A Lua no Oceano - Primeiros Capítulos

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TRADUÇÃO: Ana Carolina Consolini

2ª EDIÇÃO – 2020 RIO DE JANEIRO

COPYRIGHT © 2018. LA LUNA NELL’ OCEANO BY BENEDETTA CIPRIANO

COPYRIGHT DA TRADUÇÃO © 2019. ALLBOOK EDITORA

Direção Editorial

Beatriz Soares

Preparação e Revisão

Carolina Caires Coelho, Clara Taveira, Raphael Pelosi Pellegrini Modelo

Weston Bouchér (@westonboucher)

Fotógrafo

Ludovic Taillandier

Designer de capa original Catnip Design

Adaptação de Capa Flavio Francisco

Projeto Grá co e Diagramação: Cristiane Saavedra | Saavedra Edições

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográ cos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

C523L Cipriano, Benedetta.

2.ed. A lua no oceano / Benedetta Cipriano; tradução Ana Carolina Consolini. - 2. ed. – Rio de Janeiro : AllBook, 2020.

248 p.; 16 x 23 cm.

Tradução de: La luna nell’ oceano

ISBN: 978-65-86624-24-3

1. Romance italiano. I. Consolini, Ana Carolina. II. Título.

20-66537

2020

PRODUZIDO NO BRASIL.

CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM

CDD 853

CDU: 82-31(450)

Para você que ama correr na chuva e para você que nunca quis correr.

Para você que é um lutador e para você que não aprendeu a lutar.

Para você que chora em silêncio e para você que esconde as lágrimas atrás de sorrisos.

Para você que é um sonhador e para você que parou de acreditar em sonhos.

Para você que conhece o caos e para você que conhece a quietude.

Para você que mistura suas lágrimas à solidão.

Para você que é tempestade e para você que é arco-íris.

Para você que, quando cai, se levanta e para você que está de joelhos.

Para você que é puro ruído e para você que é o silêncio absoluto.

Para você que ama o mar e para você que prefere a cidade.

Para você que é de aço e para você que é feito de cristal.

Para você que sorri e para você que esqueceu como fazer isto.

Para você que está com medo e para você que tem coragem.

Para você que vive e para você que sobrevive.

Este romance é dedicado a você.

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”
Fernando Pessoa

Lua

28 de outubro de 2016, Rochester, Minnesota.

— “Saudade” em português não significa apenas tristeza. Um trovão ressoa no ar, um raio ilumina de verde minha sala de aula e o violento e constante som da chuva faz meus tímpanos doerem. Estou imóvel, congelada. Minhas pernas enrijecem quando meu olhar, sem pedir permissão, cai automaticamente nas gotas frenéticas que batem nas janelas.

É só uma tempestade, Lua. É só água, repito para mim mesma, tentando afastar as memórias.

— Srta. Morrison?

Eu ainda estou me agarrando àquelas malditas gotas de chuva quando a voz de um dos meus alunos faz com que eu me sobressalte, mas minha cabeça não está pronta para se virar.Meus olhos ainda estão lá. Eles encaram o vidro em um pátio arborizado, num dia frio, em que o cinza do céu pode invadir sua alma, que, nua e ferida, não pode mais colar os pedaços. Porque não são peças. São fragmentos que logo se transformarão em pó.

É apenas poeira que tenho no meu peito. É areia. A areia de uma praia que me lembra o que eu perdi, o que eu deixei, do que eu tive de desistir.

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PRÓLOGO

Eu esfrego os dedos na blusa de lã. Estou com frio. Os calafrios correm por meus braços.

— Tudo bem, srta. Morrison?

Eu posso fazer isso. Respiro fundo, tomo coragem e desvio o olhar da janela.

— Sim, Astrid. Saudade, em português, não significa apenas tristeza.

— O som do sinal, indicando o fim da aula, me tira do meu torpor. — Continuaremos a falar sobre isso na segunda-feira, pessoal. Espero que vocês façam uma lista em que coloquem os múltiplos significados dessa palavra segundo a língua portuguesa.

Vejo meus alunos já não estão muito confiantes.

— Srta. Morrison, mas nós achamos que não sabemos o suficiente para fazer isso — responde Astrid, enrolando uma mecha de cabelo.

— Este é um curso avançado de português, então eu acho que você sabe o suficiente para escrever um relatório de, ao menos, duas páginas sobre um termo complexo do qual já havíamos falado antes.

— Srta. Morrison, mas nós... — Linda não completou a frase quando me viu vestir o casaco, recolher as notas da mesa e guardar o livro.

— Nós nos falaremos na segunda, pessoal. Estou certa de que farão um bom trabalho. — E, assim, com passos rápidos, saio da sala de aula, mas o barulho ensurdecedor da chuva continua a me atormentar.

Caminho, e meu rápido caminhar se transforma em uma ligeira corrida. Enfio as mãos nos bolsos.

Onde estou? Onde se escondeu?

O pânico me recorda do quanto eu sinto falta disso. Então, sinto sob a pele: pressiono o punho fechado sobre a região onde meu coração está pendurado como um pingente. Eu seguro o que pego do bolso com tanta força, que tenho medo de destruí-la.

Saio da escola ainda a correr, com a palma da mão ainda segurando a lembrança, enquanto a chuva me molha. Ela é violenta, horrorosa, terrível.

É a água que dói como a afiada lâmina de uma faca, e ao ser atingida por aquelas lâminas, procuro meu carro no estacionamento dos professores.

Eu o avisto.

— Oi, Lua! — grita Rafael, meu colega professor de espanhol.

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Eu não tenho forças para olhar para cima, solto as lembranças para cumprimentá-lo. Então finalmente chego ao meu destino. Eu entro no carro, fecho meus olhos e permito que a primeira lágrima dolorosa percorra minha bochecha mais rápido do que a chuva.

E depois daquela lágrima, outra se junta a ela. Então um suspiro surge e se transforma em soluços.

Depois, encosto a cabeça com força no volante do carro.

Deus! Como eu sinto sua falta!

— Como eu sinto sua falta... — sussurro, e levanto a cabeça, permitindo que o punho direito se mova contra o volante.

Não faz mal.

O que me dói é saber que não posso lutar contra a chuva. Dói saber que não posso fazê-la parar. Dói o silêncio, quando se torna uma dor estúpida e aguda, quando faz uma ferida aberta sangrar, uma ferida que nunca estará pronta para cicatrizar.

Dói saber que sou apenas um ponto sem vida. Um corpo que se move pela inércia, um grão daquela extensão de areia a quilômetros de mim. Dói pensar que o coração foi exterminado, bombardeado, arrasado, e agora só bate triste e preciso como um velho relógio pendurado nas paredes de uma casa desabitada.

Eu tiro o objeto que estou segurando, que é mais frágil do que minhas incertezas, porque não é nada além de uma concha.

Uma concha alongada.

Uma espiral perfeita. Rosa-pálido, pastel, doce, como você era.

Uma lembrança me atinge como um balde de água gelada.

— Mamãe, mamãe, encontrei uma concha!

— Diego, querido, você tem que parar de sair correndo, eu não consegui te ver. Eu suspiro enquanto abraço meu filho e desfruto do calor de seu sorriso. Um sorriso que tem o poder de derreter uma geleira.

— Desculpe, mamãe, eu fui procurar uma concha, mas encontrei apenas uma rosa. Rosa é de menina. Você quer essa?

Sorrio e paro de abraçá-lo. Diego me olha nos olhos e tira do bolso de sua calça uma pequena concha.

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— Aqui está — disse, enquanto me mostrava seu achado. — É bonita como você, mamãe.

Coloco aquele presente precioso na minha mão e o observo.

— Obrigada, meu amor, guardarei com muito carinho. — Eu lhe dou um beijo barulhento na bochecha enquanto caminhamos pela praia.

— O mar me deu de presente uma concha. Ele gosta de mim, mamãe.

Chega! Já me fiz mal demais! Bato com a outra mão no volante e aperto com força a concha em direção ao meu peito. Essa lembrança me destruiu. São pensamentos que têm o poder de uma bomba, são fragmentos da vida que deterioraram minha alma imperfeita e me deixaram aqui, impotente, agarrada a uma concha, a única coisa que restou de você.

“O mar gosta de mim, mamãe.”

E ainda assim foi esse oceano que te arrancou de mim.

Eu coloco a concha de volta no bolso, enxugo as lágrimas e saio em direção a um lugar que nunca terei coragem de chamar de lar.

Porque minha casa é você, meu amor, em algum lugar, neste horroroso, maldito universo.

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PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO 1

Lua

Maio de 2018, Rochester, Minnesota.

— Ergam suas taças, senhores! — A voz de Rafael domina a agitação da sala de aula em que estamos. — Façamos um brinde à melhor professora de português que essa escola já teve!

— À Lua! — gritam meus colegas enquanto brindam.

Eu me aproximo de Rafael e deixo que nossas taças se toquem levemente para que emitam aquele som que sempre enche as festas, aquela nota melodiosa e feliz provocada por dois copos cheios batendo um contra o outro.

— Obrigada... — sussurro, aproximando a boca de sua orelha. — Foi muito gentil em organizar esse brinde surpresa. — Reforço a palavra brinde para que ele entenda que isso não é um adeus, de fato.

— Você preferiria uma festa? — pergunta Rafael com seu marcante sotaque espanhol.

— Não, esse brinde foi ótimo. — Levo a taça até os lábios e bebo um gole do espumante.

— Lua — Emily, minha colega de literatura inglesa, vem ao meu encontro. — Esperava que esse momento nunca chegasse. — diz enquanto se aproxima. Eu também. Também esperava que esse momento nunca chegasse.

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— Mas o tempo voou — comento com um sorriso fraco.

— E agora, com quem vou tomar café na sala dos professores? — Emily me lança um olhar melancólico e, por um segundo, vejo um brilho estranho nos olhos dela, aquela luz que precede as lágrimas.

— Não — digo a ela enquanto seguro sua mão direita. — Emily, estamos apenas dizendo “até logo”. Vou esperar por você na Califórnia daqui a alguns meses. Vamos nos ver, vamos nos falar, vai ver que...

— Eu sei, mas você é minha única amiga, Lua. É duro dizer adeus — ela me interrompe, levando a taça à boca.

— Eu também vou sentir sua falta. — Meus olhos ficam marejados, e estou prestes a cair no choro quando Rafael pousa a mão em meu ombro.

— Momento sentimental entre amigas? Tenho que voltar depois?

— Não, provavelmente sua chegada acabou de salvar tudo. Por favor, fique. Tenho que voltar para minha sala. — Emily sorri e se afasta.

Rafael está novamente do meu lado.

— Você pegou as taças de cristal. Foi perfeito — digo a ele, olhando para o velho relógio pendurado na parede.

— Nós não poderíamos brindar com copos de plástico. — Ele ri enquanto a sala de aula se esvazia.

Sinto Rafael acariciar meu ombro.

— Você não tem que voltar para sua aula, professor? — Tento demonstrar no modo de falar a melancolia na qual estamos envolvidos.

— Sim, tenho que voltar para meus alunos. Você vai para casa?

Aceno em confirmação.

— Está na hora de fazer as malas. — Ando em direção à saída.

— Lua. — Rafael segura meu braço, e eu paro de caminhar. — Não está me dizendo adeus, não é?

Suspiro.

— Assim que terminar, vou ao seu encontro — diz, mas eu permaneço lá parada, imóvel, impotente.

Rafael me faz virar e toca meu rosto com a palma de sua grande mão. Eu imediatamente percebo agora que o sentimento familiar e seu toque também acalmam meus nervos.

Abro meus olhos e respiro fundo.

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— Eu vou esperar por você — eu digo.

Então deixo meus passos cansados me levarem para fora daquela sala de aula. Para longe da escola em que estou. Na qual me senti acolhida nos últimos dois anos. Para longe daquilo que anestesiava meus dias.

Porque Rochester é minha bola de sabão, minha realidade alternativa, meu conforto.

Mas agora é hora de voltar para casa.

Porque a vida, de um jeito ou de outro, deve recomeçar.

— Acabou de arrumar as malas? — Sinto Rafael se aproximar. Estou sentada na cama king-size da casa em que reprimi todos os meus medos.

— Não, mas se quiser me ajudar, aceito, sem problemas. — Abro um sorriso antes de meu olhar encontrar o dele.

Rafael tem algo em suas mãos.

— E aquilo, o que é? — Indico um saco, que ele segura com força.

— A melhor comida chinesa de Rochester. — Ele pisca para mim e se senta ao meu lado.

— Obrigada.

— Eu sabia que você estaria com fome — responde, tocando uma longa mecha de cabelo escuro que cai no meu rosto. — Você está pronta?

— pergunta delicadamente.

— Eu preciso muito cortar meu cabelo, amanhã vou fazer isso antes de sair.

— Não estávamos falando sobre isso, Lua...

— Eu não sei, Rafael. — Pulo da cama e coloco as mãos na cabeça. — É mais difícil do que eu pensava. — Respiro fundo. — Eu preciso ir para casa, mas parece muito complicado para mim.

— Eu estarei lá. Você sabe, não é? — De repente, as mãos de Rafael apertam minha cintura quando ele envolve meu corpo.

— Nós não temos vinte anos, eu não pediria para você ter algo a distância comigo, você sabe, nós já conversamos sobre isso. — Eu escapo de

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seu abraço e jogo um cachecol de lã na mala. Eu preciso me concentrar em outra coisa.

— Isso não é verdade! — ele grita. — Nós nunca conversamos sobre isso, Lua. Nós não decidimos, você fez isso. Você sabe muito bem que para estar perto de você, eu largaria meu trabalho. Você pode, por favor, entender que ganhou meu coração?

Duas lágrimas caem dos meus olhos, rolam pelas bochechas. Em um segundo, Rafael está do meu lado.

— Você entendeu, Lua?

Eu me viro e seguro as mãos dele.

— Rafael, eu...

— Você o quê?

— Eu não posso ir para casa deixando as coisas como estão. Eu não posso fazer isso.

— Você não pode ou não quer, Lua? Você está certa, nós não somos duas crianças, então eu espero que você tenha a coragem de me dizer a verdade, como uma adulta.

— Ok, Rafael, eu não... — As palavras morrem na minha garganta, enquanto a voz trêmula deixa minha frase inacabada se perder no ar.

— Vamos, Lua, tenha coragem de admitir.

— É complicado! — digo e me afasto dele novamente.

— Não foi complicado quando você se enrolou comigo, quando passamos tempo juntos, quando você dormiu comigo por duas noites, nunca foi complicado. Por que agora?

Suas palavras me atingem. Eu o desapontei e sabia que isso aconteceria, mas eu estava destruída demais para tentar entender os outros. Deixei os braços de Rafael me embalarem, e ele entendeu meus silêncios. Gostei porque ele não fez perguntas, gostei porque não esperava nada de mim. Nós éramos Rafael e Lua, duas almas prontas para se perder em um abraço, nada mais que isso.

— Eu nunca te fiz promessas — eu digo. E é uma das frases mais tristes que eu poderia pronunciar, uma daquelas frases feitas de palavras erradas porque estavam destinadas a doer. Eu odiava os homens que terminavam seus relacionamentos dessa maneira, e agora eu estava fazendo isso.

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— Sério? Sério, Lua, chegamos a isso? — Eu o vejo virar e caminhar em direção à saída, mas decido interromper seus passos pegando sua mão.

— Desculpa, essa é a pior maneira de se falar isso.

Rafael se livra de meu abraço e olha com decepção em meus olhos.

— Não, talvez você esteja certa. Você nunca me fez promessas, mas você sabe, eu pensei que significasse alguma coisa para você, apesar de nós nunca termos namorado. Eu te amei e me preocupo com a gente, mas talvez seja a hora de ir.

— Não, por favor! — grito, sufocando um soluço.

— Diga-me por que eu deveria ficar.

— Porque você é o amigo com quem eu compartilhei os últimos dois anos da minha vida, porque você tinha o poder de me fazer sentir bem, porque você foi capaz de ficar ao meu lado aceitando meu silêncio e minhas frases pela metade e porque aquela comida chinesa é definitivamente muito para uma só pessoa. — Eu tento jogar sujo e vejo um sorriso querendo aparecer em seus lábios.

— Pegue os talheres e copos — diz ele, mudando de assunto.

— Obrigada.

— Pelo quê? — pergunta.

— Por ser esse homem maravilhoso por quem me apaixonei. Obrigada por ser o homem capaz de entender a dor, mas de deixá-la quieta, sem insistir para que ela saia.

— Todos nós temos dores, Lua. Eu nunca iria forçá-la a falar sobre o seu passado.

— Eu sei. — Tiro os talheres e guardanapos da bolsa.

— Tudo bem se comermos aqui? Eu não quero sair dessa sala. — Eu sorrio.

— Claro. — Ele balança a cabeça enquanto se senta de pernas cruzadas no grande tapete ao pé da cama.

Eu me inclino para entregar a ele um pacote de arroz com curry.

— Vou sentir sua falta — ele diz, levando uma garfada de arroz à boca.

— Eu vou sentir sua falta também.

— Como os alunos vão ficar sem a Srta. Morrison? — Ele sorri.

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— Eles vão ficar bem, no último período eu acho que os sobrecarreguei com tarefas. Acredite, eles ficarão felizes em se livrar de mim. — Eu tento rir.

— O que você vai fazer em Santa Cruz?

Limpo a boca com um guardanapo, tomo um gole de água e tento engolir o nó na garganta contra o qual luto há dois anos.

— Vou administrar o restaurante dos meus pais. Meu pai e minha mãe estarão em Nova York por alguns meses, e eles precisam de alguém para cuidar do lugar e da minha avó.

— Você nunca me contou sobre a sua avó — ele diz, enquanto mastiga. “Não te falei sobre um monte de coisas, Rafael. Todas essas coisas devem permanecer onde estão.”

— Vovó Rida é uma força da natureza, mas agora ela tem quase oitenta anos e está cansada. Eu tenho que voltar e cuidar da minha família, eu... — Respiro. — Eu não cuidei deles por muito tempo.

Rafael se inclina para mim e acaricia minha bochecha. Eu amo esse gesto porque me faz sentir protegida.

— Você veio para ensinar em Minnesota, você não abandonou ninguém, você estava apenas escolhendo o melhor para sua vida, não se sinta culpada.

“Mas eu deixei alguém, Rafael. Eu trago algo dentro de mim. Algo que não para de gritar, mas que me lembra a cada segundo do que eu perdi.”

— Estou satisfeita. — Afastei a sacola da minha visão depois de apenas algumas mordidas, tentando mudar de assunto.

— Você me promete uma coisa, Lua?

Eu assinto, porque Rafael é o tipo de homem que merece promessas. Mesmo que eu nunca as tenha feito isso antes.

— Prometa que quando você voltar para Santa Cruz, encontrará o que perdeu.

Suas palavras mais parecem facadas em minha carne. Uma bomba pronta para desintegrar a alma, reduzi-la a farrapos.

— Eu gostaria muito de te prometer isso. — Lágrimas ardem em meus olhos. — Eu gostaria, mas, mas... — Um soluço precede minhas lágrimas, e em um segundo, esse grito se derrama sobre meu rosto.

Rafael se aproxima para me segurar, como sempre fazia.

Meu rosto está enterrado em sua camisa, e minha dor está sem controle.

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— Shhh, Lua, está tudo bem. — Ele gentilmente acaricia minhas costas.

— Há algo que eu não tenho coragem de lhe dizer — eu admito entre lágrimas.

— Eu sei — ele responde.

— Você sabe? — pergunto, incerta.

Ele balança a cabeça.

— Eu não sei o que você está escondendo, Lua, mas eu sei que há algo que te aflige. Espero que você encontre a força para enfrentar essa dor, seja ela qual for.

— Há... Há muitas dores para serem confrontadas. — A frase sai tão instável quanto eu.

— Você vai conseguir, Lua Morrison. — Rafael me abraça e me lança um olhar doce, amigável e compreensivo. Um olhar daqueles que, mesmo em silêncio, tenta ficar perto de você.

— Eu não teria tanta certeza.

— Mas eu não duvido disso. Volte para casa, Lua. Em Santa Cruz há algo esperando por você. — Ele se levanta do tapete e sorri para mim pela última vez, depois caminha para os degraus em direção à porta.

Ele está prestes a sair.

— Obrigada — eu sussurro, antes que ele desapareça da minha visão.

Ele não se vira mais, porém, por um segundo, seus passos param, então ele começa a andar de novo e vai embora.

Estou indo para casa, Rafael. Eu estou indo para casa.

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Lua

CAPÍTULO 2

Fechar as portas é sempre difícil.

Hoje fechei a porta da minha casa em Rochester. Deixei dentro delas as minhas recordações. Tranquei essa mesma porta como faria com um cadeado em um diário. Arrastei minhas malas pelas escadas e corri para cortar o cabelo. Apaguei a antiga Lua com um corte curto. Agora meu cabelo toca a minha nuca, mas eu deixo minha franja um pouco mais comprida porque ela teria que continuar protegendo meus olhos dos intrometidos.

Meu voo atrasou duas horas, mas no fundo do meu coração, eu esperava que algo acontecesse e me convencesse a não ir embora.

Eu não queria ir embora, mas queria voltar.

A vida, às vezes, é uma grande contradição.

Eu queria voltar para Santa Cruz para recuperar a posse do meu fragmento de vida, mas meus olhos ainda temiam colidir com aquela extensão de água da qual eu fugia.

Então, eu respirei fundo, forcei as unhas na minha camisa enquanto o avião deixava a terra e me levava de volta para a Califórnia.

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Maio de 2018, Santa Cruz, Califórnia.

E é estranho. Eu escapei da minha cidade e, no entanto, não foi ela quem me traiu, não foi ela quem me destruiu, mas foi a única chance que tive. Fugir, mudar a vida, voar para longe, colocar vários quilômetros de distância entre mim e minha família era a única maneira de permanecer em pé, quando a coragem não era sequer uma possibilidade. Porque deixei a coragem em Portugal num barco há dois anos.

E agora, aqui estou eu. Eles estão indefesos diante da porta de entrada da casa do meu pai.

Sinto o cheiro do oceano, está atrás de mim, ouço o som das ondas que, como sempre, me machuca, me apunhala lembrando o que perdi.

Eu tenho de bater. Duas batidas fortes seriam suficientes para acabar com a tortura daquele som, do ar salgado que toca minhas narinas. Fiz duas tentativas.

— Lua, minha filha, você está aqui! — Meu pai abre a porta e me envolve em seus braços grandes. Imersa em seu calor, eu ainda posso me sentir como uma criança com seu herói pronto para defendê-la com uma espada contra todos os monstros.

— Papai — eu digo baixinho.

— Querida, como é bom te abraçar. Meu Deus! Quanta saudade!

— Eu também! Senti muito sua falta! — Eu apoio a cabeça na curva de seu pescoço e me afundo em seu abraço.

— O que me diz, vamos entrar?

Não, não quero. Quero ficar aqui, imersa em seu calor.

— Claro, vamos lá.

Meu pai pega as malas e começa a colocá-las para dentro.

— Nada mudou — comento ao dar os primeiros passos no restaurante.

— Não, eu não queria que nada mudasse.

Eu vejo o espectro da solidão em suas palavras, a mesma solidão da qual eu estava envolvida assim que voltei para a Califórnia.

Olho para as paredes, e uma fotografia me chama a atenção porque não é uma simples foto: é aquele tipo de imagem destinada a se tornar uma lembrança, uma lembrança dolorosa demais.

— Eu quero isso longe daqui — digo abruptamente, apontando para o quadro.

Meu pai suspira.

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— Não, Lua, eu não vou...

— Mas você deve. Você tem que fazer isso. Você tem que tirar aquela foto de lá, se você não tirar...

— Tudo bem. Se eu tiver que… — Ele se aproxima da parede e afasta o quadro, mas antes de colocá-lo de lado, ele beija a foto. Ele a beija, como se fosse uma pessoa.

— Espere — eu sussurro ante de ele o tirar. — Onde você vai colocá-lo?

— Eu a levarei comigo para Nova York.

— Não, você não pode fazer isso — eu digo, apontando para ele. Pego a moldura de suas mãos e a aperto contra meu peito, enquanto as lágrimas escorrem dos meus olhos.

— Dê para mim, Lua. — Meu pai estende a mão em minha direção.

— Coragem — ele me pede.

— Só um minuto. — Eu seguro a imagem mais perto do meu coração.

— Só um minuto — imploro.

Ele espera, eu respiro com força, como se quisesse esvaziar os pulmões para enchê-los de ar novo, mas é inútil: o único ar que entra nos meus pulmões é nublado, lamacento, é como a água de um pântano em que vagarosamente me afogo.

— Aqui está — ofereço o quadro a ele. — Não a leve para Nova York, por favor.Coloque em algum lugar, esconda-o, mas deixe aqui. Deixe aqui comigo. — Um novo soluço deteriora as minhas palavras.

Meu pai confirma com a cabeça, tira a foto e, com a mão livre, toca meu rosto.

— Espere aqui, meu amor, assim que eu me arrumar, vou fazer uma boa xícara de café para você.

Com passos rápidos, ele se afasta de mim.

O café sempre foi uma das minhas lembranças.

Seu cheiro me lembra minha mãe, aos domingos lentos, começando com um bocejo, sem pressa, sem correria, simplesmente um dia livre de compromissos. Como esses domingos estão distantes! Como estão distantes essas lembranças felizes! Agora meus dias livres são dias de dor, dias em que não há trabalho para me distrair, apenas o fragmento de uma imagem que gira em minha mente a esmo.

— Meu bebê chegou!

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— Vovó! — Eu enxugo meus olhos e a abraço com força. — Está linda!

— Você que é linda, querida. Cortou o cabelo. Você sabe o que dizem sobre uma mulher quando ela muda o cabelo?

Eu sorrio e caminho devagar até o sofá onde posso me sentar.

— Dizem que ela está pronta para mudar, para começar de novo. — O doce sotaque português da vovó Rida torna suas palavras menos dolorosas.

— Eu... eu não sei — respondo, nervosa.

— Você não deve ficar tensa, minha filha. Você chegou em casa, está conosco agora, e todos nós amamos você.

— É tão difícil. — Eu seguro a borda da minha camisa.

— Minha querida, a vida tem sido injusta com você, rasgou seu sorriso, arrancou o que tinha de mais precioso, mas você é forte, é a minha Pequena Lua forte. — As mãos dela acariciam as minhas lentamente.

Minha avó é a única pessoa com quem posso falar sobre esse assunto, porque ela é a única que percebe totalmente minha condição e me entende mais do que qualquer outra pessoa no mundo.

— O coração se foi, foi arrancado de mim. Em seu lugar há apenas um músculo desconhecido que me mantém viva, apenas um músculo, nada mais. Vovó Rida sacode a cabeça.

— Não é assim, meu amor. Seu coração está sempre aí. Ele está apenas esperando o momento certo para voltar à vida. Tenho certeza de que esse momento virá, Lua. Ele virá. — Ela levanta meu queixo com dois dedos, para que nossos olhos se encontrem. — Eu prometo a você, querida. Concordo com a cabeça, não porque tenho certeza, mas porque o olhar da minha avó é o conforto de que senti falta em todos esses anos. As avós são anjos vindos do céu, são a força dos netos, são o ombro sobre o qual chorar e a certeza de poder ser compreendido, mesmo quando o mundo parece se dissolver.

Vovó Rida, quando meu mundo se desintegrou, me deixou dormir ao lado dela, em sua cama, em seu quarto. Ela me protegia das perguntas do meu pai e da presença às vezes opressiva da minha mãe; ela me envolvia em seu cobertor mágico, um longo xale costurado à mão, que aliviava o sofrimento.

De uma coisa eu tinha certeza: o xale da vovó não era mágico, mas acalmava minha dor quando eu me envolvia nele. Era meu casulo. Meu lugar seguro, a escuridão perfeita e aquecida pela cor laranja da lã.

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— Você ainda tem o cobertor mágico? — Eu sorrio, apertando minhas mãos com força.

— O cobertor mágico já está na sua cama, Lua.

Eu sorrio novamente, olhando em seus olhos, e desta vez o sorriso é sincero.

Porque as avós são anjos que te protegem com suas asas invisíveis. Só as avós conhecem seus netos nos aspectos mais profundos de sua personalidade. Porque elas silenciosamente sabem quando precisam abraçar seus filhos. Porque as avós estão presentes e sempre estarão.

Minha avó estava presente quando eu era pequena, acordava no meio da noite, voltando dos pesadelos mais terríveis, com seus contos em português, com histórias de seus primeiros amores, com uma fatia de torta de pêssego.

Minha avó estava presente mesmo quando eu estava afundando.

Estava presente para me proteger dos outros, para secar minhas lágrimas quentes.

Vovó Rida estava presente há dois anos, quando voltei destruída para casa, fechando o mundo lá fora e entrando em meu silêncio.

Vovó Rida está presente agora enquanto aperta minhas mãos, enquanto coloca na minha cama um xale laranja que tricotou quando eu tinha quinze anos.

Um cobertor que já me protegeu da dor e ainda vai fazer isso. Como uma certeza, como uma carícia, como a lembrança de Diego impressa na minha alma derrotada e nos meus ossos.

Ela está lá, como uma estrela solitária pronta para aquecer meu universo sombrio.

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Lua

CAPÍTULO 3

Na Califórnia o clima é sempre ameno, mas nesse período, o pátio do restaurante se torna uma profusão de cores graças ao amor que vovó Rida dá às suas plantas.

Faz um mês que estou aqui. Já faz um mês que estou trancada no quarto, mas quando vou ao escritório do meu pai, sinto o cheiro das flores. Eu sinto, percebo.

Eu amo esse lugar. Eu amo porque, com suas janelas altas, permite-me ouvir os sons da natureza sem ver a fonte deles e, assim, sinto a brisa borbulhando em meus ombros enquanto estou sentada a minha mesa enquanto trabalho, evitando olhar para o oceano.

Toda vez que saio para alguma tarefa, meus olhos permanecem baixos: prefiro olhar para o concreto, não posso me deixar encantar pelo inimigo. Eu e o oceano somos inimigos.

Seu cheiro me persegue, mas eu o rejeito.

Sua visão procura permear meus sentidos, inibir meus olhos, fazê-los se render diante desse espetáculo, mas não é algo ao qual quero me juntar.

Agora, o único espetáculo que testemunho todos os dias é o da minha alma entregue à vida.

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Junho de 2018, Santa Cruz, Califórnia.

Isso acontece quando o maior amor que você teve se torna uma lembrança. Isso acontece quando você nunca parou de se condenar. Acontece quando o oceano era o seu habitat natural, seu lugar no mundo, mas depois decide subjugá-lo, destruí-lo, arrebatando o único coração que você tem.

Muitas vezes eu me perguntava por que ele não me levou embora. Eu gostaria de ficar entre essas ondas. Eu preferiria sentir meus pulmões cheios de água, eu teria fechado meus olhos e, naqueles poucos momentos de lucidez, antes que tudo terminasse, eu teria rezado em meu coração para que o amor da minha vida fosse salvo.

Ele teria vivido sem mim, teria me trazido em seus olhos, em seu reflexo, eu estaria com ele em todos os momentos da sua vida, meu espírito o teria seguido sempre.

Porque é isso que as mães fazem: elas seguem seus filhos, mesmo quando se vão. Elas os observam, protegem, não os abandonam.

Que tipo de mãe eu tenho sido?

Que tipo de mãe eu tenho sido?

Eu bati um pé contra a mesa para aliviar o nó na garganta, mas isso não passa. O cheiro de flores me deixa enjoada e, assim, o que uma vez eu considerei mágico se torna minha sentença de morte.

Uma sentença que me foi imposta quando eu perdi o Diego.

Eu não posso mais ser feliz, não posso mais viver.

— Lua, a torta de mirtilo está pronta. — Vovó Rida entra no escritório apoiada na bengala.

Sua coragem é incrível. Apesar das doenças, minha avó ainda consegue trabalhar na cozinha todas as manhãs.

— Obrigada, vovó, mas eu não estou com muita fome. Eu prometo a você que depois vou comer uma fatia na cozinha.

— Mas você não precisa ir até a cozinha, meu bebê. — Ela sorri.

— Não? E para onde devo ir? — pergunto, perplexa.

— Você deve tomar o café da manhã no pátio comigo.

Um lampejo de tristeza atravessa meus olhos. Eu nunca diria não, mas eu odeio esse pátio. Eu odeio a vista. Eu odeio o oceano.

— Eu não posso fazer isso — respondo abruptamente e tomo um gole do meu café preto.

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— Você não pode? Ninguém te impede.

— Por favor, vovó. Eu tenho muito trabalho e não consigo, não consigo...

— Eu me remexo na cadeira, procurando as palavras certas enquanto aperto as mãos no ar.

— Diego adorava tomar café da manhã no pátio. Faça isso por ele. Uma facada vem direto no estômago. Eu me levanto da mesa, quero que esse tormento termine logo.

— Não, Lua — minha avó diz lentamente quando me vê me levantar sem força.

— Eu estou indo, vovó. O que há de errado?

Seus passos cansados estão mais perto de mim.

— Eu não quero que você venha para o café da manhã com raiva. A torta de mirtilo é sua favorita e...

— Diego também amava a maldita torta, droga! — Eu me vejo gritando, envergonhada de mim mesma. Nunca falei com minha avó dessa maneira.

— Oh, meu Deus! Vovó, eu... Desculpe!

Vovó ainda está lá, olha para mim sem responder, então pega sua bengala.

— Se você quiser, pode me encontrar no pátio. Matias está preparando as mesas, então não temos muito tempo, mas estarei lá esperando por você.

Eu percebo a decepção em seus olhos e lentamente a vejo virar as costas e sair.

Então eu pego a bola de tênis da mesa, olho para ela por um segundo antes de jogá-la com toda a força que tenho contra aquelas malditas janelas altas que me lembram quanta vida há fora das quatro paredes claustrofóbicas da minha alma.

Meu vestido é esvoaçado pelo vento quando abro a porta. Em um instante estou no pátio, a brisa acaricia meus ombros nus e minha pele estremece. Em um canto está vovó Rida, que bebe uma xícara de café, embrulhada no xale laranja, meu cobertor mágico. Assim que ela me vê, sorri.

Eu me aproximo da mesa e, ignorando a visão, decido me sentar de costas para o mar.

— Bom, minha garotinha. — Vovó pisca para mim enquanto me entrega o prato com a torta.

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— Uau! Essa fatia poderia alimentar um exército! — Eu levo um pedaço aos lábios e me delicio com o sabor do mirtilo. — Essa torta é o paraíso.

— Está vendo? Você tinha mesmo que prová-la — vovó responde.

— Sinto muito pelo que fiz, você não merecia essas palavras — eu admito enquanto mastigo.

— Eu sei, amor, eu sei que não mereço isso, mas, veja só, as avós têm um poder: elas sempre perdoam seus netos. — Ela lentamente se levanta da cadeira e se aproxima de mim. Quando me dou conta, estou enrolada no mesmo xale que ela usava.

— Vovó, mas você vai ficar com frio — eu a repreendo. Embora seja quase verão, o ar aqui, de manhã, é sempre frio.

— Não, não vou sentir frio. O xale não era para mim.

— Não era para você? — pergunto a ela, enquanto seus lábios descansam suavemente na minha têmpora para se transformar em um beijo doce.

— Eu sei como é difícil para você estar aqui e eu aprecio seu esforço, talvez o cobertor mágico possa ajudá-la. — Ela sorri para mim e se senta ao meu lado.

Eu suspiro e coloco o garfo no prato.

— Eu não estou pronta para enfrentar o mar.

— Eu sei. — Ela pega minha mão na sua. — Mas, se você pensasse em se virar, o cobertor acabaria com seus arrepios. Porque é isso que você vai sentir, minha querida: uma miríade de pequenos arrepios.

— Como você sabe? — pergunto impulsivamente.

— Como eu sei? Desde que Diego se foi, todas as manhãs, quando abro as janelas e olho para o oceano, sinto aqueles pequenos arrepios. São pequenos, Lua, são quase imperceptíveis, mas são muito fortes. Esses calafrios são o lembrete do que perdemos. Porque Diego era seu filho, mas ele também era meu neto. Porque eu o vi nascer. Eu vi seus olhos pela primeira vez. Eu o vi com você. Nós estávamos juntas naquela sala de parto. Você era uma criança que deu ao mundo outra criança, uma criança linda. Uma menina que se tornou mulher dando à luz a criatura mais bonita do universo. — Ela enxuga uma lágrima e depois continua: — Quando você fugiu para Minnesota, eu sabia que você estava fazendo isso porque não queria mais ver o mar. Eu sabia, seu pai sabia, todos nós sabíamos.

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— Por que você não me impediu? — pergunto, perplexa. Vovó endireita os ombros e une a massa de longos cabelos brancos sobre um dos ombros. Então eu saio do abraço dela e acaricio sua cabeça.

— Porque, quer você acredite ou não, minha filha, estávamos tão destruídos quanto você.

Eu acredito em você, vovó. Eu acredito em você.

— Nós perdemos nosso mundo e, quando afundamos, não percebíamos que também estávamos perdendo você. Seus pais e eu nos sentimos tremendamente culpados por isso. Nós não estávamos ao seu lado quando você mais precisou, mas a verdade é que estávamos procurando uma maneira de sobreviver. Desculpe, Lua, me desculpe se você puder. — As palavras saíram embargadas pelas lágrimas.

— Ah, vovó, você não tem nada de que se desculpar. — Minhas lágrimas quentes rolam pelas bochechas. — Você foi perfeita. Não é verdade que me deixou sozinha. Você me envolveu em seu cobertor. Você ainda me envolve nesse cobertor, você me diz que há algo que pode derrotar o mal. Você está sempre presente. Você também está presente com sua torta de mirtilo e com o amor com que me cobre. Isso não é pouco. Isso é tudo de que eu preciso, tudo do que preciso para recomeçar devagar.

— Recomeçar?

— Se você me apoiar, eu vou começar de novo. Vou tentar fazer isso. Vovó e eu estamos abraçadas. O cheiro das flores nos rodeia e a brisa do mar me diz que o oceano está atrás de mim.

— Eu vou ficar ao seu lado, meu amor. — Vovó Rida acaricia minha mão direita.

Eu confirmo balançando a cabeça.

— Agora é melhor eu voltar. Eles estão esperando por mim na cozinha, você vem comigo?

— Não. Vou ficar mais um pouquinho aqui. — Não sei por que digo isso, mas, de repente, não sinto mais a necessidade de correr e me trancar na minha gaiola de ouro.

— Tudo bem. — Vovó se levanta devagar. Então, com seus passos lentos mas determinados, ela entra no restaurante.

Eu me enrolo no xale e deixo minha dor partir ao vento. Meus olhos estão fechados quando ouço passos se aproximando.

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— Desculpe, você sabe onde posso encontrar Matias Souza Oliveira?

Uma voz viril e profunda me faz tremer. Eu decido abrir os olhos e, quando meu olhar encontra o azul das profundezas, de repente volto a desviá-lo. Esses olhos são tão profundos quanto o oceano, são muito fundos para não se afogar.

— Oi?

Percebo que não respondi sua pergunta, oprimida pelo azul hipnótico e agudo de seu olhar.

— Matias está na cozinha nesse momento, se você quiser chamá-lo. — Meus olhos descansam em seus braços fortes e musculosos, até que me perco observando os contornos das tatuagens que se estendem do pescoço ao pulso.

O que esses desenhos significam? Sua pele não é escura, mas é bronzeada. Ele está vestindo uma fantasia azul. Azul como aquela maldita extensão de água.

— Eu não quero incomodá-lo. Ouça, tudo bem se eu deixar meu número?

— Eu não quero seu número — eu me pego respondendo instintivamente, ainda olhando para a tinta que mancha sua pele.

— Não é para você. É para o Matias. Peça para ele me ligar, ok?

Oh, meu Deus! Eu apenas pensei que ele queria me dar o número do seu telefone. Preste atenção, Lua.

Eu suspiro e tento olhar para cima. Agora meus olhos grudam em sua boca perfeita, cercada por uma barba curta e grisalha.

— Posso te deixar o número? — Um sorriso surge em seu rosto. Eu ainda não respondi, e ele está claramente se divertindo com isso.

— Você tem uma caneta? — pergunto a ele, continuando a olhar para qualquer lugar, menos para seus olhos.

— Não, me desculpe. Esse é o seu telefone? — Sua mão bronzeada aponta para a mesa.

Eu confirmo.

— Ok, seria pedir demais para você salvá-lo na lista de contatos e passar para o Matias?

Quieta, Lua. É para o Matias, não para você.

— Claro. — Eu passo o telefone para ele, e naquele momento, nossas mãos se tocam. Seus dedos são ásperos, como se estivessem sempre expostos à água, ao vento e ao clima.

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O homem pega meu telefone, digita o número e depois me devolve o aparelho rapidamente.

— Obrigado. Seu nome?

Eu me forço a olhar para cima e me perder por um momento naqueles olhos azuis.

— Lua. Meu nome é Lua.

— Obrigada, Lua, prazer em conhecê-la. Sou Maverick. — Ele estende a mão para me cumprimentar, e eu tento dar a minha com algum esforço. Seu aperto é firme e forte.

Eu me debruço sobre esse sentimento. Não sei quanto tempo fico ali, com o cobertor laranja em cima de mim, a brisa que toca meu cabelo e o oceano atrás de mim, de mãos dadas com um estranho.

Então, ele sorri para mim, e estou morta. Seu sorriso é brilhante, é sincero. Um daqueles sorrisos com os quais é difícil se deparar. Meus lábios tentam se abrir num sorriso pela primeira vez, mas depois voltam a se contrair. Ele solta a mão da minha.

— Até mais, Lua.

— Até mais, Maverick.

Então ele se vira, e sua silhueta se afasta lentamente.

Eu não sei o que aconteceu. Só sei que me perdi em um oceano e, pela primeira vez, não tive medo.

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