira vontade de ficar de bobeira em casa, assistindo a algum filme na televisão a cabo sob uma coberta. Eu necessito do sol para me animar, e o colo da minha mãe significa vida para mim, apesar de eu evitar a todo custo me encontrar com o meu pai. Suspiro pesado.

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Ele não aceita muito bem que eu viva em outro lar que não seja o dele, e nem que eu tenha custeado a faculdade com a herança do meu avô. Ele não é um homem ruim, mas eu não conseguia mais viver em um lar onde o alcoolismo comandava nossos dias.

Pela madeira da porta, posso ouvir os gritos do meu pai e a voz abafada da minha mãe se mesclando ao choro. Meu coração dá um salto de medo. O que está acontecendo? Vivenciei vários rompantes de nervosismo contra a minha doce mãe, que se cala e reza na maioria das vezes, mas hoje o tom agressivo foge à normalidade.

Giro a maçaneta e constato no ato que a porta não está trancada, para o meu alívio, já que eu não possuo mais uma cópia da chave de casa. Avanço pela sala, afoita para estar perto da mulher resiliente e evitar qualquer mal que meu pai possa cometer contra ela, mesmo que eu saiba que nesse relacionamento abusivo ele jamais encostou um dedo sequer na esposa. Até então, palavras grosseiras são despejadas sobre ela sem dó nem piedade, afetando-a de modo inominável quando ele está alterado pelo álcool.

Porém hoje...

Uma pontada de dor pinça meu coração.

Ele está visivelmente transtornado. Mas o que acontece afinal? Minha mãe chora enquanto o marido põe roupas em uma pequena mala. Sinal de que não irá embora em definitivo.

— Você é uma peste de mulher. Um entrave na vida de qualquer homem. Boazinha demais. Solícita demais. A sua educação me irrita. — Palavras depreciativas explodem no quarto, num tom colérico contra a minha mãe.

No segundo seguinte, ele vira o corpo avantajado em direção a ela. Eu intervenho e, num pulo, me posto à frente dela, as mãos fechadas em punho, a raiva assolando o respeito por aquele que é meu genitor. Não há outra escolha a não ser defendê-la.

— Se você tocar na minha mãe, eu vou levá-la para morar comigo. Chega dessa pressão psicológica que você faz com ela há anos. Você tem que aceitar tratamento, senão vai perder sua família.

Demorei um longo tempo para destravar a garganta e dizer o que pensava sobre ele, sem pestanejar. Com o passar do tempo, essa falta de respeito aumentou consideravelmente, assim como o álcool o dominou por completo.

Ele passa a mão na cabeça, levando o cabelo para trás, e me encara com aqueles olhos castanhos em brasa, contudo não reage como eu esperava que fizesse. Cogito a hipótese de que toda a cólera fosse direcionada a mim, mas o homem, possuidor de um porte elegante, não o faz. Simplesmente resgata a mala sobre a

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cama e, por fim, sai porta afora, cambaleando, o transtorno evidente em todas as linhas do seu rosto.

Um extenso lago de lágrima escoa dos olhos da minha mãe e umedece sua face enquanto eu a ajudo a se sentar na cama, aconchegando sua cabeça em meu peito. Acaricio os cabelos ruivos como os meus e a envolvo em meus braços.

Presenciando toda essa falta de respeito, eu juro para mim mesma que jamais um homem dominará o comando dos meus sentimentos, quanto mais da minha vida, como minha mãe permite ao meu pai, sempre com a justificativa de que tem pena do estado que chegou devido ao vício. E assim os anos se seguiram nessa luta contínua.

— Mãe, você tem que reagir a ele. Você é uma mulher linda, inteligente, independente, e sua escola está entre as melhores do bairro. Você não precisa dele para nada. — Eu não consigo entender o motivo de tamanha fragilidade. — Venha morar comigo, mãe.

— Ah, mi-minha filha... — Seus soluços embargam a fala. — Falta-me coragem para reagir. Eu oro todos os dias pedindo a Deus que me mostre o melhor caminho. — Minha mãe vive em uma teia ilusória de que a solução para o problema cairá sobre ela como por um milagre.

Meu peito se preenche de um sentimento de impotência. Como eu posso descortinar a verdade a ela sem que a machuque? Meu pai abusa psicologicamente dela, mas ela justifica com o alcoolismo e mantém o discurso de que meu pai precisa de sua ajuda para a melhoria pessoal, ou moral. Meu Deus! Que tristeza presenciar a subserviência emocional que minha doce mãe manté m, como um refém encarcerado nessa relação.

Então eu me calo e transporto o melhor de mim para ela em forma de carinho filial, apesar de a minha vontade ser de sair daqui e carregá-lo para uma clínica de tratamento.

Sorvi vagarosamente o aroma cítrico que preenchia o espaço, tão parecido com o de meu quarto na casa dos meus pais durante minha infância e adolescência. A única semelhança era essa, já que o quarto da pensão em que eu morava era menor que o banheiro da minha suíte no Brasil. Mas eu me sentia leve ali, sem cobranças e traumas. Eu precisava me distanciar dos problemas familiares e respirar novos ares.

O celular vibrou, atormentado. Com tanta insistência, só poderia ser minha amiga.

Ah, não! Droga!

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Eu o deixei sobre a escrivaninha quando retornei do restaurante no dia anterior.

Levantei-me ainda cambaleante e arrastei os pés pesados sobre o chão amadeirado até alcançar o ruído insistente.

— Alô!

— Que voz é essa? Não acredito que você acabou de acordar! São oito horas aí, na Espanha. Aqui no Brasil, a essa hora, você já teria treinado na academia e já estaria em seu consultório atendendo os pacientes.

— E eu não acredito, Isa, que você ainda está acordada. — Joguei-me na cama e dobrei as pernas, os joelhos apontados para o teto. Chequei o relógio na minúscula mesa de cabeceira. — Aí ainda é de madrugada.

— Perdi o sono. O meu crush viajou para a Europa, e estou sentindo falta dele. Só que ele basicamente não sabe disso.

— Não me diga que você entrou numa de fazer joguinho para o conquistar.

— Ai, amiga, eu estou meio apaixonadinha por ele.

— Vai com calma desta vez — aconselhei, já que Isadora tinha uma tendência a se entregar de corpo e alma às relações amorosas, e por isso acabava não sendo valorizada por nenhum rapaz.

— Pode deixar. Estou calejada. Falando em homens...

— Ih! Não quero nem ouvir o que tem a me dizer. — Fitei o lustre em forma de concha do mar preso ao teto.

Larguei um namoro de seis anos para trás. Nós até chegamos a ficar noivos, mas as neuras me trouxeram à Europa, apesar dos ardorosos protestos dele.

— Fabrício perguntou por você esses dias. Creio que ele ainda gosta de você.

Expirei o ar com força no fone e fitei a cor de areia do papel de parede. Toda a decoração da pensão remetia às belezas do oceano, como dizia a dona Inês, a dona da pensão, em homenagem ao arquiteto Gaudí, idealizador da Casa Batló.

— Sem chances. Eu não o amo.

A fagulha do amor nunca se soltou em brasa. Nosso namoro era morno. E ele, com o passar dos anos, apresentava, em uma crescente de atitudes, como uma onda que se avoluma até quebrar na praia, os traços de um homem abusivo. Frases como “isso é coisa da sua cabeça” ou “você está ficando louca”

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eram ditas quando eu o pegava no flagra paquerando outra mulher. E, não, eu não estava ficando lesada das ideias, muito menos viraria uma vítima do seu poder de persuasão negativo; logo, eu escapuli dele rompendo o nosso vínculo, o que, para mim, seria em definitivo.

— Fabrício é um cara bonito e bem-sucedido. E parece amá-la.

— Você sabe de todos os motivos que me levaram a tomar essa decisão. Eu não vou aceitar me sujeitar a um relacionamento com um cara que não confio. — Troquei o celular de uma mão para outra e acomodei o braço sob a nuca.

— Bom, você é quem sabe. Quando eu te emprestei Comer, Rezar e Amar, era apenas para você tomar coragem para pôr em prática seu plano de se inscrever no Médicos Sem Fronteiras. Você estava sem saber que rumo daria à vida e tinha o sonho de se tornar uma pessoa altruísta, mas está na hora de você voltar, Nati. Você já viveu sua aventura e precisa retornar à realidade. Sua mãe precisa de você, amiga. Pense nela um pouco, tá?

— Eu sei — respondi, complacente, apesar do meu interior gritar por súplicas em permanecer mais tempo longe do Brasil. Longe dos problemas. Em fuga da realidade, embora o peito tremulasse de saudades e me alertasse de que eu estava sendo egoísta.

— Eu não consigo entender por que você está trabalhando como garçonete. Você tem dinheiro pra caraca no banco, por que não tentou emprego como médica?

Suspirei profundamente. Só eu mesma me entendia. Ou melhor, quem abre mão do mundo de abundância para viver com o mínimo também me entende. Eu não estava sofrendo com essa condição e aprendia a viver o outro lado da moeda.

— Primeiro, eu não vou gastar a herança do meu avô. Você sabe muito bem que tenho planos para esse dinheiro. Segundo...

— Hum. Estou ouvindo atentamente.

— Deixe de ser irônica, Isadora. — Ouvi um suspiro ao telefone. — Você também sabe muito bem que não estou preparada para voltar e já tentei emprego em hospitais daqui, mas eu sou estrangeira, e não é tão fácil assim.

— Mas por que ficar se submetendo a passar aperto?

— Ah, Isadora! Eu me mantenho de forma simples e não passo necessidade. Só quem viveu o que vivi na Nigéria pode me entender. Eu estou desprovida do luxo e não está me fazendo falta. Acredite se quiser. Eu estou leve aqui. E não me desmereça por ser garçonete. Qual o problema?

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— Ok. Me senti até mal depois desse papo cabeça. Bom, preciso trabalhar. Beijos, Nati.

— Beijos.

Isadora jamais me entenderia. Eu sei. Mas convivendo com outras pessoas que largaram tudo para realizar trabalhos humanitários e outros que não pensavam em retornar para a vida de antes e buscar seu caminho em lugares diversos do mundo, eu quis me aventurar por mais algum tempo e encontrar o meu verdadeiro eu.

Quem eu sou? O que quero para mim? O que vou fazer quando chegar ao Brasil? Qual o sentido da vida?

Eram perguntas que ainda vagavam desencontradas em minha mente e eu necessitava de um tempo a mais longe de tudo e de todos.

Soprei o ar, e meu estômago chiou em seguida, alertando-me que estava com fome.

Como o sono se dissipou no ambiente, em meio à conversa, que para Isadora era meio sem pé nem cabeça, e a tantas lembranças não tão bem-vindas, resolvi que desceria para o café da manhã regado às iguarias da dona Inês, não sem antes me recompor no minúsculo banheiro feminino do corredor da pensão e me vestir com um vestido leve e vaporoso de verão.

Mirei meu rosto no espelho, e os olhos captaram a feição de uma mulher amedrontada como reflexo. Essa não era nem de longe um resquício da minha personalidade. Onde estava aquela mulher destemida e forte que sonhava em salvar a humanidade através da medicina?

Firmei as mãos na bancada da pia e balancei a cabeça em negativa, me recriminando.

— Definitivamente essa não é você, Natália Ferreira Santos. Você não é nenhuma covarde. Você vai ter que tomar uma decisão.

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