COPYRIGHT © 2022 MALU SIMÕES.
COPYRIGHT © 2023. ALLBOOK EDITORA.
Direção Editorial BEATRIZ SOARES
Preparação ALLBOOK EDITORA
Revisão
ANA PAULA REZENDE
Modelo FABIÁN CASTRO
Fotógrafa
LUANA ROCHA
Capa
REBECCA BARBOZA
Projeto gráfico e diagramação CRISTIANE | SAAVEDRA EDIÇÕES
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
Simões, Malu Mais que um match / Malu Simões. – 1. ed. – Rio de Janeiro: AllBook, 2023. 304 p.; 16 x 23 cm.
ISBN: 978-65-80455-55-3
1. Romance brasileiro I. Título.
23-141249
2023
PRODUZIDO NO BRASIL.
CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM
CDD 869.3
“
O segredo, querida Alice, é rodear-se de pessoas que te façam sorrir o coração. É então, que estarás no país das Maravilhas.”
Chapeleiro Maluco
Dedico a história do Sebastián e da Antonella aos que buscam a felicidade em sua forma mais pura.
EM TRINTA E UM DE MAIO DE 1999, NASCE A PRINCESA DA CELULOSE, ANTOnella Vivian Alencar Braga, filha do magnata Aurélio Alencar Braga e sua esposa, Vivian Laurinda Alencar Braga.
CORREM BOATOS DE QUE A PRINCESA DA CELULOSE DANÇARÁ A VALSA COM O Príncipe do Aço, Horácio Louzada Ramos, no tão aguardado aniversário de quinze anos. Será o indício de um futuro enlace entre as duas fortunas?
ANTONELLA VIVIAN ALENCAR BRAGA É VISTA COM HORÁCIO LOUZADA RAMOS em iate no mar de Búzios, junto com os pais do casal.
HORÁCIO LOUZADA RAMOS PEDE A MÃO DE ANTONELLA VIVIAN ALENCAR BRAGA ao futuro sogro, em festa organizada para trezentos convidados.
UM ESCÂNDALO. PRINCESA DA CELULOSE SOBE NA MESA ENQUANTO SE DIVERTE na discoteca mais badalada de São Paulo. Ao que tudo indica, estava alcoolizada. Onde estaria o seu noivo?
HORÁCIO LOUZADA RAMOS É VISTO SEM A COMPANHIA DA NOIVA ANTONELLA Vivian Alencar Braga em festa do empresário e amigo Júnior Barcelar. Será o fim do noivado de milhões?
ENFIM, O CASAMENTO MULTIMILIONÁRIO FOI MARCADO PARA A PRIMAVERA de 2022. O Príncipe do Aço e a Princesa da Celulose vão subir ao altar em cerimônia para quinhentos convidados.
CAPÍTULO 1
— HMMM, HUM.
— Quando você chegar ao hotel, me dê um toque, Antonella — suplicou Heloísa acima do burburinho do aeroporto, batucando os dedos de forma ritmada sobre o celular.
— Hum, hum.
Eu nem desejava ligar o aparelho naquela próxima semana. Aliás, se pudesse, simplesmente me enfiaria em um buraco até a última espécie da Terra dar seu suspiro derradeiro.
Dizem por aí que a felicidade não é deste mundo. Na real, não é mesmo. Mas eu precisava muito descobrir onde era esse lugar, porque olha… estava difícil, viu?
Talvez estivesse em algum outro planeta distante. Seria formidável embarcar em uma espaçonave e buscar extraterrestres mais amáveis do que os terráqueos. Ou talvez eu encontrasse essa tal felicidade somente nas linhas de livros e filmes de comédia romântica.
Era domingo e deveria ser um dia extraordinário. Deveria. Isso mesmo. Eu havia idealizado inúmeros sonhos futuros só na minha cabeça.
Mas a verdade é que minha vida estava uma tremenda bagunça.
— Tem certeza de que vai ficar bem?
— Hum, hum.
Eu iria me esconder. Não queria ser encontrada por ninguém, especialmente as conhecidas e os jornalistas, em particular por esses últimos; eles
não sabiam o meu paradeiro. A única certeza naquele momento, era que eu pretendia dar uma reviravolta em meu destino, aos vinte e três anos.
Esse pensamento vinha a todo instante na minha cabeça naquelas últimas vinte e quatro horas, até que acabei optando por cair dentro da mudança.
Eu que suportasse as consequências das minhas escolhas.
Então me calei. Permiti somente que o “hum, hum” escapasse dos meus lábios trêmulos de… emoção.
Uma pessoa sem o mínimo senso de direção passou por nós duas e carregou minha mala até ela desabar no chão.
— Deixa que eu pego! — minha amiga ia se antecipar, mas a impedi com a mão espalmada diante dos olhos arregalados. Ela fazia de tudo para acalmar meu estado de espírito.
Com o coração se preenchendo de ressentimento, tive de dar dois passos para resgatar a famigerada de nove mil, duzentos e cinquenta reais, toda em alumínio, que minha mãe havia insistido que eu aceitasse de presente para viajar com uma mala nova em folha. Nem com os meus mais sensatos argumentos de que o valor era muito alto, ela se comoveu.
— Disculpar — ouvi o sujeito dizer enquanto meus joelhos se dobravam.
— Desculpa. Desculpa — corrigi, irritada. — É assim que se fala em português.
— Desculpa. Não foi minha intenção.
Juro que se eu não estivesse irritada, consideraria o sotaque dele até que charmoso.
Preferi não encará-lo de frente e respondi com a cabeça oscilando para cima e para baixo, assim como meu coração batia chateado.
— Mais cuidado por onde anda — resolvi descarregar minha raiva nele enquanto firmava a alça.
Um calor perpassou meus poros quando minha pele captou o toque da mão dele, meio atrapalhada, raspando de leve nos meus dedos na tentativa de me ajudar a erguer a mala do chão.
— Já pedi desculpa — além de responder em tom baixíssimo, uma rajada de ar escapuliu em seguida dos lábios do carinha, com o qual eu havia entrado em um embate desnecessário. Creio que ouvi um “Que chica mas nerviosa”.
Passei o olhar de relance pelo rosto do homem e vi dois faróis em seu rosto, de tão claros que eram seus olhos. Foi impossível não reparar.
— Ok — pisquei.
De imediato, virei as costas para o desconhecido e retornei para me despedir da Heloísa, já que o sinal de áudio do aeroporto soou no alto-falante dizendo algo sobre o meu destino. Tudo bem que eu me senti uma completa mal-educada, o que certamente devia ter ficado evidente para ele. Eu estava muito irritada!
— Que homão!
— Nem vem, Heloísa. Você sabe muito bem que ontem eu literalmente corri no sentido oposto de um homem — falei com tom de advertência.
— Amiga, você não reparou nele como deveria. Ele parece o Chris Hemsworth.
— Tá louca? Nem de longe ele tem o corpo do Thor...
— Ah, então você deu uma boa espiada, é? Fiquei perplexa.
— Claro que não.
Heloísa me olhou desconfiada, com as pálpebras semicerradas. Gemi, indignada.
— Até parece que eu ia sair paquerando por aí, justo agora. Ainda mais um estrangeiro que deve estar somente a passeio no país. Ele abla espanhol, Helô.
— É disso que você precisa. Uma aventura.
Não me contive e olhei sobre os ombros. Tentei pescar um pouco da silhueta do tal homão, mas ele havia sumido do nosso campo de vista. Tudo bem. Melhor assim.
— Não estou te reconhecendo — voltei a conversar com ela. — Onde está a minha amiga romântica da época da faculdade? Você está me incentivando a olhar para um carinha depois de tudo o que aconteceu?
Baixei as pálpebras e somente vi a escuridão assim como meus sentimentos se encontravam num limbo sem data marcada para retornar à vida. Eu estava me esforçando para reagir a cada expiração e batida do coração.
— Não sei como você está conseguindo se manter controlada.
— Eu tinha que começar a escrever a história da minha vida com minhas próprias escolhas.
— Nossa! Essa frase é impactante — ela riu e eu a empurrei com um dedo em seu ombro, achando graça.
— Quer saber? Vou para o meu spa emocional.
Ouvi a voz feminina informando do embarque imediato para Fortaleza, em um claro sinal de que havia chegado a hora do meu martírio iniciar. Não que eu tivesse medo de avião, mas… Bem, é que a viagem dos meus sonhos se transformara em um fiasco antes mesmo de iniciar. Aliás, ela havia sido o motivo de muitos desentendimentos entre mim e, hum, um cara aí, desde o início do processo de escolha do lugar.
Heloísa fez um esforço tremendo para não friccionar os lábios, mania dela quando se sentia acuada ou entristecida. Logo reverteu um hábito para outro, levando as mechas platinadas para trás das orelhas, sinal de timidez. Eu a conhecia mais que as linhas das palmas das minhas mãos, e posso afirmar o mesmo sobre ela em relação a mim.
Sabe, Helô era uma amiga e tanto, tão fiel que, em solidariedade a mim, tentou reter seu tique nervoso somente para não deixar transparecer o quanto sofria junto comigo. Ela era, sim, a mais formidável amiga de todos os tempos. Desde o dia anterior minha BFF não saía do meu lado, nem um segundo sequer, após minha decisão de respirar novos ares.
E que situação havia sido aquela?!
Ao me lembrar do momento fatídico, meu estômago embrulhou. Nem sei como eu me encorajei a… soprei o ar em uma lufada longa. Então o inspirei em seguida tão profundo, que um chiado pôde ser ouvido a metros de distância no corredor apinhado de pessoas.
— Chegou a hora — revelei o óbvio à Heloísa. — Cuida bem das crianças enquanto eu estiver fora da cidade.
— Não pense nisso agora, muito menos durante sua estadia no resort maravilindo. Aproveita, amiga, curta bastante os dias de — ela pigarreou — folga.
Segurei o rio de lágrimas que queria trilhar meu rosto. Sem ela ao meu lado tudo teria sido muito mais difícil de suportar.
Com pesar, dei as costas a Heloísa e caminhei até a entrada da sala de embarque. Não sabia como seriam os dias de “folga” sem ela, meu ombro amigo, mas eu tinha de seguir em frente. Sozinha. Encarar meus fantasmas a partir do momento que passasse pela catraca era o mais certo a fazer. Respirei fundo.
É, não era todo dia que eu ia para a minha lua de mel, e sozinha.
CAPÍTULO 2
AI, MEU SENHOR!
Eu estava tão estressada e as pessoas não contribuíam para que eu me sentisse menos tensa.
Esfreguei a nuca três vezes.
Olhei para a linha de assentos e havia um indivíduo acomodado de um jeito largado, bem tranquilo na poltrona que deveria ser minha.
Uma senhora raspou a garganta, impaciente, atrás de mim. Certo. Quem deveria estar nervosinha era eu, mas tudo bem. Ao contrário do que eu havia afirmado para Heloísa, eu estava no meu limite. Faltava pouco para explodir. Assim sendo, sem fitar o rosto dela e contando mentalmente uma sequência numérica para conquistar um pouco de serenidade, eu me virei de lado, de forma que a senhora ganhou o espaço necessário para seguir pelo corredor estreito do avião. Pude ouvir ainda um chiado escapando dos lábios senis, mas eu tive respeito pelo cabelo esbranquiçado dela, assim como ele, o sujeito dorminhoco, poderia ter tido por mim se tivesse checado previamente onde iria se sentar.
Como ele conseguiu dormir tão rápido, sendo que mal embarcamos?
— Oi — dei um toque de leve no ombro sob uma camisa branca. — Você está no meu lugar.
Com um jeito preguiçoso, ele ergueu com dois dedos o boné que cobria os seus olhos, o suficiente para me encarar. Merda. Uma grande merda.
Por um instante, congelei. Pelo que meu cérebro me ofertava com a mísera imagem do saguão… Ah, não! Era justamente ele, o indivíduo assassino de malas e dotado dos olhos mais atraentes que eu já tinha visto. Agora, vou falar uma coisa bem objetiva: não sei por que geralmente esses homens inconvenientes costumam ser bonitos. Bem que a Heloísa estava com a razão. Ele era um deus da beleza. Os olhos vivos eram duas turmalinas verde-azuladas, nem sei dizer ao certo a perfeição daquelas íris que me fitavam como se o mundo não girasse e o avião não estivesse prestes a decolar. Eu estava na iminência de fuzilá-lo, numa fração de segundos antes e, hum, antes disso também.
Gostaria de ter reagido melhor, mas o reflexo do sorriso malicioso que se estendia na boca emoldurada por uma barba com fios platinados do… Sério! O homem era um galã de TV disfarçado de passageiro-turista-praiano. Só podia ser. E para ficar mais evidente o quanto era lindo, ele tirou o boné e mexeu no cabelo, levando os fios para trás, meio para um lado, os quais se moldaram espetacularmente no alto da cabeça.
Estreitei os lábios, surpresa.
Então, envergonhada, ou ganhando tempo para respirar, desci o olhar para o colar de couro com medalha prateada em seu peito, o que não foi muito inteligente da minha parte, pois as mangas curtas da blusa de malha nas laterais moldavam verdadeiros chamarizes musculares.
Fiz cara de paisagem, como se não houvesse notado o quão espetacular era aquele conjunto masculino, como se não o tivesse ignorado antes, como se meus joelhos não estivessem quase amolecendo com a encarada que ele me dava. E olha que foram meros segundos de análise — e deleite — da minha parte, ou talvez tenha avançado ao padrão do minuto. Ainda assim, foi o suficiente para eu ter a convicção de que deveria permanecer a poltronas de distância do indivíduo.
Homens geralmente não são confiáveis, ainda mais quando são donos de uma beleza ultrajante.
Para a minha conveniência – minto, mais sábio dizer para a minha sorte –a comissária fez o favor de me retirar do momento, diga-se de passagem, embaraçoso.
Ela enfim solicitou:
—Por favor, posso conferir os tickets de vocês?
— Claro — falei não tão empolgada.
Meu humor estava apenas sendo controlado, ainda mais após ter visto o sorriso “brejeirinho” que a comissária ofertava a ele, indicando que eu estava lascada, pois era evidente que ela o acobertaria. Será?
Segurei-me para não falar besteira. Eu estava uma pilha de nervos e era tudo culpa do meu ex-noivo. Minha boca estava irreconhecivelmente suja por causa da minha revolta e…vergonha.
Acabei soprando o ar, inconformada com a situação.
Ainda sem pronunciar uma palavra sequer, a criatura de olhos excêntricos, que se apresentava como um desvio do padrão de beleza de nós outros reles seres mortais, retirou o papel de embarque do bolso traseiro tão lentamente quanto sua atenção se movia vagarosamente pelo meu corpo.
— Hum, creio que a poltrona da senhorita seja a da janela — disse a aeromoça.
Mesmo assim, espichei o olho para o famigerado ticket na mão da comissária, dissimulando não estar tonta. Chequei o número do lugar no visor entre o bagageiro e a poltrona vazia da ponta. Comparei com o que estava registrado no bilhete de embarque. Aaah! Ela estava certa.
Em definitivo, minha cara rachou.
Por isso eu digo “malditos são os homens”. Creditei a conta da minha má avaliação ao Horácio. Por causa dele eu estava daquele jeito, pensando e repensando o que eu havia feito… Culpando-me!
Como reação, cerrei os olhos e engoli o que me restava de dignidade. E eu não iria chorar. De jeito nenhum. Chorar não cabia mais na minha vida. Eu tinha de seguir em frente e arcar com as consequências da minha escolha.
— Eu me confundi — acenei sem graça e me justifiquei com o óbvio, já que palavras coerentes pareciam ter voado da minha cabeça para o céu antes mesmo de o avião decolar.
Como o nosso cérebro nos coloca em armadilhas! Eu havia memorizado o número da poltrona do meu algoz como se fosse a minha.
Aquilo era a comprovação de que eu colocara o Horácio em primeiro lugar em minha vida, como se o casamento fosse me libertar das minhas aflições. Eu sairia do domínio da minha família para cair em outro. Onde eu estava com a cabeça?
Espera... Mas o que o carinha fazia sentado na poltrona que deveria ser do meu “marido”? Logo me ocorreu que eu não estava tão errada, porque eu mesma havia reservado os dois lugares.
Mas que se dane! Ele não vai aparecer mesmo. Guardei a fadiga da discussão no campo do esquecimento.
Sebastián
Foi impagável ver a expressão de confusão no rosto da moça. Não que eu tenha ficado feliz em vê-la se autopunindo depois de ter descoberto seu erro, mas achei suas expressões contrariadas muito… lindas.
Encolhi as pernas para ela passar, encarando a lindeza. Ela abandonou o ar de superior e forçou um sorriso para mim. Não me culpei por encarar o rosto, muito menos avaliar seus traços de ponta a ponta, embora tenha evitado sorrir. Seria provável que ela me achasse sarcástico. Vai saber… A mulher parecia uma chaleira apitando e eu não desejava me envolver em discussões. Hum, bem, de fato eu havia me sentado no lugar errado, mas a comissária tinha deixado passar.
Raspei a garganta enquanto avaliava como agir. Muitas vezes essas situações inesperadas caem de paraquedas para testar nosso autocontrole.
Minha noite anterior havia sido péssima e meus ouvidos não estavam abertos o suficiente para aceitar qualquer tipo de desaforo. Mas nem o sono que me consumia, nem a nervosinha ao meu lado, retiraria meu jeito pacífico. Era preferível agir como se nada houvesse acontecido e quebrar o mal-estar inicial. Talvez pudéssemos dar início a uma conversa mais saudável e acalmar os ânimos.
Melhor não. Na entrada do embarque, ela dera indícios de que não estava para brincadeira ao me ignorar quando esbarrei em sua mala. Assim que coloquei os olhos nela no avião, eu a reconheci. Mulher bonita não passava despercebida por mim.
Um segundo após ela sorrir, respirei o ar quente do avião. Direcionei o olhar para cima. Claro, as saídas do vento ainda não haviam sido abertas. Pensei em mexer nas comportas, mas se a moça não gostasse do vento certamente reclamaria em meu ouvido.
Resolvi checá-la de canto de olho e percebi que ela havia assumido a expressão séria outra vez. Talvez fosse melhor deixar quieto. Não conversar era seguro para a minha sanidade. Ainda que ela tivesse uma beleza incontestável, tinha um quê de mau humor. Era o que parecia. O cabelo longo jogado para um lado cobria parte do seu rosto, atitude declarada de “não quero papo”. Ainda por cima, logo que se sentou, recostou a cabeça no assento e fechou os olhos. Era certo que ela não queria conversa. Então resolvi ficar na minha e voltei com o boné ao rosto.
Paz. Era o que buscaria nas três horas e doze minutos que nos separava do Rio de Janeiro até o nosso destino.
CAPÍTULO 3
MEUS OUVIDOS NÃO CAPTURAVAM RUÍDO ALGUM AO MEU REDOR. A CONSCIÊNCIA flutuava como se eu estivesse sobrevoando o mar em um paraquedas sendo puxado por uma lancha. O corpo parecia um boneco inflável guiado pelo infinito afora.
O vento se partiu em dois caminhos ao cruzar meu rosto, a sensação era de liberdade total. Enquanto levitava, todas as responsabilidades precoces eram absorvidas pela natureza. Minha vida não havia sido um mar manso. Praticar esportes radicais me movia, fazia uma faxina mental. Viver num lugar paradisíaco facilitava muito as coisas para mim.
— Ai! — gemi sem entender o que acontecia; o boné deslizou para baixo, clareando a vista. Eu não sentia somente a dor na pele, mas a quentura de um filete de água escorrendo pelo canto da boca. Literalmente, eu estava babando. Abri os olhos e sequei a umidade do rosto. Sorte que minha cabeça não havia tombado para o lado e se aconchegado na clavícula da moça! Nem imagino qual seria a reação dela.
Demorei uns bons segundos para entender que as unhas afiadas da vizinha de poltrona haviam sido cravadas nas costas da minha mão. Que diabos estava acontecendo? Meu corpo descolou do assento e parecia que uma força me empurrava para cima. Se não fosse o cinto de segurança, nem sei…
Foi então que o entendimento chegou ao meu cérebro. O balanço instável da aeronave denunciava que passávamos por uma turbulência. Como
eu estava dormindo, não ouvi o alerta do piloto, bem como o sinal luminoso de “afivele o cinto” logo acima das nossas cabeças.
O avião sacudia e algumas pessoas gritavam, formando uma orquestra afinada de pavor, embora a sinfonia tenha causado dor em meus tímpanos, igual a que eu sentia na minha mão, tendo aquelas garras em mim. Sem ser indelicado, alterei a posição do nosso toque. Meus dedos tocaram a mão dela em uma demonstração de solidariedade e “sobrevivência”. Não precisava ser psicólogo para notar que a moça não estava cem por cento com as emoções em ordem, já que seu transtorno era mais intenso que dos outros passageiros, que também não estavam em seus equilíbrios perfeitos.
— Vai ficar tudo bem — consegui dizer sobre o tumulto de vozes, mas me arrependi logo em seguida.
— Como assim? Tudo bem? Nós vamos morrer! — ela gritou em pânico, fitando meus olhos.
Lá estava o mau humor da gata outra vez. A felina em seu momento de garras afiadas.
— Nós vamos sair dessa. Você vai ver.
Dei de ombros e me esforcei para me calar. Era mais seguro. Parecia que ela havia desenvolvido uma certa repulsa gratuita a mim. Resolver a situação inesperada escapava do nosso controle. Aguardar a chacoalhada parar e confiar nos pilotos era o máximo que poderíamos fazer naquele momento tenso. Apenas isso.
Soltei o ar com força, indignado.
Só que o avião deu um solavanco mais brusco, tanto que meu coração bateu forte. A mão dela segurou a minha como se fosse a boia de salvação de um possível… nem ouso dizer o que poderia ter acontecido naquela viagem. Meu pensamento foi todo direcionado para os anos que ainda pretendia viver, para as pessoas que dependiam de mim. Ainda assim, forcei meu cérebro a tentar lembrar como faria para retirar o assento e usá-lo caso o avião caísse no mar. Caso houvesse algum sobrevivente. Caso eu saísse ileso dessa.
Arrepiei-me.
Por que não damos importância às instruções das comissárias quando elas fazem as apresentações do kit de sobrevivência?
Arrependido, prendi a respiração e o ar estrangulou minha garganta.
Os dedos magros da moça se ajeitaram nos meus de forma que o aperto foi intenso. Hesitei por um tempo, eu não costumava permitir que alguém
me tocasse facilmente, mas naquela situação de extremo estresse, foi mais forte que eu. Então correspondi ao seu gesto.
— Vai ficar tudo bem — tornei a falar, tratando-a com respeito.
Para minha surpresa, ela abandonou a defensiva. Cobriu o rosto com as mãos e deitou a cabeça em meu peito. Foi instintivo aconchegá-la em um abraço, em uma mensagem de cumplicidade com seu temor.
É interessante como nessas horas a vida passa como um filme em nossa mente. Pensei em minha família, no meu pai, nas consequências dos atos dele para todos nós… Isso veio com naturalidade em minhas lembranças. Foi um misto de nostalgia e pavor. Vincular minha imagem à dele me causava repulsa.
— Eu não posso morrer agora. Não posso — ela soltou um murmúrio abafado, que mais pareceu uma catarse de sentimentos. Óbvio que era. Eu me controlava para não entrar em estado paranoico semelhante.
Mas tentei não pensar em mim, no que aconteceria comigo. A fragilidade da moça me tocou. Não sei realmente o motivo, mas a sensação de querer protegê-la se avolumou em mim de tal forma, que acariciei seu cabelo com aroma de rosas.
Acho que segundos após, como se uma mão invisível segurasse a aeronave, o movimento brusco foi interrompido. Assim mesmo, de repente. Embora o coração ainda estivesse batendo instável, a sensação de alívio pôde ser não somente sentida, mas ouvida em forma de suspiros por todo o avião.
Olhei pelo mínimo espaço da janela e o breu do lado de fora parecia nos engolir.
Quando a moça caiu em si, raspou a garganta e ajeitou o corpo em seu assento. Embolou o cabelo em uma mecha única na mão e a enrolou, enrolou e enrolou… Fiquei tonto somente de ver a cena ao meu lado. Por fim, ela se acalmou após o silêncio esperado. Todos encontrávamos o ritmo correto da respiração.
— Desculpe — ela apontou para o meu peito antes preenchido pelo seu lindo rosto.
— Sem problemas.
Eu me recompus no assento e busquei com o olhar onde o boné estava. Ele havia caído no chão. Então inclinei o corpo para pegá-lo e quando retornei, ela encarava a janela em uma mensagem repetitiva de que preferia ficar quieta.
Certo.
Antonella
Saí de fininho do avião assim que as portas foram abertas. Passei o restante do tempo da viagem fazendo uma força tremenda para dissimular meu interesse, como se estivesse vendo algo muito bacana do lado de fora, no breu do céu noturno. Isso porque a consciência me alertara de que eu não me comportava de forma coerente ao lado do galã de olhos lindos. Era facinho listar os furos:
1. Havia sido mal-educada quando ele esbarrou na minha mala.
2. Tinha apontado um possível erro dele, que no final eu estava apenas “meio” certa.
3. Havia me comportado como criança que busca a proteção do pai, ao enfiar meu rosto no peito atlético dele.
Fiquei chocada com minhas atitudes. Não que eu fosse admitir a ele em voz alta que eu estava me punindo, mas quando a consciência grita, ah, a dor da culpa é pior que palavras e ações praticadas no momento da explosão. Eu sabia muito bem o que era ter alguém na família sinônimo de pavio curto. Daí vinha a minha subserviência ao meu pai, fazendo o que ele “sugeria” como o melhor para mim, como se eu não tivesse voz ativa e sentimentos.
Eu não possuía comando sobre mim mesma.
Distraída, punindo-me o suficiente para o resto da minha vida, encolhi os ombros ao ouvir a voz arrastada no sotaque espanhol.
— Hola!
Não. Era. Possível.
A visão periférica me dava a perfeita noção de que ele era um palmo mais alto que eu, arrisco dizer. Sentado, não havia notado, ou melhor, eu não conseguia encará-lo.
Assim permaneci, evitando sua existência. Fitar os olhos divinos, que foram concedidos a ele como bônus genético, era me afundar em águas desconhecidas. Logo, tentei restringir minha atenção somente para a esteira girando diante de mim, mas acabou sendo mais forte do que eu e resolvi provocar.
— Você tem algum tipo de faro específico para me encontrar? — indaguei ainda fitando a esteira, torcendo para que a minha mala surgisse após atravessar a cortina de tiras verticais.
— Um faro que funciona somente para mulheres bonitas.
— Essa foi previsível demais.
— Foi? Pensei que teria êxito.
Ele caiu na gargalhada, atitude que me fustigou. Seus dentes eram cintilantes, assim como os olhos.
— Eu sei que você pode encontrar uma cantada melhor no seu repertório de conquista — respondi com um sorriso irônico.
Então eu o encarei. Foi o erro dos erros. Aquelas duas contas claras seguraram meus olhos e pareceram me hipnotizar. Por mais que eu fizesse força para piscar e sair do estado lamentável em que me encontrava, parecia que existia um campo de atração que me impulsionava a olhá-lo, a examinar com minúcia o rosto em questão.
— Você é divertida — ele falou.
Foi a deixa perfeita para eu escapar da inércia que me atordoara pela segunda vez diante dele. Algo acontecia em mim quando ele segurava meu olhar com o dele. Era como se um fio de prata unisse nossas vistas.
Consegui afugentar a visão esotérica que meu cérebro evocava. Fio de prata? Eu estava enlouquecendo. Devia ser o sono atrasado acabando com meu raciocínio. A exaustão estava por um milímetro para me alcançar fisicamente, porque o emocional...
— Se você quiser me enxergar assim.
— De forma excêntrica? Não sei que palavra no português seria mais adequada. Não me interprete mal.
— Ah. Você quis dizer pilhada? — ele franziu o cenho. — Seria melhor agitada? Louca?
Rodei as órbitas dos olhos e ele aumentou sua gargalhada.
— Não disse que você é divertida?
Até que eu, finalmente, consegui abrir um sorriso menos desconfiado para ele.
No instante seguinte, desviei o olhar para a esteira e não acreditei no que vi. Chocada, mais uma vez, eu encarei a minha mala de nove mil e tantos reais. Em definitivo, o universo estava de sacanagem comigo. Não havia outra explicação para definir minhas últimas vinte e quatro horas.
O mau humor continuava cravado em mim tanto quanto a má sorte. Pelo amor de Deus! Se houvesse uma Arca de Noé dos tempos modernos, que salvasse a espécie humana de uma enchente provocada pela dissolução das geleiras dos polos, motivada pelo aquecimento global, com certeza ela me esqueceria solitária, me afogando nas águas congelantes.
Isso deve ser maldição do Horácio!
Fechei os olhos, tentando me encorajar a enfrentar a vergonha que vinha em minha direção. Em um primeiro momento pensei em pegar a mala e sair de fininho, mas era impossível. Deixá-la rodar até os passageiros sumirem do meu entorno era a mais sensata opção.
Ao lado do homem bonito pra cacete, eu passava vergonha uma atrás da outra. Além do meu estômago embrulhar a cada vez que constatava os vexames subsequentes.
Então, por opção, a mala seguiu seu destino de girar e girar. Vi um a um retirando seus pertences da esteira, menos ele.
Com o canto do olho, constatei que o artista-de-dentes-brancos me examinava.
— Ficamos apenas nós dois. Acho que fui premiado com a mala extraviada. Só há uma agora — inibindo um sorriso, ele apontou para a famigerada.
Sorri amarelo para ele e voltei a olhar o meu martírio.
Juro que forcei o cérebro a entender o que havia acontecido para ela estar completamente aberta. Não consegui identificar o motivo. Eu somente via os conjuntos de sutiã e calcinha sensuais numa aba e as roupas, talvez em menor quantidade, na outra.
Cerrei os olhos.
— Eu gostei daquele azul.
— Hã?
— O conjunto azul — o nariz afilado se espichou para a esteira rolante. As mãos nos bolsos, como se ele fosse o homem mais tímido do planeta, não condizia com o sorriso malicioso. A timidez passava longe do seu jeito charmoso, como eu havia notado até então.
Meu raciocínio estava tão lento, que eu não fazia ideia do que ele falava. Até que a compreensão caiu sobre mim na mesma proporção que as bochechas rosaram.
Meu. Deus.
— Ahhh!
— A propósito, meu nome é Sebastián. Completamente embaraçada, alternei o olhar da mala para ele e forcei um sorriso.
— Antonella.