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1ª EDIÇÃO – 2022 RIO DE JANEIRO
COPYRIGHT © 2022 MALU SIMÕES.
COPYRIGHT © 2022. ALLBOOK EDITORA.
Direção Editorial
BEATRIZ SOARES
Preparação
ALLBOOK EDITORA
Revisão
ALLINE CASTILHO
Modelo
ANDREA PRETI
Capa
BARBARA DAMETO e FLAVIO FRANCISCO
Projeto gráfico e diagramação
CRISTIANE | SAAVEDRA EDIÇÕES
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439
S615d
Simões, Malu
Depois do primeiro olhar / Malu Simões. – 1. ed. – Rio de Janeiro: AllBook, 2022. 408 p.; 16 x 23 cm.
ISBN: 978-65-80455-35-5
1. Romance brasileiro. I. Título.
22-79244
2022
PRODUZIDO NO BRASIL.
CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM
CDD 869.3
CDU: 82-31(81)
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Ao Pedro, à Marylena e ao Lamartine — pai, mãe e tio —, os pontinhos de luz que cintilam a minha existência.
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PRÓ l O G O
Foi assim que tudo começou…
Fontana di Trevi — Itália
O céu de um azul intenso e com apenas algumas nuvens esparsas permitia que os raios de sol pincelassem de luz a grandiosa fonte. Senti-me emocionada. Sequei uma lágrima que brotou dos meus olhos maravilhados com o que viam: um monumento com vinte metros de largura e vinte e seis de altura e que harmonizava perfeitamente com o Palazzo Poli ao fundo.
Aspirei o ar quente com força e o segurei em meus pulmões, que se inflaram de alegria naquele dia em que o sol havia se instalado no alto e atraía os turistas para a borda da fonte.
À medida que eu me aproximava da imagem, ela se abria aos meus olhos, e eu podia sentir a energia permeada de um romantismo latente. Céus! Arfei e suspirei em meio ao meu contentamento, enquanto os olhos reluziam de admiração pela obra esplendorosa do barroco italiano.
Ainda havia o som crescente das águas que efluía das pedras. A sonância emanava das cascatas e penetrava como uma música em meus ouvidos, fazendo vibrar as cordas do meu coração.
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Tornei a olhar com simpatia tudo à minha volta.
Ai, meu Pai! Este lugar tem mesmo uma atmosfera mágica! No instante seguinte, saquei a câmera fotográfica da bolsa e cliquei algumas fotos… minto, várias delas, de todos os ângulos possíveis. Eu não poderia, em hipótese alguma, descartar a chance de levar comigo para o Brasil as lembranças desse momento especial, tão planejado e esperado durante meses, mesmo que minhas mãos estivessem trêmulas e o meu coração retumbasse de alegria em meu peito.
Cerrei os olhos e abaixei as mãos, após conferir mais uma vez o monumento através da lente da câmera. Permiti que a máquina ficasse pendurada por uma corda fina que circundava meu pescoço. Aspirei profundamente o ar italiano, que remetia aos antepassados de minha família, os Canetti.
— A história da Fontana di Trevi remonta à época da Roma antiga — alguém dizia ao meu lado. Abri os olhos azuis e desviei meu olhar da fonte para a guia turística que vestia uma blusa vermelha com a bandeira da Itália serigrafada em seu centro. — Naquele tempo, ela se situava no cruzamento de três ruas onde se formava um trivium e marcava o ponto terminal do aqueduto Acqua Vergine, um dos mais antigos abastecedores de água de Roma, obra encomendada pelo Imperador Otávio Augusto. Venham comigo.
— A senhora simpática, que falava em português com um sotaque italiano carregado, fez sinal para que nós a acompanhássemos.
Segui o fluxo dos turistas e desci os degraus que nos permitiam ficar mais próximos da fonte barroca, fitando a estátua de Netuno sobre uma grande concha; cavalos-marinhos a carregavam além de dois Tritões, era um luxo de escultura idealizada por Pietro Bracci.
Cliquei mais uma imagem e me senti encantada, para não dizer no céu. Era como se os meus pés se desprendessem do chão, e eu flutuasse, tamanha a minha satisfação. Eu estava pisando no solo dos ancestrais de minha família.
— O cavalo-marinho da direita é o manso, e o da esquerda o mais agitado — disse a guia loira, puxando a borda do seu colete verde para baixo.
— E aquelas esculturas que estão ladeando Netuno? — indagou um senhor estiloso usando um chapéu-panamá.
Firmei meu olhar nas esculturas e me recordei da minha avó, o meu peito afundou de saudades da dona Bárbara, já que eu estava longe de casa há quase um mês. Ela sabia todos os detalhes possíveis e inimagináveis sobre a Fontana di Trevi. Então é lógico que eu identifiquei de cara que a
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escultura da esquerda era a alegoria feminina da Abundância, enquanto à direita estava a da Salubridade.
— Ambas as estátuas foram esculpidas por Filippo della Valle. Um sorriso se formou satisfeito em meu rosto, pois eu havia identificado os pormenores do monumento conforme a minha nonna dizia. O celular tilintou em minha bolsa. Eu o alcancei e vi no ato que era uma mensagem do WhatsApp, a luz verde piscava na borda do aparelho. Era alguém do Brasil. Eu sabia que sim. Por coincidência, como se a minha nonna lesse os meus pensamentos, era ela que me chamava. A nossa afinidade era tanta que, mesmo de longe, nossos pensamentos estavam conectados.
Nonna: Gulha
Hã? Eu não entendia o que ela havia digitado.
Nonna: Fulha
Acho que ela queria dizer filha. Sorri da dificuldade da minha nonna em digitar uma simples mensagem. Eu a presenteei com um aparelho celular Androide, mas, definitivamente, eu não tinha certeza se havia feito a coisa certa. O humor dela se alterava quando tentava enviar um chamado, mesmo que fosse de uma única linha composta de palavras pequenas.
Nonna: Não consigo digirar.
De repente, do meu celular escapuliu o toque da chamada de conversa do WhatsApp.
— Nonna, eu estou na Fontan… — fui interrompida pela voz angustiada de minha avó ao longe, mas não tão inaudível para mim.
— Luigi, eu não consigo falar com a Mari. Eu quero saber se ela está bem e se já visitou a Fontana. — Ela falava com o meu primo. Eu ouvia seus passos decididos caminhando pela cantina italiana, em São Paulo. Eu podia até imaginar que as pantufas vermelhas cobriam os seus pés.
— Nonna, eu estou aqui. Fala ao celular — eu tentava ser ouvida.
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— Eu estou ouvindo a voz da Marília. Não consigo mexer com esse tal de WhatsApp.
— Tia, você fez uma ligação para ela. Fale aqui — dizia meu primo com a voz paciente.
— Nonna, eu estou na linha — enfatizei.
— Aaaaah! Desisto de ser moderna. Luigi, liga para Mari, por favor.
— Mas, tia... — Meu primo quase gemeu.
— Se você não quer ajudar, rapaz, diga logo. — A minha avó se exacerbou. Coitado! A ligação morreu ao final da frase da reprimenda indevida de dona Bárbara.
Balancei a cabeça em negativa, lamentando não ter dito à matriarca da família que eu estava diante da Fontana di Trevi, lugar tão comentado por ela e palco da cena romântica do filme La Dolce Vita, contracenada por Marcello Mastroianni e Anita Ekberg Minha nonna assistiu a esse filme do cineasta Federico Fellini incontáveis vezes.
— Diz a lenda que aquele grande vaso esculpido sobre o muro, na esquina com a rua Stamperia, foi posto ali por Nicola Salvi, o arquiteto que projetou a fonte, com o propósito de não permitir que o barbeiro, que tinha uma loja nos arredores, o confrontasse diariamente, como havia feito durante um bom tempo — explicou a guia para o grupo.
— Hum! O tal barbeiro retirava toda a concentração de Nicola Salvi. É isso? — Uma adolescente com ar intelectual solicitou confirmação à guia, erguendo-se nos pés para ser vista.
— Ah, sim! Ele o tirava do sério também — corroborou a guia, multiplicando-se em gentilezas. Ela ajeitou, por fim, a caneta sobre a prancheta. — Esse é o famoso Asso di Coppe. Para vocês, brasileiros, Ás de Copas. — Acho que ela marcava em seu roteiro o que dizia ao grupo.
Joguei o celular na bolsa. Eu ainda ouvia as explanações da senhora sobre os pormenores do entorno da fonte, quando senti o toque de uma mão em meu braço. Pulei no ato, girando o rosto para o lado, o meu cabelo loiro e comprido dançou às costas.
— Que susto, Lorena!
— Amiga, tá vendo aqueles gatinhos italianos ali? — Lorena esticou o nariz na direção dos dois rapazes. Não eram de se jogar fora.
— Ai, que susto, Lô! Hum! Sim.
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— Eles chamaram a gente para comer uma pizza. — Lorena ascendeu uma sobrancelha em súplica, ajeitando a cabeleira castanha lisa e farta para a frente dos ombros.
— Ah, não! Não, não, não — mexi o indicador em negativa, alargando os olhos, com as mãos na cintura, enquanto Lorena soltava um muxoxo. — Já basta o português que a senhorita jogou para cima de mim só para ficar com o amigo dele em Veneza. Eu tenho namorado, Lorena.
— Ah, para, vai! — Minha amiga empurrou de leve o meu ombro com um dos seus dedos. — Ele bem que era um cara boa-pinta. — Tive que rir da expressão zombeteira que ela fez, seus olhos diziam tudo.
— Lô, volto a dizer… meu Senhor, me ouça, eu tenho namorado!
— A morena revirou os olhos. Ela não gostava nem um pouco de Murilo.
— Além disso, eu quero curtir o meu último dia na Europa, jogar minha moedinha na fonte e fazer o meu pedido. — Pisquei para ela, que sustentava um olhar decepcionado em seu rosto fino e comprido.
— Ok. Ok. — Quantas expressões de insatisfação eclodiram em seu rosto! Mesmo assim, ela recuou. — Você tem razão. Vamos curtir o nosso último dia sem homem algum na nossa cola. Vai ser divertido também, amiga. Fiz que sim com a cabeça, sentindo um alívio crescer em meu peito. Eu queria apenas caminhar pelas ruas de Roma, ouvir a língua italiana nativa e puríssima, além de avaliar os monumentos da cidade com aquele olhar clínico de arquiteta, sem os devaneios masculinos de minha amiga. Simples como a lenda da Fontanina degli Innamorati que a guia proferia. Voltei minha atenção para ela e esqueci por um átimo de segundo que Lorena estava ao meu lado, o suficiente para que ela fosse ao encontro dos ragazzi.
— ... essa lenda diz que a magia daquela pequena fonte assegura que, se os casais apaixonados beberem juntos da água que jorra ali — disse e apontou para onde a fonte estava localizada, próxima à escultura do Às de Copas —, a fidelidade será eterna um com o outro.
Ah, Murilo! Por que você não está aqui comigo? Era o que eu mais fazia na Itália: suspirar, suspirar, suspirar. Também pudera, como não agasalhar as vibrações romanescas dessa construção e de suas histórias reais mescladas com as fantasiosas? Ah, mas eu não me importava se eram crendices ou verdades absolutas, já que a magia tocava o meu coração. Então alcancei uma moeda no bolso da bermuda caqui e remexi a cabeça, permitindo que o cabelo formasse uma cortina dourada sobre a blusa de malha branca básica.
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Afastei-me do grupo e me posicionei rente à mureta baixa da fonte. Dei as costas ao monumento, como amestrava a lenda, cerrei os olhos e segurei o pequeno e circular metal entre os dedos. Cruzei o peito com o braço e joguei a moeda por sobre os ombros, mentalizando que a fonte me brindasse com o retorno a Roma.
No segundo seguinte, ouvi a moeda afundar na água milagrosa. Bom, dizem que o turista, ou qualquer outra pessoa, pode jogar a segunda moeda para casar com um italiano ou italiana. Eu nem pensava em pedir um namorado, como tantas outras mulheres, já que eu tinha o meu Murilo há um ano. Nem pensava em me tornar rica. O que eu desejava com todas as minhas forças era ser feliz. Era apenas um desejo singelo, embora fosse sincero. Ah, e a fonte me atenderia, não é?
Então firmei meu pensamento no segundo desejo que faria quando lançasse a moeda e ela afundasse nas águas acolhedoras de sonhos e desejos.
Um, dois… — contei em minha mente e elevei o antebraço, o cotovelo dobrado, o meu coração palpitava num ritmo esperançoso. Aspirei fundo e… — três. — Era o movimento tão esperado após um mês de viagem, os olhos ainda fechados, a esperança me rondando.
Como um carro desgovernado, senti uma massa humana colidir contra mim. A minha mão afrouxou o movimento, eu abri os olhos expandidos com o susto do choque, no mesmo instante em que vi o chão se aproximando de mim. O movimento com a mão enfraqueceu, perdi o controle de minhas ações, os meus ouvidos se aguçaram.
Plim! Plim! Plim!
O metal encontrou o chão, assim como minhas nádegas e mãos. As costas resvalaram na mureta do entorno das águas que receberiam a moeda bendita.
— Aaaiii! — soltei um uivo não apenas pela dor da ardência que senti, mas também devido à decepção que corroeu o meu peito ansioso e se avolumou dentro de mim. Era para ter sido um momento precioso em minha vida. Elevei a cabeça. O que pude ver foi um rosto assombreado pelo halo da luz do sol ao seu redor, embora eu tenha notado uns olhos cor de mel torturados pela vergonha e as mãos apoiadas sobre os joelhos flexionados, além da camisa polo azul-marinho Ralph Lauren.
— Scusa. — Uma voz irritantemente rouca pedia-me desculpas em italiano, ecoando como uma bomba no interior do meu corpo, aniquilando as minhas esperanças.
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— Droga! O que foi isso?
Ele me avaliou por um segundo.
— Você está bem? Desculpe-me, eu tropecei no pé de outra pessoa e…
— interrompi o mauricinho com os dentes tão alvos como a sua bermuda.
Aaahhh, ele era brasileiro, logo, entenderia a avalanche de palavras de revolta que eu desabaria sobre ele. Beleza! Então comecei:
— Não o desculpo nem no último suspiro de minha vida — disse. — Ouviu bem? Você tem noção do que fez? — eu me recompus, aprumei meu corpo e comecei a resgatar com movimentos rápidos os meus pertences que se espalharam pelo chão de pedra. — Eu espero por esse momento há anos.
— Vai me dizer que uma mulher tão bonita como você acredita numa balela de uma moedinha? — Capturei um riso irônico. Ele devolveu para mim um pacote de camisinha que havia pegado do chão.
Meu Deus! Eu juro que cogitei a hipótese de afogar Lorena nas águas cristalinas daquela fonte. A minha amiga havia colocado o embrulho preto com letras douradas no meio das minhas coisas sem que eu percebesse, mesmo que eu houvesse dito a ela que eu não me envolveria com nenhum homem durante a viagem. Eu não seria promíscua a ponto de, tendo um namorado, ficar com outro cara!
Com o rosto afogueado, uma gota de suor fez o percurso da testa ao chão. Retirei com pressa o meu suposto pertence da mão do atrevido e o joguei com força na bolsa, não sem antes espremer os olhos numa reação incontida, quando o brilho do colar prateado do cara cintilou em meu rosto, irritando minha visão.
— Não lhe interessa. — Não resisti a responder-lhe com aspereza, enquanto ele mirava meus olhos sem pestanejar.
— Você é sempre assim tão esquentadinha? — disse o cara de cabelos lisos e fartos, penteados para o lado. Possuidor de um nariz fino e comprido como de alguns italianos que nos rodeavam, em meio a uma expressão sensual, ele continuava me encarando.
Hãããã?
— Vai… — pigarreei para não o xingar — catar moedas pelo chão.
— Debati e caminhei sem olhar para trás, captando ainda uma risada debochada que voou direto para os meus ouvidos ardidos de raiva.
— Ei! Em que hotel você está hospedada? — ele perguntou.
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Bufei. Estanquei. Um calor de indignação irradiou da cabeça até as extremidades dos dedos dos pés. Ah! Eu não titubeei em virar as costas para o moreno provocador, mostrando-lhe o dorso de minha mão no meu estilo “ah, vá!”.
Após algumas passadas pesadas, ainda sentindo o meu corpo febril de raiva, encontrei Lorena com as mãos em conchas recheadas de moedas.
— O que você está fazendo?
— Ué? Vou arremessar todas essas moedas na fonte e pedir que a minha cara-metade apareça o mais breve possível. — Ela estalou a boca.
— Basta uma moeda, Lô — disse em meio a uma gargalhada ao me deparar com a careta que Lorena fazia. Só minha amiga para reverter o meu estado de ira.
— Mari, a coisa tá feia. Acho que nem se eu jogar um carro-forte de moedas, eu vou esbarrar com o meu príncipe encantado.
— Você tem um bem próximo de você. É só dar uma chance a ele — eu a desafiei.
— Ah, tá! O príncipe por acaso é tipo o seu primo? — Lorena indagou, mexendo as mãos fechadas no vazio do ar do verão italiano.
— Hum-hum! — Balancei a cabeça em afirmação.
— É melhor eu jogar um avião-forte inteiro de moedas para encontrar o meu príncipe, então. Pega uma moedinha aqui. — Lorena estendeu o braço e sacudiu a mão para mim. Eu não me fiz de rogada, escolhendo uma delas, é claro. Nós nos posicionamos de costas para a fonte. — No três, Mari.
— Pode ser no dois? — Voltei meu olhar para ela. Era mais que certo que a minha amiga não entenderia o meu pedido, embora tenha aceitado a minha sugestão. — Três pode dar azar se alguém trombar conosco. Sei lá! — Dei de ombros.
— Ai, Mari. Você e suas superstições — ela sacudiu a cabeça, sorrindo.
— Pode ser. — Olhou para a frente e cerrou os olhos. — Prepare-se. Um…
— Lorena inclinou e levantou o braço junto com o seu corpo que retornava ao eixo. — E lá vão elas! Dois…
Uma chuva de metais finalmente encontrou as águas mágicas da fonte.
Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Ploc! Nós nos abraçamos afetuosas como duas amigas que éramos.
— Mari, prometa que você será sempre a minha amiga-irmã — Lorena, toda emocionada, disse com lágrimas banhando seus olhos.
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— Claro que sim, amiga. Nada irá nos separar. Eu vou ser a madrinha do seu filho, e você do meu. — Caminhamos ao redor da fonte, traçando a nossa cumplicidade.
— Vamos fazer um pacto? — Lorena sugeriu, olhando para Netuno, e eu anuí com ela. — De sempre fazermos o que é melhor para a outra e dizer a verdade, não importa se doer.
— Combinado! — Dei uma batidinha no quadril de Lorena com o meu. Ela retribuiu no mesmo instante o meu ato. — Selar um pacto tendo como testemunha a Fontana di Trevi é beeem mais forte. — Lorena sorriu.
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CAPÍTULO 1
Acordei com a voz grave do meu namorado reverberando em meu ouvido. Sem hesitar, eu dissimulei que ainda dormia, claro que para ouvi-lo confessar que me amava mais uma vez. Afinal de contas, que mulher não se desmancha com inúmeras declarações de amor num mesmo dia?
— Eu te amo, vida — ele acariciou a maçã do meu rosto com as pontas dos dedos e contornou meus lábios em seguida. — Hora de acordar, vida. Hoje é segunda-feira, e seu trabalho a espera.
— Hum! — resmunguei e me remexi na cama. O meu rosto roçou na fronha sedosa, enquanto eu me amaldiçoava por ter dormido tão tarde, apesar da noite de luxúria estupenda.
Huuummm!
Abri os olhos com a preguiça consumindo todas as células do meu corpo. Mesmo assim, o que pude notar ao meu lado era um homem deslumbrante vestido com uniforme de piloto, um broche de asas fixado no paletó que reluziam de acordo com o movimento dos raios solares quando atravessavam a cortina fina pérola. Minha visão se ofuscou, não só pela brilhante luz dourada, mas também pelo homem sedutor e com porte atlético que estava ali, bem próximo a mim. Ele firmava uma bandeja sortida de guloseimas matutinas em sua mão.
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Ah, como ele é lindo! Sorri de volta para Murilo, desejando que aquela visão jamais se evaporasse de minha vida, de modo que o sonho de amor se estendesse pela eternidade.
— Mô, será que eu não posso dormir só mais um pouquinho? Aqueles quinze minutos extras de sempre — implorei, lançando o meu olhar azul mais sensual possível na direção do meu namorado.
Murilo me encarou daquele jeito sexy e repreendedor que só ele sabia fazer para, segundos após, render-se à minha súplica, beijando meus lábios voluptuosos com ternura.
— Eu já estou de saída, Marília. Não perca a hora, tá bom? — Murilo me advertiu, exalando seu amor costumeiro, um amor quase palpável pelas minhas mãos apaixonadas, tamanha a sua intensidade.
Ainda que as pálpebras estivessem pesadas, e eu fizesse força para mantê-las abertas, eu o observei se levantar da cama e mirar a imagem viril do seu reflexo no espelho. De um jeito sensual, ele sorriu para mim. Logo, sem dúvida alguma, eu suspirei profundo, completamente agraciada por ser a sortuda namorada daquele homem cativante, lindo e apaixonante.
— Amor… — Murilo caminhou em minha direção.
— Hum… — elevei meu olhar sonolento para ele.
— Eu estudei o roteiro da nossa viagem para a Itália. Fiquei um pouco mais tempo acordado ontem e pesquisei cada detalhe do nosso passeio, incluindo Roma, como você pediu.
— Podemos ir a Veneza — gemi. — Essa cidade cheira amor.
— Como sempre, romântica. Eu gosto disso. — Murilo piscou e se agachou ao lado da cama, alisando o meu rosto com ternura. — Bom, eu já comprei as passagens, ok?
— Só de ida? — indaguei, zombeteira, mesmo que apenas um fiapo de voz tivesse escapado de minha boca carnuda.
Então Murilo gargalhou, inclinou seu rosto para que mais um beijo fosse estalado em meus lábios.
— Bem que eu gostaria que essas férias fossem eternas. — Acariciou o meu rosto, da testa ao queixo, com o dorso de seus dedos. — Eu te amo, vida. Volto daqui a dois dias. Espere por mim bem descansada, ok? — O rosto dele era puro desejo.
Murilo se levantou e, com apenas dois passos, tocou a maçaneta, fechando a porta atrás de si, não sem antes jogar um beijinho de despedida por sobre
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os ombros para mim. Não resisti e, sem vacilo algum, mesmo que grogue de sono, uma tímida piscada caminhou do meu olho para o seu rosto afetuoso. Suspirei por aquele homem. Ah! Como eu me senti completa também!
Fixei meu olhar por mais um instante na silhueta máscula de Murilo, antes que eu me entregasse ao embalo do sono leve. Era o que eu pretendia naquele momento, mas, de repente, uma angústia se apoderou de todo o meu corpo, causando uma ânsia incontrolada, além de um arrepio gélido que percorreu a minha espinha. Eu me levantei da cama de súbito e, ainda com uma camisola branca e esvoaçante que me cobria, atravessei a porta, mesmo estando fechada, como se eu fosse um ser etéreo.
Desnorteada, eu olhava ao meu redor, e uma sensação de estar em perigo torturava os meus sentidos. Segui em frente, mesmo que algo me alertasse de que não era para eu ir até o destino ainda não revelado para mim. Elevei-me pelo voo e encontrei o ar. Continuei viajando no espaço celeste, planando com os braços abertos e as pernas quase unidas. Sim, eu estava cortando o céu. Podia sentir o ar constante tocando a minha pele, o cabelo esvoaçando ao sabor do vento e o meu cérebro pintando na imaginação o meu destino final. Europa era o que o meu sonho mostrava. Por que eu fui levada até lá?
Eu realmente não captava o motivo daquilo. Eu me vi na Itália e avistei as ruínas da obra grandiosa construída com mármore travertino, o Coliseu.
Comecei a caminhar por ruas já desbravadas por mim e me embrenhei pela Via di San Vincenzo, até que eu encontrei a Piazza di Trevi e parei diante da Fontana, a loja Benetton às minhas costas. Perplexa com o que via, iniciei um desabafo: “Não, mil vezes não, Murilo!”.
Lá estava o meu namorado, ainda vestido com o uniforme de piloto, contracenando a cena do filme La Dolce Vitta com uma morena embalada num vestido tomara que caia longo e preto. No mesmo instante, eu caminhei a passos pesados, pulei a mureta da fonte, segurando o tecido fluido que cobria meu corpo, e me aproximei do casal, que parecia encantado um pelo outro.
Em prantos, soltei a voz embargada que estava encarcerada na garganta, ao mesmo tempo em que as gotas das lágrimas, que tinham o sabor da dor que eu sentia, verteram dos meus olhos, aumentando o volume da fonte.
— Murilo, como você pôde fazer isso comigo? — choraminguei ao me aproximar do bandido que destruiu o meu coração.
— Não é o que você está pensando. — Foram as palavras mais sem propósito que ele poderia ter dito quando espalmou suas mãos. Os meus
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sentidos não estavam mancos, muito menos a minha inteligência se encontrava embotada a ponto daquelas palavras iludirem a minha consciência.
— Você não disse que eu era o seu amor, a sua vida? — murmurei em meio ao sentimento perverso que apertava o meu peito, os braços abertos em súplica.
Ele soltou uma gargalhada sarcástica que rebateu em Netuno, voltando sem piedade em minha direção, adentrando no interior dos meus ouvidos sofridos. Afoguei a minha educação naquelas águas quando o verdadeiro caráter do Murilo se descortinou em minha frente, sem pudor algum. Eu parti para cima dele. Ah! Eu não tinha dúvidas do que faria em seguida. Eu bati em seu peito aprumado que subia e descia ao ritmo de sua indiferença zombeteira.
Foi quando, ao longe, uma voz conhecida penetrou com insistência em meus ouvidos, e eu me vi sendo sugada de volta ao corpo, os braços e pernas se agitando na atmosfera do túnel iluminado por um brilho prateado. Senti dois cutucões em meu braço, um estremecimento aconteceu por fim.
— Mari… Mari… acorda. Acorda. Você está tendo um pesadelo.
O meu corpo se remexeu num ritmo nada agradável. Era a agitação das doloridas lembranças que vinham em forma de sonhos tumultuados.
Acordei e vi os olhos castanhos e protetores de Lorena pairando sobre os meus.
— Você sonhou com aquele cretino de novo? — ela se revoltou, e seu rosto fino tomou um tom apimentado, logo percebido por mim, já que a pele de minha amiga era tão alva quanto a minha.
Apenas fiz que sim com a cabeça. Eu ainda me recuperava da derrota que dominava o meu peito. Murilo havia me trocado por outra. Eu o vi beijando uma morena no saguão do aeroporto de Congonhas, quando retornei da viagem que fiz à Itália.
Foi um choque! O meu mundo se estilhaçou como um cristal quando encontra o piso maciço, tão endurecido como o coração de Murilo.
Lorena inclinou meio corpo, acariciou o meu rosto e beijou a minha testa.
— Isso aí que você está sentindo, amiga… — pousou seu dedo em meu peito, na altura do coração que ainda encontrava o seu ritmo menos sofrido — vai passar.
— Sei que sim, Lô — aquiesci, com os olhos rasos d’água e a esperança invadindo o meu ser.
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Lorena se levantou da cama num impulso e bateu uma mão na outra, um estalo animador ecoou nas paredes do quarto e na minha alma.
— Vamos logo. Coragem. O dia está lindo. — Ela caminhou até a janela e abriu a cortina. — Um pouquinho nublado talvez. — Pigarreou em meio à decepção de se deparar com um céu mesclado por nuvens cinzas e se virou para mim. Eu inibi um sorriso para ela não se sentir constrangida, afinal de contas, Lorena tentava a todo custo trazer mais vigor à minha expressão. — Nós vamos chegar atrasadas nos nossos trabalhos. Levanta logo, Mari — disse ela, a minha eterna amiga, agitadíssima. Acho que Lorena tomava algum tipo de produto, em segredo, para acordar tão bem-disposta nas primeiras horas do dia.
Caminhando a passos decididos, Lorena saiu do meu quarto, não sem antes dar uma piscadela de ânimo para mim. Pisquei de volta para a minha irmã — era assim que eu a considerava —, e sorri, um sorriso ainda inibido, mas tão revelador de um agradecimento sincero.
Com as duas mãos, firmei o travesseiro no rosto e balancei a cabeça, roçando meu nariz na fronha sedosa. Ah, não! Eu não queria que fosse segunda-feira. Não mesmo. Que pessoa neste mundo acelerado aprecia esse dia da semana? Só se for muito doido. Ainda mais quando se acorda com um sentimento tão nublado quanto o céu do lado de fora do quarto. Joguei o travesseiro de lado e bufei.
Na verdade, ter pesadelos com aquela cena de Murilo com a morena em seus braços havia se tornado um mau agouro. As lembranças negativas permeavam as minhas noites de sono que deveriam ser apenas de descanso. Não era um bom prenúncio para o meu dia. Então, firmei meu pensamento em algo positivo, como um projeto de um bairro com casas sustentáveis e arquitetura harmoniosa, além de jardins floridos as contornando. Credo! Mesmo assim, não sei se foi por distração, enquanto espichava os braços para o alto me espreguiçando, acabei por pisar no chão de tábua corrida com o pé esquerdo ao pular da cama. Eu não notei no primeiro momento o que havia feito.
Você é burrinha, Marília! Como pode iniciar o dia assim?
O sono ainda consumia todas as partes do meu corpo, inclusive o meu cérebro. Aliás, ele deveria ser mais seletivo quando o assunto fosse relacionamentos.
Santo Deus! Como eu pude deixar me levar pela lábia daquele piloto cretino? Soquei uma mão na outra. Em nem um fio de cabelo loiro meu Murilo
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tocaria, nem nos próximos mil anos, ou seja, nunca mais. Cerrei os olhos e balancei a cabeça em recriminação. Como eu poderia imaginar que toda aquela ladainha de que eu era a mulher da sua vida seria para me engabelar?
Com o passar dos dias, as informações foram chegando de diversos caminhos, era unânime o assunto: Murilo era um galinha que tinha sempre uma mulher à sua espera em cada aeroporto que o idiota pousava no mundo. Eu era apenas mais uma iludida da sua lista infinita.
Meus olhos se preencheram de lágrimas.
Como eu pude ser tão cega, meu Deus? Eu não vi, através daquele olhar sedutor, o coração de pedra que havia ali em seu peito. Murilo era um homem vazio de sensatez, sensibilidade e amor.
Abri o chuveiro. Eu me embrenhei sob as águas mornas que caíam como uma garoa, tal qual a chuva fina que dava um bom-dia aos paulistanos. Brinquei com o pouco de água que pousava nas palmas das minhas mãos.
Hã? Como assim? Cadê os jatos fartos de água?
Ah, não! Eu havia me esquecido de que largaram um comunicado embaixo da porta informando que iriam limpar a caixa-d’água.
Minutos depois, saí do quarto em direção à sala, já vestida com uma calça jeans que eu comprei na promoção relâmpago do shopping, um par de botas marrom, blusa cacharrel pérola e jaqueta de couro da mesma cor do calçado que eu pegara emprestada com Lorena para compor o visual. Eu sempre me vesti de forma básica — calça jeans, tênis e camiseta branca ou azul para combinar com os meus olhos —, mas ela insistia em dizer que a minha aparência bem cuidada seria o meu cartão de visita para os clientes. Tive que ceder aos argumentos da minha amiga, mas não perambulava por lojas comprando excessivamente, já que a minha família era de origem humilde, e eu sabia o duro que todos davam para ter os bens materiais necessários para a sobrevivência.
Bati na porta do quarto de Lorena.
— Mari, você pode ir, porque o Leandro pediu para eu passar na gráfica para pegar os talões de notas fiscais antes de ir ao escritório. — Ouvi sua voz atravessando a porta.
— Até mais tarde, então. Bom trabalho.
— Pra você também, Mari.
Ouvi um barulho esquisito vindo do banheiro da Lorena. Nos últimos tempos, volta e meia ela passava mal. Decidi que iria aconselhá-la a procurar um gastro. Ela era muito exigida no trabalho — uma transportadora de
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cargas de renome em São Paulo —, fora a pressão que ela punha sobre seus ombros para ser a funcionária padrão, administrando o setor de Recursos Humanos. Depois eu a chamaria no WhatsApp, pois minha hora estava correndo num ritmo indesejado, o café da manhã ficaria para mais tarde.
Fui até a mesa redonda Saarinen e alcancei a bolsa sobre ela. Abri a porta e um sorriso, mesmo que fajuto, surgiu em meus lábios carnudos. Apertei o botão do elevador e o esperei, enquanto eu me recordava da cena que Lorena interpretou com perfeição no aeroporto, quando nós pegamos Murilo no flagra aos beijos e abraços com outra mulher, ao retornarmos da Itália.
Como eu fiquei, num primeiro momento, completamente sem ação, Lorena reagiu por mim — não seria ela se não agisse assim —, cutucou o ombro de Murilo e, quando o cretino se virou para ela, gente, a minha amiga despendeu um tapa em cheio no rosto do dissimulado.
— Seu babaca. Você não chegue nunca mais perto da minha amiga, entendeu? — Seu dedo em riste se encontrava a milímetros do nariz do traidor.
Eu continuei impassível, mesmo após a reação de Lorena, tamanha a desagradável surpresa que amarrou os meus sentidos.
— Você ficou louca? — Murilo segurou o punho de minha amiga.
— Ainda estou no meu juízo perfeito, seu cretino! — Lorena contorceu seu braço e o retirou da mão de Murilo, enquanto ele alisava seu rosto com a ponta dos dedos. Hum! Para o meu deleite, deve ter doído. Eu ouvi o estalo naquela pele sedutora.
— O que está acontecendo? — indagou a morena com um semblante transbordando dúvidas.
— Nada, querida. — Lorena ajeitou as mãos na cintura. — Você deveria escolher melhor as suas companhias. Você está vendo aquela loira linda ali? É, ou era, espero que seja no passado, a namorada desse ordinário. Simples assim. — Lorena tombou a cabeça para o lado numa atitude irritada.
Ah! Eu ainda posso me recordar do rosto do piloto sedutor se aquecendo como brasa quando ele notou que eu estava ali, sem reação, apenas permitindo que o meu canal lacrimal trabalhasse descontrolado, tamanha a dor que eu sentia sufocar o meu peito. Era como se um punhal rasgasse minha carne.
— Nunca mais me procure, seu mentiroso. Você disse que eu era a sua vida. — A morena endireitou o corpo, empinou o nariz arrebitado e, sem pestanejar, acertou o lado oposto do rosto do meu namorado… do nosso… ah, sei lá! O que importa é que ele mereceu.
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Abri e fechei a boca quando ouvi aquela palavrinha mágica. Então, quantas vidas haviam caído em sua lábia de conquistador barato?
— Isso, minha filha, abandone esse mentiroso — Lorena incentivou.
— O que eu vou fazer não é da sua conta. — A morena voltou o olhar enfurecido para Lorena.
Murilo ignorou o bate-boca que acontecia entre as duas e veio até mim, as pontas dos dedos alisando seu rosto ardido pela fúria feminina.
— Marília, por favor, vamos conversar. Eu posso explicar. — Ele tentou me abraçar, e eu dei um longo passo para trás, aumentando a distância entre nós dois. Um turbilhão de lembranças dos nossos saborosos momentos devastou a minha mente, tumultuando o meu senso racional, mas eu não aceitaria uma traição. Isso estava fora de cogitação, e eu precisava confiar no testemunho dos meus olhos.
Fixei meu olhar em seus olhos envolventes. Eu decidi que não acreditaria em qualquer desculpa que ele despendesse daqueles lábios mentirosos, embora eles ainda me atraíssem. Resolvi que não diria nada a ele, não o ouviria, muito menos o perdoaria. Não havia a remota possibilidade de ele se safar daquela situação um tanto quanto esdrúxula para mim.
Cruzei os braços sob os meus bustos fartos, espremi os lábios que formaram um bico decido e estudei o rosto cínico dele pela última vez. Respirei fundo e, com os olhos cerrados, suspirei em meio a um fio de voz murmurando em minha mente para eu não ser uma manteiga derretida e controlar as emoções. Então, reprimi um soluço e fui embora daquele aeroporto, carregando a mala atrás de mim. Lorena me alcançou no táxi e foi em meu socorro, consolando-me como uma verdadeira amiga naquele momento em que o meu desejo era soltar um grito de angústia para aliviar a pressão que esmagava o meu peito.
A porta do elevador se abriu para mim, enquanto o meu coração permanecia fechado a sete, oito, sei lá quantas chaves. Eu pretendia evitar outra decepção amorosa permeada de uma dor descomunal que eu jamais havia sentido.
Dei o primeiro passo e recuei de imediato. Estreitei os olhos. Aquele cabelo liso aparentando maciez, meticulosamente penteado para o lado, farto… Meu Deus! Os olhos cor de mel mais desafiadores que eu já vi. Pousei as mãos na cintura.
— O que você está fazendo aqui?
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CAPÍTULO 2
— Olha quem eu encontro! A nervosinha da Itália — disse o cara intragável, olhando-me de cima, as mãos nos bolsos da calça Pierre Cardin e os olhos cor de mel chamejando zoação.
Eu não queria acreditar que o almofadinha que eu tive o desprazer de colidir em Roma estivesse ali. Só podia ser obra do acaso. Sério. Ele era a última pessoa no mundo que eu gostaria de ver novamente, ainda mais com aquele ar de empáfia que só os riquinhos metidos refletem em seus rostos. Até conhecer o meu ex eu havia namorado apenas um rapaz do Bixiga, o bairro onde cresci. Foi um namoro sem muita importância. Quando ingressei na universidade e comecei a frequentar o outro lado de São Paulo, mantendo contato com pessoas de classe social diferente da minha, eu passei a identificar mauricinhos como Murilo. Não me perdoo por ter caído em sua teia sedutora.
— Por que eu tinha que acordar com o pé esquerdo? — Tombei o rosto para o lado e estreitei os olhos azuis em fúria, soltando os meus braços com indignação que caíram nas laterais do meu corpo, encontrando as pernas com força. — O que você está fazendo aqui? Logo onde eu moro! — indaguei a repetitiva frase em alto e bom tom, as feições confirmando a minha incredulidade, mantendo-me imóvel. Eu não entraria naquele elevador nem
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que um trevo-de-quatro-folhas estivesse perdido no chão, trazendo-me sorte. Era o que eu mais precisava naquele dia, a folha verde seria um refrigério para as minhas emoções.
Revirei os olhos.
— E eu que sempre acreditei que a minha presença fosse uma fonte de prazer a todos que estivessem ao meu lado — disse ele.
Ai, que cara petulante! Ele fez uma alusão à Fontana di Trevi. Pretensioso demais para o meu gosto.
Expirei o ar com força, enquanto ele abafou uma risada, ainda sondando o meu rosto enrubescido de raiva. Ter esse tipo de sentimento era recorrente quando eu estava ao seu lado.
A porta do elevador se movimentou automaticamente, isso nos separaria, graças a Deus! Mas o moreno de peitoral largo de pronto encostou sua mão no metal e evitou o fechamento. Eu o observei melhor, passando meus olhos por seu queixo recoberto por uma barba aparada e indo até a camisa listrada de azul e branco da Lacoste — o jacarezinho estava ali, denunciando um peitoral bem moldado.
Ele tinha de ser tão atraente?
— Eu não mordo. Pode entrar. — Sorriu, e seus lábios apetitosos curvaram-se num sorriso brejeiro. Eram lindos lábios, o superior mais fino que o inferior, porém com um formato harmonioso.
Mas no que eu estava pensando?
Chequei o relógio para camuflar que ele pescasse qualquer vacilo meu. Eu não poderia dar esse gostinho a ele, muito menos chegar atrasada no trabalho. Então suspirei derrotada, ajeitei a bolsa no ombro e, sem escolha, adentrei no cubículo de aço.
— A-há! Com quem você aprendeu a ser tão engraçadinho? — eu o fustiguei, não apenas com palavras, mas com o meu olhar, encarando a porta que encontrava a parede oposta.
— Mas essa é uma das minhas melhores qualidades: estar sempre de bem com a vida — ele disse e, no instante seguinte, eu girei meu rosto para ele e franzi o nariz numa atitude provocativa.
— Imagino os seus defeitos como são. Coitada da sua namorada!
Senti um tranco na cabine do elevador, justo no instante em que o moreno rebateria o que eu disse. Prendi a respiração, aflita. A luz piscou uma vez, duas vezes… apagou em seguida. A penumbra desceu do teto ao chão de
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granito, cobrindo-me com incredulidade. A máquina cessou o movimento com outro solavanco.
Prendi o ar com receio do que poderia acontecer conosco, mas o elevador, preso por cordas, se estabilizou, enquanto o meu coração encontrou o ritmo normal após segundos.
— Jura que eu vou ficar presa neste troço logo com você? Meu Deus! Hoje não era mesmo para eu ter acordado. — Enrolei a ponta do meu cabelo em meu dedo. Eu o havia prendido num rabo, para disfarçar a oleosidade que enraizara ali.
— Que isso! Assim você estaria morta. E você é tão… tão… tão… — ele me estudou de cima a baixo — atraente para partir dessa pra melhor — disse com a voz rouca penetrando em meus ouvidos e um sorriso nem de longe lisonjeiro.
Nossa! Eu senti de imediato um arrepio, não aquele tremor típico de quando se está em perigo, mas um arrepio de tesão. Como isso poderia acontecer se eu não o via com bons olhos?
Eu mudei o peso do meu corpo de um pé para o outro. Ele se virou para mim e apoiou a mão na porta do elevador, diminuindo a distância entre nós dois. Eu dei um passo para o lado e resoluta... — péim, péim, péim!!
— apertei o botão vermelho de emergência. TRÊS VEZES!
— Quem está preso aí? — indagou o porteiro.
— Senhor Geraldo, sou eu, Marília. Acho que estamos dois ou três andares abaixo do meu — aumentei o meu tom de voz.
Ele recostou na parede, cruzou os braços e me olhou de soslaio, lutando consigo para não soltar uma pérola.
— Disseram que a luz vai demorar a chegar. Vamos ter que pedir ajuda aos bombeiros para vir resgatar a senhora.
— EU. NÃO. ESTOU. SOZINHA — pontuei. — Tem um homem comigo.
Foi quando o moreno não sufocou mais o seu riso. Ele gargalhou alto, despido de qualquer constrangimento, jogando a cabeça para trás. Nem me importei com a sua reação, eu não o conhecia e não me exporia a ponto de ficar sozinha com ele.
— Ok. O síndico já vai providenciar ajuda. — Senhor Geraldo captou o meu recado.
— Isso tudo é medo de mim? Eu não sou um aproveitador de meninas indefesas — ele sorriu. — A propósito, o meu nome é Roberto. Roberto
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Loureiro a seu dispor, donzela. — O exibido fez uma reverência com a mão e inclinou seu corpo para a frente.
De uma coisa eu não poderia me furtar, a certeza de que ele era bem-humorado. Então ele me venceu. Foi quando um sorriso se desprendeu dos meus lábios, mesmo que denunciador de um resquício de afeto aparente.
— Prazer — mostrei minha mão para ele. — Meu nome é Marília Canetti.
Nós nos cumprimentamos, eu endireitei os ombros e tratei de me recostar na parede. Nem de longe eu tinha intenções de fitar por um longo tempo aquele rosto com feições másculas e olhos que me avaliavam com fulgor por ínfimos segundos que pareciam infinitos. Os olhos cor de mel do Roberto eram penetrantes e abalavam as minhas estruturas.
Uau! O cara era perfeito! Um mauricinho, embora lindo, eu tinha de admitir.
Em seguida, o silêncio se instalou ali como uma forma de proteção. Não que eu não quisesse conversar com um cara boa-pinta como ele, mas é que o moreno era seguro demais, era charmoso demais, era cheiroso demais, e eu o via como um riquinho irritante. Homens como ele, digo por experiência própria, emanam problemas, consideram as mulheres apenas como um passatempo, e eu não admitiria mais uma desilusão amorosa, pelo menos não naqueles dias em que a decepção rondava a minha vida como uma praga contagiosa.
Santo Deus! Mas o que eu estava pensando? Provavelmente eu não esbarraria com ele de novo. Tudo bem que nós nos vimos pela primeira vez em Roma, do outro lado do oceano Atlântico, e quem diria que eu estaria trancafiada com ele num elevador em São Paulo?
Bufei para mim mesma, recriminando meus pensamentos descabidos.
Elevei o meu olhar para o teto e constatei que não havia nenhum resquício de possibilidade de a luz tremeluzir nos próximos segundos, muito menos brilhar por completo. Ah, não! Era certo que eu chegaria atrasada ao trabalho e, ainda por cima, tinha que permanecer por mais um tempo aspirando o aroma do pecado.
Peguei meu celular na bolsa e zapeei a lista de contatos. Eu necessitava, como o ar que eu respirava, avisar a minha chefe do atraso não esperado.
— Droga! A operadora está fora de área. Que inferno! — murmurei, amaldiçoando o meu dia.
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— Deve ser porquê, se você não reparou, nós estamos presos num elevador. — Ouvi a voz rouca me ironizando.
Eu já ia dizer poucas e boas para o mauricinho, colocando-o em seu devido lugar, quando, para relaxar, aspirei o ar tão forte como a impaciência que se expandia descontrolada em meu ser.
Eu não vou cair na pilha dele. Eu não vou cair na pilha dele. EU NÃO VOU CAIR NA PILHA DELE.
Considerei que ignorá-lo era o melhor a ser feito. Eu encarava o celular ainda buscando controlar a respiração, já que não seria possível esgueirar-me dali como uma gata entre frestas.
— Eu dormi na casa de um amigo — Roberto continuou uma conversa comigo. — Nós saímos ontem pra balada e, sabe como é, chegamos tarde, com a cara cheia de álcool — ele disse, virando seu rosto para mim. Acho que pude notar um sorriso cínico elevado apenas por um canto da boca. O cara fez jus às minhas considerações iniciais sobre ele.
— Vindo de você, eu não me surpreendo. — Arremessei o celular na bolsa e fitei a porta, o queixo elevado.
— Você é sempre tão seca com as pessoas? — Hã? O cara era mesmo audacioso. Ninguém absolutamente havia me provocado tanto até os meus vinte e cinco anos.
— Não. — Pestanejei e girei o rosto, nervosa, encarando-o com o meu olhar mais censurador possível. — Só com quem me irrita a todo instante e esbarra em mim justo no momento em que eu faria o meu pedido para a Fontana. — Cruzei os braços sob os seios. O desinibido desviou seu olhar do meu rosto, estacionando-o no volume do meu peito.
Eu juro que eu não merecia tudo aquilo!
— Como pode, nos tempos atuais, alguém acreditar que uma moeda lançada em uma fonte pode ser a solução para todos os seus problemas? — Roberto empurrou meu braço com o dele.
Suspirei impaciente.
Sem pensar muito, eu me posicionei de frente para o seu perfil. Então ele se virou para mim, enfiou as mãos nos bolsos e me encarou, provocando a minha réplica.
— Se você é materialista e cético, não julgue quem possui crenças diferentes das suas. Apenas respeite. — Eu o enfrentei, cultivando rugas na testa, até que ele entendesse que era muito, muito inconveniente.
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— Tudo bem. Você tem razão. Eu não acredito em nada fantasioso, apenas em fatos e constatações — Roberto retorceu a boca para o lado.
— Mas, se você é assim, vou respeitar a sua opinião. — Ele me olhou de cima, não com um ar de resignação, mas sim do tipo “vamos deixar pra lá essa conversa”.
— Melhor assim. Vamos evitar maiores discussões — expressei com palavras o que Roberto sugerira com seus deslumbrantes olhos cor de mel.
— Por que toda baixinha é tão nervosinha?
Meu Deus! Pensei que nós havíamos proposto um pacto de um bom convívio, nem que fosse por minutos, que se arrastavam enquanto estávamos trancados no elevador.
— Desisto. Se você puder fazer um favor pra mim, fique quieto até o bombeiro nos resgatar.
— Mas…
— Shhh — pousei meu dedo atrevidamente sobre os lábios dele e os pressionei, mandando-o permanecer de boquinha fechada.
Abri a bolsa e peguei o cristal que eu guardava em seu interior para momentos como esse, em que eu buscava o meu equilíbrio emocional. Apertei o meu quartzo verde para liberar a ansiedade. Cerrei os olhos em seguida e comecei a pensar num jardim que exalava o aroma das flores. Fui em pensamento até à Holanda e pude visualizar também um cata-vento de proporções enormes, além de lindo. Porém, tive que interromper essa meditação calmante, já que pensar em aroma me fazia aspirar o ar másculo que preenchia o elevador. Bufei.
— Desculpe quebrar nosso silêncio. — Dai-me paciência. — Mas você é bruxa, ou algo parecido?
Grunhi alto.
— Vai… — Roberto me interrompeu com a voz rouca.
— Aqui não tem moedas para eu catar. — Ele se defendeu, e aquele sorriso sedutor de canto de boca apareceu novamente. Apertei o cristal com toda a força que podia despender com os dedos.
— Senhor Geraldo, quanto tempo ainda é preciso para os bombeiros chegarem?
— Senhorita Marília, eles acabaram de chegar. Não fique aflita.
— Tudo bem. Tudo bem — respondi ansiosa. Eu chequei Roberto de soslaio.
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— Por favor… — uni as mãos em prece com o cristal firme no centro delas — cale a boca — esbravejei.
— Tá bom. Não está mais aqui quem falou. — Pude ver pelo canto dos olhos que ele jogou suas mãos para o alto quando suspirou.
Fitei o chão por algum tempo. Roberto cumpriu a sua palavra e permaneceu calado, jogando game no celular. Pouco tempo depois, nós ouvimos sons de ferramentas e estalos repetitivos; os bombeiros trabalhavam no nosso socorro. Finalmente a porta do elevador se abriu, e dois deles estavam em nossa frente, seus semblantes refletiam a satisfação por mais um chamado solucionado. Eu quase os beijei quando fui resgatada por uma mão recoberta por luva. Para a nossa sorte, minha e de Roberto, o elevador ficou posicionado no segundo andar e não entre níveis.
Após os agradecimentos, joguei minha pedra calmante na bolsa, marchei até a escada e desci seus degraus como se estivesse prestes a perder a vida, de tanta rapidez que eu imprimia em minhas pernas. Quase caí quando um pé tropeçou no outro, mas, por sorte minha, o corrimão de segurança me salvou quando eu o segurei como se fosse a única tábua de salvação de um náufrago.
Cheguei no meu Fox prata. Antes de eu abrir a porta com um click na chave, notei que o pneu dianteiro esquerdo estava completamente arriado. Eu o chutei com tamanha força que o meu pé ardeu e a indignação me sufocou em um abraço miseravelmente sarcástico.
— Fala sério! Isso não pode estar acontecendo comigo. A culpa é daquele cara idiota.
— Minha? Por quê?
Prendi o ar quando ouvi a voz rouca se infiltrar sorrateiramente em meus ouvidos. Eu me levantei num impulso nervoso e o encarei, elevando o rosto, com meus olhos azuis chispando raiva.
— Porque, desde que você interrompeu o meu pedido para a fonte, a minha vida virou de ponta-cabeça. — Pousei as mãos na cintura delgada.
— Nada está dando certo para mim. Só falta eu ser demitida no trabalho e não ter como pagar a prestação do carro. Aaaiii! — extravasei minha frustração sobre Roberto, um cara que eu nem conhecia intimamente. Eu apenas supunha o seu jeito de ser de acordo com os nossos encontros não premeditados e sua aparência física esmerada.
Roberto fechou seu rosto em desaprovação a centímetros do meu. Alisou o pescoço da orelha ao queixo num movimento repetitivo, enquanto
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digeria o que eu havia dito, avaliando minha expressão, assim como a minha reação histérica.
O que ele pensaria de mim? Claro que acharia que eu era uma descontrolada que deveria ser internada em uma casa de repouso. É que as minhas emoções se encontravam à flor da pele. Aquele foi o meu momento de explosão, contido por longos trinta dias desde que finalizei o namoro com Murilo.
— Desculpe se eu sou o causador de todos os seus problemas. Se você quiser uma carona para aliviar a minha culpa — ele disse com a voz perturbadoramente mansa e ajeitou o cabelo para o lado, apertando os olhos amendoados. Porém, a feição rígida do seu rosto denunciava que eu havia extrapolado o limite do bom senso.
Um rubor de vergonha subiu do meu peito ao rosto. O moreno alto, de olhos incrivelmente lindos, poderia até ser agradável quando queria. A educação provavelmente vinha de berço, mas o meu orgulho não permitiu que eu aceitasse sua desculpa em forma de carona.
— Obrigada, Roberto — eu encontrei o equilíbrio e suavizei o tom da voz. — Eu prefiro chamar um táxi. — A minha garganta travou, e eu não pedi desculpas para o moreno, apenas o meu olhar azul transpareceu a minha vergonha.
— Você é quem sabe. Tenha um bom dia. — Roberto não insistiu e caminhou na direção de um jipe vermelho.
A passos largos e pesados, eu fui até a escada — pisar em seus degraus já estava se tornando uma rotina naquele dia — e subi um pavimento. Atravessei a portaria sem me despedir do senhor Geraldo, que conversava com um senhor de cabelos como flocos de neve e de óculos com aro dourado no rosto. Ele havia mudado para o prédio há pouco tempo. O nome dele era Célio, se eu não estava enganada.
Pisei na calçada sob uma árvore e, atrevida, resolvi dar dois passos e estancar no meio da ciclovia. Enquanto estendia o braço com movimentos desesperados para chamar um táxi que vinha ao longe, um carro levantou a água da poça volumosa que havia acumulado no asfalto e, como não poderia acontecer de outra forma, ensopou a minha roupa. Céus! Foi o tempo de eu pular para trás, como que por instinto, e abrir os braços numa reação de revolta. Aliás, diga-se de passagem, os meus nervos não estavam nem um pouco controlados, pois a sorte olhava enviesada para mim. Mas não
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adiantava reagir com fúria, era tarde demais. A minha calça jeans novinha ficou encharcada na altura das coxas.
— Meu Deus! Por que isso tudo está acontecendo comigo? — murmurei e ergui o olhar para o céu totalmente fechado por nuvens densas.
Um raio as cortou, confirmando a minha desventura. Brrr booom! Eu encolhi os ombros, tamanho o susto. Do jeito que o azar me rondava, e eu estava sob galhos frondosos, o relâmpago poderia ser atraído por esse para-raios natural, e havia a possibilidade de eu ser incinerada, ou seja, eu viraria carvão.
Arfei!
Quando voltei o meu olhar para a frente, vi a Cherokee estacionar rente à calçada do outro lado da rua. Estreitei os olhos para verificar através do insulfilm quem era o motorista que se camuflava ali. O vidro desceu lentamente, eu franzi o rosto curioso, e, com um olhar decidido, Roberto intimou:
— Entre. Eu não vou aceitar mais nenhuma recusa.
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CAPÍTULO 3
Há dias na vida de qualquer ser humano que ele se pergunta o porquê de ter acordado. Não que eu não agradecesse o fato de estar viva e com saúde, mas, pelo amor de Deus, parece que o universo conspirava contra mim a cada minuto que eu insistia em respirar naquele dia.
Quem era esse tal de Roberto para falar comigo com tanta autoridade? Nem o meu tio-pai-avô-fofo, o Francesco, me punha assim contra a parede. Olhei para o lado e o que pude ver foi o taxista seguindo seu rumo pela rua Mário Artur Ramos — onde eu morava com Lorena desde a época da faculdade —, distanciando-se de mim. Joguei minha cabeça para trás e bufei.
— Há! Há! — Sacudi a cabeça em negativa. — Não entro nesse carro nem que eu chegue atrasada no trabalho, e minha chefe esbraveje tão alto quanto o ruído do raio que caiu agorinha. — Eu o desafiei.
— Meu… como você pode ser tão mimada? — Roberto inquiriu após apertar as mãos com força no volante.
— Que absurdo! Ah, tá! Eu? Mimada? — Sorri, sarcástica, jogando a cabeça para trás. — De onde você tirou isso?
— Quer que eu enumere as suas reações desde a Itália até agora? —
Roberto tamborilou os dedos no volante, com impaciência. — Vamos parar de gritar no meio da rua. Entre logo no carro.
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Eu o olhei com os olhos envinagrados, nem assim ele recuou a sua postura. Eu já havia me decidido correr o risco de ser descontada do salário por motivo de atraso, caso a minha chefe não aceitasse as minhas justificativas, quando o celular me alertou, com o seu bip da agenda, que eu deveria participar de uma reunião logo pela manhã, bem cedo. Larissa iria apresentar um cliente em potencial para mim. Ela me escolheu para desenvolver o projeto, embora não tenha adiantado pormenor algum sobre o trabalho. Suspirei resignada. No entanto, permaneci com a cara de insatisfação como uma sombra que cobria todo o meu rosto, já que eu não me sentia à vontade ao lado de Roberto. Não sabia ao certo, mas ele me intimidava com sua pose de autoconfiança permanente, parecendo sempre desfrutar da irritação que promovia em mim quando me provocava. Aliás, naquele dia, parecia ser o seu hobby predileto.
— Ok. Você ganhou, por ora — falei. Ele sorriu de um jeito vitorioso. — Mas não se acostume com isso. Eu não sou de ceder assim tão fácil. — Trespassei a rua, acomodei-me no assento do carro e fechei a porta em seguida.
— Hum! Hum! — Roberto exclamou e fitou meu rosto com ar de “aposto que você não é tão intransigente assim”, enquanto eu cruzei o cinto de segurança sobre o meu tórax. — Eu já tive provas disso.
— Se você me permitir dar uma sugestão… — Roberto me olhou de soslaio e deu partida no carro. Considerei a hipótese de que ele estava com receio das minhas reações. Gente, eu não era nenhum monstro de filmes de terror para ele agir assim, mas eu realmente me comportara como uma desequilibrada. Respirei fundo e busquei controle emocional antes de responder a qualquer zombaria que viesse dele, afinal de contas, eu sempre fui uma pessoa educada e paciente, por várias vezes, até complacente demais com as atitudes alheias. Bem… eu achava que fosse.
— Hum! — Nós encontramos nossos olhares. — Po-pode falar. — Outro estremecimento arfante aconteceu a ponto de eu gaguejar. Eu me puni severamente por isso, endireitando-me no banco.
— Acho melhor fechar o vidro antes que algo aconteça com você, sei lá, uma nova poça pode ser arremessada contra o seu rosto.
Roberto sorriu não de um jeito aberto. Foi quando eu disparei a rir, e o seu rosto se franziu em confusão. Ri do nosso esbarrão na Fontana. Ri de tudo o que dissemos um para o outro no elevador. Ri do bom humor que ele
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mantinha, apesar do meu azedume e das baforadas de ira que soltei sobre ele a todo instante. Apertei o botão ao meu lado, e o vidro subiu de imediato. Juro que eu tive que desarmar a minha aversão a ele.
— Você fica mais bonita quando relaxa — o moreno afirmou, mas eu não respondi o seu elogio, apesar de me sentir afetada por ele. Apenas aliviei a tensão sobre os ombros, enquadrei o vidro frontal como foco visual e tentei amenizar a ira que havia se apoderado da minha alma. Eu estava exausta de tanto sofrimento. Para suavizar nosso silêncio, com o toque firme do dedo na central multimídia, Roberto permitiu que notas de blues ressoassem pelo interior do jipe . Uau! Ain’t no Sunshine, do maravilhoso Bill Withers, preencheu com intensidade meus ouvidos.
Cerrei os olhos de imediato e pude sentir o ritmo do estilo derivado da música dos negros americanos, work-songs, vibrar em meu íntimo. Acompanhei com a cabeça o compasso bem forte da melodia, sem nem me importar onde estava ou quem me observava.
— Você gosta de blues? — Roberto indagou. Notei seus olhos se alargarem no rosto perfeito: nariz afilado, lábios finos e bem desenhados, olhos… hum… bem… eles eram o meu fraco.
Suspirei assim que constatei que Roberto poderia ser um cara fascinante, se não fosse tão provocador. Tratei de abafar meus pensamentos, uma vez que eu não me permitiria me envolver tão cedo com outro homem, pelo menos enquanto eu me recordasse da devastação que Murilo causou em meus sentimentos. Posso comparar a minha dor à destruição que um tsunami promove quando chega abruptamente na região praiana e arrasta tudo e todos que estão à sua frente, sem dó nem piedade.
— É um dos meus ritmos prediletos, me traz calma — respondi, com as pálpebras baixas, sentindo-me embevecida com o som ambiente amplificado pelos alto-falantes, e pela beleza do moreno. — Gosto de dedilhá-lo em meu violão. — Ergui meus olhos e me deparei mais uma vez com o perfil de Roberto. Não sabia o movito, mas confesso que notei com mais atenção quando o olhei pela enésima vez. Roberto exalava beleza. Ah! Exalava, sim. Ele era o próprio pecado em forma de homem. E seus olhos cintilavam sedução, deixando-me suspirosa.
Ah! Ele me afetava de um jeito novo para mim.
— Interessante! Pensei que você gostasse apenas de músicas bem melosas. — Roberto desviou seu olhar para o retrovisor e checou o carro colado
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em nossa traseira. Apoiei o cotovelo na porta e enrolei uma mecha do cabelo em meu dedo, hábito que adquiri desde criança. — É a sua cara saber tocar um instrumento musical.
— Você não acha que está conjeturando muito sobre mim? — Apreciei causar desconforto no moreno, que teve o rosto tomado por um tom vermelho como o vaso vietnamita que eu usei no projeto de decoração na varanda gourmet da casa de um cliente. — Canto apenas como hobby e quando estou entre os meus familiares. Confesso que, às vezes, embaixo do chuveiro. Coitados dos meus vizinhos! — gemi.
Roberto expressou um sorriso genuíno e gargalhou com vontade. Eu fiquei embriagada por aquela reação espontânea tão comum para ele. O problema é que aquele friozinho gostoso percorreu sem inibição a minha espinha quando eu senti o toque da sua mão grande e firme em meu braço. Meu corpo reagiu sem improviso, e minha pele ficou extremamente eriçada, fio a fio.
Meu Deus! O que estava acontecendo comigo? Como eu poderia ter reações corporais arfantes se ele era um desconhecido para mim? E desde quando o meu corpo resolveu executar suas próprias vontades, desconsiderando a razão?
Sutilmente, afastei o meu braço do contato da mão de Roberto, dissimulando mexer no interior da bolsa em busca do celular ou de qualquer outra coisa que justificasse a minha atitude esquiva. Roberto notou meu embaraço e se apressou a dar continuidade à conversa, graças aos céus, porque eu praticamente não respirava.
— Se você aprecia blues, deve gostar do grupo Vintage Trouble também. Noutro dia, a minha irmã estava ouvindo a música… — estalou seu dedo — acho que o nome era Doin’ What You Were Doing. Foi isso que ela disse para mim. Achei a melodia bacana.
— Gosto muito — respondi após resfolegar. — Eu já tirei de ouvido a partitura dessa música. — Olhei para ele, buscando o equilíbrio novamente, com o celular na mão, apertando-o como se fosse o meu melhor amigo e transmitisse segurança para mim. — Essa música tem um ritmo contagiante. Mas ouço música italiana também. A minha família tem essa descendência…
— Marília, desculpe interrompê-la, mas qual é o seu destino? Eu estou indo aos Jardins. — Ele buscou o meu rosto com os seus olhos cor de mel envolventes.
— Ai! — Pousei a mão no rosto. — Eu que peço desculpas. Aceitei a sua carona sem nem ao menos dizer aonde vou. Desculpa mesmo.
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— O mauricinho elevou uma sobrancelha em meio à expressão de assombramento. Cheguei à triste constatação de que ele não me considerava uma mulher com atitudes refinadas. Senti-me embaraçada também, mas não deixei a peteca cair e prossegui. — Por sorte, eu trabalho numa empresa de arquitetura nos Jardins. — Girei meu rosto para o lado e avistei a longa e leve passarela branca e coberta do MIS.
— Em que rua? — Roberto freou, quando o carro à nossa frente diminuiu a velocidade, e voltou seu olhar para mim de um jeito curioso, denunciado por um arquear de sobrancelha.
— Ah, sim! Eu trabalho na rua Haddock Lobo. — Desviei o olhar do museu para o relógio e atestei que ainda havia tempo para comprar um iogurte com geleia e granola. — Mas você pode me deixar no cruzamento da rua Bela Cintra com Alameda Franca, porque eu vou a uma padaria orgânica antes de chegar no trabalho. — Roberto sorriu e passou a mão na nuca, enveredando os dedos entre seu cabelo liso. Fiz o percurso do movimento dele com os meus olhos e me peguei pensando em como faria carícias bem ali se estivesse beijando o moreno.
Estremeci e cerrei os olhos, além de me remexer no banco. Eu tinha de dominar as reações corporais não premeditadas e excitantes que teimavam em acontecer quando eu estava ao lado do moreno, e antes que ele percebesse. Seria um prato cheio para o seu ego explodir de satisfação.
— Hum! Então quer dizer que, além de mística como uma bruxinha, apreciar blues, tocar violão — sorriu com o rosto permeado de diversão —, você é natureba também?
— Cuido da minha saúde. Apenas isso. — Dei de ombros, sorri e joguei o celular na bolsa. Roberto não causava mais revolta em minhas reações, ele não me intimidava como antes, então o aparelho não era tão necessário em minhas mãos. — O pão de figo e nozes de lá é delicioso. Às vezes, eu como uma saladinha na hora do almoço.
— Eu sou carnívoro. Adoro um churrasco com bastante gordura, mas isso não pode ser com frequência, ou eu não conseguiria manter meu corpo sarado em dia. — Roberto me olhou com malícia, e eu baixei minhas vistas para o seu braço recoberto pelo cardigã listrado. Contive um suspiro quando entrevi que uma musculatura farta se encontrava ali e alisei o meu pescoço quando um calor se apoderou do meu corpo. Tratei apressada de olhar para a frente, dissimulando analisar o trânsito que já se tornava mais pesado. — Só
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quando eu encontro os amigos, e nós assistimos a uma partida de futebol e jogamos papo fora.
— Xingam, falam sobre mulheres… — virei o rosto para ele e ajeitei meu cabelo preso para o lado.
— Por aí. — Roberto esticou seus lábios num sorriso suave, como se estivesse recordando de algo hilário.
O tempo transcorreu com mais leveza quando eu abaixei a guarda ao lado do moreno. Conversamos sobre superficialidades, até que chegamos no ponto em que eu desceria do carro.
— Obrigada mais uma vez pela carona. — Firmei a minha mão na maçaneta da porta e o fitei.
Sabe que eu até vacilei! Eu não tinha a certeza se eu deveria sair logo dali, ou se atrasava os meus movimentos na esperança de que ele pedisse algum contato meu. Realmente, eu não estava no meu melhor juízo para nutrir esperanças de reencontrá-lo. Não mesmo. Essa reação sem noção poderia ser atribuída à carência. Então, decidida, abri a porta do carro e pisei com o pé direito no chão, girando meu corpo para dar o impulso necessário de pular fora do jipe. Foi quando senti uma mão em meu braço, e o meu coração adquiriu um ritmo frenético, sacolejando o meu peito, numa reação nervosa comparada à de quando alguém recebe o “canudo” ao término da faculdade.
— Posso lhe dizer algo sem que você se ofenda comigo? — A voz de Roberto se tornou mais rouca que a de costume. Fiz que sim com a cabeça.
— Você é linda! Quero vê-la de novo. — Seus olhos vidraram em mim. Um carro buzinou. Eu voltei à realidade após me sentir aturdida com o pedido revelador de que ele gostaria de me encontrar novamente. Inclinei meu corpo, permitindo que o mauricinho me visse mais de perto.
— Se tiver que ser, nós vamos nos esbarrar por aí, em algum lugar do mundo. Acredito em destino — pisquei para ele e fechei a porta. Ah! Eu fiz charme mesmo.
Ainda pude ouvi-lo gargalhar enquanto eu caminhava até a padaria, com um sorriso bobo nos lábios e os braços envolvendo meu peito, encolhida devido à chuva gélida que salpicava gotículas em meu rosto. Brrr!
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