MENINA MÁ
R.S. GREY
TRADUÇÃO: ANA CAROLINA CONSOLINI
1ª EDIÇÃO – 2022 RIO DE JANEIROCOPYRIGHT © 2019. MAKE ME BAD BY R.S. GREY. COPYRIGHT © 2022. ALLBOOK EDITORA.
Direção Editorial BEATRIZ SOARES
Tradução ANA CAROLINA CONSOLINI
Preparação e Revisão CLARA TAVEIRA, RAPHAEL PELLEGRINI E ALLBOOK EDITORA
Adaptação de Capa e diagramação CRISTIANE | SAAVEDRA EDIÇÕES
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643
G859m
Grey, R. S.
Menina má / R. S. Grey ; tradução Ana Carolina Consolini. – 1. ed. – Rio de Janeiro: AllBook, 2022. 252 p.; 16 x 23 cm.
Tradução de: Make me bad.
ISBN: 978-65-86624-94-6
1. Ficção americana. I. Consolini, Ana Carolina. II. Título.
22-78680
2022
PRODUZIDO NO BRASIL.
CONTATO@ALLBOOKEDITORA.COM
CDD 813
CDU: 82-3(73)
CAPÍTULO 1
Ben
JÁ FAZIA UM BOM TEMPO QUE EU NÃO DAVA UM SOCO EM ALGUÉM. A ÚLTIMA VEZ
foi no colégio.
Uma parte de mim se preocupa de ter esquecido como se faz isso, mas parece intuitivo: adicione um pouco de energia, mire bem e esteja preparado para as consequências. Simples assim.
Normalmente, não me encontro em situações como esta: em um bar decadente do lado errado da cidade, a segundos de perder a paciência. Olho para a bebida na minha mão. Os dedos brancos. O vidro está prestes a se estilhaçar e minha palma vai virar uma bagunça sangrenta. Meu amigo Andy nota. Sua mão pousa no meu ombro em um gesto de solidariedade.
— Vamos lá, cara, ignora. Eles são uns idiotas. Idiota é uma descrição perfeitamente certa. Na mesa atrás de mim, há três caras que conheço desde que éramos crianças. Normalmente, o que sinto por eles é pena. Se eu cresci em berço de ouro, eles cresceram em berço de latão. Desde os tempos da liga infantil e do futebol Pop Warner, nossos caminhos raramente se cruzaram, mas esta noite Andy queria beber no Murphy’s.
— Vai ser divertido — disse ele. — Nunca estivemos lá. Talvez tenha uma atmosfera legal.
Então aqui estou eu, em uma banqueta frágil, bebendo cerveja barata e ouvindo esses Três Patetas falando merda.
Tudo começa com as frases mais suaves.
— …o menino bonito veio para o nosso lado da cidade…
— …pensa que a merda dele não fede…
— …bom demais para nós…
Eu os ignoro, bebo e assisto ao jogo dos Rockets na TV, mas eles estão ficando inquietos, impacientes. Eles querem uma reação, e quanto mais tempo fico sentado de costas para eles, mais procuram por ela.
— Ei, Ben! — um deles grita, tentando me forçar a prestar atenção.
Eu os ignoro.
Segue-se um assobio baixo e então o outro fala.
— Ben, estamos falando com você.
Digo a mim mesmo para manter o foco na TV. Os Rockets estão em alta. Tive um bom dia no trabalho.
Meus clientes estão felizes. Minha cerveja está meio vazia. A vida é boa.
— Tudo bem se ele não quiser conversar, pessoal. — É o líder do grupo entrando agora, Mac. Ele é um cara grande e forte, com uma barba espessa e desgrenhada. Jogamos no mesmo time da liga infantil, não era tão ruim na época, mas me lembro que seu pai costumava gritar muito com ele durante os jogos. Acho que filho de peixe peixinho é.
— Ele provavelmente está triste por causa da mãe.
Suas palavras são como um dardo venenoso.
Minha visão diminui, e Andy pula de sua banqueta, saindo antes que eu possa segurá-lo.
— Ei, o que tá pegando? Não podemos só assistir ao jogo? Me deixa pagar uma rodada para vocês.
Esse é o meu melhor amigo: sensato, tranquilo demais. Certa vez, ele mudou sua nota de 75 para 93 em um jornal da faculdade de direito só por meio de uma conversa gentil. Ele ainda se gaba disso até hoje.
Os caras atrás de nós riem de sua oferta, e eu finalmente me viro para avaliá-los por cima do ombro. Mac encontra meus olhos, e é exatamente como eu suspeitava — ele precisa parar com o fast food e ir atrás de um dentista. Ele cospe algo que deve se parecer com suco de tabaco em um copo de isopor e lança um sorriso de escárnio manchado de amarelo na minha direção.
Esses caras estão chateados com o mundo — os alunos que abandonaram o ensino médio, os excluídos da sociedade —, de modo que oferecemos a eles um presente ao vir aqui esta noite. Eu sou tudo o que eles desprezam. Para eles, sou o babaca que enriqueceu subindo em suas costas, os mantendo em um nível mais baixo. Eu sou a razão de suas vidas serem uma merda. Talvez eu devesse deixá-los me socar a noite toda apenas para aliviar um pouco o sofrimento deles, mas no segundo em que decidiram trazer minha família para o assunto, não havia como voltar atrás. Meu pai e eu passamos por um inferno nos últimos anos, e agora que penso nisso, não me importaria de descontar minha raiva nesses caras. Na verdade, parece até bom. Eu deslizo para fora do meu banquinho e tiro o paletó. É novo e gosto dele o suficiente para mantê-lo limpo. Jogo-o no assento e sorrio para o grupo enquanto arregaço as mangas.
— Meu amigo te ofereceu uma bebida — digo, minha voz calma, mesmo com o coração trovejando forte no peito.
O cara mais próximo de mim é magro e está com um macacão manchado de óleo. Eu esqueci o nome dele, mas não importa. Está inclinado para trás e apenas duas das pernas de sua cadeira tocam o chão. É uma pose arrogante. Ele está desafiando a gravidade a pegá-lo.
Ele cospe no chão aos meus pés.
— Não queremos a porra da sua caridade.
Andy franze a testa.
— Isso não é legal. — Ele aponta para baixo. — Você cuspiu nos sapatos dele. Ninguém quer cuspe nos sapatos, cara.
O cara magro faz uma verdadeira demonstração de que está puxando mais catarro na garganta e depois mira com cuidado nos meus pés novamente. Para qualquer outra pessoa, seria o suficiente para provocar uma reação, mas eu não dou a mínima para esse cara e sua superprodução de saliva.
É Mac quem finalmente atinge o alvo.
— Você me ouviu, Ben? — Mac instiga, sentando-se direito. — Eu perguntei sobre sua mãe. Ela ainda está louca? Ah, espera, isso mesmo, esqueci que ela…
O elástico dentro de mim se rompe. Sem um pingo de hesitação, dou um passo à frente e chuto as pernas da cadeira onde o cara estava.
As consequências que se danem.
CAPÍTULO 2
HOJE É MEU ANIVERSÁRIO DE 25 ANOS E ESTOU NO MEIO DA SEÇÃO INFANTIL DA biblioteca enquanto meus colegas de trabalho fazem uma serenata para mim. Esta é minha festa de aniversário oficial, a única que vou ter. Eu gostaria de estar em Vegas, em um daqueles clubes onde as Kardashians comemoram seus aniversários.
Luzes estroboscópicas estariam piscando, meu vestido seria de matar, e eu tropeçaria em um investidor bilionário, que por acaso teria o corpo de um jogador da NFL, no corredor a caminho do banheiro. Eu acidentalmente tropecei e caí — opa! — bem em cima de você. Ele também se apaixonaria por mim, instantaneamente. Minha vida mudaria para sempre.
Aqui, na realidade, há um pequeno bolo e algumas fitas penduradas ao acaso no teto. A maioria já caiu no chão, esmagada sob nossos sapatos. Em sua defesa, meu amigo Eli trouxe uma bandeja chique com frutas e queijos esta manhã, mas na verdade agora há apenas algumas migalhas de queijo azul e uns pedaços tristes de melão, já que beliscamos o dia todo.
— Parabéns para você — ele canta em voz alta, tentando levar animação para os outros dois festeiros. Ele até balança as mãos para frente e para trás, como um maestro de orquestra, como se isso os energizasse um pouco. — Nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida…!
Uma voz solitária irrompe do grupo.
— E para a Madeline… er… Madison…?
Nossa estagiária, Katy, ainda não sabe meu nome; ela está aqui há seis semanas. Além disso, está nesse momento enviando mensagens de texto.
Eli a fuzila com o olhar e prossegue com a música.
— E para a Madison tudo ou nada, tudo!! Uhul! — Ele bate palmas ruidosamente. — Faça um desejo!
Minha única vela está pingando cera azul no bolo, que é uma cortesia feita em casa pela sra. Allen. Ela reconhecidamente não é uma confeiteira, mas seu coração estava definitivamente engajado nisso, ela até escreveu meu nome na parte superior em uma letra cursiva branca trêmula. Eu amei. Eu fecho os olhos e tento pensar em um desejo bem quando Katy sussurra para Eli.
— Eu tenho que estar presente? Tipo, ainda estou sendo paga?
Durante todo o dia, evitei cuidadosamente a necessidade de fazer um balanço da minha vida, o que é um instinto universal nos aniversários. Fiquei longe das redes sociais para que algum anúncio de noivado ou nascimento não chamasse minha atenção. Eliminei toda a tentação de enviar mensagens para pessoas do passado (das quais existem exatamente 1,5), para ver se elas queriam “bater um papo”, escondendo meu celular na gaveta da mesa. No entanto, agora, no espaço de um milissegundo, sou atingida pela crise do primeiro quarto de vida que tenho tentado tão desesperadamente evitar.
COMO ESSA PODE SER MINHA VIDA?
Eu mantenho os olhos fechados, caindo em um buraco de minhoca de descrença. Como eu cheguei aqui? Na pré-adolescência, pensei que quando fizesse 25 anos, minha vida teria realmente se arrumado. Eu teria um conversível vermelho elegante, uma casa dos sonhos de três andares, uma proporção quadril-cintura abaixo de 0,75 e um namorado chamado Ken. Tudo bem que agora entendo que esse era o futuro da Barbie, não o meu.
Eu abro um olho, rezando para que, por algum milagre, tenha me teletransportado para aquele clube com as Kardashians e o bilionário, mas infelizmente minha vida ainda é a mesma. Há três pessoas na minha festa de aniversário: sra. Allen, a administradora da biblioteca de 75 anos, Katy, a estagiária desinteressada, e Eli, meu melhor amigo que trabalha na seção de ficção, no segundo andar.
Somos um grupo bastante heterogêneo.
Eu me inclino para frente e apago minha vela, sem me preocupar em fazer um desejo que não se tornará realidade de qualquer maneira.
— Não, Katy, você pode ir para casa.
Ela sorri, e vejo que ela mal reprime a vontade de dar um soquinho no ar de alegria. Fazendo uma bola de chiclete, ela acrescenta:
— Tudo bem se eu levar um pedaço de bolo para o meu namorado? Ele adora doces.
Que legal. O namorado dela gosta de doces, e meu namorado não existe. Eu resmungo para ela pegar o quanto quiser e, em seguida, começo a fatiar o bolo. É bom poder apunhalar alguma coisa.
— Qual é o sabor do bolo, sra. Allen? — Eli pergunta, inspecionando a cor marrom estranha e turva do bolo em seu prato de papel.
— Pão de centeio.
Faz sentido. Por que você não faria o bolo de aniversário de alguém com pão de centeio? Baunilha? Bah. Muito genérico e delicioso.
— Mas — ela continua — eu não tinha bicarbonato de sódio, então apenas adicionei uma xícara extra de farinha. — Oh, céus. Eu forço uma garfada, com um grande sorriso de agradecimento engessado no rosto. Eu fico eternamente grata quando a sra. Allen se abaixa logo depois de Katy, com uma desculpa de que seus joanetes a estarem matando. No segundo em que ela se vira, cuspo o bolo em um guardanapo e estremeço com o gosto.
— Oh, meu Deus, faça isso parar — eu gemo, deixando minha cabeça cair no bíceps de Eli.
Ele dá um tapinha no meu braço como se dissesse: passou, passou.
— Gostaria de poder fazer isso, mas aniversários são aniversários. Todos nós temos que suportá-los. Além disso, este não é tão ruim. Lembra quando Jared me deixou no dia 23 e eu fiquei tão bêbado, que chorei na varanda da frente e depois vomitei no capacho? Quando ele me perguntou sobre aquilo no dia seguinte, eu menti e disse a ele que alguns garotos do ensino médio estavam andando pela cidade fazendo isso como uma brincadeira.
— Sim, aquele não foi o seu melhor momento, mas agora você tem Kevin, e ele é ótimo.
Suas feições ficam imediatamente vidradas quando finge um desmaio apaixonado.
— Verdade. Ele fez valer a pena a dor no coração. O que me faz lembrar…
Ele se vira para mim, seus óculos grossos de armação preta mal escondendo a culpa que espreita seus olhos enquanto sua carranca se transforma em um sorriso flagrante de “por-favor-não-me-mate”.
Eli está prestes a me abandonar no meu aniversário.
— Não me odeie, mas Kevin ligou depois do trabalho. Aparentemente, teve um dia terrível e… — Devo parecer lamentável, porque ele corta a frase, balança a cabeça e pega o telefone no bolso da calça jeans. — Não. Quer saber? Eu só vou dizer a ele que estarei em casa mais tarde. É seu aniversário!
Temos planos de ir ao cinema!
Eu estendo a mão e a apoio em seu antebraço.
— Não, você precisa ir. Kevin precisa de você, e tenho certeza de que é importante.
Suas sobrancelhas se franzem, quase se unindo.
— Tem certeza? Eu realmente não quero deixar você…
Seu telefone toca, e eu sei que é seu noivo, porque sua expressão murcha. Exorto-o a atender a ligação, e no segundo em que Eli atende, posso ouvir Kevin chateado do outro lado da linha. Ele é um bombeiro. Tem um trabalho importante. Eu me sinto péssima e não vou deixar Eli ficar para ajudar a limpar a bagunça da festa. Além disso, não há muito o que fazer — a maioria das serpentinas já foi reduzida a pó. Eu gesticulo para ele ir. Vai, vai. Eu chutaria sua bunda se fosse flexível o suficiente para alcançá-lo.
Ele balança a cabeça e diz:
— É seu aniversário! — Caminho em torno dele e coloco minhas mãos em suas omoplatas, para que eu possa empurrá-lo em direção à porta. Eli se vira e cobre o telefone com a mão. — Sinto muito, Madison. Eu vou te compensar. Eu prometo!
Eu fico na porta, observando-o sair, pensando comigo mesma como ele e Kevin são adoráveis. São bonitos e estão em forma. Eles têm um cachorro que amam, frequentam as feiras de fazendeiros e brunches. A vida deles é digna de uma matéria de revista, a minha vida talvez mereça uma nota de rodapé perto do verso, após os quebra-cabeças de Sudoku e os jogos de Sete Erros. Meu olhar captura meu reflexo na porta de vidro.
Oh, meu Deus.
Certamente não sou eu.
Esta mulher parada diante de mim tem uma mancha de mostarda na blusa por causa do almoço. Os jeans estão largos em seus quadris e um pouco longos demais. Seu cabelo castanho-escuro está uma bagunça selvagem, indo em todas as direções, como se cada fio estivesse tentando pular do navio. Eu levanto a mão, e meu reflexo faz o mesmo.
NÃO. Ugh. Eu me viro de costas para a imagem aterrorizante. Se tivessem me dito há meia hora que minha festa de aniversário poderia ficar ainda mais triste, eu não teria acreditado.
Já são quase oito horas, mas não apresso a limpeza. Não faz sentido. Eu rasgo as fitas, uma de cada vez, e as jogo no lixo. A bandeja de frutas e queijo é a próxima. Sinto-me culpada de jogar fora o bolo da sra. Allen, então, em vez disso, coloco na Tupperware para levar para casa. Durante o processo de passar para o pote, eu tenho ânsias audivelmente três vezes. De jeito nenhum vou comer outro pedaço, mas ela não precisa saber disso. Depois que todas as evidências da festa sumiram, arrumo a biblioteca, guardando os brinquedos da área de recreação infantil e recolocando nas estantes os livros que foram deixados nas mesas. Endireito o cartaz com meu nome — Madison Hart, Bibliotecária Infantil — e, em seguida, me curvo para limpar uma mancha microscópica.
Mesmo com todas as minhas obrigações finalizadas, ainda não consigo reunir vontade de sair, então sento à mesa e jogo algumas rodadas de paciência. A biblioteca está absolutamente silenciosa, exceto pelo clique do meu mouse. Lenny, o segurança, nem está fazendo suas rondas habituais. Quando a equipe de limpeza chega, carregando seus aspiradores e esfregões, sei que é hora de ir embora. Não posso mais me esconder aqui. É hora de encarar os fatos: uma sequência de três vitórias consecutivas em Paciência foi tão emocionante quanto meu aniversário.
Eu me levanto e pego minhas coisas. Com a Tupperware, a bolsa, o presente de aniversário de Eli (uma das primeiras edições de Orgulho e Preconceito) e as roupas de inverno, estou sobrecarregada. Eu junto tudo em um braço e em seguida me inclino para desligar o monitor do computador, parando quando vejo minha vela azul de aniversário no chão sob a minha mesa. Deve ter rolado quando eu estava limpando. Franzo o cenho, tomada de pena da vela esquecida no chão e de mim, por não ter conseguido
fazer um desejo real a ela. É bobo, mas largo tudo na mesa e me abaixo para pegá-la.
Lá, sozinha no chão, eu a seguro diante da boca, fecho os olhos e faço o único desejo que me vem à mente.
Por favor, torne este próximo ano mais emocionante do que os últimos vinte e cinco.
E então eu sopro.
fEu moro a apenas meia milha da biblioteca, então vou e volto do trabalho a pé quase todos os dias. Quando as pessoas me perguntam sobre isso, digo que gosto do exercício, mas, na verdade, simplesmente não tenho dinheiro para gastar com seguro e financiamento de automóveis. Estou economizando cada centavo que ganho. Para quê? Não tenho certeza.
É final de fevereiro, e mesmo no Texas há um frio cortante no ar. Eu me abraço e enterro o rosto em meu casaco enquanto me arrasto ao longo da calçada.
Está mais escuro do que o normal durante a minha caminhada para casa. Eu provavelmente não deveria ter ficado até tão tarde, mas não há muito com que me preocupar. Nossa cidade praiana tem crescido rapidamente nos últimos anos, mas ainda é pequena o suficiente para eu me sentir segura mesmo em momentos como este.
Um carro passa e buzina duas vezes. Não consigo ver quem está dirigindo, mas é provável que nos conheçamos. Em Clifton Cove, todo mundo conhece todo mundo. Estou prestes a acenar quando percebo que não tenho um braço livre para fazer isso. Estou realmente sobrecarregada.
O centro da cidade é lindo mesmo nesta época. Parece algo saído de um parque temático da Disney. Todas as lojas têm um estilo semelhante: venezianas, jardineiras e toldos listrados. Cada um é pintado em uma tonalidade vibrante que se destaca pelo contraste com suas portas da frente brancas.
A rua de paralelepípedos é margeada por lâmpadas antigas que iluminam vagamente meu caminho. Passo pela confeitaria e pelos correios, um açougue chique em que nunca estive e uma loja de brinquedos. Todos eles estão
fechados a esta hora, mas eu quase prefiro desse modo — sem ter de lutar por espaço com turistas que lambem casquinhas de sorvete e posam para fotos. Eu tenho a rua para mim.
Outro carro passa, e o vento aumenta. Meus dentes batem, e uma sensação estranha sobe pela minha coluna. Quase parece que estou sendo seguida. Eu olho por cima do ombro, mas a calçada está vazia. Então me viro para frente mais uma vez e emito um grito ensurdecedor quando um homem vestido de preto bloqueia meu caminho. Não tenho tempo para reagir antes que ele me empurre com força contra a parede. Tudo em meus braços cai no chão. Minha primeira edição de Orgulho e Preconceito cai da sacola de presentes e para bem em uma poça de lama. Acho que realmente sou uma book lover, porque isso é o que mais me preocupa, não o fato de estar agora sob a mira de uma arma.
— Vire-se — o homem rosna rispidamente antes de pegar meu braço e torcê-lo em um ângulo doloroso. Não tenho escolha a não ser me virar em direção à loja de brinquedos e deixá-lo esmagar meu rosto contra a veneziana rosa-pastel. Um ursinho de pelúcia me encara pela janela.
— Por favor, me deixe ir! — eu grito em pânico.
— Grita de novo e eu puxo o gatilho.
Eu sei que é absolutamente insano, mas o pensamento que me bate agora é que eu deveria ter sido muito mais específica com o meu desejo de aniversário. Porque, ok, sim, embora isso seja tecnicamente “emocionante”, eu meio que esperava algo um pouco menos perigoso. Oh, espere! Eu mentalmente me chuto. Acabo de entender o que está acontecendo. Este homem não vai me matar. Não, tudo isso é um mal-entendido. Talvez ele esteja lutando para sobreviver e precise de dinheiro para comprar comida para seu filhote ou sua amada tartaruga. Ele só quer alguns dólares, tenho certeza.
— Se você olhar na minha carteira…
— Cale a boca — ele responde, torcendo meu braço com tanta força, que estremeço.
Nos romances que li, esse cara seria bonito. Eu o convenceria a deixar sua vida de crime para trás e viveríamos juntos em perfeita harmonia. Dou uma olhada rápida por cima do ombro e vejo que ele está usando uma máscara de esqui. A estrutura óssea por baixo não parece tão promissora. Além disso, seu traje preto — que deve ser para efeito de emagrecimento
— não esconde a barriga robusta projetando-se sobre a calça jeans. Oh, céus. Eu realmente não acho que ele seja um criminoso bonitão o qual serei capaz de convencer a viver uma vida honrada e íntegra. Isso não vai sair do jeito que eu quero. Desse modo, não tenho escolha a não ser tentar uma tática diferente.
— Tenho muito dinheiro na bolsa. Você pode levar tudo! Além disso, esse livro no chão é uma primeira edição de valor inestimável de uma das obras mais famosas de Jane Austen. Acho que você realmente vai gostar. Está um pouco enlameado agora, mas posso limpar para você e… Ele se aproxima, e sua respiração é realmente atroz enquanto cospe suas próximas palavras.
— Eu não quero seu maldito dinheiro ou seu livro. Agora cale a boca. A única coisa em que posso me concentrar agora é a dor aguda e fria de sua arma afundando na lateral da minha cabeça.
CAPÍTULO 3
Ben
O POLICIAL ME DEVOLVE MEU TELEFONE E CARTEIRA, O RELÓGIO E O PALETÓ. ELE está olhando para mim com aborrecimento e desdém, mas eu lanço um sorriso de “vai se foder” e me certifico de agradecê-lo.
Eu nunca fui algemado antes. Eu nunca sentei no banco traseiro de uma viatura policial e nunca ouvi meu direitos sendo lidos. Nunca entrei em uma delegacia de polícia e fui despojado dos meus pertences, empurrado na frente de uma câmera e mandado que arrumasse minha postura para o registro policial.
Foi uma noite interessante, para dizer o mínimo.
De todos os envolvidos na briga, eu fui o único a ser preso. Aparentemente, havia algumas testemunhas no bar que alegaram que fui o único a dar um soco, e embora isso tecnicamente não seja verdade, visto que estou com o olho roxo, fui o primeiro a fazer um movimento ao chutar aquela cadeira.
Andy tentou falar com calma com os policiais, mas quando eles pararam e me viram lá no meio do caos, eu sabia que seria arrastado para a delegacia. Assim como com Mac, eu dei um presente aos policiais ao sair da linha. O chefe de polícia em Clifton Cove e meu pai não se dão bem. Eles não se falam há anos. É mais um capítulo da besteira de trabalhadores
braçais e trabalhadores de escritório que divide nossa cidade. Isso é o que acontece quando há uma lacuna de riqueza tão grande, que não há um meio-termo real entre os que têm e os que não têm. Eu nem mesmo acho que houve um incidente que tenha começado essa separação, apenas anos e anos de preconceito de ambos os lados turvando as águas.
Eu poderia ter impedido toda essa cena desde o início, mas fiz o possível para deixá-los me levar. Eu não lutei quando me empurraram para a parte traseira da viatura. Esperei até que me dessem meu único telefonema, e em vez de ligar para meu pai, liguei para o juiz Mathers. Ele estava na cama, quase cochilando, mas dentro de uma hora eu era um homem livre. Bem, quase … ainda tenho uma contravenção novinha em folha no meu histórico, graças à minha confissão de culpa.
Isso surpreendeu a todos, incluindo o juiz. Eu poderia facilmente ter retirado as acusações. Minha especialidade pode não ser direito penal, mas não há como as acusações de agressão contra mim serem sustentadas no tribunal.
Não tentei retirar as acusações porque sei que é isso que todos desejam — Mac, a polícia, o chefe. Sei que eles esperam que eu pague alguns favores e evite quaisquer consequências reais, então, em vez disso, vou sofrê-las. Alegremente.
Fora da estação, começo minha caminhada para casa, já que meu carro está no bar. Andy está ligando sem parar, tentando descobrir o que está acontecendo. Ele deve ter alertado meu pai, ou talvez tenha sido o juiz Mathers, porque meu pai está ligando também. Eu desligo o telefone e coloco no bolso, feliz pelo silêncio.
A Main Street está deserta, que é como eu prefiro. Enfio as mãos nos bolsos e continuo andando, me perguntando quanto tempo vou demorar para chegar em casa. A casa do meu pai é mais próxima, a apenas alguns quarteirões de distância. Eu poderia passar a noite lá, mas preferia dormir na prisão. Ele tem boas intenções, mas eu simplesmente não estou com energia esta noite. Viro à esquerda em uma rua lateral para pegar um atalho até minha casa, mas paro quando ouço um grito de mulher. A princípio, acho que minha mente está me pregando uma peça, transformando o vento uivante em algo mais sinistro, mas aí está de novo, um grito abafado. Eu me viro e fico imóvel enquanto ouço.
Há o som de um carro a alguns quarteirões de distância, um cachorro latindo ao longe, o vento soprando de novo, mas sem mais gritos.
Eu balanço a cabeça, prestes a me virar e continuar andando quando percebo um movimento perto da loja de brinquedos. Eu aperto os olhos e tento descobrir o que é, mas é impossível entender a esta distância. Parecem ser duas pessoas, um homem mais alto de preto e outra pessoa, a maior parte oculta.
— Ei! — eu grito de impulso, sem ter ideia do que fazer. Estou desarmado, e meu olho está inchado o suficiente para não conseguir enxergar bem com ele. Pego meu telefone e grito que vou ligar para a polícia. Muito macho, eu sei.
O homem de preto se move um pouco para a esquerda e vejo uma garotinha encolhida ali, com uma arma apontada para sua cabeça.
Porra.
Eu vou em direção a eles, correndo. O homem me vê e vira a arma para apontar na minha direção. Ele atira, e uma bala atinge um poste perto da minha cabeça. Ai, Jesus. Um homem inteligente correria exatamente na direção oposta. Não tenho certeza de para onde essa situação está caminhando.
— Afaste-se dela, porra! — grito, a adrenalina correndo pelo meu corpo.
Não tenho ideia do que vou fazer, mas não acho que esse cara também saiba, porque quanto mais perto eu chego deles, mais erráticos seus movimentos se tornam. Ele tenta empurrar a garota para o chão e grita para que ela não se mova. Ela resiste um pouco, mas ele chuta suas pernas, e ela cai na calçada. Grito para ele se afastar dela de novo, agora estou a apenas alguns metros de distância. Ele olha por cima do ombro, procurando uma rota de fuga.
Sua arma dispara novamente, e a bala passa zunindo pelo meu ouvido.
Ele tem uma mira ruim.
Ele percebe que há apenas duas opções: lutar ou fugir. Eu vou lutar mesmo que ele tenha uma arma e eu levar um tiro no processo, e talvez ele tenha percebido pelos meus movimentos ou pela minha aparência esfarrapada que não sou realmente alguém com quem ele queira mexer no momento, porque, no último instante, o sujeito se afasta da garota e sai correndo.
Eu avanço até parar perto da garota e a observo, pensando no que fazer. Eu sou rápido e provavelmente poderia pegá-lo, mas então a garota geme. Eu
olho para baixo e percebo que não devo deixá-la. Ela é uma criança. O que diabos esse cara iria fazer com ela? E por que ela estava aqui sozinha à noite?
— Que dor — ela choraminga, e eu rapidamente me ponho ação, inclinando-me para acariciar suavemente sua espinha, verificando se há lesões. O poste não oferece muita luz, mas é o suficiente para ver que não há sangue em seu casaco azul.
— Onde está doendo?
Ela empurra minha mão e se senta, balançando a cabeça.
— Não, nada em mim: no meu livro.
— O quê?
Ela tira o cabelo castanho do rosto e aponta para algo atrás de mim. Eu me viro e vejo um livro velho caído na lama.
Essa garota acabou de ser posta sob a mira de uma arma e sua primeira preocupação é um livro?
— Aposto que está arruinado — ela chora, parecendo inconsolável com a perspectiva.
Estou completamente confuso.
— Ele estava tentando te roubar? Ou… — Eu não consigo dizer a outra palavra com E, mas talvez eu não precise, porque ela ainda está totalmente vestida, graças a Deus.
— Não — ela diz, se levantando para ir pegar o livro. — Acho que não. Ofereci várias vezes dinheiro, mas ele não queria. Ele estava resmungando muito antes de você correr, dizendo coisas sobre “ensinar uma lição para ele”. — Ela se agacha e aninha o livro, tentando limpar um pouco da sujeira. — Ele deve ter ficado confuso. Provavelmente estava drogado ou algo assim.
Eu franzo a testa, ciente de que ela realmente não olhou para mim ainda. Essa garota está tão preocupada com o maldito livro, que acho que deve estar em choque.
— Você está machucada? — pergunto, me levantando e hesitantemente dando um passo em direção a ela, com minhas mãos estendidas. Eu não quero assustá-la.
Ela finalmente se vira e olha para cima, a luz da lamparina lançando um brilho nebuloso sobre metade de seu rosto e deixando o restante nas sombras. Há lágrimas escorrendo por suas bochechas. No início, sua baixa
estatura e cabelo comprido a faziam parecer mais jovem, mas agora vejo que não é uma criança.
Por alguns segundos, nós nos encaramos enquanto ela percebe minha aparência, arrastando o olhar para baixo, para meu terno amarrotado, e depois de volta para meu rosto. Ela pisca, e o reconhecimento se instala em seus olhos castanhos brilhantes, emoldurados por cílios negros e grossos e algumas lágrimas não derramadas. Uma expressão de descontentamento profunda se instala em seus lábios antes de sua mão voar para cobrir a boca.
— Oh, meu Deus, ele fez isso com o seu olho?
Certo, meu olho — aquele que está meio inchado e fechado.
Na verdade, eu rio. Neste momento, é a única coisa que posso fazer.
— Não. Acredite se quiser, isso aconteceu em uma outra briga no início desta noite.
— Uau. — Suas sobrancelhas se arqueiam em descrença. — Ben Rosenberg, lutador de rua casca grossa. Quem teria pensado nisso? Eu franzo a testa.
— Desculpa, eu acho que tem algo aqui que eu não estou sabendo. Nós nos conhecemos?
Ela se levanta e começa a recolher suas coisas espalhadas pelo chão. Eu a ajudo pegando uma sacola de presentes amassada e um Tupperware. Dentro, há uma lama marrom que dificilmente parece adequada para consumo humano. Talvez não seja.
— Oh, não. Nós nunca nos conhecemos oficialmente. Tenho certeza de que me lembraria disso. — Eu olho para ela enquanto entrego o recipiente de plástico, tentando memorizar suas características, mas a luz está muito baixa, e ela está muito ocupada juntando suas coisas para olhar para mim.
— Embora tenha havido uma época no ano passado em que você estava na minha frente na fila do caixa do supermercado. Lembro que você comprou rosbife. Isso é estranho? — Ela balança a cabeça e se vira para mim com um encolher de ombros. Em seguida, estende a mão, uma coisa pequena, e deixa claro que deseja que eu a aperte. — Eu me chamo Madison. — Madison — eu repito, um pouco pasmo. Eu não esperava que ela fosse atraente. Claro, seu cabelo castanho escuro é meio selvagem e suas bochechas estão vermelhas por causa do vento cortante, mas ela tem maçãs do rosto salientes e olhos bonitos, mesmo que estejam um pouco tristes.
Percebo que disse seu nome em voz alta mais duas vezes, e agora sou eu que pareço um esquisitão, embora ela tenha acabado de admitir que ficou me seguindo no supermercado.
— Sim — diz ela, balançando a cabeça enquanto morde o lábio inferior. Acho que está tentando não sorrir abertamente para mim, mas gostaria que ela simplesmente sorrisse. Eu quero vê-la sorrir, mesmo que seja à minha custa. — Mad-i-son. Bem assim. Você pegou o jeito.
Ela é engraçada.
Sua mão ainda está estendida, desajeitadamente pendurada entre nós, então eu tardiamente dou um passo à frente para apertá-la. Minha mão envolve a dela. Está gelada e trêmula. Claro, três minutos atrás ela estava sob a mira de uma arma.
Eu só a cumprimento por um breve momento antes que ela se afaste e examine o chão novamente, confirmando que pegou todas as suas coisas.
— Você não está ferida, está? — pergunto. — Você não me respondeu antes.
Ela balança a cabeça, mesmo quando sua mão livre vai em direção ao seu cabelo e, quando volta, há sangue em seus dedos. Ela me vê olhando e pigarreia.
— Não é nada, só um pequeno corte onde ele estava segurando o…
Sua frase desaparece, seu olhar ainda está em seus dedos ensanguentados, e eu acho que ela vai desmaiar ou vomitar. Claramente o choque está começando a se instalar.
— Devíamos chamar a polícia. — Eu dei uma olhada decente para o cara, mesmo com a máscara. Lembro de sua altura e constituição e a direção em que correu, no mínimo.
— Oh, não se preocupe com isso. Vou contar para o meu pai quando chegar em casa. Obrigado pela ajuda.
— Você ainda mora com seu pai? — Jesus, eu não achava que ela era uma criança, mas talvez eu esteja errado. Ela parece entender minha surpresa como um julgamento, porque levanta o queixo com orgulho.
— Sim, mais fácil de lidar com o aluguel e tudo mais. Eu me sinto um escroto.
— Claro. Sim, entendi. A casa do seu pai fica perto daqui? — pergunto, enfiando as mãos nos bolsos da calça do meu terno. Mesmo com
a adrenalina residual em minhas veias, o ar frio está se tornando difícil de ignorar.
— A apenas alguns quarteirões. Olha, eu não sei como agradecer o suficiente por ter interferido. Não tenho certeza se aquele cara teria me machucado, mas mesmo assim… — Ela afasta o pensamento e olha para cima, seu olhar encontrando o meu um pouco instável. — Você provavelmente salvou minha vida, e por isso serei eternamente grata.
Com isso, ela balança a cabeça apenas uma vez e depois se vira para ir embora.
Eu faço uma cara feia.
Ela está indo embora? Acha que vou deixá-la voltar para casa sozinha depois de tudo? Há uma boa chance de o cara ainda estar na área.
Eu a observo até que ela chegue ao final do quarteirão e esteja prestes a atravessar a rua. Então ela para de repente, se vira e olha para mim, mordendo o lábio antes de falar.
— Na verdade … eu sei que você provavelmente está ocupado com todas as brigas de rua e feitos heroicos que estão acontecendo, mas você se importaria… talvez… de me levar até em casa? — Suas sobrancelhas se franzem, e ela acelera suas palavras, tentando me dar garantias. — Não é tão longe, eu prometo. Eu poderia apenas ligar para meu pai para vir me buscar, mas…
— Sim, claro.
Começo a caminhar em sua direção, mas então algo chama minha atenção no chão; eu aperto os olhos, tentando discernir se é algo que ela deixou para trás ou se é apenas lixo.
— Ah — ela diz, seguindo meu olhar.
— É uma vela de aniversário — eu digo baixinho.
Hm. Eu me abaixo para pegá-la e quando olho para trás, vejo suas bochechas queimando enquanto ela se vira e fixa seu olhar no outro lado da rua.
Claro, eu deveria ter pensado nisso antes, quando vi a sacola de presentes amassada.
— É seu aniversário?
Ela mantém a atenção em outro lugar, quase como se tivesse vergonha de admitir.
— Meu vigésimo quinto.
— Que maneira de passar o aniversário… — murmuro baixinho. Eu a alcanço e estendo a vela. Madison a pega e enfia no bolso do casaco, como se quisesse se livrar dela.
— Se serve como consolo, feliz aniversário. Ela ri como se fosse a coisa mais absurda que eu poderia ter dito, e começamos a caminhar. Eu me ofereço para carregar algumas de suas coisas, mas ela insiste que não precisa de ajuda.
— Então, você vai pedir ao seu pai que chame a polícia quando chegar em casa?
Por algum motivo, essa pergunta a faz sorrir.
— Claro, direi para ele ligar imediatamente. — Eu não sei por que ela está sendo despretensiosa sobre o assunto. Sua vida que estava em jogo. Há um criminoso à solta, e ela não vai chamar a polícia. Por que não?
Viramos uma esquina e continuamos passando pelos gramados bem cuidados e velhas mansões vitorianas famosas ao redor de Clifton Cove. Os imóveis aqui são extremamente caros. Todo mundo quer morar perto das lojas e restaurantes, sem mencionar os turistas ricos que visitam a cidade uma vez e decidem comprar uma casa de férias aqui. Mais do que tudo, são eles que aumentam a demanda.
Se Madison cresceu aqui, provavelmente estudou na mesma escola particular que eu, o que explicaria por que sabe quem eu sou.
— Você é de Clifton Cove?
Ela concorda com a cabeça.
— Nascida e criada.
— E você foi para Saint Andrews?
Percebo o momento em que sua boca forma um sorriso malicioso quase invisível.
— Não, Clifton High, e antes que você pergunte, eu fui para a escola pública no ensino fundamental e médio também. — A questão de como sabe quem eu sou está pairando na minha língua, quando ela continua em um tom de zombaria: — Todo mundo sabe quem você é, seu sobrenome está na metade dos edifícios da cidade. Os Rosenberg são quase da realeza. Como já é costumeiro, o legado da minha família me precede.
— Madison! — alguém grita à frente, chamando nossa atenção. — Onde diabos você estava?!
— Oh, Deus — ela sussurra.
Eu olho para cima e vejo um homem parado na varanda de uma das casas a alguns metros de distância. É pequena em comparação com as mansões ao redor, uma modesta construção de um pavimento em meio lote. Na garagem, duas viaturas da polícia estão estacionadas lado a lado; eu me pergunto se de alguma forma Madison alertou o pai sobre o que aconteceu sem que eu tenha percebido.
Ela acelera o ritmo, e eu vou logo atrás. Madison faz uma expressão de desculpas na minha direção, e eu não entendo o que poderia ser até ouvir meu nome ser gritado da varanda. Eu olho para o homem grande vestido com jeans e uma camiseta branca, o cabelo grisalho cortado em um estilo militar. Seu rosto está contorcido em uma careta de raiva, e seus olhos estão fixos em mim. E aí começo a entender tudo.
— Ben Rosenberg, o que diabos você está fazendo com minha filha?
A pergunta é feita pelo homem que agora reconheço como Derrick Hart, Chefe de Polícia em Clifton Cove, e, aparentemente, pai de Madison.
— Seu sobrenome é Hart? — eu pergunto a ela.
Ela me ignora e olha para o pai.
— Ben estava apenas garantindo que eu chegaria bem em casa.
Ele grunhe em descrença.
— É por isso que você está duas horas atrasada?
Abro a boca, zangado com a maneira como ele está falando com ela, mas o olhar de Madison encontra o meu e ela balança a cabeça infinitesimalmente. Eu sei que só pioraria as coisas para ela se falasse abertamente o que estava pensando.
— É uma longa história, e Ben tem que ir para casa.
O pai não acredita. Seus olhos se voltam para mim enquanto ele começa a descer as escadas e seguir o caminho do jardim até onde estamos. Eu tive alguns desentendimentos com ele ao longo dos anos. No colégio, talvez meus amigos e eu fôssemos idiotas arrogantes. Invadimos piscinas públicas e fizemos corridas com nossos carros em estradas desertas — uma babaquice típica de moleque. Desde que fiz dezoito anos, meu histórico está completamente limpo. Ele não deveria olhar para mim como se quisesse me transformar em pó.
Seu dedo se projeta de uma forma acusativa.
— Eu não quero você perto da minha filha. Você entendeu?
Madison se coloca entre nós e levanta a mão.
— Pai, sério. Pare.
Quero rir. A situação não poderia estar mais errada. Acabei de salvar sua preciosa filha de ser mantida sob a mira de uma arma e agora sou o cara mau? O mesmo preconceito que Mac e seus amigos tiveram em relação a mim no bar também existe no do Chefe Hart. Ele acha que sou um garoto rico e mimado, que veio até aqui para foder com ele e sua filha, como se eu não tivesse coisas mais importantes para fazer com meu tempo.
— Eu soube da situação em que você se meteu mais cedo — diz ele, olhando incisivamente para meu olho roxo e meu lábio arrebentado. — Por que você estava naquele lado da cidade, afinal? Procurando problemas?
Madison dá um passo direto em direção ao pai, sua mão batendo no peito dele. Eu me adianto, como se estivesse preocupado que ele direcionasse sua raiva para a filha, mas não tenho nada com que me preocupar. No segundo que ele olha para baixo, o fogo em seus olhos é apagado. Suas grossas sobrancelhas cinzentas se inclinam, e ele franze a testa com preocupação amorosa.
— Maddie, estamos esperando por você desde o jantar. Colten até me ajudou com o pudim de banana. Você já comeu?
Ela concorda com a cabeça e o empurra de volta para a casa.
— Sim, mas seria ótimo um pudim. Vamos, vamos entrar.
Ele permite que ela o afaste. Talvez Madison o tenha comendo na palma da mão, ou talvez ele se sinta mal porque é aniversário dela; de qualquer forma, ela me salva de alguém me quebrando a cara um pouco mais.
Além de um pequeno olhar que ela dá por cima do ombro, nenhum dos dois se despedem ao entrar. Definitivamente, não fui convidado para comer um pedaço desse pudim, embora pudesse definitivamente comer uma fatia ou duas. Eu fico olhando os dois indo embora, convencido de que esta é provavelmente a última vez que falarei com Madison Hart. Uma sensação de dor cresce em meu peito, e minha mão vai ao coração como se para acalmá-lo.
Em seguida, a porta de tela bate, e eles desaparecem. Eu olho para o céu e solto a risada que eu estive guardando a noite toda, um grande “vai se foder” para o universo por me colocar nesta nova versão do inferno.
Com um aceno de cabeça, eu me viro. Estou prestes a ir na direção da minha casa quando a porta de tela bate novamente e Madison corre de volta pelo caminho da frente em minha direção.
— Espera! — Ela continua correndo, embora o pai esteja gritando com ela da porta. Ela diz a ele para se acalmar. — Só vou demorar um segundo! Então ela se vira e para bem na minha frente, a cabeça inclinada para trás para dar uma boa olhada em mim. O vento sopra os cabelos soltos ao redor de seu rosto, e aqui, com a luz de sua casa, posso dizer que seus olhos são mais verdes do que castanhos, seu sorriso é tão atraente quanto pensei que seria, e sua boca é tentadora o suficiente para me fazer esquecer que seu pai está na varanda nos observando, provavelmente carregando a espingarda. Algo frio atinge meu peito, e eu olho para baixo e vejo uma bolsa de gelo.
Devo parecer confuso, porque ela sorri e diz: — Para o seu olho.