Prólogo
— Ah! Conta outra, Lauren! Quer dizer que eu não posso usar uma gíria? — fecho a cara.
— É óbvio que não. Onde já se viu uma estilista famosa pronunciar palavras tão deselegantes em uma entrevista? E com suas clientes, como você se expressa?
— Ué? — Respiro fundo e incorporo o espírito da estilista comportada. Aliás, essa de ficar famosa está me deixando bolada. — Quando eu quero, eu sei falar com sofisticação em público, sabia? — Estico o nariz na direção do engenheiro de tirar o fôlego que toca a obra do meu ateliê. Lauren fecha o cenho, em reprovação. Lógico que ela me recriminaria!
Daqui a quatro meses, no máximo, vou inaugurar meu ateliê de alta-costura e a loja prêt-à-porter Mia Kylie. Lauren decidiu que vai me tornar uma mulher com uma imagem mais velha do que sou, ou talvez mais refinada. É, pode ser…
Dou de ombros.
Na verdade… ela pega muito no meu pé! Eu adoraria ser mais formal, menos namoradeira e — quem sabe? — ter um lance sério com algum cara careta. Mas morei alguns anos na Europa e me acostumei a fazer o que me dá na telha, além de não conseguir mudar o meu jeito. Ué? Eu sou assim!
Falando na Europa… Ah, Londres! Ah, Paris! Quanta saudade eu sinto dessas cidades! Nelas, eu vivi radiante entre tecidos, agulhas e, confesso, alguns amores também. Os tipos de homens ingleses — altos, magros, com um sorriso charmoso e pelos loiros — me deixavam perturbada. Mas… Ah, os franceses… Esses são o meu fraco. Com os cabelos castanhos desgrenhados, a barba por fazer, a pele alva e macia… Ui, eu fico ofegante só de pensar! E quando usam óculos? É melhor mudar de papo.
Na cidade inglesa, fiz faculdade de Moda, na
University of the Arts
London Central Saint Martin — lugar onde quem ama e fareja o glamoroso mundo da arte e do design gostaria de estar. Realmente, estudar na CSM foi
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uma experiência inspiradora. Convivi com pessoas do mundo todo. Ah, eu me sentia na vanguarda do mundo fashion a cada aula que era ministrada pelos renomados professores!
Quando eu passava sob o umbral da porta de madeira, meu coração vibrava alucinado ao sentir o cheiro de arte no ar. As máquinas de costura, as mesas compridas e levemente ovais, os manequins que nós envolvíamos com tecidos brilhantes, opacos, alegres, sóbrios, todos com ótimo caimento…
O mais legal daqueles tempos era caminhar pelo bairro vintage londrino, Notting Hill, buscando inspiração para as minhas criações. As cores vibrantes das fachadas dos prédios e seu estilo de bairro antigo contrastavam com a elegância formal de alguns dos frequentadores. E as lojinhas com produtos que mais pareciam quinquilharias…? Era bom demais passear entre as muitas bancas da feirinha.
Depois de ser eleita a melhor aluna da turma, quando no final do curso apresentei um vestido conceitual estupendo, utilizando organza de seda na cor pêssego-claro, muita transparência — ousei numa cor formal diferente do colorido que sempre apresentei para os meus professores — e uma echarpe vaporosa cobrindo os ombros do modelo tomara que caia com decote até o umbigo, parti para Paris para incrementar meu currículo. Fiz cursos excepcionais na clássica escola École de La Chambre Syndicale.
Fui acolhida pela Cidade Luz com tamanho carinho, que não pretendia mais voltar a morar no Brasil após a minha estadia de dois anos naquele centro glamoroso e histórico.
Por causa da minha competência — ou sorte —, me tornei a preferida de um dos maiores mestres da moda francesa, Thierry Calvet. Eu costurava, criava, desenhava, escolhia tecidos e acessórios para o mestre. Eu era tipo um faz-tudo, sabe?
Sem que me desse conta, os anos se passaram, até que o meu velho me deu um ultimato, via Skype, bem assim: “Mia Kylie, faça o favor de arrumar suas tralhas e voltar para sua terra. E bem rápido. Chega de Europa, filha”. Bem, não foi exatamente com essas palavras tão amenas, mas foi por aí.
Durante seis meses, eu o enrolei, dizendo que precisava ganhar mais experiência. Eu não pretendia voltar para o Brasil de jeito nenhum, mas meu pai fez uma oferta generosa: “Filha, vamos montar o seu ateliê de alta-costura na mansão da Ilha do Frade. Seus irmãos já concordaram. Se
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tudo der certo, quem sabe não construiremos um novo centro de trabalho para você, bem maior, no futuro?”
Aí sim, ele falou a minha língua. Voltar para o Brasil com uma mão na frente e outra atrás, apenas com a experiência adquirida, não valeria a pena para mim. Eu não pretendia ser escravinha de mais um estilista famoso para mostrar o meu potencial.
Então aquiesci ao “pedido” do meu pai, pedi demissão do emprego, diga-se de passagem, com muito pesar. Entreguei as chaves do loft onde morava, na região próxima ao Arco do Triunfo, para o gorducho proprietário do prédio clássico.
Com a certeza de que eu arrasaria em Vitória, cidade onde nasci, no Espírito Santo, retornei para o Brasil, não apenas com muita bagagem de mão — para desespero do meu pai e do meu irmão, quando se depararam com a minha pessoa no saguão do aeroporto —, mas também com a bagagem adquirida nos oito anos em que ralei na Europa.
Agora, aqui, no Brasil, eu desenvolvo com satisfação meu trabalho como estilista na mansão da família, na Ilha do Frade. Por enquanto.
Minha mãe, Laís, faleceu há alguns anos, e meu pai cedeu a casa para eu montar meu ateliê, já que ele não se sentia feliz morando no lugar onde não via mais seu grande amor circular. A princípio, eu fiquei meio em dúvida se me sentiria confortável com a ausência da minha mãe, mas ele me convenceu de que seria melhor. No entanto, a casa se tornou pequena para o meu projeto. Eu não sabia que faria sucesso tão rápido assim! Nem meu velho. As socialites capixabas me adoooram!
O meu futuro ateliê está sendo construído no bairro requintado da ilha de Vitória, a Praia do Canto. As ruas desse pequeno paraíso têm vida própria, as pessoas moram em torres envidraçadas e frequentam boutiques ricamente decoradas que exibem projetos arquitetônicos contemporâneos.
Já o meu mundo será um prédio envidraçado de seis andares, bem clean, para dar destaque ao letreiro colorido e vibrante.
O projeto abriga, no primeiro andar, a loja Mia Kylie, com suas arandelas douradas, um lustre elegante de cristal estilo francês bem no centro, sobre uma mesa de madeira laqueada de branco e vidro serigrafado da mesma cor e gavetas de tamanhos diversos. O toque das cores se apresentará com riqueza de detalhes quando minhas futuras coleções estiverem dispostas
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nas arandelas, dando vida ao pavimento, juntamente com as vendedoras experientes e o entra e sai das clientes.
Os andares superiores ficarão ocupados pela ampla sala de imprensa, bem como pelo salão de eventos, ambos pintados em tons pastel como nos demais ambientes, além do piso de porcelanato quase branco. São neles que apresentarei meu estilo de trabalho à nata do mundo fashionista. Logo acima, as costureiras terão um andar somente para elas, com suas máquinas modernas e os mais diversos instrumentos de costura. Eu as imagino trabalhando nos meus modelos e dando vida a eles com tamanha precisão, que já sonho com o dia em que irei circular entre elas e tocar nos manequins recobertos por tecidos de primeiríssima qualidade. Ah, quanta alegria!
O quinto andar é onde a minha irmã poderá desempenhar o seu trabalho como administradora da marca Mia Kylie. A parte chata ficou por conta de Greta. Ela sabe comandar com perfeição a equipe que mexe com números, marketing, e tudo mais. Pulando essa parte, eu me eriço toda só de recordar do projeto do último andar, o meu mundo de criação, lugar aconchegante onde atenderei minhas clientes e darei vazão ao meu talento e imaginação.
É no sexto andar que começarei o meu dia com um “Bom dia!” para a minha secretária, Mirela, e caminharei satisfeita em direção à minha ampla sala onde darei vida às minhas criações.
Sensacional!
— Eu sei que você sabe ser muito sofisticada quando quer, afinal de contas foram oito anos estudando na Europa. Mas, Mia, você ainda se supõe adolescente e não abandona esse linguajar sempre coloquial demais. — Lauren espreme os lábios e prossegue: — Bom, concentre-se na sua carreira e esqueça as tentações do sexo masculino também — diz a jornalista bem-sucedida.
— Caramba, Lalá, relaxe um pouco. Namorar faz parte da vida de qualquer ser humano… normal, é claro. — Reviro os olhos. — A gente só tem vinte e seis anos — pondero e quase como com os olhos o engenheiro da obra do meu novíssimo ateliê. — Aliás, aquele carinha ali é bem, ahn, delicinha! A obra está acabando, e a gente ainda não saiu, apesar das investidas dele nesses dois últimos meses. — Ajeito o capacete de segurança na cabeça.
— Meu Deus! — Lauren revira os olhos. — Mia, por favor, concentre-se. Você está prestes a lançar a coleção de inauguração no seu novo ateliê.
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Cresça. — Lauren bate com o dedo na têmpora direita. — O tio Augusto investiu muito aqui — diz, percorrendo o ambiente com seu dedo em riste.
— Eu também ralei muito para construir este espaço. — Pouso as mãos na cintura, descontente. — Não se esqueça de que eu trabalhei com o mestre Thierry Calvet e trouxe muitos euros de Paris. E nesses dois últimos anos, depois que cheguei da Europa, já consegui uns bons trocados das minhas clientes.
— Miaaa… — Lauren me condena e suspira profundamente. — Você é um caso perdido.
— Eu sou maluquinha, às vezes, como você diz, mas dei duro na Europa — rebato, careteando para ela.
Lauren me considera imatura, eu sei.
— Prima, nem sempre eu vou ter o poder de interceder por você no jornal, quando os paparazzi estamparem fotos suas com diferentes homens. Você precisa preservar sua imagem. — Lauren aspira o ar com força enquanto eu considero suas palavras.
O que eu posso fazer se nenhum dos caras com quem saí até então
— num lance sem compromisso — acertou uma flechada em cheio no meu coração?
Quer saber, às vezes, eu me sinto loucamente só. Esse sentimento passa tão rápido quanto a velocidade da luz, eu sei. Mas… quem veio para essa vida para ficar sozinha, abandonada, deprimida? Desconsiderando o drama, acho que ninguém que eu conheça.
Caminhando vagarosamente, o engenheiro vem em nossa direção, me tirando do meu momento papo-cabeça, enquanto Lauren logo cochicha para mim um “Contenha-se!”.
Até parece! Claro que eu não vou dispensar um homem sarado como ele — pondero enquanto analiso o peitoral largo e o braço volumoso, bem como o bumbum… Hum! Farto. Dou batidas rápidas e repetidas acima do meu peito, tentando abafar o desejo.
Sem pensar, ajeito para o lado parte da franja que não se esconde sob o capacete, inclino uma sobrancelha e lanço meu olhar mais sensual possível para o moreno. Uau! Meu interior se agita.
— Boa tarde, Mia Kylie. A senhorita veio fazer a verificação da obra?
— indaga o monumento, com um olhar meio derretido e um sorriso malicioso no rosto.
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— Oi, Maurício! Eu abri um espaço na agenda. — Faço-me de importante. — Quando tudo estará finalizado?
— Daqui a um mês, no máximo — ele responde e morde os lábios, umedecendo-os em seguida.
O quê? Um mês apenas? Sinto um calafrio percorrer o corpo da ponta dos dedos dos pés até o último fio de cabelo. Ah! Se eu pudesse, passaria a mão nele e sairia agora mesmo daqui! Decido que de hoje esse flerte não passará.
— Você pode começar pela minha sala? — interpelo. — Eu gostaria de verificar se a pintura está do jeito que pedi.
— Claro! O elevador já foi instalado e nós não precisaremos subir pela escada até o sexto andar. — Maurício me olha de esguelha com segundas intenções no ar.
Hum! O elevador já foi instalado, repito a frase mentalmente. Nada mais sexy do que um encontro numa cabine de aço. Oh, la, la!
Com a expressão serelepe, giro o rosto para trás, encontro o olhar da minha prima e pisco de volta. Lauren vira a cabeça para o lado devagar, fustigando-me com o olhar.
Minha Nossa Senhora das Mulheres Pudicas! Quando Lauren vai relaxar?
— Então, me leve para verificar as condições do elevador — escancaro.
O engenheiro sorri maliciosamente.
Ai, meu Deus!
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SAIO DO MEU FUTURO ATELIÊ COM UM SORRISO DE ORELHA A orelha. Entro no meu Mini Cooper cinza metálico — com a capota, retrovisores e listras laterais todas em vermelho.
Piso fundo.
Jogo a cabeça para trás ao recordar de uma cena hilária que me pegou desprevenida.
Usei a desculpa de que o capacete da obra me sufocava. Também… Como aguentar — sem retrucar — esse calor do verão capixaba? Os termômetros marcam trinta e oito graus, e ainda estamos no mês de dezembro!
Mentira deslavada? É claro que foi. Eu queria apenas fazer charme para Maurício.
— A senhorita não pode caminhar pela obra sem o equipamento de proteção — Maurício, com um sorriso larguíssimo, chamou a minha atenção e se virou para mim, os olhos faiscando de tesão.
Como nós pudemos suportar todo esse contato — mais de um ano se passou — sem uma saidinha básica? Ai, ai, ai! Só trocando olhares ávidos por um affair… Eu me abanei, clamando desesperadamente por um beijo ardente quando nós nos entreolhamos.
— Fique frio, porque eu não costumo ser azarada. — Pisquei charmosamente e ajeitei a franja para o lado, deixando à mostra as unhas longas e vermelhas. Maurício tocou minha mão com a sua mão áspera de calos. Ele deve pegar muito peso na malhação. Uma corrente elétrica percorreu minha espinha, trazendo um desejo urgente por ele.
Meu coração disparou como o de um estilista quando sobe ao palco e é ovacionado após apresentar sua nova coleção.
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O AFFAIR
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Para colocar em prática a cartada final do meu plano “agarrar o engenheiro enfeitiçador de mulheres”, eu caminhava em direção ao elevador do ateliê, lado a lado com a minha presa, quando uma prancha de madeira surgiu do nada e quase, veja bem, quase acertou a minha testa.
— Maldita! — vociferei, antes de desfalecer.
Segredinho: meu desmaio foi proposital, pois nem uma lasca da peça de madeira maciça tinha me atingido, apenas pareceu resvalar em mim quando o trabalhador da construção girou sobre os seus calcanhares para conversar com um colega de trabalho.
Eu disse que não era nem de longe azarada. Parecia até que eu havia apertado o controle remoto, e ele simplesmente congelou a imagem no instante exato em que milímetros me separaram do desastre total. A sorte realmente estava ao meu lado e me deu a deixa perfeita para uma encenação própria de uma atriz, diga-se de passagem, primorosa.
Lauren gritou e correu em minha direção, apressada. Maurício me tomou em seus braços truculentos no exato momento em que eu me joguei literalmente para cima do seu peitoral. É mais que óbvio que eu agiria dessa forma totalmente premeditada. Quem não me conhece que pense de maneira divergente.
— Mia! Prima! — Lauren se desesperou, gesticulando as mãos alvas e nervosas numa rapidez sem igual. Ela parecia uma louca desvairada. — Peguem gelo, rápido, e um vidro de álcool, por favor.
Os pedreiros correram, alucinados, esbarrando uns nos outros, desespero total, uma balbúrdia se instalou por mim imediatamente.
Maurício estava com os joelhos dobrados, encostados no chão, acariciando meu rosto e sussurrando o meu nome. Ui! Era tão prazeroso ficar daquele jeito, com o rosto aninhado em seu peito.
Que raiva!
Sinto-me encolerizada.
Num instinto perfeito, seguro o volante do meu carro, pisando no freio. Fala sério! Um idiota completo cruzou a avenida de uma pista a outra numa manobra arriscada. Simplesmente a Ranger Rover vermelha entrou desembestada na minha frente, tirando um fino do meu bebê. Bufo.
Voltando ao assunto “a ficada do dia”…
— Mia, volte a si. É Maurício quem fala — disse, dando batidinhas no meu rosto. Desviou seus dedos maliciosos em direção ao lóbulo da minha
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orelha, acariciando-a. Safadinho! Eu quase desatei a rir, mas não poderia entregar tão precocemente meu plano.
Eu sei, pensei, contendo os lábios para que eles não me denunciassem. E se eu fosse pega num ato leviano?
Poxa, uma encenaçãozinha para pegar o mocinho estonteante não iria me levar direto para o inferno, iria? Eu queria ser a mocinha que estava sendo salva das garras de um bandido violento. Mèrde! Como eu desejava por isso — o mais rápido possível —, mesmo considerando ser uma cena de um filme de faroeste barato.
Algodão com álcool roçava o meu nariz, abanos infindáveis de uma mão amiga — da minha prima — refrescavam meu rosto aparentemente febril. Decidi, então, que já era hora de abrir as pálpebras, que não estavam mais pesadas. Bisbilhotei vagarosamente o rosto de Maurício, e ele apresentava uma expressão tensa. Também pudera, a proprietária da edificação estava estendida parte no chão, parte no seu colo. Ui! Quase me abanei!
— Estou bem — balbuciei apenas essas duas curtas palavras com a voz molenga e pisquei para Lauren, após Maurício desviar o olhar para os pedreiros. Ele soltou um suspiro prolongado ao final da cena proposital.
— Cre-ti-na! — Lauren quase berrou ao meu ouvido, mas se conteve, apesar do rosto banhado de um vermelho indignado.
Dizem que eu sempre fui uma garota irrequieta, mas na verdade eu me considero alegre. Afinal, curtir a vida — com responsabilidade, eu sei — não faz mal a ninguém. Recuo quando me deparo com situações que eu possa ferrar com a minha reputação de estilista em ascensão no mundo fashion. Não sou tola! Ah! Pode apostar que não sou tão amalucada assim também. Sou apenas de bem com a vida!
Mas, contudo, entretanto, todavia… Ei! Nenhum desses conectivos adversativos poderiam me impedir de me colocar nos braços fortes do engenheiro Maurício. Joguei o maior charme para ele, pousei o dorso da mão em minha testa e gemi, choramingando:
— O que aconteceu? Ai! Minha cabeça dói.
Lauren volveu a cabeça para o lado depois de apertar os olhos, quase unindo as sobrancelhas, como quem diz: “Você é uma excelente atriz!”
Ahã! Eu sei que sou!
— É melhor que eu a leve para o meu escritório. Mia precisa descansar, e lá tem um confortável sofá. O susto foi grande. Coitada — disse ele com
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uma falsidade quase maior do que a minha. Maurício já havia percebido a armadilha, embora eu tenha mandado bem. Será que ele achou que eu também não havia entendido qual era a dele? — Depois, eu a acompanharei até sua sala. Ela precisa me dar as últimas coordenadas para que possamos finalizar a obra. — Maurício me ajeitou em seu colo, levantou-se cuidadosamente enquanto conversava com Lauren. Ainda bem que eu sou magra, apesar do meu um metro e setenta de altura.
Aninhei a cabeça entre o ombro e o pescoço dele.
Que perfume é este? Giorgio Armani? Hum! Acho que é o francês Kenzo, fragrância masculina amadeirada. Faz total sentido. Madeira, engenheiro… Analisei seu cheiro, aspirando a fragrância discretamente.
Maurício me espiou pelo canto dos olhos. Aconcheguei o rosto no dele, alisando meu nariz em sua pele macia. Eu me sentia meio hipnotizada pelo aroma másculo que foi captado pelas minhas narinas. Se antes eu estava interpretando com perfeição um desmaio nada casual, naquele momento eu quase desfaleci de verdade.
— É. Ela precisa se recompor mesmo. — Lauren moveu a cabeça para cima e para baixo, zombando da minha atitude. — Já que está tudo bem, posso ir, prima? Eu ainda preciso passar na redação do jornal. — Ela arregalou os olhos e expirou o ar com tamanha reprovação, que eu pude ouvi-lo ecoando no salão.
Confirmei o que Lauren disse com um balançar de cabeça tímido, afirmando a minha situação de vítima de um pedaço de madeira. É claro que eu não fiz oposição alguma, me permitindo ser levada nos braços de um deus grego que se apoderou definitivamente de sua Afrodite.
Maurício fechou a porta do escritório, unindo os meus lábios com os seus — finos, vermelhos, úmidos e sedentos de desejo por mim.
Suspirei!
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REMINISCÊNCIAS DO PASSADO
OUÇO O REFRÃO DE UMA MÚSICA DO MAROON 5.
Canto num tom alto. Levanto os dois braços e solto o volante, ao mesmo tempo em que entro no condomínio da Ilha do Frade, após virar no retorno em frente ao McDonald’s Percorro a ponte que liga uma ilha à outra.
O segurança, no interior da guarita branca da entrada do bairro, me fita, assustado. Com o som nas alturas, eu me remexo por inteira, tombando a cabeça de um lado para o outro.
Acelero o meu bebê, sigo em frente, pela rua Desembargador Alfredo Cabral, ainda berrando o refrão da música com tamanha euforia, que me esqueço completamente dos olhares questionadores das minhas vizinhas.
— Sugar. Yes, please. Won’t you come and put it down on me? Right here ‘cause I need. Little love and little sympathy.
Apesar de essa letra ser um tanto quanto melosa — levando-se em conta as minhas considerações sobre o amor —, a melodia tem um ritmo dançante. Eu gosto. O que é o amor? Deveria ser um arco-íris de satisfação, prazer, compreensão, cumplicidade, carinho e respeito. Sério? Isso existe mesmo? Retomo a direção e subo a ladeira, curvando o meu bebê para a direita.
Quando eu era adolescente, sonhava com o dia em que o garoto mais bonito da turma iria me pedir em namoro. Acordava de madrugada banhada em suor, me abanava, me abanava, me abanava, e voltava a dormir com um sorriso rasgado nos lábios.
Nas noites mal dormidas, olhando para a luminária pendente se movendo com a brisa do ventilador, eu via — como um filme que sempre passa na Sessão da Tarde — a cena do garoto me pedindo não apenas em
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namoro, mas também em casamento. É mole? Troca de alianças de ouro e tudo o mais acontecia. Que delírios eram aqueles?
Vocês conseguiriam me imaginar assim, vestida de noiva e prestes a caminhar pela passarela da igreja rumo ao altar e não de um desfile de modas?
Pois é, eu desejava que o pedido fosse feito assim, no dia do meu aniversário, logo nos primeiros minutos de um ano novo qualquer, assistindo à queima de fogos coloridos, abraçadinhos. Era como se a explosão de fogos de artifício no céu brindasse com taças cheias de uma bebida borbulhante a quente paixão, minha e do menino.
Zilhões de cenas românticas passavam e repassavam pela minha mente. Eu cheguei a ponto de me colocar no lugar das protagonistas das novelas Globais e me imaginar beijando os lábios do rapaz gente boa que me fazia arrepiar e arder de paixão apenas com um toque despretensioso dos dedos.
Eu me derretia toda por aqueles olhos azuis apaixonados!
Diminuo a velocidade do bebê prata. Entro na garagem do meu ateliê-casa, ao lado do jardim com bromélias e alguns cactos, e puxo o freio de mão. Recosto a cabeça no banco, cerrando os olhos, com o peito tremulando como a bandeira nacional. É assim que eu estou me sentindo, completamente perdida num tempo que nunca mais voltará.
Ah! Sentimentos saudosos brincam de pique-esconde com minha mente. Suspiro, meio infeliz. Lamento não ter me apaixonado mais por nenhum outro rapaz. Por mais que eu tenha todos os homens aos meus pés, não encontrei aquele que fizesse meu corpo se agitar num frenesi de emoções desencontradas e reencontradas. São apenas encontros casuais. Só isso! Só!
Forço-me a pescar o nosso primeiro beijo, lá no fundo das minhas lembranças, como se eu estivesse em um barco, no meio de um lago com águas cristalinas, desenrolando a linha do anzol mais comprido possível. Tanto tempo já se passou, mas veja bem, nosso beijo — meu e do Rogério — foi de dar água na boca.
Tamborilo os dedos no volante numa atitude despretensiosa. Ouço a melodia de Thinking Out Loud, do Ed Sheeran, e num sintoma muito saudoso, sinto a cabeça girar.
E não é que um belo dia o rapaz me pediu em namoro?
Era uma tarde de outono, num domingo tão preguiçoso quanto eu me sentia nesse dia, com uma chuva fina caindo sobre a ilha. Nós estávamos
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caminhando pelo jardim da casa da nossa vizinha, Sarah, trocando ideia sobre nosso futuro, quando revelei para o rapaz que iria estudar na Europa. Eu tinha apenas quinze anos de pura ambição quanto aos meus sonhos profissionais. Disso, eu não abriria mão jamais! Agiria da mesma forma se fosse atualmente. O rapaz loiro e com o peitoral começando a ser estruturado na malhação pesada das tardes rotineiras da academia riu na minha cara e disse que eu não teria peito para encarar sozinha uma aventura em outro continente. Eu acho que, devido às palavras dele, resolvi colocar silicone. Ele literalmente desdenhou de mim, e eu desembestei a falar:
— Você acha que alguém ou alguma coisa poderá me brecar? É claro que não. Eu sonho em ser estilista desde que minha mãe trocou a minha primeira fralda. Ou seja, desde que eu vim ao mundo, sabia? Por isso eu estudo francês e inglês há tantos anos. — Encarei-o, empinando o nariz o mais alto possível.
— Ah! Tá bom, Mily. Na primeira dificuldade que você tiver de enfrentar e perceber que está sozinha de tudo, tenho certeza que você virá correndo pro colinho da mamãe — ele me zoou, e até alterou o tom de sua voz, deixando-a mais aguda.
Meus lábios se tornam leves e receptivos a um discreto sorriso quando me recordo dessa cena. Minha face não se cansa de espelhar o que o meu coração sente no momento: saudade! Até hoje eu acho hilário me recordar daquele som agradável invadindo o meu ouvido.
Pouso a mão em minha orelha e aliso o brinco de brilhantes — um dos presentes de quinze anos que ganhei dos meus pais. Até isso está me fazendo viajar num tempo que não vai voltar mais.
Mesmo assim, eu permiti que ele pegasse a minha mão, me conduzisse por um caminho florido — com cheiro de hortênsias molhadas — até chegar próximo a um sofá, sob um gazebo à meia luz. Ah, o lugar era lindo! Era recoberto com madeira pintada de branco e cercado por vidro e cortinas de voil também brancas. Algumas orquídeas cor-de-rosa e champanhe davam o toque final ao charmoso local. Chiquérrimo!
O rapaz educado e romântico me chamava por um apelido que só ele ousava dizer: “Mily”. Pensa numa pessoa que odeia apelidos… Direcionados a mim, é claro. Segredinho: eu adoro apelidar os outros.
É, pode ser que eu quisesse jogar meu charme para ele, desafiando o rapaz que me deixava sem ação, sabe, sem chão algum. Sei lá! Eu encrespava
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assim mesmo com Rogério, esbravejando em qualquer lugar em que estivéssemos, e dizia assim: “Eu não sou Mily. O meu nome já é quase um apelido”. Luto para não esboçar mais uma vez um sorriso saudoso nos lábios, ainda com os olhos cerrados, ao avaliar a cena. Está sendo difícil evitar. Devo confessar que eu caía de quatro por Rogério quando ele me chamava daquele jeito. Meu corpo estremecia, mas eu aguentava firme para ele não desconfiar. Eu já fui melosa, um dia… Ah, e como fui!
Num romantismo de fazer inveja, o loiro me acomodou no sofá confortável. Acendeu as lamparinas uma a uma, numa lentidão de dar nos nervos, sem desviar um momento sequer seus olhos azuis-celestes dos meus, esmeralda. Gelei!
Pensa numa garota apaixonada sendo quase abocanhada pelo lobo mau… Eu não usava uma capa vermelha, nem estava com uma cesta em minhas mãos, mas esse foi o sentimento que repercutiu de imediato nas veias quando o sangue percorreu tão rapidamente, que fez meu rosto ruborizar. Tomei um susto quando percebi que eu gostava do rapaz mais do que poderia imaginar. Com um olhar penetrante, caminhou a passos lentíssimos em minha direção. Ele estava de sacanagem comigo, só podia ser. Por que tão a passos de tartaruga assim? Ele tinha de ser mais afoito e menos romântico. Entretanto, quando se sentou ao meu lado, eu não resisti e o agarrei de imediato. Vocês consideraram a hipótese de que eu iria esperar que o rapaz tomasse a iniciativa? É óbvio que não. Nem titubeei quando decidi segurar o rosto dele entre minhas mãos e puxá-lo para perto de mim, beijando-o alucinadamente ao final. Droga, eu necessitava com urgência descontar naqueles lábios as frustrações das minhas noites de expectativa. Foram um, dois, três, quatro… Sei lá quantos beijos molhados aconteceram num entrosamento perfeito de línguas e abrir e fechar de lábios. Era como se o fogo daquelas lamparinas tivesse se inflamado em meu interior. Foi bom demais!
Ainda aturdido com meu ímpeto nada romântico, bem diferente de sua atitude, o loiro cuspiu sinceridade pra cima de mim, mesmo que com uma expressão travessa:
— Mily, eu fiquei a fim de você desde o primeiro dia em que te vi.
Imagine, nossos pais são amigos desde que nascemos!
Assustei-me com a revelação. Bem, no mesmo instante em que rasguei o palavrão em pensamento, meu cérebro viajou em suposições contraditórias.
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“Como eu vou embora para a Europa e deixá-lo aqui? E como posso namorar um rapaz tão engomadinho assim, um mauricinho de primeira, apesar da minha família também ser careta? Eu sou mais descolada do que ele. É certo namorá-lo?”
Mas… não se iludam! O lobo mau emitia por aquela boca carnuda
— e o faz até hoje — muitos palavrões quando tinha seus acessos de raiva. A educação dele era mera fachada, dependendo da emoção do momento. Hum! Ele achava que me enganava!
Bons tempos aqueles… quando a inocência fazia parte da nossa vida e nós não encasquetávamos com nada! Agora, o tempo passou, as obrigações abocanharam nosso dia a dia como uma planta carnívora.
Hum! Expiro o ar úmido e salino da ilha, retirando do peito todas as recordações prazerosas dos momentos de ilusões.
Toc-Toc!
— O que é isso? — Abro os olhos e pulo para o lado em reação à batida firme de uma mão fechada no vidro do carro. Franzo a testa, e uma linha de pânico se forma.
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A SAUDOSA SURPRESA
UM SUSTO SE FEZ PRESENTE EM MEIO ÀS MINHAS DOCES RECORdações. É Rogério, o garoto loiro e de olhos azuis dos meus sonhos pueris.
O que ele está fazendo aqui?
Sinto-me confusa com a peça que o destino prega em mim.
No mesmo instante em que eu pensava no menino romântico, surge ao meu lado o “homem Rogério”, com os ombros largos e um metro e noventa de pura sensualidade. Dentista bem-sucedido, com um olhar ainda gentil, ele acaba com o meu equilíbrio.
Dissimulo meu constrangimento. Abro a porta do carro com um sorriso nos lábios, apesar de um olhar fuzilante, após tirar a chave da ignição.
— Rogério! Você me assustou! — Pouso a mão no peito e ajeito o vestido verde com um superdecote na altura dos seios.
— Não foi a minha intenção, Mily. — Ele gargalha e joga a cabeça para trás, com uma fisionomia relaxada, enquanto segura a bicicleta branca e preta, percorrendo com seu olhar minhas curvas sinuosas.
Com o ego nas alturas, tento parecer impassível, mesmo que seja impossível dissimular tanto assim — eu estou nervosa —, e balanço a chave preta do meu bebê entre os dedos.
— O que você está fazendo por essas bandas? — Aperto o botão do controle do carro com um único toque e tranco a porta.
— Mily, eu ainda sou seu vizinho. Você se esqueceu disso? — Rogério alisa a nuca e pigarreia. E sua expressão denuncia que, embora não tenhamos nos encontrado frente a frente até então, ele me espiona.
Seguro um riso e, em seguida, solto um suspiro.
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Minha nossa! Um jardim de pelos dourados brotou nesse corpo escultural nos últimos anos. Assim eu não aguento!
— Ah! Bem… eu me perdi no tempo e no espaço. — Raspo a garganta ao falar e movimento a cabeça de um lado para o outro. — Deixa pra lá…
— Agito a mão no ar.
— Felipe e Lauren mandaram um WhatsApp pedindo que eu os encontre na casa da sua tia Laura. Vai rolar um churrasco de aniversário dele.
Hã? Ele falou rolar? O sol escaldante do verão deve ter minado a consciência de Rogério.
— Caramba, é mesmo! Acabei de chegar da obra. Hoje tive que decidir alguns detalhes finais, tipo a compra dos últimos materiais de acabamento.
— Lanço um sorriso tímido, mas o suficiente para que minhas covinhas surgissem nos cantos da boca esculpida pelo batom nude. — Mas Felipe é meu primo. — Estalo a boca. — Estou bem cansada, mas vou ter que ir. Com a sobrancelha dourada arqueada, Rogério instintivamente acaricia uma de minhas covinhas e volta o olhar celestial novamente para meus olhos. Por ínfimos segundos, vasculho o rosto do loiro em busca de um sinal que denuncie um remember the times, talvez. Mas apenas uma ruga perturbadora se apresenta em sua testa, separando-nos de um precipício amoroso. Nós somos como água e vinho, ou o verão e o inverno, ou um tecido sedoso e outro áspero, ou, até mesmo, o céu e o inferno. O que eu estou tentando dizer é que com Rogério não dá pra ficar. Somos muito diferentes! Além disso, ele é noivo!
Murcho os ombros.
— Você tem energia de sobra para ir até lá — Rogério, num ímpeto tão semelhante ao primeiro, retira a mão do meu rosto rapidamente. Ele deve ter pensado na noiva. Rogério é um cara respeitador, é claro! O nome dessa ruga é nada mais nada menos que Beatriz.
— É, Rogério, eu sempre fui pilhada. — Esboço um sorriso debochado, abro a porta do carro novamente, firmando o joelho no banco para resgatar minha bolsa. Inclino-me em seguida.
— Ih! Vai começar com a implicância, Mily? — Ele empina o rosto, olhando para o teto. Hum! Eu o peguei no flagra. Ele estava tentando camuflar que não havia encarado o meu bumbum sob o vestido de seda.
Espalmo as mãos para ele e digo:
— Tá bom. Prometo que não vou zoar você. — Cruzo os dedos, escondido.
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— Eu vi você chegando e pensei em lhe pedir carona. Perco o fôlego. Eu não posso desgrudar os olhos das coxas volumosas de Rogério, mesmo que estejam quase totalmente encobertas pela bermuda. Sem querer perder o foco, mas já perdendo… Eu me imagino em um campo extenso onde cavalos viris correm em círculos pelo gramado. De repente, um homem, sedento de desejo por mim, me joga no chão, sob uma árvore frondosa que nos acolhe com sua sombra. Ele gruda seu corpo ao meu, retira a minha blusa com meu consentimento, beijando e mordiscando a pele dos seios até que encontre meus lábios frementes de desejo. Esse homem é Rogério, que cinge suas mãos em minha cintura e me toma com voluptuosidade.
— Mily! Você está me ouvindo? — Rogério recrudesce o tom de voz.
— Hã? — Recomponho-me e retorno para a órbita da Terra, temendo que ele descubra minha fragilidade. Fixo o olhar sem jeito em seus olhos.
— Ah! Sim. Rogério, err…
— Acho que a bateria arriou. — Ele ajeita o cabelo liso e esboça um sorriso sem jeito. — E levei a moto para uma revisão na concessionária.
Pisco uma vez.
— Beleza — reajo e o encaro com meus olhos cintilantes de saudades.
— Se você me esperar só um pouquinho. Eu preciso me trocar. — Ele faz que sim com a cabeça. — Eu vou fechar o portão da garagem. Tenho medo de alguém entrar aqui. Sabe, eu moro sozinha.
— Aqui há seguranças circulando por todo lado. Não acredito que isso aconteceria. — Rogério meneia a cabeça, escondendo as mãos nos bolsos da bermuda, enquanto eu acompanho seu movimento com meus olhos atentos.
Ui! Eu gosto de homens com mãos grandes.
Curto ouvir a voz grave que penetrou em meus ouvidos e que fez eriçar meus pelos. Solto um suspiro prolongado. Aperto o controle remoto da garagem, que estava dentro da minha bolsa.
— É, mas, como diz Cora, o seguro morreu de velho. — Sorrio para Rogério e dissimulo meus pensamentos inapropriados, ainda tentando fechar o portão. — Esse treco não funciona!
Com um toque de mão suave em meus dedos — apesar de serem compridos —, Rogério se apodera do controle e consegue o que eu tentei a todo custo fazer: fechar o portão com tamanha facilidade, que eu me surpreendo. Como assim?
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— É mais jeito do que força, Mily. Acho que a bateria está fraca. Você precisa trocar. — Rogério dá batidinhas leves no aparelho. Ele sempre foi assim, calmo, ponderado, paciente… São tantas as qualidades! Eu, por outro lado, sou afoita, dessas de se jogar em qualquer parada — menos drogas, Deus me livre! — por diversão. Eu invariavelmente procurava e ainda procuro homens mais, mais… Como vou dizer? Mais quentes ou ousados, se é que vocês me entendem. Se bem que os nossos beijos molhados de outrora não foram de se jogar fora, e meu coração já andou numa montanha-russa descontrolada quando curtimos um tempo juntos.
— Vamos entrar? — Sacudo a cabeça para não encasquetar com coisas do passado. Nós dois nunca daríamos certo juntos, não canso de me convencer dessa realidade.
— A Cora está aí? Estou com saudades dela.
— Com certeza, tá. Ela não me larga de jeito nenhum. Parece chiclete grudado no pé.
— Não fale assim dela — Rogério me recrimina. Fecho a porta com cuidado. Quando tento ser charmosa, dando um passo à frente… Ah! Não!
— O que é isso?! — grito, indignada, tentando esconder o que Rogério não pode ver.
— O que houve, Mily? — Rogério se assusta com a minha repentina reação e dá um passo à frente em minha direção.
— Não ouse se aproximar de mim. — Bloqueio a passagem com a minha mão espalmada, enquanto Rogério recua com a expressão abismada.
— E não me chame de Mily. — Mèrde!
— Porra, Mily! Eu só queria ajudar. Você é tão difícil às vezes.
Eu não falei? Ele tem a boca suja, como diria minha mãe. Rogério abre os braços, solta-os em seguida e estala as mãos nos quadris.
— Pare de ser implicante — ele completa.
O destino está brincando de roleta da sorte comigo. Eu joguei o dado sobre a mesa, a bolinha do jogo se encaixou no número da minha escolha, agarrando o prêmio ao final do dia: Maurício, é claro. Mas, neste exato momento, o meu vestido ficou preso na porta. Eu o puxei com tamanha força ao andar, que infelizmente rasgou. Uma fenda foi aberta bem no meio do meu traseiro. Um pedaço de seda francesa ficou presa na porta maldita do meu Mini Cooper.
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Ai! Eu quero chorar! Que azar! E na frente de Rogério!
— Não se aproxime — repito, apertando o tecido entre os dedos.
— Como eu posso te ajudar? — Rogério indaga, já refeito do impulso raivoso.
— Rogério, eu não quero cortar o seu barato, mas você não vai ter o gostinho de me ver seminua. Não, não, não. — Pisco para ele, retorno com o meu humor habitual além de balançar o dedo indicador.
— Ah! Entendi. — Ele sorri discretamente, e uma mancha da cor da bebida clássica dos verões, a Lagoa Vermelha, surge em seu rosto perfeito. Eu curto ver Rogério constrangido. Ele fica lin-do!
Nós caminhamos, um ao lado do outro, quer dizer, eu quase de frente para a lateral dele, dando pulinhos discretos para conseguir me movimentar — imagina a cena! —, até a porta que dá acesso à ampla sala. Seguro as duas partes do vestido em minha mão, quase fechando a parte traseira. Que vergonha! Como consegui ser charmosa desse jeito? Sem condições!
— Se você tiver sorte, pode ser que Cora tenha assado um bolo de chocolate.
— Hum! Aquele que só ela sabe fazer? — Rogério umedece os lábios, imaginando a calda de chocolate amargo com creme de leite.
Não faça isso! Se ele soubesse o perigo que corre, alisando os lábios com sua língua vermelhinha. É um desperdício estar comprometido!
— Pode ser… — Faço cara de suspense. Abro a porta com cuidado. Pretendo fazer uma surpresa para Cora, antes de tocar o braço de Rogério e puxá-lo para dentro de casa, sem largar a parte rasgada do vestido. Reviro os olhos, estressada.
— Cora. Cora. Co-ra! — Aumento alguns decibéis o tom de voz.
Lá vem ela. Seus quadris fartos balançam de um lado para o outro, a pele alva contrasta com os cabelos grisalhos, mais pretos do que brancos, recobertos por um lenço vermelho de bolinhas brancas — ela parece a Minnie —, e um gesticular de mãos próprio de uma verdadeira mãe italiana.
— Onde está o furacão? — Cora indaga, com a voz abalada.
— Bem aqui. — Rogério aponta para mim, mais especificamente para o topo da minha cabeça, enquanto fixa o olhar carinhoso no dela.
— Meu filho, que surpresa agradável! Que ventos o trazem em nossa casa? — Cora diz, surpresa, escondendo os lábios com suas mãos inchadas.
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Com uma alegria que transborda do coração, Cora recebe Rogério feliz da vida, com um abraço caloroso. Ela sempre foi assim, joga amor por onde passa, mas também é mandona quando quer ser. Bra-va!
A mulher com temperamento expansivo pode ser considerada a minha segunda mãe. Essa doce criatura veio trabalhar para os meus pais quando eu ainda estava no escurinho da barriga da minha mãe, desejando sair o quanto antes para começar a aprontar. Ops! Viver.
— Bom, eu não vou cortar o barato de vocês. Fiquem aí se lambendo. Eu vou me trocar. — Faço menção em caminhar até as escadas, ainda de lado, é claro. — Mas não vale falar mal de mim, hein? — Observo com um olhar duro e o dedo em riste.
— A minha menina está com ciúmes? — Cora me desafia enquanto se liberta dos braços de Rogério. Ela irremediavelmente me coloca em situações como esta. Ainda mais porque, quando eu era mais nova, caí na besteira de contar para Cora sobre os meus sentimentos por esse monumento que mais parece um irlandês.
— Ãrrã. Nossa! Eu morro de ciúmes de vocês dois juntos. — Pouso a mão esquerda na cintura e reviro os olhos. — Vê se conta outra piada mais engraçada, Cora. — Franzo o nariz para ela. Rogério sorri e estreita os olhos para mim.
Ele está me provocando… Volto a dizer, Rogério não sabe o perigo que está correndo.
— Rogério, feche os olhos e só abra quando eu mandar! — Ele me encara, pretendendo gargalhar, mas obedece sem pestanejar.
— Coitado! Por qual motivo o meu menino precisa fechar os olhos lindos que tem? — Cora pousa as mãos na cintura, numa atitude mandona.
— Você ainda não prestou atenção no meu vestido? Eu consegui rasgar o danado na porta do carro.
— Essa é a minha menina. Sempre aprontando. Menino Rogério, não ouse abrir os olhos.
— Pode deixar, Cora. Sou um cara respeitador — Rogério se defende e retruca no ato.
Até demais! Poderia ser menos.
Giro sobre o salto da sandália e caminho entre quatro poltronas Barcelona que formam um cantinho especial de fofocas para as minhas clientes enquanto aguardam a hora de serem atendidas pela estilista Mia Kylie.
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Desvio de uma mesa de centro e subo a escada finalmente, tilintando os saltos no piso de mármore Carrara.
— Rogério, pode abrir os olhos — aviso, após me inclinar.
— Vamos, meu menino. Eu vou servir um pedaço generoso do meu bolo para você se recordar do passado. — Rogério sorri para Cora e a segue em direção à cozinha, com as mãos nos bolsos, trocando ideia com a minha fofa mãezinha.
Fixo o olhar no belo homem que Rogério se transformou, o corpo sarado, o cabelo claro jogado de lado, o peitoral — Meu Deus! — cabeludo. E essas coxas grossas. Mas acima de tudo, ele continua muito gentil. Seu olhar diz tudo. Se eu contasse a Lauren toda a avaliação que acabei de fazer do Viking, ela tiraria sarro com a minha cara e diria: “É, Mia? Você fez a sua escolha, prima. Perdeu!”
Como eu pude ser tão imbecil? Agora o tempo passou.
Dou de ombros duas vezes, tamanha minha indignação Rogério sente meu olhar saudoso e talvez enigmático. Meus olhos sugam os dele com tanta intensidade, que ele vira o rosto para mim de imediato. Ih! Rogério me pegou no flagra. Essa não era a minha intenção.
Nós nos entreolhamos com um estreitar de olhos verdes e azuis simultâneos, sorrindo timidamente um para o outro, mas numa sincronia absurda de movimentos. É inegável que um encontro de emoções do passado nos envolve com doçura. Simples assim.
— Você veio nos visitar no dia certo, meu menino. Eu fiz aquele bolo de chocolate que você tanto comia quando vinha brincar com Mia e Nicholas. Você se lembra do corre-corre no gramado e dos banhos de piscina?
— Cora abre a porta de vidro. — No final do dia, vocês estavam mortos de fome e invadiam a minha cozinha. Eu batia com a colher de pau na mão da criança que tentasse enfiar o dedo na massa do bolo… — Ela gargalha, ainda narrando as histórias do passado. Cora finalmente entra na cozinha, fazendo sinal para ele a acompanhar.
Rogério foi o único rapaz que conseguiu chacoalhar meu coração, mas é tarde demais, ele é noivo agora. Dou de ombros e caminho rebolando pelo corredor afora até meu quarto, sem preocupação alguma em esconder o meu traseiro.
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