António Botto

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Grupo Editorial AW © 2016 Oficina Editorial © 2016 Edição e Diagramação HK |aw Revisão do Texto Álvaro Alencar Imagem da Capa Giovanni Battista Braccelli, 1624 Editoração Gráfica HK |aw

O conteúdo deste livro é de livre utilização e pode ser transcrito

ou copiado livremente para uso não comercial com a creditação devida à essa edição.

BOTTO,

António.

POESIA

INCOMPLETA

&

FRAGMENTADA. 1. ed. Juazeiro do Norte: Oficina Editorial (GRUPO AW EDITORIAL), 2016. 64 p.


Sumário

Nota dos Editores, 5 Abertura, 7 Canções, 9 Curiosidades Estéticas, 35 Pequenas Esculturas, 37 Dandismo, 40 Aves de um Parque Real, 42 Tristes Cantigas de Amor, 44 A vida que te dei, 46 Sonetos, 47 Toda a Vida, 48 Apêndice Índice de Obras, 55 Bibliografia sobre o Autor, 58 Sobre o Autor, 61



Nota dos Editores É com felicidade e senso de responsabilidade que a Oficina Editorial decide editar este volume incompleto e fragmentado das obras de António Botto. Os poemas que compõem este livro estão disponíveis para livre acesso no blog LER ANTÓNIO BOTTO*, que foi crucial para a composição deste breve exemplar. António Botto representa um marco contestatório na literatura lusófona do século XX, tendo de exilar-se no Brasil diante da intensa homofobia portuguesa. Os traços íntimos do autor transparecem em sua obra, contudo não é isso que lhe dá importância, mas o fato de que estes traços não nos chegam de maneira gratuita, mas emaranhados em suas Canções.

Grupo Editorial AW Novembro de 2016

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* http://lerantonioboto.blogspot.com.br/ 5



Abertura “A elegância espontânea do seu pensamento, a dolência latente de sua emoção asseguram-lhe facilmente, conjugandose, a mestria nesta espécie de lirismo [...] Distingue-se pela simplicidade perversa e pela preocupação estética destituída de preocupações. Foge da complicação com o mesmo ardor com que se esconde da intenção directa. É em verdade singular que se seja simples para dizer exactamente outra coisa, e se vá buscar as palavras mais naturais para por meio delas ter entendimentos secretos. Certo é que o que António Botto escreve, em verso ou em prosa, há que ser lido sempre com a intenção posta em o que não está lá escrito.”

Fernando Pessoa

Exceto do prefácio de Motivos de Beleza, 1923

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CANÇÕES 1921

Livro Primeiro I Não. Beijemo-nos, apenas, Nesta agonia da tarde.

Guarda — Para outro momento Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde E a convivência contigo Modificou-me — sou outro...

A névoa da noite cai. Já mal distingo a cor fulva Dos teus cabelos — És lindo!

A morte, 9


devia ser Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: — não ponhas Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas! — Que mais precisamos nós?

II

A noite — Como ela vinha! Morna, suave, Muito branca, aos tropeções, Já sobre as coisas descia, E eu nos teus braços deitado Até sonhei que morria.

E via — Goivos e cravos aos molhos; Um Cristo crucificado; Nos teus olhos, 10


Suavidade e frieza; Damasco roxo puído, Mãos esquálidas rasgando Os bordões de uma guitarra, Penumbra, velas ardendo, Incenso, oiro, — tristeza!... E eu, devagar morrendo…

O teu rosto moreninho, — Tão formoso! Mostrava-se mais sereno, E sem lágrimas, enxuto; Só o teu corpo delgado, O teu corpo gracioso, Se envolvia todo em luto.

Depois, ansiosamente, Procurei a tua boca, A tua boca sadia; Beijámo-nos doidamente... — Era dia!

E os nossos corpos unidos 11


Como corpos sem sentidos, No chão rolaram, e assim ficaram!

III

Andava a lua nos céus Com o seu bando de estrelas.

Na minha alcova Ardiam velas Em candelabros de bronze.

Pelo chão em desalinho Os veludos pareciam Ondas de sangue e ondas de vinho.

Ele olhava-me cismando; E eu, Placidamente, fumava, Vendo a lua branca e nua Que pelos céus caminhava.

Aproximou-se; e em delírio 12


Procurou avidamente, E avidamente beijou A minha boca de cravo Que a beijar se recusou.

Arrastou-me para Ele, E, encostado ao meu ombro, Falou-me dum pajem loiro Que morrera de saudade, Á beira-mar, a cantar...

Olhei o céu!

Agora a lua fugia Entre nuvens que tornavam A linda noite sombria.

Deram-se as bocas num beijo, — Um beijo nervoso e lento... O homem cede ao desejo Como a nuvem cede ao vento.

Vinha longe a madrugada. 13


Por fim, Largando esse corpo Que adormecera cansado E que eu beijara, loucamente, Sem sentir, — Bebia vinho, perdidamente, Bebia vinho..., até cair.

IV

Bendito sejas, Meu verdadeiro conforto E meu verdadeiro amigo!

Quando a sombra, quando a noite Dos altos céus vem descendo, A minha dor, Estremecendo, acorda...

A minha dor é um leão Que lentamente mordendo Me devora o coração. 14


Canto e choro amargamente; Mas, a dor, indiferente, Continua...

Então, Febril, quase louco, Corro a ti, vinho louvado!

— E a minha dor adormece, E o leão é sossegado.

Quanto mais bebo mais dorme: Vinho adorado, O teu poder é enorme!

E eu vos digo, almas em chaga, Ó almas tristes sangrando: Andarei sempre Em constante bebedeira!

Grande vida!

15


— Ter o vinho por amante E a morte por companheira!

V

Ouve, meu anjo: Se eu beijasse a tua pele? Se eu beijasse a tua boca Onde a saliva é um mel?

Calmo, tentou afastar-se Num sorriso desdenhoso; Mas ai!, — A carne do assassino É como a do virtuoso.

Numa atitude elegante, Misteriosa, gentil, Deu-me o seu corpo doirado Que eu beijei quase febril.

Na vidraça da janela, A chuva, leve, tinia... 16


Ele apertou-me[,] cerrando Os olhos para sonhar — E eu lentamente morria — Como um perfume no ar!

VI

Quem é que abraça o meu corpo

Na penumbra do meu leito?

Quem é que beija o meu rosto, Quem é que morde o meu peito? Quem é que fala da morte, Docemente, ao meu ouvido? — És tu, senhor dos meus olhos, E sempre no meu sentido.

[07.] -/Vês?/ [1956] [08.] -/Tenho a certeza/ [1956] [09.] -/Inda bem que me enganaste/ [1956] [10.] -/É impossível, não posso./ [1956] 17


[11.] -/Não é ciúme o que eu tenho/ [1956] [12.] -/Dizes que vens, e, afinal/ [1956]

XIII

Anda, vem... porque te negas, Carne morena, toda perfume? Por que te calas, Por que esmoreces Boca vermelha, — rosa de lume?

Se a luz do dia Te cobre de pejo, Esperemos a noite presos num infinito beijo.

Dá-me o inefável gozo De contigo adormecer devagarinho, Sentindo o aroma e o calor Da tua carne, ó meu amor.

E ouve, mancebo alado: — Entrega-te, sê contente. 18


Nem todo o prazer tem vileza Ou tem pecado.

Anda, vem. Dá-me esse teu e meu corpo, Em troca destes desejos. Tenho saudades da vida Sem o triste preconceito Que a torna sempre fingida.

[14.] -/Todos esses que eu amei/ [1956]

XV

De Saudades vou morrendo E na morte vou pensando: Meu amor, por que partiste, Sem me dizer até quando? Na minha boca tão linda, Ó alegrias cantai! Mas, quem se lembra d’um louco? — Enchei-vos d’água, meus olhos, Enchei-vos d’água, chorai!

19


XVI

Ó meu tesoiro!, por quem Padece meu coração Dolorido

- Que linda noite aí vem!

A tua carta, Mil vezes a tenho lindo.

Nunca me troques por outro, Nem me enganes, vida minha!

Sofro tanto!

A quem contarei meus males, Negros males, tristes queixas, Se tu agora me deixas?

VVII

Quanto, quanto me queres? — perguntaste 20


Olhando para mim mas distraída; E quando nos meus olhos te encontraste, Eu vi nos teus a luz da minha vida. Nas tuas mãos, as minhas, apertaste. Olhando para mim como vencida, «...quanto, quanto...» — de novo murmuraste E a tua boca deu-se-me rendida! Os nossos beijos longos e ansiosos, Trocavam-se frementes! — Ah! ninguém Sabe beijar melhor que os amorosos! Quanto te quero?! — Eu posso lá dizer!... — Um grande amor só se avalia bem Depois de se perder.

[18.] -/Dá-me a tua mão e dancemos/ [1956] [19.] -/E não me lembro de nada./ [1956] [20.] -/A noite cai nos teus olhos/ [1956]

XXI

Envolve-me amorosamente Na cadeia de teus braços Como naquela tardinha... 21


Não tardes, amor ausente; Tem pena da minha mágoa, Vida minha!

Vai a penumbra desabrochando Na alcova Aonde estou aguardando A tua vinda... Não tardes, amor ausente! Anoitece. O dia finda... E as rosas desfalecendo Vão caindo e murmurando: — Queremos que Ele nos pise! Mas, quando vem Ele, quando?...

[22.] -/Que tarde tão fria!/ [1956] [23.] -/Quem é pobre sempre é pobre/ [1956] [24.] -/Cala-te, não jures mais./ [1956]

XXV

Ah!, Quanto me arrependo De ter contado nessa carta 22


Que te mandei As causas do meu apego A tudo o que te pertence!

Depois de a mandar, chorei!

Parece que me roubaram Qualquer coisa que eu trazia Aqui, dentro do meu peito, Escondida lá no fundo!

Não deveríamos, nunca!, Traduzir em palavras O nosso amor.

Só o silêncio das almas Impõe a verdade e a vida E as dá num plano maior. XVI

Linda e loira, Como a Lua quando nasce Em tardes de julho. 23


A sua boca Pequenina e recortada, Era vibrante e discreta Como a flor da romĂŁzeira. E os seus olhos, muito vagos, Como a verem alĂŠm-mundo, Assemelhavam dois vales Com dois lagos de cristal azul ao fundo.

Ao longe, num mar de sangue, Morre o sol. E uma aragem muito fria Faz ondular as palmeiras.

Com damasco precioso Foi coberto o amplo piso Guarnecido por mosaicos E vasos d´oiro lavrado.

Fizeram-se juramentos! E ela, sorrindo, orgulhosa, Ergueu-se quase divina! 24


Soaram palmas, exclamações, e delírios! — Já ninguém pediu mais vinho!

Baila, baila, minha filha!

— Sim; bailarei como nunca!

E o corpete, Na dança, Descai-lhe suavemente Deixando ver os dois seios, Pequeninos, volumosos, Como dois frutos doirados.

Como tu bailas, amor!

Soltam-se os véus; e em redor Da sua graça, Da sua carne delgada, Parecem névoas de seda.

Um grande rubi, soberbo, 25


Resplandece entre os seus seios Como se fosse uma estrela!...

Está quase nua! Mas, continua bailando...

No rosto do rei Tetrarca Há lágrimas e tristeza.

Agora, baila, pisando Os brocados que envolveram O seu corpo de Princesa...

Sobre o seu sexo brilham duas esmeraldas De raro fulgor.

E a voz lenta da bailadeira franzina, Soa mais lenta, mais longa, Mais sensual e mais quente: — Profeta dos olhos negros, Hás de ser meu esta noite 26


Antes de a Lua aparecer Branca, redonda, imaculada Para não ter que lhe dizer:

O que vieste cá fazer Se não foste convidada?

XVII

Eu ontem passei o dia Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino, Do seu fado...

Depois, para se alegrar, Ergueu-se, e bailando, e rindo, Pôs-se a cantar Um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma, 27


E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim…

Ó sepultura da minha raça, Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado; Eu afastei-me mais triste, Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia De roxo as águas tingia.

«Voz do mar, misteriosa; Voz do amor e da verdade! — Ó voz moribunda e doce Da minha grande Saudade! Voz amarga de quem fica, Trémula voz de quem parte...» ………………………………

E os poetas a cantar 28


São ecos da voz do mar!

Outros poemas de Canções, não incluídos nas ed. de

1941 e/ou 1956

XXVIII

Por uma noite de Outono Lá nessa nave sombria, Hei de contigo deitar-me, Mulher branca e muda e fria!

Hei de possuir na morte O teu corpo de marfim, Mulher que nunca me olhaste, Que nunca pensaste em mim...

E quando, no fim do mundo, A trombeta, além, se ouvir, Apertar-te-ei mais ainda, — Não te deixarei partir!

A tua boca formosa 29


Será sempre dos meus beijos; E o teu corpo a minha pátria, A pátria dos meus desejos.

IXXX

Sou como as tardes de Outono, — Beleza cheia de morte! Tem cuidado, meu amante, Meu constante bem-amado; Não olhes tanto os meus olhos, Não beijes tanto o meu rosto… Sou como as tardes de Outono, — Cheias de sol-posto.

XXX

Foi numa tarde de Julho.

Conversávamos a medo, — Receosos de trair Um tristíssimo segredo.

30


Sim, duvidávamos ambos: Ele não sabia bem Que o amava loucamente Como nunca amei ninguém. E eu não acreditava Que era por mim que o seu olhar De lágrimas se toldava...

Mas, a dúvida perdeu-se; Falou alto o coração! — E as nossas taças Foram erguidas Com infinita perturbação!

Os nossos braços Formaram laços. E, aos beijos, ébrios, tombámos; — Cheios d’amor e de vinho!

«Agora... morre comigo, Meu amor, meu amor... devagarinho!...»

XXXII 31


Tu mandaste-me dizer Que tornavas novamente Quando viesse a tardinha; E eu, para mais te prender, — Nesse dia... Pintei de negro os meus olhos E de roxo a minha boca.

As rosas eram aos molhos Para a noite rubra e louca!

Entornei sobre o meu corpo, — Que fora delgado e belo! O perfume mais estranho e mais subtil; E um brocado roxo e verde Envolveu a minha carne Macerada e varonil. Os meus ombros florentinos, Cobertos de pedraria, Eram chagas luminosas Alumiando o meu corpo Todo em febre e nostalgia. 32


Nas minhas mãos de cambraia, As esmeraldas cintilavam; E as pérolas nos meus braços, Murmuravam... Desmanchado, o meu cabelo, Em ondas largas, caía, Na minha fronte Ligeiramente sombria.

Pálido sempre; dir-se-ia Que a palidez aumentava A minha grande beleza!

Na minha boca ondulava Um sorriso de tristeza.

A noite vinha tombando.

E, como tardasses, Fiquei-me, sentado, olhando O meu vulto refletido No espelho de cristal;

33


E afinal, Nem frescura, nem beleza, No meu rosto descobri!

— Ó morte, não me procures! E tu, meu amor, não venhas!... — Eu já morri.

[33] - /Já na minha alma se apagam/ [1922] [34] - /A vossa carta comove/ [1922]

fim de canções

Versão composta a partir da organização e disponibilização dos poemas realizadas pelo blog LER ANTÓNIO BOTTO (http:// lerantonioboto.blogspot.com.br/) ao qual o Grupo Editorial agradece e credita imensamente. Para preservar a ordem alguns títulos de poemas estão situados onde estes poemas deveriam estar, mas não foram localizados para compor esta edição.

p 34


CURIOSIDADES ESTÉTICAS 1924 O mais importante na vida É ser-se criador, criar beleza.

Para isso, É necessário adivinhá-la Aonde os nossos olhos não a possam ver.

Eu creio que sonhar o impossível É como que ouvir a voz de alguma coisa Que pede existência e que nos chama de longe.

Sim. O mais importante na vida É ser-se criador.

E para o impossível Só devemos caminhar de olhos fechados, Imitando a fé pela mão do amor.

35


Podes levar as rosas que trouxeste.

Não as quero, Nem me digas Que hás de ser perpetuamente O motivo mais ardente, — O maior motivo Das minhas cantigas.

Enganámo-nos, meu bem.

Agora que já conheço Todo o sabor dos teus beijos Quero-te menos, e sinto A febre de outros desejos Que não podes entender.

Mas hei de lembrar-te, juro. E tanto quanto puder.

36


PEQUENAS ESCULTURAS 1925 — Busco a beleza na forma; E jamais Na beleza da intenção A beleza que perdura.

Só porque o bronze é de boa qualidade Não se deve Consagrar uma escultura.

37


Sê jovem, Jovem, apenas.

Não faças literatura Nem ponhas o melancólico aspeto De quem sabe E se debruça Nos abismos Desta pobre humanidade Tão vil e tão desgraçada!

Sê natural como as rosas Que rebentaram ali nos canteiros do jardim, — E sê jovem!, Mas não queiras ser mais nada Quando estás ao pé de mim.

38


Afirmam que a vida Ê breve, Engano, — a vida Ê comprida: Cabe nela amor eterno E ainda sobeja vida.

39


DANDISMO 1928 A tudo quanto me pedes Porque obedeço não sei: Vês? – quiseste que eu cantase…, Pus-me a cantar, e chorei.

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Anda um ai na minha vida Que me lembra a cada passo A distância que separa O que eu digo do que eu faço. Quem mo deu — Partiu!... Deixou-me na agrura Interminável e fria De ter de o guardar Como único recurso De poder viver ainda… Anda um ai na minha vida, Como lágrima que passa, Que passa – mas que não finda. Dizê-lo? – nada lucrava. Guardá-lo? – morro a senti-lo. Anda um ai na minha vida Que me lembra a cada passo A distância que separa O que eu digo do que eu faço. 41


AVES DE UM PARQUE REAL 19??

Palavras dum faisão Perdi-me d’amor!

É uma pomba muito azul —Um azul cor de céu quando há sol; E hei de fugir com ela Por causa dum rouxinol ciumento Que me apoquenta Dizendo Melodias de ironia penetrante. Iremos A esse país nevoento, Lendário, belo, distante, Lá onde a Lua se esconde Em névoas que eternamente lá pairam...

Ó névoa, porque envolveis O país de Lord Byron? 42


Às vezes Penso num pajem que me teve E num rei que me beijava Quando a Rainha dormia... Mas quando lho disseram Bateu-me tanto Que eu em longos ais morria...

Não ouvem?...

Lá continua De novo O rouxinol a dizer... Ai, mas, se houver Uma pequena verdade No que ele insinua —- É lume caindo numa ferida —Jamais aqui voltarei:

Num lago da velha Escócia Darei fim à minha vida.

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TRISTES CANTIGAS DE AMOR 1956 Não me peças mais canções Porque a cantar vou sofrendo; Sou como as velas do altar Que dão luz e vão morrendo. Se a minha voz conseguisse Dissuadir essa frieza E a tua boca sorrisse! Mas sóbria por natureza Não a posso renovar E o brilho vai-se perdendo.... — Sou como as velas do altar Que dão luz e vão morrendo.

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O brinco da tua orelha Sempre se vai meneando; Gostava de dar um beijo Onde o teu brinco os vai dando. Tem um topรกzio doirado Esse brinco de platina; Um rubi muito encarnado, E uma outra pedra fina. O que eu sofro quando o vejo Sempre airoso meneando! Dava tudo por um beijo Onde o teu brinco os vai dando.

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A VIDA QUE TE DEI 1938 Tem na maneira de olhar Aquela dúbia certeza De quem pretende fixar-se Numa doce realidade...

E o seu vulto, quando passa, Parece deixar no espaço, A graça de uma saudade!

Há no seu riso — Uma nota Que lembra um laivo de sombra Nessa beleza tão séria Onde tudo quanto é belo Desgraçadamente existe.

Ah!, meus amigos, a vida!... — Falei de amor, fiquei triste.

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SONETOS 1938 Homem que vens de humanas desventuras, Que te prendes à vida, te enamoras, Que tudo sabes mas que tudo ignoras, Vencido herói de todas as loucuras.

Que te ajoelhas pálido nas horas Das tuas infinitas amarguras E na ambição das causas mais impuras És grande simplesmente quando choras.

Que prometes cumprir para esquecer, E trocando a virtude no pecado, Ficas brutal se ele não der prazer.

Arquiteto do crime e da ilusão, Ridículo palhaço articulado, Eu sou teu companheiro, teu irmão.

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TODA A VIDA 1941? Se fosses luz serias a mais bela De quantas há no mundo, — a luz do dia. Bendito seja o teu sorriso Que desata a inspiração da minha fantasia. Se fosses flor Serias o perfume, concentrado e divino, Que perturba o sentir de quem nasce para amar. Se desejo o teu corpo Para nele poder todas as noites pernoitar É porque tenho, dentro de mim, — A sede e a vibração de te abraçar, Sabendo, de antemão, que vais gostar De eu o saber atravessar, nessa nudez Em que podemos, ambos, tudo sentir Sem nos cansar, — E adormecer, E repetir. Se fosses água, música da terra, Serias água pura e sempre calma. 48


Mas de tudo que possas, ainda, ser na vida, Sรณ quero, meu amor, que sejas alma.

49


Primavera! Aí vem ela — Florida, luminosa, e atraente! As árvores enchem-se de folhas E essas folhas como lábios Tocam-se amorosamente! À noite, as estrelas dizem Segredos aos namorados. Primavera!, não acordes Estas saudades, não fales, Deixa ouvir os trinados Da vida que nasce e canta Para ficar mais imensa Nos silêncios da ilusão! Se ela aí vem, não te oponhas: — Deixa-a passar, coração!

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ApĂŞndice



ÍNDICE DE obras NESTA EDIÇÃO CANÇÕES [como livro inclusivo de outros livros] Livro primeiro [Anterior Canções, livro menor e exclusivo. Como parte de um livro maior é identificado com o título “Adolescente” (a partir de 1941?).] [Totalidade do corpus: 25 poemas da ed. 1956, + 2 poemas da ed. 1941, + 7 poemas das ed. 1920/1/2 não incluídos nas eds. 1941/1956 = 34 poemas] [01.] - /Não. Beijemo-nos, apenas/ [1956] [02.] - /A noite/ [1956] [03.] - /«Andava a lua nos céus»/ [1956] [04.] - /Bendito sejas/ [1956] [05.] - /Ouve, meu anjo/ [1956] [06.] -/Quem é que abraça o meu corpo/ [1956] [07.] -/Vês?/ [1956] [08.] -/Tenho a certeza/ [1956] [09.] -/Inda bem que me enganaste/ [1956] [10.] -/É impossível, não posso./ [1956] [11.] -/Não é ciúme o que eu tenho/ [1956] [12.] -/Dizes que vens, e, afinal/ [1956] [13.] -/Anda, vem... porque te negas/ [1956] [14.] -/Todos esses que eu amei/ [1956] [15.] -/De Saudades vou morrendo/ [1922, com alteração de “:”, por cotejo com versão de 1921] - atualizar, um verso, para a ed. de 1941. [16.] -/Ó meu tesoiro!, por quem/ [1956]; trad. ingl. / Oh, my love, for whom my heart/ [2010] [1.7] -/Quanto, quanto me queres? — perguntaste/ [1920, 1921, 1922]. Divulgar aqui a variante [muito diferente] da ed. de 1941. 55


[18.] -/Dá-me a tua mão e dancemos/ [1956] [19.] -/E não me lembro de nada./ [1956] [20.] -/A noite cai nos teus olhos/ [1956] [21.] -/Envolve-me amorosamente/ [1956] [22.] -/Que tarde tão fria!/ [1956] [23.] -/Quem é pobre sempre é pobre/ [1956] [24.] -/Cala-te, não jures mais./ [1956] [25.] -/Ah!, Quanto me arrependo/ [1956] [26.] -/Linda e loira/ [1956] [27.] -/Eu ontem passei o dia/ [1922] Outros poemas de Canções, não incluídos nas ed. de 1941 e/ou 1956 [28] - /Por uma noite de Outono/ [1920, 1922] [29] - /Sou como as tardes de Outono/ [1920] [30] - /Foi numa tarde de Julho/ [1922] [31] - /Se me deixares, eu digo/ [1922] [32] - /Tu mandaste-me dizer/ [1922] [33] - /Já na minha alma se apagam/ [1922] [34] - /A vossa carta comove/ [1922] Curiosidades estéticas... (1924) /O mais importante na vida/ [1956] /Podes levar as rosas que trouxeste/ [1956] Pequenas esculturas (1925) /Busco a beleza na forma/ [1956] /Sê jovem/ [1956] /Afirmam que a vida é breve/ [1956] Dandismo (1928) [13.] - /A tudo quanto me pedes/ [1941, 1956] [16.] - /Anda um ai na minha vida/ [1956] Aves de um parque real 56


Palavras dum faisão [1956] Tristes cantigas de amor /Não me peças mais canções/ [1956] /O brinco da tua orelha/ [1956] A vida que te dei (1938) /Tem na maneira de olhar/ [1956] Sonetos (1938) /Homem que vens de humanas desventuras/ [1956] Toda a vida (1944?) /Se fosses luz serias a mais bela/ [1956] /Primavera! Aí vem ela/ [1956] OUTROS TÍTULOS DO AUTOR Motivos de beleza (1923) [Rever! EP não inclui?] Olimpíadas (1927) Cartas que me foram devolvidas (1932) [prosa poética?] Ciúme (1934?) Baionetas da morte e Pequenas canções de cabaret (1936) Intervalo Livro do povo (1944) Ódio e amor (1947) Fátima: poema do mundo (1955) Ainda não se escreveu (1959)

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BIBLIOGRAFIA SOBRE O AUTOR Monografias (livros, teses, etc.) Amaro, Luís - António Botto, 1897-1959 (concepção, recolha e notas de Luís Amaro) - [catálogo]. 1.ª ed. Lisboa: BN, 1999. 112 p.; ISBN 972-565-267-3 Fernandes, Maria da Conceição - António Botto: um poeta de Lisboa - [tese; biografia]. Lisboa: Minerva, 1998. 138 p.; ISBN 972-591-349-3 Leal, Raul: Sodoma Divinizada - [antologia de textos para compreender a polémica em torno de “Canções”, etc.]. Organizada por Aníbal Fernandes; Hiena Editora, Lisboa, 1989. Régio, José - António Botto e o Amor (1938) - [ensaio]; reproduzido em: António Botto e o amor; Críticos e criticados (ensaio); Porto: Brasília Editora; 1978; 189p. Sales, António Augusto - António Botto: real e imaginário - [biografia].Lisboa: Livros do Brasil; 1997. 248 p.; ISBN 972-38-1611-3 Artigos de jornais e revistas; capítulos em livros. AA.VV. - António Botto, Cem Anos de Maldição dossier celebrativo do seu centésimo aniversário do poeta, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 699, 30 de julho - 12 de agosto de 1997, Lisboa. Almeida, L. P. Moitinho de: Fernando Pessoa no cinquentenário da sua morte; Coimbra Editora, Coimbra, 1985. 58


Campos, Álvaro de (heterónimo de Fernando Pessoa): Aviso por Causa da Moral; março de 1923. Cesariny, Mário: O Virgem Negra; Assírio e Alvim, Lisboa, 1989. Colaço, Tomás Ribeiro: António Botto - um poeta que não existe, Fradique, 26 de julho de 1934 (a polémica prossegue com José Régio até março de 1935). Leal, Raul: Uma Lição de Moral aos Estudantes de Lisboa e o Descaramento da Igreja Católica; março de 1923. Leal, Raul: Sodoma Divinizada (Leves reflexões teometafísicas sobre um artigo); fevereiro de 1923. Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa: Manifesto dos Estudantes das Escolas Superiores de Lisboa; março de 1923. Maia, Álvaro: Literatura de Sodoma - o Senhor Fernando Pessoa e o Ideal Estético em Portugal; Contemporânea, nº 4, novembro de 1922. Pessoa, Fernando: António Botto e o Ideal Estético em Portugal; Contemporânea, nº 3, julho-Setembro de 1922. Pessoa, Fernando: Sobre um Manifesto dos Estudantes; março de 1923. Régio, José: António Botto, Presença, nº 13, 13 de Junho de 1928. Régio, José: O poeta António Botto e o seu novo livro Ciúme, Diário de Lisboa, 21 de julho de 1934. 59


Régio, José: Evocando um Poeta, Diário de Notícias; 19 de setembro de 1957. Rodrigues, José Maria: A verdade sobre António Botto; Século Ilustrado, 21 de Março de 19?? (última entrevista a António Botto) Simões, João Gaspar: António Botto e o problema da Sinceridade; Presença, nº 24, janeiro de 1930. Simões, João Gaspar: Vida e Obra de Fernando Pessoa; Lisboa, 1950. - Contém capítulo centrado em Boto. Simões, João Gaspar: Retratos de Poetas que Conheci; Brasília Editora, Porto, 1974 Obras coletivas em que está representado. Sena, Jorge de: Líricas Portuguesas - 3.ª série - selecção, prefácio e notas de J.S.; Lisboa; Portugália, 1958. Contém nota biobibliográfica e seleção de poemas de Boto.

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Sobre o Autor Nasceu a 17 Agosto 1897 (Abrantes, Portugal) Morreu em 16 Março 1959 (Rio de Janeiro) António Tomás Botto foi um poeta português. A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia Canções que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época.

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Este livro foi editado pela OFICINA EDITORIAL em novembro de 2016 nas tipologias Bebas, Book Antiqua, Baramond e Centaur.




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