COPYRIGHT © 2016.
UNTIL HARRY BY L.A. CASEY
COPYRIGHT DA TRADUÇÃO © 2020. ALLBOOK EDITORA
Direção Editorial
Beatriz Soares
Tradução
Débora Isidoro
Preparação e Revisão
Clara Taveira e Raphael Pelosi Pellegrini
Capa
Barbara Dameto
Projeto Grá co e Diagramação
Cristiane Saavedra | Saavedra Edições
Esta edição é possível sob um acordo de licença originário da Amazon Publishing, www.apub.com, em colaboração com Sandra Bruna Agencia Literaria.
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográ cos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135
C332d Casey, L. A., 1991-
1.ed. De volta para casa / L. A. Casey ; tradução Débora Isidoro. – 1.ed. –Rio de Janeiro: Allbook, 2020
278 p.; 16 x 23 cm.
Tradução de: Until harry
ISBN: 978-65-86624-20-5
1. Romance americano. I. Isidoro, Débora. II. Título.
20-66199
2020 PRODUZIDO NO BRASIL. CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM
CDD 813
CDU: 82-31(73)
t os os meus anjos no céu – jo v ês mais tarde.
CAPÍTULO 1
Dia 1 em York
Lane:
Est escre ndo esta carta p que acho que existe uma chance mai de v ê a ir e ler, em z de simplesmente deletar, c o sei que faz c meus e-mails. Não v drar a pílula nem falar s re amenidades. V direto ao p to. Peço desculpas p dar a n ícia em um pedaço de papel, mas tio Harry faleceu hoje de manhã. V ê precisa r e se despedir. Mamãe e Vovó não estão lidando m c a m te dele. Nenhum de nós, na rdade. Sentimos muito sua falta, e, no m ento, precisamos de v ê. T os nós precisamos. O funeral é no sá do. P fav , m para casa. P fav . — L hlan.
Empurrei os óculos para o alto do nariz enquanto relia a carta do meu irmão pela milionésima vez desde que a recebera, dois dias atrás. Ela estabelecia duas coisas. Primeira: meu tio tinha falecido. Meu padrinho e querido amigo havia partido. E segunda: eu precisava ir para casa.
Nenhuma das duas coisas me fazia pular de alegria. Ergui os olhos do papel gasto em que Lochlan havia escrito e olhei pela janela do trem. A área rural de Yorkshire passava por mim, e em segundos me perdi em sua beleza verde. Infelizmente o glamour da interminável paisagem de sonho não era su ciente para disfarçar a dor em meu peito. A horrível a ição me trouxe rapidamente de volta ao presente, gritando que eu não podia fugir dele.
Não desta vez, Lane, cochichou uma voz azeda em minha cabeça. Desta vez, não pode fugir.
Nenhuma beleza a olho nu, nenhum conforto para o ouvido sensível poderia apagar a inevitável realidade que eu logo teria de enfrentar cara a cara. Mudei de posição no assento quando meu estômago protestou contra a ideia do que os próximos dias trariam.
Por que isso tinha que acontecer?, pensei, deprimida.
Eu me senti culpada por desejar momentaneamente estar em meu apartamento em Nova York, não em um trem a caminho da minha cidade, York, Inglaterra. Depois me senti envergonhada por questionar a morte do meu tio em um momento tão terrível para mim, quando devia estar questionando apenas por que Deus teve de levá-lo.
Minhas prioridades, como sempre, estavam erradas.
Era difícil engolir o nó que se formou em minha garganta. Depois de respirar fundo algumas vezes para me acalmar, peguei o celular no bolso do casaco e abri meus e-mails. Meu lábio tremeu quando fui subindo a tela. Havia centenas e mais centenas de mensagens do meu tio Harry que nunca deletei, e quei feliz por isso. Ele era a única pessoa da família com quem eu falava diariamente. Na verdade, era a única pessoa da família com quem eu ainda falava. Consegui fugir de todos os outros, mas não do meu tio Harry.
Ele era um pé no saco, mas eu não o trocaria por ninguém no mundo todo. Era meu amigo mais verdadeiro, em quem eu mais con ava, e agora ele havia partido.
Estranhei quando não me mandou um e-mail na terça-feira de manhã. Tínhamos conversado pelo Skype na tarde anterior, e ele estava bem. Tínhamos uma rotina: eu acordava todos os dias com um e-mail dele, e trocávamos mensagens até que eu fosse falar com ele por Skype na minha hora do almoço, no trabalho. Quando eram duas da tarde em Nova York, eram sete da noite em York. Tio Harry ia para a cama por volta das nove da noite, e sempre conversávamos antes disso.
Na terça de manhã, quando não recebi o e-mail, liguei imediatamente para sua casa, mas o telefone tocou até a secretária eletrônica atender. Deixei um recado rápido pedindo para ele me ligar assim que pudesse e quei apavorada quando não retornou a ligação. Fiquei apreensiva por não poder ligar para os meus pais para perguntar por ele, já que tinha apagado o número deles anos antes.
O único número que sabia de cor era o do tio Harry, porque ele tinha o mesmo número desde que eu conseguia lembrar.
Quando a manhã de quarta-feira chegou e ele ainda não tinha feito nenhum contato comigo, decidi procurar na internet o número do telefone do Lilly’s Café, na Pavement Street. Minha avó era dona do estabelecimento, mas ela também estava na minha lista de pessoas com quem não falava, como meus pais e irmãos, por isso não éramos próximas.
Não como éramos antes de eu sair da cidade.
Como exceção desse detalhe, decidi que, se tinha de telefonar para alguém para saber do meu tio, precisava ser para minha avó. Ela era teimosa demais, mas era a única pessoa da família com quem se podia argumentar. E bem pouco.
Não tinha internet no meu apartamento, o que era chocante, considerando que eu era editora freelancer, porque o sinal na minha região era muito ruim. Eu usava o Wi-Fi gratuito da loja local do Starbucks sempre que precisava de acesso. Naquela manhã de quarta-feira, me vesti com a intenção de ir até a Starbucks para entrar em contato com minha avó.
Encontrei o carteiro no térreo do meu prédio quando estava saindo, e ele me entregou uma carta. Havia carimbos de urgente no envelope, bem como adesivos de entrega no dia seguinte. Tinha sido postado no dia anterior. O endereço do remetente era o do meu irmão, e eu abri a correspondência imediatamente.
Li aquela carta desgraçada, e foi a segunda vez na vida em que meu coração se partiu em um milhão de pedaços. A devastação que habitava dentro de mim era uma emoção conhecida, mas dessa vez era causada por uma pessoa completamente diferente, relacionada a uma situação inteiramente diferente. Mais uma vez fui dominada pelo tipo de tristeza que penetra nos ossos, em vez de explodir em uma cascata de lágrimas. A tristeza que eu sentia me preenchia da cabeça aos pés, e eu não conseguia fugir dela.
Mas tentei. Tentei pensar em outra coisa quando reservei o voo para Londres. Tentei pensar em outra coisa quando aterrissei no Aeroporto Heathrow e peguei o trem Heathrow Express para a Estação Paddington. Tentei pensar em qualquer coisa que não fosse o rosto do meu tio Harry, e fui bem até pegar um táxi da Estação Paddington para a Estação King’s Cross e embarcar no último trem da jornada para York. Assim que pisei no Vagão B, o vagão silencioso, a voz do tio Harry explodiu em cada pensamento que eu criava para tentar encobri-lo. Sua voz estava presa em mim, e eu me sentia confortada e triste por isso.
Fui arrancada dos meus pensamentos quando o trem parou de repente. Confusa, olhei pela janela. Não olhava mais para a área rural; agora estava olhando para a plataforma movimentada da minha última parada: York.
Bem-vindo ao lar, Lane.
Depois de respirar profundamente, levantei e, nervosa, guardei o celular no bolso do casaco, antes de pegar minha pequena mala no compartimento de bagagem sobre a cabeça. Alguns minutos mais tarde, estava andando sozinha pela plataforma, puxando a mala. Peguei um táxi da estação para o Holiday Inn, um hotelzinho que cava a uns dez minutos da casa dos meus pais, me registrei na recepção e me instalei no quarto pequeno, mas aconchegante. Estava descansando da viagem, quando o celular apitou. Vi o nome do meu irmão e gemi.
Lochlan queria a con rmação de que eu viria para casa para o funeral do meu tio. Não podia dizer que ele estava errado por tentar se certi car. Nunca respondi àquela carta. Só li e entrei em ação, reservando o primeiro voo disponível que decolasse de Nova York.
Estou aqui. Onde está o corpo?
Engoli a bile que subia pela garganta enquanto esperava impacientemente pela resposta. Tinha muitas perguntas, mas não queria resposta nenhuma.
Queria saber por que meu tio estava morto se sua saúde era perfeita. Queria saber por que ele estava vivo na noite de segunda-feira e morto na terça-feira de manhã. Mas se tivesse as respostas que minha mente buscava, seria como se aceitasse que meu tio havia partido, e eu ainda não estava pronta para isso.
Pulei de susto quando o celular apitou de novo, anunciando um novo e-mail.
Na casa da mamãe e do papai. Estamos todos aqui.
Um nó se formou em minha garganta. Fazia sentido que meu tio estivesse na casa dos meus pais; meu tio adorava minha mãe, e ela tinha um enorme afeto por ele. Era sua irmã caçula, sua cúmplice e sua gêmea. Esfreguei os olhos quando eles começaram a arder.
Chego aí em 20 minutos.
Peguei uma calça jeans justa, um par de botas, uma camiseta de manga comprida, todas pretas, e um blazer cinza. Vestida, parei na frente do espelho de corpo inteiro e me encarei. Continuava com a mesma aparência de sempre, mas percebi as diferenças sutis que outras pessoas veriam quando olhassem para mim. O cabelo castanho-chocolate agora estava mais comprido, chegava quase na cintura. Os seios eram mais cheios, e o quadril estava um pouco mais largo, dando ao corpo uma curva que me anunciava como mulher, não mais como menina. Minha pele de porcelana tinha uma porção de sardas claras, e os olhos verdes ainda eram escondidos por óculos que repousavam no alto da ponte do nariz.
Ajeitei o blazer e pisquei. Não sabia por que, mas não queria ir mal vestida ao primeiro encontro com minha família em seis anos. Queria parecer composta, embora estivesse destruída por dentro.
Trancei o cabelo para mantê-lo afastado do rosto e nem perdi tempo com maquiagem, porque ver meu tio abriria uma comporta de emoções que estragaria tudo, de qualquer maneira. Peguei uma echarpe azul-claro em cima da cama e a coloquei no pescoço, antes de pegar o celular e a chave do quarto.
A casa dos meus pais cava perto dali, decidi ir a pé. Não estava chovendo, o que era raro, mas era meio de outubro, e a noite já havia caído completamente às seis e começava a car realmente frio. Cruzei os braços e passei pela frente do café da minha avó de cabeça baixa. Estava fechado,
como eu esperava. Não vi luzes pelo canto do olho, mas, por precaução, não olhei diretamente para lá.
A caminhada até a casa dos meus pais foi mais silenciosa do que eu lembrava, e antes que pudesse perceber, estava diante da porta da casa onde cresci, onde passei a infância. Notei uma decoração discreta de Halloween, o que me fez lembrar do feriado próximo, mas, além disso, tudo era exatamente igual à última vez que a vi, há seis anos, como se nada tivesse mudado... ou acontecido.
Você consegue, disse a mim mesma.
Respondi o pensamento muitas vezes na cabeça enquanto erguia a mão e me preparava para bater na porta de madeira escura e envernizada. Não tive tempo, porém, porque a porta se abriu de repente, e duas mulheres de vinte e poucos anos surgiram do outro lado, saindo da casa. Eu não sabia quem eram e quei encarando as duas.
— Ah, desculpa! — disse a loira platinada, deixando escapar um gritinho antes de se recompor. — Posso ajudar?
Quem é ela? E por que está perguntando se pode me ajudar?
— Não, obrigada — respondi com educação. — Posso passar?
A mulher não saiu do lugar, e a morena ao lado dela cruzou os braços e chegou mais perto da amiga. Olhei para a loira, depois para a morena. Era como se elas estivessem tentando me manter fora da casa.
— Quem é você? — perguntou a loira. Seu tom não era grosseiro, só curioso.
Impaciente, batuquei com o pé no chão e contei até cinco antes de responder:
— Eu sou a Lane. Esta casa é dos meus pais. Será que pode me dar licença, por favor?
— Lane?! — A loira exclamou.
Ela falava como se me conhecesse, mas eu não a reconhecia. Balancei a cabeça em uma resposta a rmativa, e isso fez as duas mulheres arregalarem os olhos e se afastarem instantaneamente, formando um corredor entre elas.
Agradeci, passei no meio das duas e entrei na casa dos meus pais. Nervosa, respirei fundo e segui pelo corredor em direção à sala.
Olhei para trás quando a loira e a morena passaram por mim apressadas e foram em direção à cozinha. Depois olhei novamente para a porta da sala.
Sabia que meu tio estava lá, naquela sala; foi onde tia Teresa cou quando morreu, muitos anos atrás.
Segurei a maçaneta da porta e, com delicadeza, a pressionei com a ponta dos dedos. O cheiro de jasmim invadiu as narinas e me envolveu como um cobertor. Inspirei e deixei o conforto do aroma familiar me cercar. Mantinha o olhar baixo, mas vi a base do apoio sobre o qual estava o caixão. Caminhei lentamente até lá e hesitei por um momento. Antes de paralisar completamente, dei a volta no caixão, parei à direita dele e senti que o ar me faltou quando levantei a cabeça e o vi.
Cobri a boca com a mão quando um soluço escapou. Ele estava realmente ali — não era uma piada de mau gosto... O corpo estava morto, era verdade. Vê-lo trouxe de volta a lembrança de uma conversa que tivemos por Skype alguns anos atrás, e isso me abalou muito.
— Lane, querida, por favor, conversa comigo — meu tio havia suplicado.
— Você não está feliz. Eu vejo.
— Estou bem, tio Harry. — Suspirei. — Só está demorando mais do que eu esperava para me adaptar aqui.
Meu tipo respondeu diretamente.
— Você se mudou para a cidade há quatro anos.
— E daí? — resmunguei. — É outro país. Ainda tenho muita coisa com que me acostumar.
— Tem certeza? — insistiu. — Talvez deva conversar com sua avó, ela é muito boa nessas situações em que as pessoas cam tristes.
Um alarme disparou na minha cabeça.
— Ah, não, acho que não. Não quero falar com a Oprah Irlandesa. Ela vai car xeretando, e não quero isso. Você sabe que ela vai me convencer a entrar em um avião e ir para casa. Ela tem esse dom, e não vou deixar que ela me faça mudar de ideia.
— Então me conta o que está acontecendo... por favor? — ele implorou.
— Sinto que está com algum problema. Aconteceu alguma coisa?
— Estou bem — garanti, mas decidi acabar com seu sofrimento. — Só tive um momento de fraqueza e pensei em fazer uma coisa boba, só isso.
— Explica — meu tio quase grunhiu. — Agora.
Mordi o lábio inferior e baixei a voz para não ser ouvida pelos outros clientes do Starbucks.
— Tive um sonho ontem à noite e acordei suando frio. Por um segundo, por uma fração de segundo, pensei em tomar uns comprimidos. Antes de surtar e exigir que eu volte para casa, quero que saiba que tenho consciência de que foi um pensamento muito sério, então já marquei horário com uma terapeuta para conversar sobre isso.
— Lane. — A voz do meu tio era rme.
— Está tudo bem. Só quero conversar com um terapeuta sobre isso.
Meu tio piscou.
— Talvez te ajudasse conversar com Ka...
— Não — interrompi. — Não posso.
— Lane...
— Não, tio Harry. Não quero vê-lo e não quero falar com ele. Por favor. Não posso.
Meu tio grunhiu.
— Ok. Tudo bem.
— Você faz isso uma vez por semana, pelo menos. Quando vai desistir de me convencer a falar com ele?
— Quando estiver morto e enterrado.
— Não fala assim. Você não vai a lugar nenhum.
— Tio Harry... — choraminguei ao sair da lembrança e voltar ao presente. Cheguei mais perto do caixão, e minha barriga tocou a madeira. — Eu... sinto muito por não estar aqui.
O remorso me invadiu, e nesse momento quei muito brava comigo. Não estive a seu lado quando ele mais precisou. Pus minhas necessidades egoístas à frente de um homem que nunca fez nada além de me amar durante toda minha vida.
Um gritinho abafado soou atrás de mim, e senti braços envolverem meu corpo. Não sabia quem estava me confortando. Senti o cheiro da loção pós-barba, que me envolvia como o abraço. Pus as mãos sobre aquelas em cima da minha barriga.
— Tudo bem, meu amor.
Papai.
As lágrimas romperam a comporta, e eu me virei e enlacei sua cintura com os braços. Meu pai me abraçou e me embalou até os soluços se tornarem
suspiros abafados. Depois de alguns minutos, virei e olhei para meu tio. Toquei sua cabeça, fechando os olhos com força ao sentir a pele gelada. Abri os olhos e olhei para o rosto bonito.
— Sinto muito — repeti, antes de me inclinar e beijar a face fria. Depois encostei a testa na lateral de sua cabeça. — Sinto muito mesmo. Deixei tudo sair e chorei, chorei e chorei.
Tinha chorado ao ler a carta de Lochlan, mas nada se comparava à emoção de ver meu tio. Era quase como urrar de dor. Estava arrasada, e quanto mais olhava para esse tio maravilhoso, mais destruída e vazia me sentia.
— Como foi o voo? — uma voz perguntou da porta da sala. Não precisei olhar para saber que era a voz de meu irmão Layton. Não a ouvia há quase um ano, mas ainda era a mesma. Só um pouquinho mais rouca, consequência do mau hábito de fumar, provavelmente. Mas não era surpreendente. Ele estava com vinte e nove anos e fumava desde que eu conseguia lembrar.
— Longo — respondi para Layton sem desviar os olhos de meu tio. Meu pai continuava atrás de mim, me amparando. Eu sabia que o contato próximo mudaria, provavelmente, depois que meu tio fosse sepultado no cemitério no dia seguinte, mas não pensei nisso. Não me dava bem com meus pais, minha avó ou meus irmãos, mas naquele momento eu não pensava em nossas diferenças. Estava pensando no meu tio Harry.
— Onde está sua mala?
Fiquei um pouco tensa ao ouvir a voz de minha mãe, mas murmurei:
— No Holiday Inn.
Ouvi um rosnado.
— Vai car no hotel em vez de car aqui?
Suspirei, cansada.
— Agora não, Lochlan. Por favor.
Ele não ouviu.
— Você não vai car em um hotel de segunda...
— Lochlan. — A voz rme de Layton interrompeu nosso irmão. —
Falamos sobre isso mais tarde.
Silêncio.
Fechei os olhos ao ouvir os passos pesados de Lochlan se afastando pelo corredor em direção à sala de estar, cuja porta ele bateu. Não estava surpresa
por ele ter se retirado. Lochlan podia ser o irmão temperamental, mas a palavra de Layton era a lei. Ele era a única pessoa que controlava Lochlan quando ele ultrapassava o limite. Tentei não deixar meu irmão, ou sua explosão, me incomodar e me concentrei inteiramente em meu tio.
— Fiquei esperando seu e-mail — falei baixinho, e quei esperando a resposta que sabia que jamais teria. Meu pai me abraçou.
— Foi de repente, meu bem. Eu me senti mal.
— O que aconteceu? — z a pergunta que estava em minha cabeça desde o minuto em que li a carta de Lochlan, dois dias antes.
— Infarto — meu pai suspirou. — Ele não sentiu dor. Estava dormindo. Infarto, repeti silenciosamente. Foi isso que levou meu tio.
Mordi a boca enquanto analisava sua roupa. Não contive um sorriso ao identi car o macacão grosso de lã que eu havia tricotado para ele quando tinha dezesseis anos. Ele adorava, e por mais que tivesse repetido muitas vezes que devia jogar o macacão no lixo, ele se recusava. Dizia que era o melhor presente que já havia recebido, o que me fazia sentir mal por ele, porque o macacão era horrível. Se eu tivesse de tricotar algo a m de salvar minha vida, morreria.
Minha avó me impôs a tarefa árdua de tricotar no verão em que completei dezesseis anos. Eu era mais do que horrível nisso, mas vovó não se importava. Ela me obrigava a fazer tricô todos os ns de semana com ela e as amigas, cujas idades somadas ultrapassavam a minha em trezentos anos. Se minha avó me ouvisse falar assim, me daria umas palmadas. Ri sozinha da piada silenciosa e balancei a cabeça.
— Ele e esse macacão horrível — resmunguei.
Risadas suaves invadiram a sala, e isso ajudou a aliviar a dor e a tensão por alguns momentos fugazes.
Quando me senti preparada, respirei fundo e virei para encarar as pessoas que não via pessoalmente há seis anos. A primeira que vi foi minha mãe. Ela parecia ter mais do que seus cinquenta e quatro anos, mas com certeza a morte de meu tio tinha desenhado mais algumas linhas no rosto ainda bonito. Minha avó, que estava ao lado da minha mãe, ainda tinha a mesma aparência que vi um dia antes de ir embora. Meu segundo irmão estava diferente. Musculoso...
muito musculoso. Ele estava gordo na última vez que o vi, mas agora não havia mais sobrepeso.
— Caramba, Lay, alguém te matriculou em uma academia? — perguntei, perplexa.
Meu pai gargalhou atrás de mim, enquanto minha mãe e minha avó cobriram a boca com a mão e tentavam sufocar as risadinhas. Meu irmão fez uma careta, mas seus olhos azuis brilhavam.
— Eu não podia ser o gêmeo gordo para sempre, podia? — ele perguntou, vaidoso.
Sorri para ele.
— Acho que não. Você está ótimo.
Layton piscou.
— Você também, minha irmã.
Meu lábio tremeu por um instante, antes de me virar e olhar para meu pai. Seu rosto bonito era o mesmo, só mais cheio e peludo. Todo o corpo estava mais cheio.
Pisquei, espantada.
— Enquanto Layton vai à academia, você vai para o bar e come salgadinhos. É isso?
Meu pai ngiu puxar minha orelha.
— Pirralha atrevida. Pois saiba que umas camadas de gordura nunca zeram mal a ninguém. Elas me mantêm quentinho nessas noites frias de inverno.
— Estou brincando. — Ri e o abracei.
Gostava dele assim, mais gordinho: mais pai para abraçar.
Meu irmão, minha mãe e minha avó riam das minhas piadas e levaram alguns instantes para superar o momento de humor. Depois, minha avó se aproximou de mim e me abraçou.
— Oi, minha querida — ela disse.
Fechei os olhos e a apertei entre os braços, me perdendo em sua voz serena. Minha avó era de Crumlin, em Dublin, Irlanda. Seu sotaque era tão intenso quanto sempre foi, e embora morasse na Inglaterra há cinquenta anos, nunca perdeu o jeito irlandês, e eu amava isso nela.
Sorri carinhosamente.
— Oi, vovó.
Quando ela me soltou, Layton estava ali, me envolvendo com seus braços musculosos. Dei um gritinho quando me tirou do chão e me segurou como se eu não pesasse nada.
— Não consigo respirar — falei, debochada, ngindo falta de ar. Meu irmão me pôs no chão e riu.
— Terroristinha.
Fiz uma careta para ele, mas sorri quando minha mãe se aproximou de mim. Esperava que ela sorrisse e talvez até derramasse umas lágrimas, mas certamente não esperava que chorasse de soluçar enquanto me abraçava, e foi o que fez.
— Bem-vinda, bebê — choramingou. — Senti muita saudade. Abracei seu corpo delicado e a apertei.
— Também senti saudade, mãe.
Essa era a verdade mais honesta: senti falta dela. Não concordávamos sobre eu ter saído de casa, mas ela ainda era minha mãe, e eu a amava muito. Ela me abraçou por um bom tempo enquanto chorava. A todo instante recuava, olhava para o meu rosto, depois me apertava de novo com toda força. Era como se não conseguisse acreditar que eu estava ali, na frente dela. Isso me deixou feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por ela estar feliz em me ver, e triste porque era minha culpa ela raramente ter uma chance de me ver.
Você tem seus motivos.
— Está tudo bem, mãe — falei, correspondendo ao abraço.
Não estava, mas senti que tinha de dizer aquilo.
Quando nos separamos, nalmente olhei para meu tio e franzi a testa.
— Acho que a única pessoa que ainda não cumprimentei é o Lochlan.
Ouvi alguém tossir atrás de mim.
— Não exatamente.
Ah, não, supliquei em silêncio. Por favor, Deus, não.
Senti meus olhos se abrirem quando sua voz me envolveu como um cobertor quente. Por mais que alguns anos tivessem passado, eu conheceria essa voz mesmo que fosse só em um sussurro. Virei devagar, mas parei ao vê-lo em pé na porta da sala, apoiado no batente, com as mãos nos bolsos da frente da calça jeans.
Seus olhos O que aconteceu com seus olhos?
Eu amava muitas coisas naquele homem na minha frente, mas os olhos eram, de longe, minha parte favorita. Eram as primeiras coisas para as quais olhava sempre que o via. Havia sempre um brilho travesso nos olhos cor de uísque que só eu podia ver, porque olhava com atenção. Era um brilho que me dizia que sua alma estava viva e prosperava, mas o que eu via agora me fez arrepiar.
Não havia brilho, nenhum tipo de luz em seus olhos. Estavam mortos e re etiam o céu cinzento e nublado que sempre encobria York. Eram tão cativantes quanto assustadores.
Embora eu tivesse me mudado para milhares de quilômetros longe dali a m de fugir dele, todos os dias dos últimos seis anos acordei vendo aqueles olhos cor de âmbar e dormi ouvindo aquela voz relaxante. Não conseguia me livrar dele, independentemente de estar do outro lado do mundo ou na sala ao lado.
Eu vivia e respirava Kale Hunt, e isso estava me matando.
— Kale — consegui sussurrar enquanto olhava para o primeiro homem que partiu meu coração.
Ele olhou para mim e, sem nenhum sinal de emoção, piscou automaticamente e acenou com a cabeça.
— Bem-vinda, Laney Baby.
CAPÍTULO 2
Seis anos de idade — 20 anos atrás
— Lane? Onde você está?
Cobri as orelhas com as mãos, fechei os olhos com força e tentei conter os soluços, mas não consegui. Eles castigavam o corpo, porque minha cabeça doía muito. Massagem não fazia a dor ir embora e só piorava a vibração.
Abri os olhos quando um braço passou por baixo dos meus joelhos e outro amparou minhas costas. Dei um gritinho quando erguida de repente, e, instintivamente, passei os braços em torno do pescoço da pessoa que me carregava. Olhei para aquele rosto, e quando brilhantes olhos cor de âmbar encontraram os meus, chorei.
— Kale!
Kale Hunt era meu melhor amigo no mundo todo. Se alguém podia me fazer sentir melhor quando eu enfrentava uma dor tão forte, essa pessoa era Kale. Era sempre ele quem secava minhas lágrimas e punha um sorriso em meu rosto.
Enterrei o rosto na curva de seu pescoço e solucei como se meu mundo estivesse acabando. Kale se aproximou de uma carteira em minha sala de aula. Ele me pôs sentada em seu colo e me abraçou. Ficou me embalando de um lado para o outro, até eu me acalmar o su ciente para me sentar direito, sem babar em tudo.
Olhei para Kale quando ele me ofereceu um lenço que tirou do bolso. Depois de limpar o nariz e o rosto de lágrimas e ranho, assoei o nariz e funguei, antes de amassar o lenço usado.
— O que aconteceu? — Kale perguntou com tom preocupado. Continuei fungando, mas silenciosamente. Não queria contar para ele, porque me meteria em encrenca séria, e ele gritaria comigo, provavelmente. E não queria ouvir gritos.
— Lane? — Kale insistiu quando desviei o olhar. — O que aconteceu? Senti meu lábio inferior tremer, e ele suspirou.
— Não estou bravo com você — ele a rmou com tom suave —, mas você precisa me contar o que aconteceu. Anna O’Leary foi me contar que você veio para cá correndo do pátio e que tinha acontecido alguma coisa. Por favor, me conta o que foi.
— Eu... eu estava brincando de pular corda com Anna O’Leary e Ally Day, e o Jordan Hummings pegou nossa corda e saiu correndo. — Abaixei a cabeça até o queixo encostar no peito. — Corri atrás dele e tentei pegar a corda de volta, mas Jordan caiu e disse que era minha culpa, depois ele deu um soco na minha cabeça, e agora está doendo muito.
Kale me segurou com mais força.
— Jordan Hummings? — ele rosnou. — O menino da minha sala? Assenti devagar.
Por isso eu estava com tanto medo; Jordan era um menino grande como Kale.
— Ele te bateu? — Kale perguntou com um grunhido.
Comecei a chorar de novo quando a raiva de Kale se tornou evidente. Ele se livrou rapidamente da expressão furiosa e, com a mesma rapidez, me abraçou. Ele me acalmou, disse coisas doces e falou que ia fazer tudo car melhor. Acreditei nele.
— Vem comigo — ele disse, levantou e depois me pôs em pé. — Meu recreio acaba em poucos minutos, tenho que ser rápido.
Kale estava nas turmas dos meninos grandes, e eu não gostava disso. Mas ele precisava car na turma dos meninos grandes, porque tinha nove anos e devia aprender coisas de menino grande... como matemática. Ano que vem, quando eu começar as aulas do segundo ano, Kale e eu teremos o mesmo horário de recreio e vamos poder brincar juntos o tempo todo, ele me disse.
— Aonde vamos? — perguntei quando Kale entrelaçou os dedos nos meus.
Ele resmungou uma resposta e me levou para fora da sala, pelo longo corredor que levava ao playground.
— Vou consertar o que aconteceu com você — ele disse ao abrir a porta e sair.
Segurei sua mão com força e fomos andando entre muitas crianças que brincavam de pega-pega, amarelinha e pulavam corda. Paramos perto das meninas que estavam pulando corda no mesmo lugar onde eu estive um tempo atrás.
— Ei, meninas, vocês viram o Jordan Hummings? — Kale perguntou. Eu não sabia quem elas eram, mas eram mais velhas que eu. Podiam ser da turma de Kale, porque sorriram quando ele fez a pergunta. Estreitei os olhos para elas e cheguei mais perto de Kale. Não gostava de como elas olhavam para ele. Pareciam felizes demais por vê-lo.
— Oi, Kale. — A menina de cabelo vermelho e rosto sardento se animou.
— Eu vi. Ele foi lá para trás dos galpões com os amigos. Mas não sei por quê.
Kale sorriu para a ruiva.
— Obrigado, Drew.
O sorriso de Drew tocava suas orelhas. Era largo assim.
— De nada — ela respondeu, ajeitando o cabelo brilhante atrás da orelha e sorrindo toda charmosa.
Não gostei da Drew; não gostei nada dela.
Puxei a mão de Kale quando ele não saiu do lugar. Estava ali parado, olhando para essa garota, a Drew, com uma cara estranha, meio boba, e isso me deixou brava.
— Kale! — gritei.
Ele deu um pulinho, olhou para mim e fez cara de surpresa, como se tivesse esquecido que eu estava ali.
— Ela é tão fofa... é sua irmã?
Kale olhou novamente para Drew quando ela falou.
— Lane? Ela é minha melhor amiga. Conheço os irmãos dela e a família. Ela é como minha irmã.
O olhar de admiração de Drew para Kale me tirou do sério.
— Uau. Isso é muito fofo, Kale — Drew respondeu, e levou a mão ao cabelo vermelho e brilhante, girando as pontas em torno dos dedos. Eu queria arrancar aquele cabelo de sua cabeça. Drew o tocava demais.
— Ah... é? — Kale gaguejou, e teve que tossir para limpar a garganta, porque fez um ruído estranho.
Drew assentiu.
— É. Acho muito legal você cuidar dela.
Kale mudou de atitude. Deu de ombros como se o que Drew dissesse não fosse importante, depois soltou minha mão para poder colocá-la sobre meu ombro.
— Bom, é assim. Alguém tem que cuidar dela. Ela tem seis anos, mas é pequena para a idade. É só uma criança.
Olhei para Kale com a testa franzida e decidi que não gostava de como ele cava diferente perto dessa garota, a Drew, e da amiga dela, uma loira que não fazia nada além de car ali parada olhando para ele desde o momento em que Kale perguntou por Jordan.
Jordan.
Ao lembrar do motivo para Kale estar falando com essas meninas, puxei sua mão para chamar sua atenção, e quando ele olhou para mim, falei:
— Jordan.
Kale fez cara de surpresa, depois balançou a cabeça como se organizasse as ideias e contraiu a mandíbula.
E olhou para Drew.
— Você disse que Jordan foi para trás dos pré-fabricados, não é?
Drew balançou a cabeça para cima e para baixo.
— Aham.
Kale piscou.
— Obrigado, linda. — Depois olhou para mim. — Fica aqui com a Drew. Já volto.
Depois ele passou por mim e foi em direção aos galpões pré-fabricados. Eu estava quase chorando, porque ele tinha feito algo errado. Chamou Drew de linda, mas isso devia ter sido um engano, porque ele dizia que eu era a única menina linda no mundo. Só eu. Ele sempre repetia.
— Ouviu isso — Drew gritou para a amiga enquanto batia palmas, como uma foca no zoológico. — Ele me chamou de linda. Linda!
A amiga de Drew pulava no lugar e gritava. Resisti ao impulso de en ar os dedos nas orelhas para bloquear o barulho horrível.
— Ouvi! — A amiga de Drew respondeu, aplaudindo como uma foca.
— Eu ouvi. Ai, meu Deus! Ele gosta de você! Viu como ele não conseguia parar de te encarar? Você tem muita sorte, Drew... ele é lindo!
Eu não queria car ali ouvindo Drew e a amiga suspirando por Kale, por isso corri atrás dele. Ouvi Drew me chamar, mas não olhei para trás para responder. Na verdade, mostrei a língua para ela em pensamento.
Segura essa, Drew.
Vi Kale quando ele desapareceu atrás dos galpões e corri atrás dele, corri tanto quanto podia. Cheguei à parte de trás dos pré-fabricados no mesmo instante em que uma mão agarrou meu ombro.
— Pode parar. Kale disse para você car comigo.
Olhei para trás e vi Drew, que olhava para mim séria. Seu peito subia e descia como o meu, e nós duas tentávamos recuperar o fôlego.
Ela olhou para frente. Sua boca formou um O antes de Drew cobri-la com a mão e gritar. Pulei assustada e olhei para frente, mas também gritei quando vi o que Drew tinha visto.
Kale estava brigando... com três meninos.
— Kale! — gritei quando um dos três chutou um lado de sua barriga. Tentei correr para ele, mas braços me envolveram.
— Para! — Drew cochichou no meu ouvido. — Você vai se machucar! Eu não me importava; tinha que ajudar Kale antes que ele se machucasse.
— Solta ele! — gritei para o garoto. — Para com isso, por favor!
O barulho de socos e tapas dominava meus ouvidos, e quando eu me preparava para gritar de novo, um dos garotos em cima de Kale uivou ao levar um chute entre as pernas. Ele caiu de costas no chão e apertou entre as pernas com as duas mãos. Não levantou nem tentou bater em Kale de novo; cou caído e começou a chorar de dor.
Alguns segundos depois, outro menino caiu de cima de Kale segurando o nariz e começou a chorar, e como o outro ao lado dele, cou no chão segurando o rosto, enquanto o sangue escorria por entre os dedos com que ele apertava o nariz.
Eu não sabia por que, mas segurei com força os braços de Drew, que abaixou para me pegar. Ela me abraçou e tentou virar para eu não ver o que
estava acontecendo, mas olhei para trás e vi que o último menino brigando com Kale era Jordan Hummings. O garoto que roubou minha corda e deu um soco na parte detrás da minha cabeça.
Kale estava em cima de Jordan. Os dois estavam sujos de sangue, mas Jordan estava mais sujo que Kale, e estava chorando. Kale não chorava. Jordan levantou as mãos e tentou tirar Kale de cima, mas Kale empurrou suas mãos e o agarrou pela gola da blusa do uniforme, para segurá-lo.
— Se algum dia — Kale gritou na cara dele — encostar na minha família de novo, eu te mato, porra!
Sufoquei um gritinho. Kale tinha dito um palavrão, um palavrão de verdade. Quando seu pai e sua mãe descobrissem, ele estaria muito encrencado.
— Eu não encostei em ninguém! — Jordan chorava, tentando desesperadamente escapar das mãos de Kale.
— Mentira! — Kale berrou, agarrando a gola de Jordan com a outra mão. — Você bateu na Lane! Uma menina pequena. Ela só tem seis anos, e você deu um soco na cabeça dela!
Drew deixou escapar uma exclamação surpresa ao ouvir a declaração e me abraçou com mais força, massageando minhas costas com uma das mãos. Eu odiava admitir que o gesto me confortava e ajudava a diminuir as lágrimas. Odiava estar abraçada a ela e odiava me sentir melhor com isso. Não queria precisar da ajuda de Drew, porque Kale falou que ela era linda.
— Drew, o que está fazendo aí... ei! — Quando a voz de um adulto gritou atrás de nós, me assustei e escondi o rosto no ombro de Drew.
Estava paralisada de medo quando o homem passou correndo por nós e foi na direção de Kale e Jordan. Primeiro ele tirou Kale de cima do Jordan e o segurou de um lado, depois levantou Jordan. Jordan chorava, como seus dois amigos que continuavam no chão. Kale era o único que não estava chorando. Só olhava para Jordan de cara feia, com as mãos fechadas e o peito arfando.
Agora que Kale estava em pé e de frente para mim, eu podia ver seu rosto, e não gostei do que vi. Tinha um pequeno corte em cima da sobrancelha. Um o de sangue escorria do ferimento e parava na metade da bochecha. Os dois olhos estavam vermelhos, um pouco inchados, e os lábios estavam sujos do sangue, que se espalhava por sua boca. Vi que os dentes também estavam cobertos de sangue, porque ele respirava de boca aberta.
Agora que não havia tanto barulho, Kale ouviu meu choro e virou a cabeça na minha direção, e toda sua atitude mudou.
— Está tudo bem, Lane — ele garantiu com uma piscada para mim.
— Estou bem, juro.
— Mentiroso! — gritei. — Está sangrando! Olha todo esse sangue. Você deve estar morrendo!
Pensar nisso revirou meu estômago.
— Mas que merda aconteceu aqui? — perguntou, bravo, o homem que segurava Kale e Jordan.
Deixei escapar uma exclamação de espanto. O homem também tinha dito um palavrão.
— Ele deu um soco na cabeça da Lane! — Kale respondeu, jogando a acusação na cara de Jordan.
O homem olhou para mim, depois para Kale, Jordan e os dois meninos que ainda choravam no chão. Ele balançou a cabeça e começou a andar, puxando Kale e Jordan.
— Todo mundo para a diretoria! — ordenou. — Agora!
O medo que brotou dentro de mim era su ciente para me fazer querer desmaiar. Drew me pôs no chão e segurou minha mão, e começamos a andar na frente de Kale, Jordan e o homem que havia encerrado a briga. Ele mandou os outros dois garotos levantarem e seguirem o grupo, ou voltaria para buscá-los.
— Sim, senhor — os dois responderam, ofegantes.
Senhor.
O homem era professor na escola e estava nos levando para a diretoria. A encrenca era séria.
Os minutos seguintes foram confusos. Tive de car sentada na sala da espera da diretoria com Kale, Jordan e dois outros meninos, enquanto nossos pais eram chamados. Drew foi mandada para a sala de aula, porque não tinha nenhum envolvimento direto nos acontecimentos, só testemunhara a briga. Ela contou ao professor o que havia acontecido e foi dispensada.
Fiquei de cabeça baixa, embora o “senhor” que acabou com a briga tivesse dito que eu não precisava me preocupar que não teria problemas. Isso me fez sentir melhor, mas ainda me sentia péssima, porque Kale ia ter problemas por minha causa.
A sala de espera da diretoria estava em silêncio em um minuto e barulhenta no minuto seguinte, quando os pais chegaram. Ouvi meu pai e o pai de Kale discutindo com diversas vozes adultas e masculinas em algum lugar lá
fora. Depois ouvi as vozes das mães tentando acalmar as coisas; outras vozes de mulheres faziam a mesma coisa.
Corri para minha mãe quando ela entrou na sala de espera e solucei quando ela me pegou no colo. Senti a mão pressionando minhas costas, os lábios tocando um lado da minha cabeça.
— Lane? — meu pai murmurou. Olhei para ele com a visão embaçada pelas lágrimas.
— Você está bem? — ele perguntou em um tom preocupado. Balancei a cabeça.
— Jordan deu um soco na minha cabeça e está doendo muito. Meu pai contraiu a mandíbula e olhou para trás.
— Cuida do seu lho, antes que eu cuide. A discussão recomeçou, e o professor que havia interrompido a briga entrou na sala de espera e teve de interferir para acalmar todo mundo. A mãe de Jordan estava ajoelhada diante dele, apontando um dedo para o garoto e fazendo um sermão. O pai estava em pé ao lado deles, olhando com os braços cruzados e cara de bravo para Jordan.
Engoli em seco quando vi os pais de Kale. O pai estava ao lado dele, examinando seu rosto; a mãe, preocupada, também o cercava de cuidados, embora Kale dissesse estar bem. Ele não parecia bem; os olhos vermelhos e inchados começavam a car azuis por causa dos hematomas que se formavam. Tinha uma mancha escura crescendo em volta do corte sobre a sobrancelha e outra no lábio cortado. Aquilo devia doer, mas ele sorria e piscava para mim sempre que me via olhando para ele.
Tive de entrar na sala da diretoria com meus pais e contar o que havia acontecido. Fiz exatamente isso, e quando terminei, tive de car sentada na sala de espera com meus pais, enquanto Kale, Jordan e os dois amigos entraram na sala da diretoria com os pais. Esperamos por muito tempo, e às vezes escutávamos vozes alteradas, ou alguém chorando. Eu sabia que não era Kale. Ele nunca chorava. Nunca. Não chorou nem quando a avó morreu, no ano passado.
Eu fazia o jogo do “Eu Espio” com meu pai, quando Kale e seus pais voltaram à sala de espera. Levantei e corri para Kale, o que o fez dar risada com os pais. Passei os braços em torno de sua cintura e apoiei a cabeça em sua barriga. Ele descansou a mão sobre meu ombro e afagou minha cabeça com a outra.
— Você está bem? — ele me perguntou.
Agora estou, disse a mim mesma.
Olhei para ele e assenti.
— Amo você — disse, o que fez minha mãe e a dele suspirarem e nossos pais darem risada.
Kale riu.
— Também te amo, Lane Baby.
Apertei o rosto contra sua barriga e sorri. Ele era o melhor de todos os amigos.
— O que o diretor disse? — meu pai perguntou ao de Kale quando saímos juntos da sala de espera e da escola.
Minha mãe cochichou que podíamos todos ir para casa, e achei isso muito legal, porque não queria voltar para a sala de aula.
— Ele entendeu que Kale cou nervoso e sentiu que precisava defender Lane, mas violência não foi a melhor solução. Kale está suspenso por dois dias, mas Jordan e os amigos receberam uma semana.
— Como assim “suspenso”? — perguntei.
Kale riu e passou um braço sobre meus ombros. Ele se inclinou e sussurrou:
— Isso quer dizer que vou car na cama o dia todo, enquanto você vai para a escola.
O quê?
— Não é justo! Quero ser suspensa também!
A gargalhada de Kale ecoou pelo corredor a caminho da saída, mas ele parou de rir quando uma porta se abriu e Drew apareceu com aquela porcaria de cabelo vermelho. Senti o braço de Kale tenso sobre meus ombros, mas ele sorriu quando Drew olhou em sua direção.
— Kale! — Drew correu em sua direção. Ela realmente correu.
Dei um passo para o lado quando ela o abraçou. Olhei feio para ela e recuei até minhas costas encontrarem as pernas do meu pai. Olhei para ele e vi que sorria para o pai de Kale, e os dois balançavam a cabeça. Nossas mães também sorriam e balançavam a cabeça olhando para Drew e Kale. Não entendi. Por que estão tão felizes?
— Oi, Drew — Kale murmurou enquanto cheirava seu cabelo. Que nojo. Ele cheirou o cabelo dela. Eu vi! Drew encerrou o abraço.
— Que bom que está bem, quei preocupada.
— Ficou preocupada comigo? — Kale perguntou com tom incrédulo.
— É claro. Você foi suspenso?
Kale deu de ombros como se não se importasse.
— Dois dias.
— Por defender sua irmã? Isso é muito idiota.
— Nem me fala. — Kale riu e coçou a nuca.
Drew cou vermelha ao notar meus pais e os de Kale ali, acompanhando a conversa.
— Bom, eu anoto a matéria e passo tudo para você — ela disse, e cou ainda mais vermelha, tanto que sua cabeça inteira cou da cor de um tomate.
— Posso levar para você todos os dias depois da aula, para não car atrasado. Kale também cou vermelho, mas continuou em silêncio. Senti vontade de chutá-lo e dizer não para Drew no lugar dele, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. Estava muito brava, mas nem imaginava por quê.
— Seria ótimo... Drew, não é? — A mãe de Kale interferiu.
Drew olhou para a mãe de Kale e assentiu com um sorriso envergonhado.
— Sim, meu nome é Drew.
— Lindo nome.
— Obrigada. — O rosto dela cou ainda mais vermelho.
Ela abaixou a cabeça e olhou para as próprias mãos. Só então percebi que Drew carregava uma folha de papel toda escrita.
— Tenho que copiar isto aqui para a professora, preciso ir, mas vou guardar uma folha para você, Kale, e fazer as anotações. Levo tudo para você hoje, depois da aula... ok? — Drew perguntou esperançosa.
— Sim — Kale respondeu imediatamente, depois pigarreou. — Sim, tudo bem, legal.
O pai de Kale e o meu riram, e Kale cou tenso.
— Legal, então. Sei onde você mora, passo lá mais tarde. — Ela se aproximou e beijou o rosto de Kale.
Beijou!
Depois olhou para mim.
— Espero que você também esteja bem, Lane.
Drew se despediu de todos nós e seguiu pelo corredor. Kale não se moveu, e o pai dele o empurrou e riu.
— Boa, lho. Bem legal.
Kale ainda estava vermelho, mas empurrou o pai de volta para entrar na brincadeira.
— Cala a boca — ele resmungou, sorrindo.
Eu acompanhava tudo de cara feia, e minha mãe percebeu. Ela cutucou a mãe de Kale, e as duas olharam para mim e sorriram. Elas eram estranhas, sempre sorriam para mim quando eu estava olhando para Kale. Isso me assustava, mas nunca falei nada, porque elas eram velhas, e eu queria que fossem felizes.
— Kale — a mãe dele murmurou e inclinou a cabeça na minha direção. Kale olhou para mim e piscou quando viu minha cara.
— Por que está brava? — perguntou, curioso.
Eu não sabia por que estava brava, só sabia que Drew me irritava, mas não queria dizer isso a ele.
— Minha cabeça está doendo — falei.
Não era mentira; estava doendo, só não tanto quanto meu peito doía de repente.
Kale se aproximou e passou o braço sobre meus ombros.
— Podemos ver um lme com minha mãe e a sua e tomar sorvete em casa. Vai car melhor?
Esqueci tudo.
A dor de cabeça.
A dor no peito. Drew.
Kale chamando aquela garota de linda, sorrindo para ela e se comportando de um jeito diferente perto dela.
Só pensei em brincar com Kale e ver lmes pelo restante do dia. Encostei nele e sorri, e todo mundo riu. Ele sabia que minha resposta era um sim silenciosamente animado.
— Vamos embora, então. — Ele segurou minha mão. — Vamos ver uns lmes, Laney Baby.
Segurei sua mão com força e sorri com alegria quando saímos da escola. Eu adorava passar o tempo com ele, adorava quando me chamava de Laney Baby. Adorava tudo em Kale, e sabia que seria sempre assim.
Ele era meu melhor amigo, meu melhor irmão mais velho postiço e meu melhor protetor. Ele era meu melhor tudo. Ele era meu.