Revista Amazônia Viva ed. 55 / março de 2016

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REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.

MARÇO 2O16 | EDIÇÃO NO 55 ANO 5 | ISSN 2237-2962

PIRARUCU

PESCA SUSTENTÁVEL É POSSÍVEL NA REGIÃO Comunidades ribeirinhas e de pescadores aprendem com institutos de pesquisa e ONGs como garantir a renda familiar sem extinguir o maior peixe da Amazônia

NEUROCIÊNCIA

Avanços nos estudo da regeneração da medula espinhal traumatizada

GEMAS

Joias produzidas com matéria-prima vegetal ganham o mundo

MARAJOARAS

Crianças e jovens de Soure redescobrem a cultura local




EDITORIAL

PUBLICAÇÃO MENSAL DELTA PUBLICIDADE - RM GRAPH EDITORA MARÇO 2016 / EDIÇÃO Nº 55 ANO 5 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA Presidente Executivo ROMULO MAIORANA JR. Diretor Jurídico RONALDO MAIORANA Diretora Administrativa ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA Diretor Industrial JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO Diretor de Marketing GUARANY JÚNIOR Diretor JOSÉ LUIZ SÁ PEREIRA AMANDA LELIS / INSTITUTO MAMIRAUÁ

PESCA BOA

Pescador retira da água um pirarucu ainda vivo. Manejo sustentável tem ajudado a conservar a espécie na Amazônia.

Salvem os pirarucus

FELIPE JORGE DE MELO Editor-chefe

Embora muito apreciado na culinária amazônica, o pirarucu é alvo da preocupação de cientistas, biólogos, ambientalistas e comunidades tradicionais da floresta. De carne macia e sabor suave, o maior peixe de água doce da região chega a ser chamado de “Bacalhau da Amazônia”, tamanho seu valor nutricional e econômico. Além de servir como alimento, “o gigante vermelho” também é fonte de matéria-prima para diversos segmentos da indústria, como dos setores da produção de ração, artesanato e até mesmo calçados e utensílios de couro. Devido à crescente demanda de mercado e à necessidade de preservação e conservação da espécie, órgãos de pesquisa e ambientais, como a Embrapa Amazônia Oriental e o Institu-

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to Mamirauá, desenvolvem diversos estudos sobre o animal, tanto em vista de sua proteção e bem-estar quanto de novas formas de seu manejo sustentável. O trabalho dessas entidades, assim como outras espalhadas na Amazônia, tem mudado a realidade das comunidades ribeirinhas e de pescadores, que, antes tidas como os principais predadores do pirarucu, hoje são importantes aliadas no salvamento e perpetuação do peixe vermelho. Ações como essas são fundamentais na Amazônia. Outras espécies animais e vegetais recebem a atenção com a mesma seriedade de centros de pesquisa e ONGs. Mas o que se vê em relação ao cuidado com o pirarucu é, realmente, alentador e nos dá esperança.

Conselho editorial RONALDO MAIORANA JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO GUARANY JÚNIOR LÁZARO MORAES REDAÇÃO Jornalista responsável e editor-chefe FELIPE JORGE DE MELO (SRTE-PA 1769) Coordenação geral LUCIANA SARMANHO Editor de arte FILIPE ALVES SANCHES (SRTE-PA 2196) Pesquisador e consultor técnico INOCÊNCIO GORAYEB Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Pará de Notícias, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Universidade Federal Rural da Amazônia, Fundação Cultural do Pará - Oficinas do Curro Velho (acervo); Camila Machado, Fabrício Queiroz, Victor Furtado, Anderson Araújo, Moisés Sarraf, Sávio Oliveira, Natália Mello, Ana Paula Mesquita, Fernanda Martins, Brenda Pantoja (reportagem); Moisés Sarraf e Fabrício Queiroz (produção); Fernando Sette, Roberta Brandão, Carlos Borges, Tarso Sarraf (fotos); Thiago Barros (artigo) André Abreu, Leonardo Nunes, Jocelyn Alencar, Sávio Oliveira, Márcio Euclides (ilustrações); Alexsandro Santos (tratamento de imagem). FOTO DA CAPA A pesca do pirarucu no Amazonas, por Ricardo Oliveira / Instituto Mamirauá AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade/ RM Graph Ltda. CNPJ (MF) 03.547.690/0001-91. Nire: 15.2.007.1152-3 Inscrição estadual: 158.028-9. Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco - Belém - Pará.

amazoniaviva@orm.com.br

PRODUÇÃO

REALIZAÇÃO


NESTA EDIÇÃO

40

Dias de pesca sustentável

Programas de manejo economicamente viável e em respeito à natureza ajudam a conservar o pirarucu na Amazônia, tirando a espécie da lista do risco de extinção CAPA

A diretora geral do Núcleo

CARLOS BORGES

GESTÃO

AKIRA ONUMA

ROBERTA BRANDÃO

ROBERTA BRANDÃO

36 16

E MAIS

56 48 MÚSICA

O cantor e compositor

ESTILO

de Articulação e Cidada-

ORIGENS

paraense Allan Carvalho

O historiador e antropólo-

nia do governo do Estado,

Crianças e jovens que

lança seu primeiro disco

go Rui Martins Jr. pesquisa

Danielle Khayat, afirma

moram na Reserva

solo, Oura. Ele canta o

a moda como um fenôme-

que a capacitação do

Extrativista Marinha de

amor em forma de poesia

no social na Amazônia. Ele

terceiro setor em favor

Soure, no arquipélago

e com um espírito amazô-

diz que é preciso identifi-

das comunidades ainda

do Marajó, aprendem a

nico embalado pelo mais

car os modos de vida de

enfrenta entraves a serem

preservar a natureza com

puro dos sentimentos

uma sociedade.

superados no Pará.

base na história local.

humanos.

QUEM É?

ENTREVISTA

COMUNIDADE

PAPO DE ARTISTA

4 6 7 11 13 14 15 17 17 18 19 19 20 21 24 53 60 62 63 65 66

EDITORIAl AS MAIS CURTIDAS PRIMEIRO FOCO TRÊS QUESTÕES ELES SE ACHAM FATO REGISTRADO PERGUNTA-SE EU DISSE APPLICATIVOS CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE DESENHOS NATURALISTAS CONCEITOS AMAZÔNICOS COMO FUNCIONA CIÊNCIA OLHARES NATIVOS SUSTENTABILIDADE MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS AGENDA FAÇA VOCÊ MESMO BOA HISTÓRIA NOVOS CAMINHOS

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AMANDA LELIS / INSTITUTO MAMIRAUÁ

MARÇO2016

EDIÇÃO Nº 55 / ANO 5


ASMAISCURTIDAS DESTAQUES DAS EDIÇÕES ANTERIORES

CLAUDIO PINHEIRO

AEDES As pesquisas do Instituto Evandro Chagas sobre o mosquito Aedes aegypiti, transmissor da dengue, zika e chikungunya são muito importantes para o papel científico do Pará e do Brasil no mundo. (“Pesquisadores na linha de combate”, Ciência, fevereiro de 2016, edição nº 54). Lídio Gumerotto Ananindeua-Pará

COMO É BOM FAZER TURISMO NO MARAJÓ

A reportagem sobre o turismo com base comunitária em Soure, no Marajó, foi a mais curtida em nosso Facebook na edição de fevereiro.

QUEIMADAS A reportagem “Amazônia em Cinzas” da edição de fevereiro vem alertar governos e sociedade para a falta de políticas públicas e iniciativas,

CARLOS BORGES

sejam privadas ou comunitárias, no combate aos focos de incêndio e devastação na região. Luiz André Tavares Belém-Pará É assustador os números da dizimação diária da nossa floresta por causa dos incêndios. É preciso se fazer alguma urgente e que traga bons resultados. Laura Peixoto Belém-Pará

BELÉM 400 ANOS Gostaria de parabenizá-los pela reportagem “Um país que se chama Belém” (ComunidaJACINTA DA AMAZÔNIA PREPARANDO O VOO

de, janeiro de 2016, edição nº 53), que tratou sobre alguns bairros de Belém, mais ficaram

A foto com o maior número de curtidas em nosso Instagram foi a da jacinta, também chamada de libélula. O solitário inseto impressiona pelo corpo esguio antes de bater as asas.

de fora outros bairros que também são importantes pela sua criação e historia, como o bairro da Cremação, que tem uma história AKIRA ONUMA

muito bonita. José Monteiro Belém-Pará

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para o endereço: Avenida Romulo USE UM LEITOR DE QR CODE PARA ACESSAR A EDIÇÃO DIGITAL DE FEVEREIRO

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DIVULGAÇÃO

PRIMEIROFOCO

O QUE É NOTÍCIA NA AMAZÔNIA

As indiazinhas superpoderosas DESENHO ANIMADO SOBRE QUATRO JOVENS SUPER-HEROÍNAS PRODUZIDO POR PARAENSES DESTACA O PROTAGONISMO INDÍGENA E FEMININO NA AMAZÔNIA PÁGINA 8 E 9

CONSERVAÇÃO

HISTÓRIA

Pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará mapearam a flora no entorno das praias do balneário de Alter do Chão. PÁG.10

A biblioteca do Grêmio Literário Português abriga exemplares raros de cultura portuguesa e que devem ser digitalizados. PÁG.12

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PRIMEIRO FOCO

Traço e realidade

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CRIAÇÃO AMAZÔNICA

O ilustrador e idealizador do projeto “Icamiabas na Amazônia de Pedra”, Otoniel Oliveira (ao lado), dá voz ao feminimismo através de suas personagens. No estúdio Iluminuras (acima), o pessoal trabalha incansavelmente na animação dos desenhos.

FOTOS: FERNANDO SETTE

Quatro poderosas jovens índias modernas - Lacy, Thyhi, Conori e Iuna - e com sotaque bem paraense são as estrelas da animação local “Icamiabas na Amazônia de Pedra”, de Otoniel Oliveira e do estúdio Iluminuras. Com três episódios de um minuto cada - disponíveis no You Tube e nos intervalos da programação da TV Cultura - fazem uma digna homenagem à cultura paraense com ação, humor e qualidade de animação equiparada a grandes produções como o famoso desenho “As Meninas Superpoderosas” (The Powerpuff Girls, do Cartoon Network). Não só o sexo feminino é protagonista na série: o povo indígena e a cultura local também são. O desenho conta a história de quatro jovens índias universitárias com poderes de deuses indígenas enfrentando inimigos que saem direto do folclore amazônico, como a Caipora, o Boitatá e metamorfos, humanos que se transformam em animais. As referências às linhas de ônibus de Belém, ao linguajar local, aos pontos turísticos da cidade e as erveiras do Ver-o-Peso são parte da trama de um dos episódios - e alguns elementos de cultura pop, como games e RPGs de mesa. As quatro índias fazem parte de um “Programa de Estágio dos Deuses”, já que as entidades indígenas amazônicos como Tupã (Trovão) e Jaci (Lua) estão agora entre os humanos e destacam alguns deles para conduzir suas tarefas divinas. Enquanto isso, resolvem seus sonhos particulares. Tupã quer ser chef de cozinha, e Jaci, vlogueira. Mas há várias outras divindades com sonhos ainda mais mundanos e inusitados. “A gente sempre quis fazer protagonistas femininas e indígenas, o que faz parte da minha pesquisa de mestrado. Sempre tivemos a visão do índio selvagem e afastado,


NO YOUTUBE

Use um leitor de QR Code para acessar os episódios das irmãs Lacy, Thyhi, Conori e Iuna Melhor vir por bem, Porco!

Cai dentro, Boitatá!

Já chega, Caipora!

mas eles não são diferentes de outros seres humanos e as Icamiabas representam isso. Elas falam português corretamente, gostam de tecnologia e vi isso quando visitei uma aldeia delas. Quis retratar isso na série”, diz Otoniel, que criou as irmãs Lacy, Thyhi, Conori e Iuna com personalidades femininas diferentes. Cada uma é regida pelas quatro fases da lua. Na lenda, as índias Icamiabas eram guerreiras que se isolaram numa tribo que não permite homens de maneira nenhuma e fazem parte de uma sociedade combativa e matriarcal. Vale lembrar que esse tipo de referências deu origem à Mulher Maravilha, a mais icônica super-heroína dos quadrinhos da DC Comics. A vitória das amazonas icamiabas sobre a invasão dos espanhóis fez com o que o rei Carlos V batizasse o rio às margens de onde a batalha ocorreu

de “Amazonas”. Na série, as heroínas têm algo de super: força e agilidade acima do normalidade e podem invocar diversos poderes quase infinitos, que elas vão aprendendo conforme o “estágio de deus”. Por enquanto, todas essas referências são apresentadas em trilhas sonoras empolgantes e rápidas, afinal, os episódios são de um minuto, deixando o espectador se perguntando onde conseguir mais. É difícil não ficar fascinado pelas quatro jovens índias corajosas, divertidas e poderosas. Otoniel adianta que devido à boa repercussão, haverá mais episódios e com duração de 11 minutos. O material deve ser concluído neste ano e será veiculado em 2017, inicialmente na TV Brasil e possivelmente em serviços de streaming, como Netflix. “A gente quer que as Icamiabas voem para outras mídias, como games e quadrinhos.

É uma progressão quase natural. Estamos num momento muito legal. Nunca se teve tantas opções para produções independentes no país”, diz Otoniel Oliveira. Até os novos episódios saírem, na página do estúdio Iluminuras é possível encontrar uma série de artes conceituais e desenhos que ampliam e explicam melhor o universo das super-heroínas amazônicas e como são indígenas bem conectadas com o presente, como o espaço no qual as jovens moram: uma rede, livros, um computador, uma guitarra e tudo num espaço decorado e montado de forma bem pitoresca. Uma das artes é o provável teaser de um dos adversários das Icamiabas: o Mapinguari. E modernas do jeito que são, até fazem selfies para mostrar depois como são boas de briga nas redes sociais virtuais. MARÇO DE 2016

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PRIMEIRO FOCO TARSO SARRAF / ARQUIVO O LIBERAL

BIBLIOTECA

Grêmio Português guarda relíquias A biblioteca do Grêmio Literário Português (foto acima), em Belém, é a terceira maior em obras lusitanas no Brasil. O acervo reúne 40 mil livros e manuscritos de história, cultura e religião, desde o século 16. Eles tratam dos mais diferentes assuntos desde música, cozinha e manual de agricultura. Entre os mais antigos do acervo, está livro religioso, escrito em latim, do qual apenas 11 exemplares existem no mundo. O local também abriga a primeira edição ilustrada de Dom Quixote, clássico do escritor espanhol Miguel de Cervantes, publicado originalmente no século 17. Dentro das limitações do material, ainda é possível ver cartas de pedido de socorro dos

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portugueses à Coroa Portuguesa, na época da Cabanagem, no Pará, e ainda um livro de receitas de João da Mata, chef de cozinha da Família Real. Por se tratarem de relíquias, nem todos os livros podem ser manuseados. A maioria são frágeis e podem ser danificados com facilidade pelo toque das mãos, por causa do tipo de papel usado nas publicações mais modernas. Mas, para que as relíquias possam ser de domínio de todos, o Ministério da Cultura aprovou um projeto para restaurar o acervo e digitalizar as obras. Dessas, cerca de 400 obras raras ficam guardadas em uma sala de acesso restrito, só é possível pegar um livro de luvas.

ACE RVO

COLEÇÃO DE PEIXES O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) comemora o avanço na informatização da sua coleção de peixes, que reúne um acer vo de 364 mil exemplares coletados em 30 anos. Trata-se da maior coleção de peixes amazônicos. Dos mais de 50 mil lotes, 85% já estão digitalizados. As informações serão publicadas na próxima edição do boletim da Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI). O objetivo é atualizar as buscas automaticamente, por meio do banco de dados do próprio ser vidor da instituição. Segundo a pesquisadora Lúcia H. Rapp PyDaniel, a experiência de anos de coleta culminou com a participação de pesquisadores do Inpa na criação de novas unidades de conser vação, além da produção do livro “Peixes do Rio Madeira”, com a participação de mais de 60 ictiólogos brasileiros e quatro estrangeiros.


TRÊSQUESTÕES

MINERAÇÃO

Projeto S11D da Vale já está em fase de testes

Pra encontrar tudo o que rola na cidade Belém será a primeira metrópole a receber

sionamento e permitem avaliar se o funcionamento dos equipamentos está conforme o planejado. “Foi o primeiro teste em um equipamento de grande porte no S11D e estamos muito satisfeitos com o resultado. Iniciamos uma nova etapa na história do projeto”, afirma o líder sênior de construção da usina, Quirino Nunes. Paralelo à construção do empreendimento, o município de Canaã dos Carajás vem recebendo diversos investimentos sociais como contrapartida da empresa para implantação da unidade de mineração de ferro. São mais de 25 obras concluídas ou ainda em curso, que envolvem infraestrutura, educação, saúde, cultura, lazer e programas de formação profissional.

os serviços do portal/ aplicativo “Janela Urbana”, uma ferramenta que reúne todas as programações culturais, turísticas, esportivas e produtos e serviços de arquitetura, desenvolvido pelos empresários Fábio Seixas e Luiz Cláudio Fernandes. Já é possível acessar no endereço www.janelaurbana.com.br e baixar nas lojas de aplicativos do Google e da Apple. O que é o Janela Urbana, portal e aplicativo ao mesmo tempo? Ele reúne todos os serviços disponíveis nas principais capitais do país. Assim, fica mais VALE / DIVULGAÇÃO

fácil localizar as opções culturais, serviços oferecidos e opções de turismo. Iniciar o Janela Urbana aqui foi uma forma de homenagear os 400 anos de Belém. Depois virão as versões de Vitória (ES), Belo Horizonte (MG) e Macapá (AP) até chegar às 27 capitais brasileiras. Que áreas são atendidas pelo portal/ aplicativo que vocês criaram? Temos várias vertentes, como Cultura, Turismo, Sociedade, Esporte e Arquitetura, que serão uma ferramenta de localização para quem vive na cidade e para turistas: programação das baladas, bares, restaurantes, eventos esportivos e tendências e mercado imobiliário.

PROGRESSO

O projeto S11D é o maior projeto de mineração da Vale está com 80% das obras da mina e usina concluídas

ÍNDIOS

ARQUEOLOGIA REGIONAL

O que o público vai encontrar de diferencial no Janela Urbana? Um portal e um aplicativo com uma pegada chique, jovem e moderna, totalmente

Um novo estudo arqueológico acaba de demonstrar que, há mais de 1.000 anos, os

interativo para facilitar a vida das pessoas.

índios da Amazônia central seriam caçadores esporádicos e, para alimentar milhares de

Algo que roda em todas as plataformas e é

pessoas, eles dependiam principalmente da pesca, assim como ocorre com as populações

facilmente acessado pelo celular. O portal e o

ribeirinhas atuais. De acordo com arqueólogo Eduardo Góes Neves, “os achados são

aplicativo oferecerão ao usuário a opção de

importantes porque, pela primeira vez, teremos a publicação de um estudo sistemático

comprar on-line ingressos de eventos.

sobre restos de fauna em um sítio da Amazônia”. MARÇO DE 2016

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ARQUIVO PESSOAL

Os primeiros testes do Projeto S11D, maior projeto de mineração da história da Vale em implantação no município de Canaã dos Carajás, no sudeste do Pará, já estão em andamento. O Transportador de Correia de Longa Distância (TCLD), com 9,5 quilômetros de extensão, foi ligado - energizado, na linguagem técnica. O TCLD integra uma das principais soluções tecnológicas do projeto, o sistema truckless, composto ainda por escavadeiras e britadores, que vem a substituir os caminhões fora de estrada e irá permitir reduzir em 70% o consumo de diesel e em 50% as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Os testes no TCLD fazem parte da etapa de comis-

RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO


PRIMEIRO FOCO

I N D Ú ST R I AS

EXPORTAÇÕES O Pará ganha cada vez mais destaque no cenário econômico nacional. De acordo com estudos divulgados pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), em parceria com a Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), ao longo de 2015, o Estado cresceu 5,7% no setor industrial em relação a 2014, compor tamento contrário ao apresentado pela indústria nacional, que encerrou o ano com retração de 8,3%. Outro dado que chama a atenção é o da balança comercial do Estado, com a ascensão da castanha-do-pará no comércio exterior. A quantidade expor tada da amêndoa atingiu o expressivo montante de 3,1 mil toneladas, o que contabilizou um saldo positivo de US$ 20,1 milhões ao Pará em 2015.

QUELÔNIOS

DESCOBERTA

LAGO VERDE

Projeto protege vegetação em praias de Alter do Chão Promover a conservação da vegetação das praias do lago Verde, na vila de Alter do Chão, a 35 km da cidade de Santarém, a partir do mapeamento participativo florístico e etnobotânico, é um dos objetivos do projeto da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) “Praias Amazônicas Boraris: Juventude indígena pela valorização da vegetação de praia do Lago Verde dos Muiraquitãs de Alter do Chão no Pará”. A grandeza do nome do projeto se confunde com o objetivo ousado, que, além da taxonomia de plantas nativas ao redor do lago Verde, prevê a publicação de um guia botânico para incentivar o turismo de observação, na vila de Alter do Chão.

Um aspecto muito importante das ações contempla a promoção da formação de jovens lideranças para a sustentabilidade socioambiental, com participação em fóruns deliberativos locais. Dessa forma, as ações do projeto também incluem educação ambiental com a capacitação de guias turísticos. “A ideia é que o nosso produto final traga tanto o nome científico das plantas como também de que forma essas plantas são utilizadas pela comunidade. A expectativa é que esse guia se torne um atrativo para os turistas, mas além disso alerte para que eles (os turistas) enxerguem a importância dessas plantas estarem ali”, explica o professor Leandro Lacerda.

Os pesquisadores do Instituto Mamirauá identificaram a presença inédita de três espécies de quelônios na Amazônia Central. A nova distribuição geográfica

PRESERVAÇÃO

Áreas verdes de Alter do Chão ganham a atenção de grupo de pesquisadores da Ufopa

das tartarugas foi descoberta durante expedições realizadas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no município de Maraã, e na Reserva Extrativista do Rio Jutaí, no Amazonas. Os registros dos pesquisadores foram publicados na revista ZenScientist, dos Estados Unidos.

SOLOS

BACTÉRIAS Coordenado pela professora Katrine Escher, do Instituto de Saúde Coletiva (Isco) da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), o projeto de pesquisa “Diversidade de Actinobactérias em solos da Amazônia” investiga, desde 2012, a produção de compostos bioativos, substâncias benéf icas de ampla utilização medicinal e industrial, por bactérias. O objetivo é o isolamento e autóctones da Amazônia para a obtenção desses compostos. 12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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FERNANDO SETTE

a identif icação de micro - organismos


ELESSEACHAM POR QUE MIMETISMO É UMA COISA NATURAL

TECNOLOGIA

Bioinseticida ajuda a combater o Aedes Um bioinseticida produzido a partir de fungos encontrados em plantas e insetos da Amazônia foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O estudo durou três anos e isolou mais de 100 linhagens fúngicas de vários substratos da Amazônia. O bioinseticida pode ser borrifado em plantas e colocado em recipientes que armazenem águas, matando as larvas e ovos do Aedes aegypti em até 24h após a aplicação. O bioinseticida funciona de forma simples podendo ser borrifado diretamente em água destilada na for-

Elementar, minha cara cigarrinha...

Muitas espécies têm a habilidade de se confundir com o ambiente ou parecer um animal maior para afastar predadores. São como um detetive em busca da resolução

ma openspray ou também em forma de extrato, esse segundo ainda em pesquisa, podendo ser colocado em vasos ou em locais que acumulam água. Segundo os pesquisadores, por possuir uma formulação natural e simples, o custo fi nanceiro para produção do produto é menor. Ele apresenta baixo impacto ambiental durante sua produção por utilizar apenas compostos biodegradáveis em sua formulação. O produto ainda não está disponível no mercado, pois ainda é necessário fazer a transferência de tecnologia para empresas interessadas em realizar a produção e comercialização.

de um caso, como as mariposas (ordem Lepidoptera), os louva-a-deus (Mantodea) e as cigarras (Hemiptera: Fulgoromorpha). Poucas, porém, conseguem reunir as duas habilidades. Estas são como o maior detetive do mundo, Sherlock Holmes, que também era um mestre dos disfarces. Esse é o caso de uma espécie de cigarra, que sabe cantar, mas também se disfarçar. A cigarra da espécie Odontoptera carrenoi é hábil. Quando está de asas fechadas, seu corpo fica como que uma folha verde. Dificilmente é percebida na mata. Mas, se um predador desmascarar seu disfarce, ela vai para o segundo plano: abre as asas e, então, seu corpo forma olhos como de DIVULGAÇÃO

coruja ou alguma outra ave. É a habilidade de Holmes, no antigo império vitoriano, que podia se passar por mendigo nas ruas e até de viciado em ópio sem que nem mesmo seu amigo e parceiro Dr. Watson pudesse lhe reconhecer. A espécie, descrita por Signoret em 1849, foi coletada no município de Salinópolis, a popular Salinas, nordeste paraense, mas sua ocorrência é muito maior. A espécie está distribuída desde a Nicarágua, na América Central, até os estados do extremo Norte do Brasil, Pará e Amapá. As cigarras são insetos que sugam seiva de

NO ALVO

plantas e são inofensivos para o homem. Pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas desenvolvem novos estudos para combater o Aedes aegypti

PE IXES - BO IS

Ah, se camuflam também, só não podem resolver crimes insolúveis. INOCÊNCIO GORAYEB

SOLTOS NA NATUREZA Os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) também realizaram a soltura de quatro dos 11 peixes-bois do projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental. Os animais serão reintroduzidos aos rios locais após quatro anos de vivência em monitoramento. A ação será coordenada pela Associação Amigos do Peixe-Boi (Ampa). O retorno dos peixes-bois para a natureza é fruto de um trabalho de mais de quatro décadas. Vítimas da caça ilegal na região, os mamíferos foram resgatados ainda filhotes pelos pesquisadores do projeto e, atualmente, vivem em semicativeiro num lago fechado de 13 hectares no município de Manacapuru (AM). Por meio do Programa Petrobras Socioambiental: Desenvolvimento Sustentável e Promoção de Direitos, a Petrobras investe em projetos de todo o país. MARÇO DE 2016

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FATO REGISTRADO

Papa-chibé e seu amor pela farinha-d’água Ah, a farinha. Alimento de todo o dia. Mas não apenas. Produto de um longo processo produtivo, ela é um patrimônio, praticamente uma instituição amazônica. O “croc-croc” é uma das primeiras saudades que o paraense sente ao deixar sua terra. Não se trata de ufanismo. E, se for piegas a saudade pela farinha, sejamos o brega do brega. É que a foto em destaque, tomada em 1969, é uma homenagem ao alimento indígena milenar: avôs e netos abraçados à massa de mandioca é o símbolo da transmissão do saber amazônico – e do gosto pelo sabor também. Na imagem, a casa de farinha é de Tracuateua, na então região do Salgado Paraense, hoje apenas nordeste do Estado. Em toda a região, nas cidades e no interior, o consumo de farinha é 14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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tradicional. Um hábito que se leva para toda a alimentação: de vinhos como o de açaí e cupuaçu às carnes e caldos. E, com a ampla diversidade amazônica, a farinha seguiu a tendência. Há farinhas de terra-firme, várzea de rio de água branca ou água preta; os sabores e texturas se diferenciam também pelo tipo da roça cultivada, as variadas da mandioca, o modo de preparo e o acondicionamento do produto. Aquela farinha torrada, contudo, no ponto certo, não surgiu do dia para a noite. A não ser que seja uma noite de milhares de anos. Desde épocas remotas, indígenas já produziam a farinha. Foi a mandioca e seus derivados que garantiram o carboidrato para a sobrevivência de pequenos grupamentos indígenas e, depois, de grandes cacicados

INOCÊNCIO GORAYEB

às margens do rio Amazonas e seus tributários. Na outra ponta da história, há as feiras em que se comercializam hoje os produtos da mandioca, como a praça Batista Campos, em Belém. Aos finais de semana, na praça, é famosa a farinha do “chapéu-de-couro”, produzida por várias gerações das família de Inhangapi. Na barraquinha, sempre há o simbólico chapéu dependurado para demarcar a fama da farinha. Apesar das variedades na região, a farinha mais famosa é a bragantina. É de lá que vem a farinha crocante e baguda, amarela, com massa pubada nas águas de lagos e igarapés. Vem de Bragança e regiões vizinhas num paneirinho com alça de talas de palmeira, revestidos com folha de guarimã, o que faz parte do sabor da farinha. Ah, a farinha...


PERGUNTA-SE POIS É PRECISO ESCLARECER MITOS E VERDADES ADAM DAVIS / FREEIMAGES

PESQUISA

Jovem pesquisador cria guia sobre louva-a-deus O biólogo Cesar Augusto Chaves Favacho concluiu a graduação e apresentou como Trabalho de Conclusão do Curso de Biologia da Universidade Federal do Pará um guia ilustrado para identificação dos louva-a-deus do Pará. O manual estará disponível na internet. O trabalho atende ao esforço de popularização da ciência, pois ele pode ser utilizado por pessoa de qualquer faixa etária. O guia apresenta uma lista de todas as famílias, gêneros e espécies de “ponhamesas” do Estado, além de trazer ilustrações sobre os habitats desses insetos e detalhes de sua morfologia.

Este é um artigo inédito que populariza o conhecimento sob o caráter científico, didático e de difusão do conhecimento. Um grande banco de fotografias foi produzido com registro dos mantódeos e muitos outros insetos da fauna amazônica. O jovem pesquisador acaba de concluir a graduação e já foi aprovado para cursar o mestrado de “Biodiversidade & Evolução”, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Foi orientado desde o ensino fundamental pelo doutor Inocêncio Gorayeb e será orientado no mestrado pelo doutor Fernando da Silva Carvalho Filho, ambos do MPEG.

Talher que já foi à boca pode azedar o alimento? Sim, pode azedar e o alimento pode se tornar perigoso muito antes de estragar de vez, como explica a mestre em Ciência e Tecnologia dos Alimentos Aline Ozana, professora mestre da Universidade da Amazônia. Isso acontece porque a boca humana posCÉSAR FAVACHO / ARQUIVO PESSOAL

sui milhares de micro-organismos que, em contato com alimentos, encontram condições favoráveis para se alimentar e proliferar, deixando lá toxinas que podem causar uma infecção, uma doença transmitida por alimento, a chamada DTA. É, esse risco está na sua boca, leitor. “Alguns alimentos mais propícios, como comidas com cremes, maionese, ovos, leite, cereais e grãos, a exemplo do arroz e feijão. Comidas com caldos também são propícias porque lá os micro-organismos se espalham pelo alimento todo, diferente de um alimento rígido e seco. Mas a orientação é evitar sempre fazer isso”, alerta a nutricionista.

GUIA

As “ponhamesas” do Pará foram identificadas e catalogadas pelo biólogo César Favacho. Acima, o pesquisador imita o inseto.

Aline aponta que os micro-organismos mais comuns na boca humana são os Sta-

CLIMA

phylococcus aureus, cujas infecções geral-

VULNERABILIDADE

mente têm sintomas de cólicas, diarreias

A floresta amazônica e a caatinga estão entre os ecossistemas mais vulneráveis às mudanças

e vômitos, sendo necessário atendimento

climáticas e podem sofrer mais do que a maioria das regiões do globo com a variação da

médico. Tudo porque alguém podia pegar

temperatura e das chuvas causada pelo aquecimento global. A descoberta faz parte de um

uma colher limpa e não o fez.

estudo publicado na revista Nature, que descreve um novo método de avaliar a sensibilidade de diferentes áreas do mundo às alterações do clima. Os cientistas acompanharam as variações da produção vegetal e relacionaram as mudanças com a alteração de outros fatores, como a temperatura do ar, a disponibilidade de água e o grau de cobertura de nuvens. A partir daí, o grupo criou um índice de sensibilidade de vegetação (VSI, na sigla em inglês), que

MANDE A SUA PERGUNTA Envie perguntas instigantes sobre hábitos, costumes e fenômenos da região amazônica para o e-mail: amazoniaviva@orm.com.br

descreve com precisão inédita a vulnerabilidade de cada região às mudanças climáticas. MARÇO DE 2016

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QUEM É?

RUI MARTINS JR.

Pesquisador da moda como fenômeno social TEXTO ARNON MIRANDA FOTO ROBERTA BRANDÃO

I

dentificar os modos de vida da sociedade, principalmente no campo das estéticas, faz parte do trabalho do historiador Rui Martins Jr. E no curso de Publicidade e Propaganda, ele teve contato com a área de pesquisa atual, durante o estudo sobre anúncios de propagandas do final do século XIX e início do século XX. “Sempre me interessei em estudar as sociedades do passado e do presente a partir das estéticas”, conta. Rui Martins Jr. fez o curso de Publicidade até o último ano (1997), no entanto, foi o curso de História, iniciado em 2004, na Universidade Federal do Pará (UFPA) que o permitiu colocar em prática o seu interesse de estudo: pesquisar o universo das aparências, das representações visuais e das indumentárias, ou seja, da moda. “Hoje eu tenho muito cuidado com o conceito de moda, para não cair na armadilha de interpretá-la pelo campo do supérfluo, do ar16 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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tificial. Eu decidi encarar esse universo como um fenômeno cultural e social muito mais complexo”, afirma o historiador. Rui Martins Jr. defende que a moda é um grande tema que precisa ser estudado como fenômeno histórico, e vê a necessidade de ser interpretada com mais seriedade pelos cientistas sociais e pela comunidade acadêmica. Para ele, a maneira como as pessoas se apresentam ao longo dos tempos reflete as concepções e mentalidades como uma linguagem de comunicação estética. “Trabalho com a ideia de conjunto indumentário do sujeito, englobando a linguagem e o comportamento. E aí se dilata o tema moda para decoração, mobília, cores e gastronomia, por exemplo. É muito mais do que simplesmente o ato de se vestir”, diz. De todos os trabalhos do historiador, destacam-se a dissertação de

mestrado (2010) e tese de doutorado (2015) na UFPA que tratam da estética amazônica. Para Rui, há dois grandes momentos da moda paraense: a moda “euro-amazônica”, iniciada no século XIX, durante a Belle Époque, e a atual moda amazônica, que dialoga mais com os elementos da região, potencializando o valor dos materiais tradicionais. “Ocorre um fenômeno que eu considero híbrido. Defendo na tese que isso seria uma sinergia. Eu pude observar uma visão etnocêntrica do europeu em relação aos sujeitos amazônicos, impondo o estilo de vida europeu em um projeto imperialista. Com pesquisas documentais, a imprensa consolidada no século XX gerou muito mais elementos para interpretar esse processo; e descubro um grande fenômeno de processos culturais onde ora a cultura amazônica prevalece ora a cultura europeia prevalece”, revela.

NOME

Rui Jorge Moraes Martins Jr.

IDADE 38 anos

FORMAÇÃO

Doutor em Antropologia Social

TEMPO DE PROFISSÃO 15 anos


ADEPARA / DIVULGAÇÃO

EU DISSE

APPLICATIVOS BOAS IDEIAS NUM TOQUE DE DEDOS

“Nós vamos provar que produzimos de forma sustentável, respeitamos a legislação trabalhista e temos viabilidade econômica”

AntiZika O app brasileiro ajuda a mapear os focos do

Luciano Guedes, diretor geral da Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará),

mosquito Aedes aegypti, vetor não só do

durante a criação do Grupo de Trabalho Fornecedores Indiretos na Pecuária Sustentável.

zika, mas também da dengue e da chikungunya, com uso do GPS. O usuário tem o

“Decidimos com eles o roteiro. Eles desenharam os protótipos, gravaram as músicas e os efeitos sonoros. Os pajés narraram as histórias”

ponto marcado automaticamente no mapa. E se ainda faltar algum estímulo, o aplicativo marca o ranking dos maiores colaboradores. Ainda é possível fazer fotos para enriquecer o relato e ajudar o poder público na solução. Plataforma: Android Preço: Gratuito

Guilherme Meneses, antropólogo da Universidade de São Paulo (USP) e idealizador do game “Huni Kuin”, que tem como tema a cultura do povo indígena na Amazônia.

Strava

“É positivo ver a juventude não desistir dos valores, do protagonismo da vida pública, de fazer um esforço de influenciar os governantes e o Congresso”

Uma espécie de rede social competitiva para estimular e unir ciclistas por todo o país. Os trajetos são rastreados por GPS para saber a performance das pedaladas, com desafios e eventos. Todas as atividades podem ser compartilhadas pelo Facebook e pelo Twitter, ajudando a encontrar amigos e organizar

Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional, destacando a atuação de movimentos sociais na luta contra os retrocessos nos direitos humanos em 2015.

competições. Plataformas: Android e iOS Preço: Gratuito ABC / ADAM TAYLOR / DIVULGAÇÃO

Plantit Um guia com várias informações e ferramentas para o usuário começar uma horta em casa e ter alimentos totalmente orgânicos e frescos sempre que quiser. Atualmente, o app tem informações para 28 tipos de

“A mudança climática é real, está acontecendo agora mesmo. É a ameaça mais urgente que a nossa espécie precisa enfrentar” Leonardo DiCaprio, após ganhar o prêmio de “Melhor Ator” no Oscar 2016, pelo filme “O Regresso”.

legumes, verduras, raízes e hortaliças. As ferramentas incluem a medição de luz, por exemplo. O aplicativo passa por constante atualização. Plataformas: Android e iOS Preço: Gratuito FONTES: PLAY STORE E ITUNES

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CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE

Pequenino, mas importante para a ciência Atenção ao baixinho! Nas plantas do quintal ou no meio do mato, sempre que há um deles é impossível não notar. O padrão de cores vivas, passando do vermelho ao amarelo, sempre se destacando no exoesqueleto negro, se destaca no verde dos vegetais. É um alerta: essa coloração deve servir como sinal de alerta aos predadores sobre a presença de veneno. O pequenino que posou para a foto é da espécie Scaphidomorphus quinquepunctatus (Fabricius, 1775), registrado e coletado nas matas de Benfica, Benevides, Região Metropolitana de Belém. O pequeno venenoso é da família Erotylidae, que contém 280 gêneros com mais de 3.500 espécies conhecidas, distribuídas no mundo todo

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com maior ocorrência nas áreas tropicais. São pequeninos e numerosos. É um grupo pouco estudado e os dados da coleção do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) comprovam isso: na instituição, existem 228 tipos e um total de 5.500 espécimes identificados, além de 15.000 não identificados. Os besouros não estão à toa na natureza. Muitas espécies se alimentam de fungos, vivendo associados a eles; outras, se alimentam de plantas e podem ser saprófagas (que se alimentam de matéria orgânica em decomposição) e polívoras (que se alimentam de pólen). E as cores não se enganam: quando se sentem ameaçados, excretam substâncias nocivas

INOCÊNCIO GORAYEB

e de gosto ruim de suas glândulas das juntas e do ânus. Atenção ao baixinho! Mas é justamente essa função que serve ao homem. Os membros da família Erotylidae são destacados por alguns pesquisadores pela produção de medicamentos para variadas finalidades: balanço reprodutivo, infertilidade, problemas sexuais, infecções por fungos nas unhas e pele, candidíase, herpes, psoríase e outras. E a Amazônia é o palácio de grande variedade de representantes dessa família. Na foto de Cesar Favacho, é impossível inferir, mas o pequeno besouro é um banco de conhecimento e pode gerar benefícios para a humanidade. Atenção ao baixinho!


DESENHOS NATURALISTAS

CONCEITOSAMAZÔNICOS O VOCABULÁRIO REGIONAL É UM PATRIMÔNIO

A dupla ribeirinha Igapará e Curuperé Apesar da intersecção nas variadas “amazônias”, os termos igapará e curuperé têm seus significados específicos. Atenção ao caboclo falador: é igarapá. Fora da Amazônia, tudo é rio. Mas prossigamos aos esclarecimentos, antes de tudo: o termo igarapé é mais geral e se refere aos pequenos rios, em escala amazônica, é claro, mesmo que não haja uma métrica bem definida quanto ao tamanho necessário para se enquadrar nessa categoria. Já a palavra igarapá se aplica a canal largo, braço de rio volumoso, inclusive aquele mais próximo da foz, que começa a se tornar mais robusto à

Olhar francês sobre Santarém

de igarapé, que, geralmente no período do verão amazônico, seca. Ah, mas há outra aplicação. Curuperé também ficou conhecido como o igarapé em que navios conseguem entrar para se reabastecerem de água potável. E outra: há um balneário, em Bragança, nordeste paraense, conhecido como Curuperé. Todo igarapé é rio, mas nem todo rio pode ser chamado de igarapé!

ILUSTRAÇÃO: SÁVIO OLIVEIRA

Fora os desenhos de fauna e flora, dos costumes indígenas e das paisagens, as obras que chegaram até nós mostram o futuro. É que as obras de Hercules reúnem elementos suficientes para se acreditar que ele antecedeu Daguerre e outros na criação do processo de fi xação de imagens através da luz solar. Daguerre foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês, autor da primeira patente para um processo fotográfico em 1835, o famoso daguerreótipo. A expedição passou por Minas Gerais, São Paulo, Centro-Oeste e pela Amazônia. Nela, foram coletados itens da fauna, da flora e da etnografia, hoje expostos nos museus da Academia de Ciência da União Soviética, na cidade de São Petesburgo. Isso porque fez parte da expedição o médico, botânico, zoólogo, antropólogo, filósofo e navegador alemão Gregory Ivanovitch Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Rio de Janeiro em 1813.

O termo curuperé se aplica a um afluente

ACERVO DE OBRAS RARAS DO MUSEU GOELDI / HERCULES-ROMUAL D’FLORENSE

A imagem é uma viagem. Viagem de volta ao século XIX. Mais precisamente ao ano de 1829. Aquela é a Santarém, às margens do rio Tapajós. E tudo começa, na verdade, em 1824, quando Hercules-Romual d’Florense, nascido em Nice, no sul França, chegou ao Rio de Janeiro a bordo da fragata Marie-Thèrése. Na capital do Império, governado ainda por dom Pedro, Florense fora contratado como desenhista por Langsdorff. Ele seria o desenhista da expedição, entre os anos de 1825 e 1829. E uma boa parte dessa história está em seu diário, publicado em português em 1875 e 1876 sob o título “Esboço da viagem feita pelo Sr. Langsdorff pelo interior do Brasil, de setembro de 1825 a março de 1829”, pela revista trimestral do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Outra parte do relato foi reeditado em 1941 e 1948 pela editora Melhoramentos, sob o título “Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas, de 1825 a 1829”.

medida que se aproxima do seu deságue.

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COMO FUNCIONA

O Código de Posturas de Belém? TEXTO E ILUSTRAÇÃO SÁVIO OLIVEIRA

Idos do final do século 19, o intendente Antônio Lemos tomava posse na capital paraense. Hoje, tempos depois, o velho Lemos ainda é bastante lembrado pela gestão que promoveu uma hi-

gienização no centro urbano de Belém, regrando hábitos e modos sociais e culturais da população paraense, chegando até a aplicar multas para cusparadas em via pública. Atualmente, a Belém dos

400 anos é regida pela Lei nº 7.055, de 30 de setembro de 1977, também conhecida como Código de Posturas, que abriga um capítulo para versar sobre a higiene em vias públicas.

CUIDE BEM DE BELÉM

Não temos mais o rigor de multa por cuspe, mas veja como funciona alguns pontos da legislação nas ruas da cidade.

1

O Capítulo II da legislação é reservado à higienização dos logradouros e vias públicas.

3

Além do depósito de lixo, o artigo 30 também fala sobre a proibição em queimar lixo, resíduos ou detritos na rua.

5 O artigo 29 proíbe a utilização de calçadas para colocar mesas e cadeiras de bares.

FONTE: CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE BELÉM/ DERYCK MARTINS, SECRETÁRIO DE MEIO AMBIENTE.

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2

Segundo o artigo 30, é proibido impedir ou dificultar a passagem das águas de canais, valas ou sarjetas.

4 Também não é permitido lavar carros ou animais na calçada. Além de aparelhos e eletrodomésticos, como arcondicionado.

6

O artigo 36 fala que empreiteiras são obrigadas a remover restos de materiais de obras ou objetos deixados em via pública.


CIÊNCIA

Em direção à esperança O Pará contribui com o avanço das pesquisas mundiais sobre o tratamento de lesões da medula espinhal, reacendendo as chances de recuperação de pacientes presos a cadeiras de rodas

TARSO SARRAF / ARQUIVO O LIBERAL

TEXTO FERNANDA MARTINS

O

uso de células-tronco em tratamentos médicos acenderam a esperança de pesquisadores dos mais diversos males pelo mundo inteiro. As inovações mais recentes – e bem recebidas – estão no tratamento das lesões da medula espinhal, tidas como irrecuperáveis pela medicina atual disponível e que prendem milhares de brasileiros a cadeiras de rodas. Uma pesquisa com resultados revolucionários – e a participação de um paraense, o biomédico, doutor em Neuropatologia Experimental, Walace Gomes Leal, responsável pelo Laboratório de Neuroproteção e Neuroregeneração Experimental (LNE), do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal do Pará (UFPA) – promete uma porcentagem de regeneração da medula jamais vista e perspectiva de recuperação dos movimentos para quem deixou de andar.

“Os neurônios são conectados uns aos outros pelos axônios, que funcionam como cabos biológicos e transmitem a informação neural de neurônio para outro. Quando há a lesão, essas conexões se quebram e não se reestabelecem naturalmente”, explica Walace Gomes Leal. A medula espinhal humana funciona basicamente como um linhão de energia. Rompe-se o cabo, o fornecimento de eletricidade é interrompido e as cidades abastecidas ficam no escuro. No corpo humano, esse “linhão” vital está situado no interior da coluna, protegido por sua estrutura óssea. Entretanto, traumas e doenças degenerativas podem danificar ou romper essa conexão, o que causa paralisia – com nível de gravidade que varia de acordo com a posição e extensão da ruptura. A princípio, é fácil recuperar o fornecimento de energia, basta recompor o cabo

rompido, correto? Porém, no caso da medula humana, a tarefa pode se revelar árdua. A lesão medular desencadeia o rompimento de contato entre os neurônios da região, incapazes de regeneração, interrompendo a comunicação entre o cérebro e todas as partes do corpo que ficam abaixo da lesão. Não há disponível no mundo hoje um tratamento capaz de regenerar o tecido comprometido. A Associação de Apoio a Pessoas com Lesão Medular Paulista (Polem) calcula que, a cada ano, nove mil novos casos são registrados no Brasil. Em torno de 75% das ocorrências são causadas por trauma – acidentes automobilísticos, ferimentos por armas de fogo e quedas. Destes números, quase 90% das vítimas são homens. Entre as causas não-traumáticas se destacam infecções, tumores, doenças degenerativas e vasculares. MARÇO DE 2016

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CIÊNCIA

CARLOS BORGES

As pessoas com lesão medular podem apresentar alterações na sensibilidade, no controle dos esfíncteres e da temperatura corporal, no funcionamento dos órgãos, na circulação sanguínea e ainda paralisia temporária ou permanente dos músculos e sistema nervoso autônomo. Nas últimas décadas, entretanto, os tratamentos à base de células-tronco representam uma luz no fim do túnel para milhões de pacientes afetados pelo mal no mundo inteiro. Por sua natureza versátil e capacidade de transformação, o implante de células-tronco nos locais lesionados permitiria, teoricamente, a reestruturação das conexões perdidas. Porém, na prática, os experimentos com essas células não vinham apresentando a eficácia esperada.

OBSERVAÇÃO

A virada veio em 2012, quando os pesquisadores Paul Lu e Mark Tuszynski, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), ambos com destacado trabalho na área de regeneração de lesões medular usando células-tronco, publicaram na revista Cell um estudo que apresentava o “pulo do gato” para este tipo de tratamento. “Até então, os implantes de células-tronco continham apenas as células em solução, aplicadas na cavidade da lesão. Porém, duas semanas depois do implante, verificava-se

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que boa parte das células não sobrevivia ou migrava para outros pontos do corpo. As que permaneciam no local não eram suficientes para tratar a lesão”, conta Walace Leal. O que Lu e Tuszynski fizeram de diferente foi criar implantes onde as células-tronco eram injetadas em uma matriz de fibrina – uma espécie de “cola” biológica extraída da parte gelatinosa do coágulo sanguíneo que as mantinha no mesmo local – além de dez fatores tróficos, que funcionam como alimento para aquelas células, garantindo que elas não morressem. O resultado disso foi um aproveitamento exponencialmente maior das células do implante. Instigado pelo trabalho dos colegas estrangeiros, o biomédico paraense propôs uma colaboração e passou o último ano na UCSD com um objetivo: documentar o desenvolvimento de axônios após o implante, realizado até agora apenas em experiências com roedores. Os achados animaram o pesquisador e serão tema de um novo artigo, a ser publicado nos próximos meses na revista americana Journal of Neuroscience. “Conseguimos verificar, através do uso de marcadores biológicos especiais que, mesmo após esse período de duas semanas, as células ainda estavam lá, transformadas em neurônios novos e as conexões dos axônios haviam sido refeitas tanto aci-

CARLOS BORGES

ESTUDO DE CÉLULAS-TRONCO

O biomédico Wallace Gomes Leal, do Laboratório de Neuroproteção e Neuroregeneração Experimental da UFPA, e sua equipe são colaboradores da a Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA). Eles também desenvolvem pesquisas experimentais com elementos da medicina popular da Amazônia, como o óleo de copaíba, que tem substâncias que agem como neuroprotetores de células.

ma quanto abaixo das lesões. É um resultado inédito que será bastante representativo para o desenvolvimento de um tratamento definitivo para as lesões medulares”, comemora Leal. Apesar da conclusão empolgante, o pesquisador ressalta que o caminho até a aplicação do tratamento em seres humanos ainda será longo. “A medula do rato tem dimensões muito inferiores à medula humana. O tamanho do implante precisará ser redimensionado. Acredito que entre 10 e 15 anos chegaremos aos estudos clínicos deste tratamento em humanos”, acredita. Uma boa notícia é que as questões éticas no uso das células-tronco para a pesquisa estão superadas. Em seu trabalho, Paul Lu e Mark Tuszynski utilizaram o que a ciência chama de “Células-Tronco Pluripotentes Induzidas”, que consistem em células comuns da pele, fibroblastos, transformadas em células-tronco através da manipulação de quatro genes, em uma técnica que rendeu aos seus desenvolvedores - o britânico John B. Gurdon e o japonês Shinya Yamanaka - o Prêmio Nobel de Medicina em


2012. O processo traz ainda outro benefício: por serem criadas a partir das células do paciente, o risco de rejeição por incompatibilidades imunológicas é nulo. Ainda assim, Walace Leal explica que o tratamento é promissor, mas não se trata de nenhum milagre, e a recuperação de cada doente vai depender de diversos fatores. “Quando as conexões se refazem, é como se elas se formassem pela primeira vez. O paciente precisará reaprender a utilizar os movimentos e outras funções. Passará por um período longo de reabilitação e, mesmo após tudo isso, não será exatamente como era antes da lesão”, esclarece.

REPARO DE LESÃO

OUTRAS CONTRIBUIÇÔES

- Os axônios desenvolvidos se estenderam

Além da colaboração com a Universidade da Califórnia em San Diego, o Laboratório de Neuroproteção e Neuroregeneração Experimental da UFPA trabalha em projetos próprios com uso de modelos de AVC, lesão espinhal e epilepsia. Resultados são experimentais, mas promissores, com destaque ao uso da medicina popular para identificar possíveis inovações para a neurologia. “Precisávamos partir de algum ponto para pesquisar o desenvolvimento de neuroprotetores, que são substâncias que previnem o agravamento de lesões neurológicas. Então, partimos do que já é tido como fato pela sabedoria popular. Iniciamos com a copaíba e tivemos excelentes resultados”, conta Walace Leal. Substâncias presentes no óleo de copaíba, quando isoladas, apresentam a característica de neuroprotetores. “Ainda estamos no início, mas meu objetivo é ver um remédio que poderá ser administrado por via oral a um paciente em quadro de AVC e bloqueará os danos, impedindo que uma lesão pequena se transforme em algo maior. Hoje, um médico nada pode fazer para prevenir a agravação do dano cerebral de um paciente que chega ao hospital com um quadro de AVC”, observa. O trabalho sobre a copaíba foi publicado em 2013. As pesquisas incluem ainda o gergelim, a jalapa (aguardente alemã), unha-de-gato e outras espécies.

Particularidades no desenvolvimento do novo tratamento com implante do “relé neural” feito de célula-tronco pluripotentes ativadas: - O implante realizado no rato foi criado com células de um homem de 86 anos, provando que mesmo células já idosas podem apresentar resultados eficazes; - O tipo de lesão medular estudado foi um corte completo na vertebra C5 do roedor. Em humanos, lesões com corte completo são bastante raras;

por toda a coluna do roedor, indo desde o cérebro até a base, um resultado jamais visto antes; - Apesar do desenvolvimento dos neurônios e criação de uma nova rede de cabos neurais funcionais, o rato não apresentou uma completa recuperação dos movimentos, com resultados considerados modestos por outros cientistas; - 95% dos estudos clínicos iniciados em seres humanos para tratar lesões medulares falharam até hoje.

CARLOS BORGES

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OLHARES NATIVOS

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Aniversariante ilustre da cidade O dia no mercado do Ver-o-Peso começa tão cedo, que chega antes do sol. Começa antes do outro terminar. Dias que varam noites e noites que terminam ao amanhecer. Uma das maiores feiras livres da América Latina mantém uma intensa rotina de 24 horas de trabalho às vésperas de completar 389 anos de fundação. São quase 30 mil metros quadrados de diferentes aromas, sabores, texturas e cores. É histórico. Um motivo de orgulho e de debate. Aproximadamente cinco mil pessoas trabalham no complexo, que é o maior cartão postal de Belém. Xodó dos turistas, as vendas não param. O comércio na feira é vivo em todas as horas. Ervas, peixes, açaí, carne, frutas, verduras, legumes, artesanato e refeições de dar água na boca. No dia 27 de março, o Ver-o-Peso fará aniversário movimentando a economia, mesmo em meio a crise; sendo lar de trabalhadores, mesmo sem conforto; e sendo o melhor, mesmo não estando perfeito. Em comemoração à data, o fotógrafo Tarso Sarraf preparou um ensaio especial para a edição deste mês e que você confere nas próximas páginas. MARÇO DE 2016

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OLHARES NATIVOS

Caixa na cabeça

Uma feira que não dorme. Quando o carregamento de peixe que chega, haja homem passando com caixotes cheios de pescado, gritando: “Tá pingando. Tá pingado”. Da variedade nem se fala, são paneiros e paneiros de gó, filhote, pescada, pirarucu. As delícias dos rios paraenses.

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Em movimento

Descarrega de um lado, vende de outro. Na madrugada, o peixe e o açaí são os reis do pedaço. Quem vê de longe o ajuntamento pensa que é confusão, mas naquele momento o resto da cidade se adequa à feira. O movimento do trânsito por lá é intenso e dividido com vendedores, carroceiros e carregadores de pescados.

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OLHARES NATIVOS

Só dá açaí

No porto do açaí, tem juçara para todo mundo. Mas só se chegar cedo porque o fruto é bem precioso e nada durável. Vendem tudo, não sobra um cesto para contar história. E para animar o expediente, tem venda de sopa, de mingau, de café e, claro, de cerveja. Os bares tocando tecnobrega seguem juntos na manhã.

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Um pouco de descanso

Mas enquanto não amanhece outros pontos do complexo dão sono de tão parados. É hora de tirar o cochilo antes do corre-corre do dia-a-dia. Não falta espaço para se encostar e preparar o corpo para mais uma jornada de trabalho que virá nas próximas horas, dia após dia.

Nas Docas


OLHARES NATIVOS

Pra panela

Oferecer de tudo é pouco, é preciso ter variedade mesmo. Aves, como galinhas, prontas para o abate. Outra peculiaridade das feiras livres, tão preservada no Ver-o-Peso. O pato tão característico da culinária paraense está quase sempre à disposição.

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Sobre as águas

As embarcações são casas flutuantes. Carregadas de mercadorias por famílias inteiras, que trabalham unidas de lua a lua, atravessando os rios da região. Mas como se já não bastasse carregar tanto, as embarcações ainda levam mensagens, carregadas de sentimento e histórias.

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OLHARES NATIVOS

De todos

Tão heterogênea, palco de tantas misturas. O mercado do Ver-o-Peso revolve - e envolve - o cheiro forte do peixe que atrai tantos urubus atrás de restos, com o acolhimento de aves elegantes, como as garças. Tem espaço para todos.

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Cheiros e tradição

Sabedoria vinda das tradições familiares. As famosas erveiras são as provedoras de fé para muitos. Superstição, crença e conhecimento de quem tem experiência. Turistas procuram os banhos de cheiro, que prometem caminhos mais felizes.

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OLHARES NATIVOS

À margem

E além das diversas ofertas, uma vista típica da região amazônica. Rios largos, ilhas, barcos de madeira de um lado. Do outro, um centro comercial pulsante. O mercado do Ver-o-Peso assistiu às principais mudanças de Belém do ponto de vista urbanístico e ambiental.

Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos 34 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail amazoniaviva@orm.com.br acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!


OPINIÃO, IDENTIDADE, INICIATIVAS E SOLUÇÕES EUNICE VENTURI / INSTITUTO MAMIRAUÁ

IDEIASVERDES

Pirarucu conservado O MAIOR PEIXE DA AMAZÔNIA GANHA A ATENÇÃO DE PESQUISADORES QUE AJUDAM COMUNIDADES A PROTEGER A ESPÉCIE

PÁGINA 40

PARCERIAS

SABER

A diretora geral do Núcleo de Articulação e Cidadania do governo do Estado, Danielle Khayat, fala dos desafios do terceiro setor no Pará. PÁG.36

Jovens moradores da Reserva Extrativista Marinha de Soure, no Marajó, aprendem a preservar a natureza no arquipélago. PÁG.48


ENTREVISTA

O

terceiro setor tem um papel fundamental na sociedade, pois ajuda a detectar grandes projetos que contribuem para o desenvolvimento da região, além de ajudar no controle das necessidades de algumas comunidades. Para cumprir essa função, as associações e entidades sociais precisam se capacitar, para, assim, melhor empregar os recursos recebidos. Esse é um dos grandes desafios do terceiro setor no Pará: qualificar entidades. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta mais de 290 mil organizações sociais no Brasil, gerando 2,1 milhões de empregos. Um perfil foi traçado com 7.817 instituições de todo o País, sendo 20% delas situadas na Região Metropolitana de Belém. A lei federal nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, exige dessas entidades a profissionalização e a regulamentação. Trata-se do novo regime legal de relações de parcerias das organizações da sociedade civil com o poder público. União, estados e municípios estarão obrigados a cumprir a nova legislação para que possam transferir recursos financeiros para organizações. A diretora geral do Núcleo de Articulação e Cidadania (NAC) do governo do Estado, Danielle Khayat, faz uma análise sobre a legislação e o terceiro setor no Pará.

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“Criar novas oportunidades de crescimento” PARA A DIRETORA GERAL DO NÚCLEO DE ARTICULAÇÃO E CIDADANIA DO GOVERNO DO ESTADO, DANIELLE KHAYAT, A CAPACITAÇÃO DO TERCEIRO SETOR EM FAVOR DAS COMUNIDADES AINDA É UM DESAFIO NO PARÁ TEXTO ANA PAULA MESQUITA FOTO ROBERTA BRANDÃO


CLAUDIO SANTOS / AGÊNCIA PARÁ

Como está o desenvolvimento do terceiro setor no Pará? Embora tido como estratégico para o alcance da melhoria de indicadores socioeconômicos, o País carece de pesquisas e dados sistematizados sobre o terceiro setor. Vale ressaltar a iniciativa pioneira no Brasil, quando em 2006, o governo do Estado realizou, em conjunto com a FGV, o primeiro Censo do Terceiro Setor do País, resultando no estabelecimento de um perfil abrangente, com 7.817 organizações mapeadas, no qual 77,19% são de caráter formal, com um percentual de 28,49% na Região Metropolitana de Belém. A realidade é dinâmica e desse período até hoje, muitas alterações aconteceram no cenário. O NAC (Núcleo de Articulação e Cidadania) tem como um dos principais eixos de atuação a implantação de um banco de dados que possa ser alimentado sistematicamente, a ser disponibilizado publicamente para a sociedade até 2017.

CIDADANIA

Comunidades do Estado são beneficiadas com a atuação e acompanhamento do terceiro setor na região

Quais são os desafios que o terceiro setor pode encontrar no Pará? Hoje refere-se à qualificação das organizações da sociedade civil que, para se habilitar a recursos públicos, precisam atender a muitos critérios e exigências impostas pelos entes públicos. Governos, tribunais de contas e Ministério Público alternam orientações e fiscalizações, exigindo das organizações um patamar de qualificação que a maioria não possui, seja porque carecem de recursos financeiros, seja pela desinformação. Tornam-se, assim, inadimplentes e ficam impedidas de receber novos recursos. O NAC tem a responsabilidade de atuar na capacitação permanente. E ainda tem a preocupação em capacitar, qualificar e tornar as organizações mais profissionais, oferecendo seminários,

“ O Núcleo de Articulação e Cidadania tem a responsabilidade de atuar na capacitação permanente. E ainda tem a preocupação em capacitar, qualificar e tornar as organizações mais profissionais” MARÇO DE 2016

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ENTREVISTA

oficinas, encontros, palestras e reuniões programadas sobre gestão, captação de recurso, ampliação de recursos, prestação de contas entre outros para, assim, criar novas oportunidades de crescimento e desenvolvimento nas comunidades.

“ O terceiro setor é uma extensão da administração pública. As Organizações da Sociedade Civil são pessoas jurídicas de direito privado e prestador de serviços públicos através de convênios” 38 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Qual o objetivo das parcerias entre administração pública e entidades sociais e como é essa relação? O governo do Estado reconhece a incompletude de suas ações. Não pode prescindir da participação efetiva do setor privado e da sociedade civil organizada. Entende que o estabelecimento de metas estratégicas para reversão de indicadores pressupõe a participação de todos os setores, haja vista a capacidade de mobilização social do terceiro setor com potencial para gerar transformações. Importante passo vem sendo dado através das audiências públicas para a construção do planejamento estadual de forma regionalizada. Até janeiro desse ano, o governo utilizava a formalização de convênios e parcerias com as organizações. Entretanto, há necessidade de promover adequações à nova relação entre poder público e as organizações da sociedade civil (OSCs), com a entrada em vigor do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Vale ressaltar que os convênios firmados antes da lei permanecem valendo até a data de vencimento dos mesmos. O terceiro setor é uma extensão da administração pública. As OSCs são pessoas jurídicas de direito privado e prestador de serviços públicos através de convênios e, agora, com o Marco Regulatório, deverá ser feita também por chamamento público e firmado por termo de fomento ou termo de cooperação. Como o poder público e a iniciativa privada se articulam com o terceiro setor no Pará? O NAC tem o papel de conhecer as OSCs e o trabalho que desenvolvem. Também temos parcerias com empre-

sas privadas que querem desenvolver projetos sociais. Diante disso, podemos ser a ponte entre esses dois setores com o objetivo de melhorar a sociedade, articulando empresas para a doação de materiais diversos com a finalidade de contribuir para o fortalecimento de serviços. Quais são os benefícios que o terceiro setor traz à sociedade paraense? Encontramos Organizações da Sociedade Civil com diferentes perfis identificados. Temos aquelas que já possuem uma estrutura formal sustentada e que captam recursos externos em nível nacional e internacional. Essas, naturalmente, em menor


ERIKA TORRES / AGÊNCIA PARÁ

PARCERIA

O Núcleo de Articulação e Cidadania do governo do Estado conta com o apoio das Organizações da Sociedade Civil para desenvolver o terceiro setor no Pará

ceiros. Será também inaugurado, em abril deste ano, um espaço de formação e comunicação com a disponibilização de equipe técnica para orientação jurídica, contábil e elaboração de projetos.

quantidade. Uma outra faixa abrange as OSCs que possuem convênios e prestam serviço na área da assistência social, saúde e educação, possuindo uma estrutura formal, com portes diferentes. E uma terceira permeada de iniciativas mobilizadoras da sociedade voltadas para o desenvolvimento comunitário e bem-estar de famílias ou segmentos vulneráveis, no qual muitas ainda atuam na informalidade. O NAC quer conhecê-las e dar visibilidade às suas ações, cujo potencial de intervenção na realidade pode e deve ser estimulado. Quais foram os avanços e conquistas do terceiro setor no Pará?

Em 2015, foi iniciada a formação de uma rede com 22 OSCs que atuam junto à infância e adolescência, a partir da mobilização para o curso realizado em parceria com a Editora Paulus para aperfeiçoamento de educadores sociais no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Também trabalhamos a qualificação das organizações nos aspectos de gestão, visando o aperfeiçoamento dos serviços oferecidos à população em situação de vulnerabilidade social e sustentabilidade do seu funcionamento. Foram 515 pessoas de 101 organizações da sociedade civil capacitadas em sete municípios, envolvendo 26 órgãos governamentais e 18 par-

O que muda para o terceiro setor no Pará com a entrada em vigor do Marco Regulatório das Organizações? A nova lei regula o regime jurídico do terceiro setor, promovendo mudanças em todo o sistema de transferências voluntárias de recursos da administração pública para as organizações. O governo do Estado já está organizado através de um grupo interinstitucional para a elaboração da regulação que vai determinar as especificidades da lei para os chamamentos públicos das organizações quando da destinação de recursos públicos no Pará. Tudo será precedido de ampla divulgação e o estabelecimento de um processo contínuo de capacitação para as mesmas concorrerem em condições de igualdade. Se os governos e órgãos de fiscalização já impunham uma grande responsabilidade às organizações, com o Marco Regulatório o maior desafio é a rapidez com que precisarão se qualificar e profissionalizar. MARÇO DE 2016

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CAPA

Gigante vermelho MAIOR PEIXE DA AMAZÔNIA, O PIRARUCU AINDA SOFRE COM A PESCA PREDATÓRIA NA REGIÃO. MAS PROJETOS DE MANEJO SUSTENTÁVEL ORIENTAM PESCADORES E PRODUTORES A COMERCIALIZAR O PRODUTO CONSERVANDO A ESPÉCIE. TEXTO NATÁLIA MELLO

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ANDRÉ DIB / INSTITUTO MAMIRAUÁ

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igante que reina soberano nas águas doces da bacia amazônica, com suas centenas de quilos e coberto por escamas de intensa coloração vermelha, o pirarucu também é conhecido como o “bacalhau da Amazônia”. A comparação se deve, entre outras razões, à semelhança com o sabor suave da carne do peixe característico da gastronomia portuguesa, e ao seu grande porte. Com uma taxa de crescimento considerada alta, em média 10kg/ano, o animal pode chegar a aproximadamente 250 quilos e até 3 metros de comprimento. De nomeação originária da língua indígena tupi, associação de “pira” – que significa “peixe”, e “urucu” – que indica a cor vermelha, devido à coloração característica da semente do urucum, o pirarucu despontou como uma das espécies da região com grande potencial para piscicultura. Ao atrair a atenção dos pescadores de comunidades tradicionais e do setor produtivo, sua pesca começou a ser utilizada desordenadamente e foi graças à falta de regulamentação para a atividade que surgiu o primeiro entrave, em 1996, com a proibição da pesca do pirarucu na bacia hidrográfica do rio Amazonas e seus formadores, afluentes, lagos, lagoas marginais, reservatórios e demais coleções d’água sob o domínio da União, exceto na sub-bacia do rio Araguaia-Tocantins. Com a formação desse panorama, nasceu uma preocupação: como utilizar o recurso sem extingui-lo? Norteado por essa questão, levando em conta o fato de que os peixes são considerados a principal fonte de proteína animal e de renda

Economia que respeita a natureza As comunidades da Amazônia continuam pescando o pirarucu, mas de olho na preservação MARÇO DE 2016

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CAPA

AMANDA LELIS / INSTITUTO MAMIRAUÁ

para as populações ribeirinhas, o Instituto Mamirauá, até então uma Organização Não Governamental (ONG), iniciou as primeiras pesquisas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, para implementar uma prática sustentável de manejo, surgida em 1998, com a criação do Programa de Manejo de Pesca. “A atividade é da cultura e da tradição do povo, principalmente no sul da Amazônia, que tem ocorrência de pirarucu. O trabalho do Instituto é voltado para medidas de conservação, com estudos para a recuperação dos estoques do pirarucu e geração de renda, fatores aliados à conservação do recurso. A palavra é conservar, não preservar, porque utilizamos o recurso. Então é uma proteção feita com a inten42 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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ção de utilizar o recurso de forma ordenada”, diz a coordenadora do projeto, Ana Cláudia Torres, especialista em Conservação dos Recursos Naturais pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Desta maneira, o instituto, pioneiro nos estudos, passou a executar com protagonismo as pesquisas em busca do desenvolvimento sustentável da atividade no Amazonas. Regido pela missão de promover pesquisa científica sobre a biodiversidade, manejo e conservação dos recursos naturais da Amazônia de forma participativa e sustentável, o Instituto Mamirauá foi transformado em 1999 numa organização social, fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). No mesmo ano, o Instituto Brasilei-

ro de Meio Ambiente (Ibama) aprovou o primeiro projeto de manejo comunitário da espécie.

Tradição e Ciência

O programa de manejo do Mamirauá presta assistência às comunidades locais e organizações de pescadores para que elas realizem uma série de atividades para garantir o desenvolvimento sustentável da espécie, como fazer vigilância dos ambientes aquáticos, participar de treinamentos, organizar-se em associações, estabelecer regras de uso dos recursos, realizar contagem dos estoques, pescar e comercializar sua produção. Contudo, foram necessárias várias etapas e uma aliança para desenvolver o projeto, que tem

PESCA COMUNITÁRIA

A atividade pesqueira contribui com quase 29% da renda das famílias amazonenses


Produtividade

Em números, podemos dizer que, com o projeto, foram beneficiados em torno de 3,4 mil pescadores de 21 municípios, segundo o governo do Estado do Amazonas, inicialmente, sem falar na contribuição com o processo de conservação da espécie, demonstrada em uma das práticas do Programa de Manejo, onde apenas 30% dos adultos são capturados, garantindo a reprodução da espécie e aumentando o estoque de animais – o aumento chega a 447% após quase 20

anos de atuação do Instituto Mamirauá. “O monitoramento dos estoques mostra se o projeto está sendo sustentável do ponto de vista ecológico. Verificamos a produção pesqueira para avaliar de que forma a pesca oriunda do manejo está impactando na população de pirarucu. Temos também indicador da geração de renda para ver até que ponto o faturamento obtido com a pesca do pirarucu nesse sistema de manejo está contribuindo com a geração de renda dessas comunidades”, comenta a pesquisadora.

PEIXE SOBERANO O pirarucu é um importante produto para a economia regional

As principais características do rei dos rios amazônicos

Características que conferem potencial para comercialização

Nome científico Arapaima gigas Habitat Água doce Tamanho Pode chegar a 3 metros de comprimento Peso 250 quilos, em média

Rusticidade Carne com sabor suave Ausência de espinhas intramusculares Taxa de crescimento de 10 kg/ano Respiração aérea Alto rendimento de filé (53%)

Diferenciação macho-fêmea

Maturidade

sexual

Atingida entre os 4 e 5 anos, com peso em torno de 40 a 45 kg e comprimento entre 165 a 168cm, aproximadamente.

É possível observar somente no período reprodutivo, por meio da coloração dos peixes e também pelo comportamento.

Período reprodutivo

Associado com as cheias dos rios, que variam de acordo com o local específico da região amazônica. ILUSTRAÇÕES: MÁRCIO EUCLIDES

quatro linhas de atuação: acordos de pesca, monitoramento do desembarque pesqueiro, manejo participativo do pirarucu e manejo sustentável de peixes ornamentais. “Primeiro foi necessário entender como o recurso se comporta na natureza, por isso buscamos identificar do que o pirarucu se alimenta, a época em que ele se reproduz e os melhores ambientes para a reprodução. O desenvolvimento parte da relação dos pescadores com o recurso, e envolve o empenho dos pescadores, técnicos e pesquisadores”, expõe Ana Cláudia Torres. A iniciativa teve êxito por agregar saber tradicional e científico. Por mérito das comunidades, um passo largo foi dado na pesquisa: a recuperação dos estoques – um dos objetivos iniciais do projeto, através de dados de contagem feitos pelos pescadores. Com os estudos foi possível identificar ainda a tendência de crescimento dessa população de pirarucus. “Muita coisa avançou. Saímos de um contexto onde eram proibidas a captura e a comercialização do pirarucu, era ilegal, e o pescador ficou marginalizado. A grande conquista é a regularização da atividade. Depois retomamos os estoques de pirarucu na natureza, nas áreas onde ocorre o projeto de manejo, e disseminamos boas práticas para outros municípios das regiões Norte e Pan-Amazônia. São organizações assessorando comunidades com o mesmo método ou o princípio trabalhado aqui. Isso é muito positivo”, afi rma Aliado a isso, existe o fator geração de renda, para destacar outro elemento preponderante para o status de sucesso do projeto. O estudo utilizado como base já há algum tempo mostrou que a atividade pesqueira, de modo geral, contribui com quase 29% da renda das famílias amazonenses. Em se tratando do pirarucu, Ana Cláudia Torres afirma que esse percentual varia de 20 a 25%, então se observa um empenho muito grande por parte das comunidades, levando em conta que o peixe é o recurso que gera maior rentabilidade.

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CAPA RAFAEL FORTE / INSTITUTO MAMIRAUÁ

ACOMPANHAMENTO

A pesquisadora Ana Cláudia Torres (acima) coordena o Programa de Manejo de Pesca, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Ele explica que o Instituto desenvolve estudos para a recuperação dos estoques do pirarucu e geração de renda das comunidade.

O interesse dos pescadores na atividade proporciona a conquista de mais um objetivo importante desse projeto: a conservação da espécie. As comunidades que são beneficiárias do Programa acabam por desempenhar, simultaneamente, o papel de vigilantes das unidades de conservação, protegendo não só o pirarucu, mas também outros recursos naturais existentes nas reservas. Isto motiva a adesão de um maior número de pescadores à iniciativa, incluindo colônias e sindicados. “A biodiversidade é mantida naquele local, porque existem regras para a utilização. É uma atuação preventiva, que antecipa uma fiscalização, que já ocorre sobre o crime ambiental cometido”, diz Ana Cláudia. 44 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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BRUNO KELLY / INSTITUTO MAMIRAUÁ

Manejo no Pará

Em território paraense, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) se propôs, em 2012, a cumprir uma incumbência, tornar rentável e sustentável a criação do pirarucu em cativeiro. Com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério da Pesca e Aquicultura, o estudo se debruçou sobre cinco linhas de pesquisa: reprodução, genética, nutrição, sanidade e processamento. Um dos grandes gargalos da cadeia do pirarucu apontados pelo projeto “Pirarucu da Amazônia: ações de pesquisa e

transferência de tecnologias” diz respeito à reprodução, que ainda sucede de forma natural. Enquanto outras espécies conseguem se reproduzir em caráter induzido nos cativeiros durante qualquer período, com o pirarucu, macho e fêmea só acasalam no período chuvoso. Para acompanhar esse e outros processos, unidades de conservação foram criadas em três propriedades localizadas em diferentes municípios paraenses, Breu Branco, Bonito e Paragominas, no nordeste paraense, e monitoradas in loco por uma equipe formada por técnicos e pesquisadores. Também integraram o levantamento informações coletadas em seis propriedades em Conceição do Araguaia, no sudeste do Estado.


ALICE VENTURI/ INSTITUTO MAMIRAUÁ

AMANDA LELIS / INSTITUTO MAMIRAUÁ

CONSCIENTES

O manejo sustentável propõe regras para a pesca e comercialização do pirarucu, o que mantém a biodiversidade conservada na região

De acordo a doutora em Genética da Conservação e Biologia Evolutiva pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), Alexandra Bentes, pesquisadora do programa da Embrapa, a região sul do Pará tem uma produção forte de pirarucu, logo, uma das finalidades era descobrir qual a dificuldade para diferenciar, por exemplo, macho e fêmea da espécie, e assim facilitar o cruzamento dos peixes. “Existe um kit de sexagem fabricado fora do país, mas não está ao alcance desses produtores, devido ao custo elevado”, comenta. Identificar a tabela nutricional ideal para o peixe também está entre os objetivos da pesquisa. Na natureza, o animal é totalmente ANDRE DIB / INSTITUTO MAMIRAUÁ MARÇO DE 2016

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CAPA

carnívoro, contudo, quando criado em cativeiro, a alimentação pode ser à base de ração – na fase de engorda; e de outros peixes – quando o produtor trabalha com a reprodução. “É outra dificuldade, porque a ração para ele é muito cara, por conta da proteína animal incluída na ração, que chega a 40%. Mas não sabemos ainda se esse alimento realmente satisfaz o animal, se atinge o objetivo para este ter uma boa reprodução”, afirmou Alexandra.

Mapeamento e reprodução

Com sede no Tocantins, o projeto da Embrapa tem unidades de conservação em outros seis estados da região amazônica, Rondônia, Acre, Amapá, Roraima, Pará, e Amazonas, nos quais um total de 36 propriedades foi visitado nos últimos quatro anos de atuação do programa. O mapeamento genético figura como um dos motes mais interessantes dos estudos nas reservas,

MAPA DA CONSERVAÇÃO

Localidades que ajudam a proteger o pirarucu na Amazônia

NO AMAZONAS

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Médio Solimões: Reservas de Desenvolvimento Sustentável de RDS Mamirauá, Amanã e na Resex Uati Paraná. Alto Solimões: Municípios de Santo Antônio do Içá, Tocantins e São Paulo de Olivença.

Rio Japurá: Sistema decorrente do acordo de pesca do Altamira. As Resex do baixo Juruá, Médio Juruá e a RDS de Ucari, no Rio Juruá, também fazem parte. Purus: Piagaçu Purus e em terras indígenas. Já no médio Purus, ocorre no município de Lábrea. Região do Rio Negro: Município de Barcelos.

NO PARÁ

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*Conceição do Araguaia: Piscicultura Burati, Propriedade da Sra. Auruanei, Fazenda América, Piscicultura Vitória, Chácara Santa Cecília e Fazenda Marajó Pará. Breu Branco: Unidade de Observação de Reprodução Parque do Pirarucu Bonito: Unidade de Engorda na Propriedade Andrera Paragominas: Unidade de Engorda na Fazenda Juparaña.

*Obs: As seis pisciculturas participaram da pesquisa apenas para levantamento de informações, pois desistiram de produzir comercialmente pirarucu.

*Obs: Segundo a Sepror, o manejo ocorre ainda, em pequena escala, nos municípios de Iranduba (Ilha da Paciência), Itacoatiara (Rio Arai), Nhamundá (Complexo do Macuricanã), Silves (Lago Canaçari).

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INFOGRAFIA: MÁRCIO EUCLIDES

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pois poderá encontrar a melhor forma de reprodução do animal. É o que Alexandra Bentes esclarece: fazer o manejo com o mesmo casal e seus filhotes não é bom para a piscicultura, já que o acasalamento entre peixes com parentesco próximo ocasiona a perda genética. Para evitar este endocruzamento ou cruzamento consanguíneo, são colocados chips nos pirarucus macho e fêmea na época reprodutiva, quando também é feita a coleta de material genético da nadadeira do animal. “Esse cruzamento acarreta o aparecimento de anomalias, peixes doentes ou mais suscetíveis a doenças. Na natureza é diferente, eles se escolhem. Monitorando a gente vai saber se aquele peixe macho ou fêmea é aparentado ou não e se o casal que está no tanque 1, 2 ou 3, deve ou não acasalar. É uma das formas de evitar esse cruzamento consanguíneo que pode ser danoso, assim como é para o ser humano”, explica. Também foi destacado outro contratempo no manejo dos pirarucus em cativeiro, o alto índice de mortalidade dos alevinos na fase de recria e engorda, quando o peixe, ainda pequeno, é alimentado por ração comercial. Nessa fase, o produtor captura a ninhada e a leva para o laboratório; já em outra área é feito o treinamento alimentar dos alevinos. “O produtor tem que ter técnica para o manejo, pois as doenças estão ali e, com o sistema imune baixo, o peixe é atacado, seja por bactéria ou por verminose, e morre. Então entra a equipe de sanidade para identificar as doenças reveladas, porque ainda não existe medicamento prescrito para doença de peixe. Então, para auxiliar o setor, precisamos estudar os casos e elaborar. Por enquanto, só é usado o sal na água para prevenção”, exemplifica Alexandra Bentes.

Resultados e desafios

Apesar dos ainda persistentes obstáculos, as análises oferecem outros ganhos: o monitoramento na fase de re-

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RONALDO ROSA / EMBRAPA

VINICIUS BRAGA / EMBRAPA

produção do pirarucu pode contribuir ainda com o melhoramento genético da espécie, identificando o peixe que cresce mais, a fêmea que produz mais ovócito. “Como a espécie tem valor econômico, a tendência é ocorrer esse melhoramento, como foi o caso da tilápia, que é consumida hoje no Brasil, ela já veio de fora melhorada na reprodução”, diz a pesquisadora Alexandra Bentes, da Embrapa. Embora colecione resultados substanciais, a pesquisa está longe de cessar. Materiais genéticos coletados em todas as unidades foram enviados para a sede da Embrapa em Tocantins a fim de serem analisados. Estudiosos envolvidos com o projeto ainda se encontram analisando, por exemplo, a fase de nutrição do peixe. Ao se distanciar e lançar

os olhos sobre o programa de manejo, Alexandra estima que 90% da proposta inicial foram cumpridos. “Pode-se concluir que o peixe pode ser aproveitado quase que em sua totalidade. Até mesmo as escamas podem ser utilizadas como matéria-prima para a fabricação de outros produtos, como ração de peixe, peças de artesanato e até mesmo calçados e utensílios de couro”, afirma. Desta forma, sendo um dos maiores peixes de água doce do mundo, a produção do pirarucu pode alcançar níveis bem mais altos, conservando o animal em sua plenitude na natureza, mantido como um dos principais meios de sobrevivência da população ribeirinha, mas também fazendo parte do crescimento econômico sustentável da Amazônia.

PRODUÇÃO MELHORADA

A pesquisadora da Embrapa Alexandra Bentes diz que novas técnicas de melhoramento genético do pirarucu ajudam na prática do manejo sustentável da espécie VINICIUS BRAGA / EMBRAPA

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COMUNIDADE

O conhecimento que muda vidas Jovens moradores da Reserva Extrativista Marinha de Soure, no Marajó, aprendem a cuidar e a preservar a natureza ao seu redor TEXTO NILSON CORTINHAS FOTOS AKIRA ONUMA

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ão me prendo. O saber é uma coisa infinita”. A frase do jovem Madson Silva, de 18 anos, denota maturidade e curiosidade. E quando esse saber é transformado em ações práticas leva a ensinamentos, afirma Pammelly Mendes, de 18 anos. “A ideia de não desmatar, de não jogar lixo no mangue, da reciclagem. Esses ensinamentos vamos passando para os nossos filhos, vai passando de geração para geração”. Dois perfis de aproximadamente 400 crianças e adolescentes que participaram do Projeto Jovens Protagonistas da Reserva Extrativista Marinha (Resexmar) de Soure, na região do Marajó. Trata-se de uma iniciativa da Coordenação de Edu48 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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cação Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Resexmar Soure e do Projeto Manguezais do Brasil, com o auxílio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foi iniciado em outubro de 2013. Lá, a ideia é aparentemente simples, mas capaz de gerar grandes resultados: utilizar a informação, o conhecimento, como meio de articulação de políticas. Na prática, é uma capacitação, que trabalha três eixos principais: o protagonismo juvenil, quando os próprios jovens sugerem e propõem atividades, a transdisciplinaridade, assuntos diversos abordados de forma integrada, e a educação lúdica, com palestras, oficinas de arte-

-educação, leituras e trabalhos em grupo. Nessa primeira fase do projeto, foram 11 módulos e quatro atividades extras complementares, o que totalizou, aproximadamente 275 horas curriculares. O último módulo do Projeto “Jovens Protagonistas” com o tema “Liderança – O que é e Como ser?” foi concluído entre os dias 29 e 31 de janeiro deste ano. O programa estimula a juventude pertencente às famílias que dependem dos recursos naturais, como peixe, caranguejo, camarão, mariscos, frutos e óleos - da Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável. “Estamos falando de famílias que dependem dos recursos. A nossa meta é que eles sejam multiplicadores da essência


de uma Resex que é a sustentabilidade aliada ao controle social”, defende o gestor chefe da Resex Marinha de Soure, Andrei Cardoso.

MANGUEZAL

Como o projeto tem um caráter de trabalhar a realidade local, uma das principais discussões é a da preservação do manguezal, paisagem que predomina nos quase 30 mil hectares da Resex Marinha de Soure. E é desse ambiente, o “mangal” como se fala popularmente no Pará, que a maioria das famílias de Soure retira o sustento. Os manguezais são ecossistemas que prestam serviços ambientais incalculáveis, como proteção da costa, berçário de espécies aquáticas, fixação de carbono, além de serem ricos em biodiversidade. No entanto, são vulneráveis às ações humanas que historicamente

exercem uma pressão maior nas regiões costeiras, polos de desenvolvimento, concentração populacional e especulação imobiliária. Então, nada mais apropriado do que incluir a própria comunidade numa política de preservação destas áreas. A criação das Resexs se enquadra nesse contexto, acrescentado pela garantia de participação e controle social na gestão da área. “Durante séculos, o manguezal foi tratado como um ecossistema menor e que serviu para vários outros fins. Começou-se a perceber a importância ecológica e biológica dos manguezais, além da importância social e econômica. Famílias que trabalham com caranguejos e sempre souberam da importância para a sua qualidade de vida. Esse processo é de troca de informações, troca de conhecimento”, afirma o gestor ICMBio, Renato Sales. Paulo Cesar Torres é um exemplo

REDESCOBERTA

Os moradores no entorno da Reserva Extrativista Marinha de Soure estão conhecendo de forma mais profunda a própria cultura marajoara, desde a pesca do caranguejo até a arte de fazer cerâmicas regionais.

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COMUNIDADE

disso. Ele é caranguejeiro há 30 anos. “Quando ‘é tempo’, consigo tirar 280 caranguejos do mangue. Mas quando é período de defeso, a gente respeita. Antes, não era assim. Só pensávamos em tirar o caranguejo para vender. Ninguém entendia que é importante deixar os animais se reproduzirem em paz para termos fartura depois”, diz Paulo César, que também é vice-presidente da Associação dos Caranguejos de Soure. Agora, mais consciente, o caranguejeiro repassa os ensinamentos para o filho, Everton Nascimento Torres, de 14 anos. O adolescente faz parte do Projeto Jovens Protagonistas e o pai aposta nele

como futura liderança comunitária. A analista ambiental do ICMBio e coordenadora do Projeto na Unidade de Conservação, Gabriella Calixto, diz que um dos maiores desafios dentro das Unidades de Conservação é a renovação de lideranças. “Sentia que o espaço de mobilização era restrito aos adultos, sempre as mesmas pessoas. O jovem não se sentia parte dessa área. Percebendo isso, começamos a elaborar estratégias para inseri-los, desenvolvendo a consciência social e ambiental na comunidade. A ideia é trabalhar temas importantes do cotidiano do jovem ligados às áreas protegidas que não são trabalhados na escola, e com uma linguagem acessível”, destaca.

CONSCIÊNCIA

Durante as atividades dos módulos, os jovens organizaram atividades para benefício da comunidade. Entre elas, o mutirão do lixo. “Os jovens foram de porta em porta distribuindo sacolas plásticas e folhetos de conscientização ambiental”, conta o consultor pedagógico do projeto, Leonardo Rodrigues. A coordenadora Nacional do Projeto Manguezais do Brasil, Adriana Risuenho Leão, avaliou que a consciência da comunidade é a certeza de que a Resex Marinha de Soure está no caminho certo. “Percebemos que a capacitação da comunidade, envolvendo principalmente

LÍDERES NO MARAJÓ

Um dos maiores desafios encontrados pelos técnicos do ICMBio nas Unidades de Conservação é a renovação de lideranças. Objetivo é fazer os comunitários, principalmente os jovens, despertarem para o sentimento de pertença à Resexmar. 50 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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os jovens, funciona. A nossa missão é a conservação da Biodiversidade, promovendo o uso sustentável dos recursos e, com isso, a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas”, evidencia. Pela idade e pelo fato de ter habilidade com artesanato e instrumentos musicais que remetem ao carimbó, Madson Silva foi despontando como uma liderança do projeto. E como tal, é um multiplicador da visão mais aprofundada e crítica. Já participou, inclusive, de encontros de jovens em Brasília e Manaus. “Acho que a escola, às vezes, não proporciona esse espaço para termos e desenvolvermos as visões críticas. Aqui, nos Jovens Protagonistas, soube coisas sobre a política, a história e o lugar”. Madson considerou que um módulo específico chamou a sua atenção: o Marajó e suas diversidades – Artesanato e cerâmica. “Trabalhamos com cerâmica e ela tem um envolvimento com a história, com a origem, com o que os nossos antepassados faziam. O fundamental é entendermos o nosso espaço”, frisou. Um dos facilitadores desse módulo foi o artesão Ronaldo Guedes, que trabalha há 15 anos na função. Guedes, cujos filhos participam do Jovens Protagonistas, ressalta que a convivência saudável com a natureza foi uma dos benefícios a curto prazo do desenvolvimento do projeto. “Há tempos, a meninada tinha o hábito de ‘balar’ passarinho. E quando isso foi constatado, desenvolvemos projetos que repassam a ideia de que somos aliados da natureza e não inimigos. A cultura e a arte têm um papel fundamental na educação”, afirma. Pammelly Mendes, que falou da importância do ensinamento no início dessa reportagem, também ressalta que os hábitos saudáveis refletem na natureza. “Estou vendo melhoras na nossa comunidade, como os jovens, que antes ficavam matando os animais, e agora estão participando dos encontros. Eles estão saindo das ruas. A convivência com a natureza é o principal”.

JOVENS CONSCIENTES

O projeto também estimula a cidadania e o valor pela natureza no convívio em comunidade

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SUSTENTABILIDADE

A beleza das gemas vegetais A produção de joias regionais com elementos da biodiversidade amazônica gera novos mercados de olho nas práticas sustentáveis TEXTO BRENDA PANTOJA FOTOS FERNANDO SETTE

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floresta amazônica contém uma vasta gama de cores. Uma mesma planta pode apresentar diferentes tonalidades em suas sementes, folhas, frutos e casca. Essa variedade de pigmentos é a principal matéria prima do pesquisador e ourives Paulo Tavares, que desenvolveu as gemas vegetais. O pigmento extraído de urucum, açaí, pimentas e várias outras espécies, combinado com resinas naturais e sintéticas, é o que forma uma gema vegetal. Uma vez pronta, ela vai adornar peças de cobre, prata ou ouro para compor joias que não só são inspiradas na Amazônia, como também carregam um pouco dela na sua composição. Paulo trabalha como ourives desde os

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16 anos e, motivado por uma inquietação com a cadeia de produção do setor, começou a estudar formas de praticar a arte da joalheria de forma mais sustentável. A técnica das gemas vegetais, desenvolvida e aprimorada por ele ao longo dos últimos 15 anos, está em processo de patenteamento é baseada na redução do impacto ambiental e na valorização da cultura regional. Nascido no Marajó, a vivência de caboclo contribuiu para essa consciência e conhecimento empírico. “A ideia não é devastar a natureza para obter os pigmentos, mas sim fazer a comunidade entender que manter a floresta em pé também é fonte de renda”, afi rma. Em sua oficina, estão espalhadas dezenas de caixas e vasilhas rotuladas com

códigos decifrados apenas por ele mesmo, onde estão guardados exemplares de matéria prima que são estudados e catalogados. As gemas podem surgir de frutos, como cupuaçu, castanha-do-pará e pupunha ou de ingredientes da culinária local, como tucupi e jambu, e ainda do uso de cascas e outros elementos das árvores de caimbé, miriti, andiroba, pau-brasil e pau-rosa. Os próprios aglutinantes utilizados são retirados do jatobá e do breu branco, por exemplo. As possibilidades de criação são enormes para ele e para empresária Mônica Matos, responsável pela elaboração e comercialização das joias, em uma parceria que já dura dez anos. As gemas orgânicas, com dureza semelhante a de uma pérola,


podem substituir na joalheria algumas gemas minerais como granada, turmalina e vários tipos de quartzo. “O processo pode demorar de uma semana ou meses, pois é bem artesanal, desde a coleta do material até a fabricação das gemas vegetais, através de desidratação e trituração, e das joias. Ao recolher as cascas e frutos, retiramos apenas aquilo que é descartado naturalmente para não prejudicar a renovação da espécie”, explica Paulo Tavares. As primeiras peças fabricadas estão com 12 anos e não apresentam deformidade ou perda de cor. “Continuamos estudando para aprimorar a técnica e o nosso objetivo é chegar a um produto 100% natural, sem o uso das resinas de laboratório”, destaca Paulo. Segundo ele e Mônica, o próximo passo é organizar comunidades para fornecerem a matéria prima, com a intenção de gerar renda para as pessoas que precisam e transformar o modelo econômico de algumas localidades. Somente no ano passado, eles conseguiram plantar mais de 300 mudas de pau-brasil e pau-rosa, ameaçadas de extinção, na Região Metropolitana de Belém.

ACEITAÇÃO

O trabalho já rendeu reconhecimento internacional, conta Mônica Matos, que ganhou um prêmio na Itália pelo pingente Curuatá, que representa o invólucro que protege os frutos das palmeiras e também serve de recipiente para o que é coletado na floresta. A peça foi confeccionada em cobre e recebeu uma gema vegetal feita do açaí. Atualmente, está exposta no Museo del Bijou di Casalmaggiore. Ela diz que a aceitação do produto no mercado tem surpreendido, demonstrando que a mentalidade dos consumidores está mudando. “Além do fascínio dos compradores de fora, há uma identificação cultural por parte dos clientes da região. Acho que o produto não deixa a desejar para joias tradicionais, mas sim traz identidade. A Amazônia tem um peso mundial e esse

ARTÍFICES SUSTENTÁVEIS

O ourives Paulo Tavares e a empresária Mônica Matos encontraram na natureza um novo nicho de mercado, respeitando o meio ambiente


SUSTENTABILIDADE

-morfose”, baseada na reciclagem dos resíduos de metais usados nas unidades produtivas do Polo Joalheiro e em técnicas inovadoras de coloração das peças, por meio de processos químicos.

RECICLAGEM

INCLUSÃO SOCIAL

O Ministério da Cultura e a Unesco reconhecem o design de joias como um dos setores da economia criativa voltada para populações tradicionais

é um produto 100% nosso”, pontua. Ela reforça que tem crescido a quantidade de pessoas que adquirem as joias pela sua forte carga cultural, pois querem usar algo que fale das suas raízes e isso agrega valor à cultura local. Paulo e Mônica integram o programa Polo Joalheiro do Pará, gerenciado pelo Instituto de Gemas e Joias da Amazônia (Igama), e também são procurados por outros produtores da iniciativa, interessados em usar as gemas em suas criações. O design de joias é reconhecido pelo Ministério da Cultura e pela Unesco como um dos setores da chamada economia criativa que pode se tornar uma ferramenta de inclusão social entre populações tradicionais. Mônica acertou ao apostar nesse mercado, uma vez que levantamentos da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) mostram que o ramo 54 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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pulou de 148 mil empresas, em 2004, para 251 mil empresas em 2013, num crescimento de 69%. Outro diferencial apontado por ela é que apenas eles dois se envolvem em todas as etapas e “tudo é feito a quatro mãos”, incluindo as medidas para evitar o desperdício na oficina de produção. A água usada no polimento de algumas peças é reaproveitada e até o lixo gerado no espaço tem um destino responsável e criativo. “Já apareceram propostas de empresas, mas temos exigências relacionadas ao aproveitamento da floresta e produção limpa. Seria muito fácil vender essa técnica para uma indústria, mas pode virar um produto predador lá na frente. A nossa intenção, desde o começo, era contribuir para um mercado mais consciente”, diz Paulo Tavares. Foi a partir dessa preocupação que ele realizou a coleção “Metal-

O ourives explica que do lixo das oficinas pode se tirar ouro, prata e vários outros metais. “O que antes era jogado na natureza e contaminaria o solo e a água, por conter ácidos pesados, vira novas peças. A terra e os óxidos que sobram desse processo são ricos em nutrientes e se tornam adubo para agricultura”, ressalta. O projeto foi promovido em 2014 e contou com o apoio de designers, ourives e empresas. Foi possível extrair pelo menos sete cores por meio da mistura dos minerais extraídos da reciclagem e da técnica de incrustação paraense, também desenvolvida por Paulo Tavares, que substitui a esmaltação. As gemas vegetais foram o destaque da coleção “Digitais da Amazônia”, em 2012, lançada por Paulo e Mônica. Elas estão novamente em evidência no Espaço São José Liberto, dessa vez como parte da exposição “Potências Amazônicas: Biodiversidade e Diversidade Cultural na Belém 400 Anos”. Um traço em comum das produções coordenadas por ele é a inspiração nas formas da floresta para o formato das peças. Em um projeto mais recente, ainda em fase de estudos, ele está criando uma série de “camafeus amazônicos”. Inspirado nos adornos que acompanham as mulheres desde a Grécia antiga, Paulo quer retratar as lendas regionais em peças orgânicas com pigmentos e resinas naturais. “A sustentabilidade é a principal característica do nosso trabalho e um dos maiores desafios do setor, ainda mais quando se fala em Amazônia, que perpetua uma tradição de crenças que envolvem o respeito à natureza”, diz o pesquisador.


ARTE, CULTURA E REFLEXÃO CARLOS BORGES

PENSELIMPO

Amor puro como ouro

O CANTOR E COMPOSITOR PARAENSE ALLAN CARVALHO ACABA DE LANÇAR SEU PRIMEIRO DISCO SOLO, O FABULOSO “OURA”

PÁGINA 56

FUTEBOL

CAMPO

Um dos maiores e icônicos jogadores do Estado, o “Suíço”, teve uma brilhante e curta carreira à frente do Paysandu, no século XX. PÁG.60

Conflitos agrários ainda são recorrentes na região amazônica e estão longe de serem solucionados pelos governos de todas as esferas. PÁG.66

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PAPO DE ARTISTA

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A

O amor em forma de “Oura”

llan Carvalho lançou o primeiro disco solo, chamado “Oura”, com fortes influências de músicas populares tradicionais da região amazônica. O cantor, nesse novo trabalho, não quis se prender apenas em toadas de boi-bumbá; ele quis ir mais além: unir a música tradicional amazônica com a urbana pop mundial. Ritmos como brega e carimbó estão em um mix com tango, funk, reggae, axé, entre outros ritmos que irão embalar esse novo álbum solo de Allan. “Oura” é um disco feminino, cheio de amor, no qual o cantor quer destacar esse sentimento de variadas formas, com nuances de afeto e liberdade. Nascido em Belém, a carreira musical de Allan Carvalho como cantor e compositor começou no grupo Tanguru Pará. De lá pra cá, Allan tocou com diversos grupos, como o Arraial do Pavulagem, que lhe rendeu uma parceria, até hoje existente, com o cantor e compositor Ronaldo Silva. Lançou em 2003 o grupo Quaderna, em parceria com o músico, intérprete e também compositor, Cincinato Junior, sendo as canções folclóricas a principal marca do grupo. Foi nesse universo de influências musicais - segundo Allan, também vem do pai dele quando escutava boleros e choros - que produziu e construiu esse novo trabalho, com várias sonoridades.

TEXTO ANA PAULA MESQUITA FOTOS CARLOS BORGES

Como começaste tua carreira musical? Foi em 1997 que eu me arvorei a cantar e dizer que eu iria ser músico. Fiz parte de um grupo regional chamado Tanguru Pará, onde a gente tocava músicas tradicionais da nossa região. E a partir de lá eu venho fortalecendo mais esse elo com o lugar onde nasci, com a Amazônia. Então nesse caminho fiz grandes parcerias. Com o Cincinato Junior, um trabalho que eu tenho com o grupo Quaderna; com Ronaldo Silva, que a gente tem vários trabalhos para lançar e fizemos um chamado “Folias de Belém”. Mas essa é a primeira vez que eu estou me arvorando a fazer meu trabalho solo autoral. Letra e música, enfim... Outra linguagem que não só apegada a nossa região e, sim, aberta ao mundo.

ENTRE O TRADICIONAL E O URBANO, A MÚSICA, NO PRIMEIRO DISCO SOLO DE ALLAN CARVALHO, ABSTRAI O SENTIMENTO MAIS PURO E COBIÇADO DOS SER HUMANO DE FORMA BEM REGIONAL

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PAPO DE ARTISTA

Quais são as tuas influências musicais e que podem ser reconhecidas em tua carreira? Ah, graças a Deus, desde pequeno a minha família. Principalmente do meu pai, as influências foram tamanhas. Essa música amazônica toda está em mim. Tem rock, tem samba, tem choro, tem boleros e tantas outras. Tudo que agrada aos ouvidos da nossa família e depois uma procura já própria. E assim já fui conhecendo muitos compositores locais que foram me direcionando enquanto já autor e compositor quando comecei a praticar isso, e graças a Deus, a gente tenta conter o mundo na gente. Como é essa parceria com o Ronaldo Silva e Cincinato Junior? Pois é, na verdade eu sou um cara muito protegido, porque eles são figuras históricas na música paraense e eles já têm uns trabalhos reconhecidos e de muito tempo pelo Arraial do Pavulagem e no grupo Quaderna. Então é estar protegido. Fazer músicas com figuras que têm uma dimensão histórica na cidade muito forte e têm um nível artístico muito elevado é muito legal. Eu sou um aprendiz dessas figuras. Para mim é isso é uma vitória na minha vida.

DIVULGAÇÃO

TODA FORMA DE AMOR

Em seu primeiro disco solo, Oura, Allan Carvalho exprime um dos principais sentimentos humanos materializado em suas composições

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Como tu enxergas a música paraense no cenário mercadológico nacional? Hoje, esses refletores se voltaram um pouco para cá, novamente. É legal, porque as pessoas lá fora já começam a prestar a atenção de uma maneira melhor na música que é produzida aqui. Então, de qualquer maneira, a gente tem de estar preparado, protegido e unido, acho que essa é grande onda. A partir desse momento que tudo se reprojeta para cá, essa música fica com mais possibilidade de ser ouvida mundo a fora. Então vamos avante. Vamos tentar fazer um trabalho bonito e organizado para que de fato o nosso sonho se realize. Estás lançando um álbum solo, o “Oura”. O que a gente pode encontrar nesse trabalho? Esse disco tentou se esquivar, vamos di-

“Essa música amazônica toda está em mim. Tem rock, tem samba, tem choro, tem boleros e tantas outras. Tudo que agrada aos ouvidos” zer assim, não no sentindo negativo da palavra, dos outros trabalhos que eram mais relacionados a essa tradição da nossa música. Eu tentei buscar no meio desse monte de informação, no meio desse legado das outras obras, uma coisa mais solta, mais radiofônica, que dialogasse mais com esse cotidiano, uma poesia bem mais leve, bem mais descontraída, enfim. Esse trabalho é justamente o reflexo dessa vivência toda da minha vida, das influências desses grandes artistas que vieram comigo. E aí, na verdade, como tema central, eu busquei falar muito do amor, por isso o nome “Oura”, uma palavra inventada pelo meu filhinho, que na tentativa de falar “ouro”, o maior e mais frequentado dos metais no sentido de valor, da cobiça, eu justamente “abstratei” para o feminino. Então ela virou abstrato, saiu do concreto. E a “coisa” mais procurada e requisitada pelo ser humano é o amor. Joguei esse simbolismo todinho do disco para esse contexto. Por isso o disco só fala de amor nas suas mais variadas formas. A capa do teu disco é cor de rosa, o nome que era masculino, Ouro, virou feminino, Oura. Deixaste florescer o


feminino nesse trabalho? Na verdade o disco fala justamente dessa forma de amor nas várias possibilidades humanas. Todo mundo tem direito de amar. Então, na verdade, pelo que eu fiquei sabendo historicamente, é que o rosa é a cor do amor. Como o disco, ao longo de toda sua extensão, trata basicamente nas letras sobre o amor, eu resolvi puxar para dentro da atmosfera do disco propriamente a cor rosa. Carreguei mesmo proposital. E aí é legal que o próprio nome Oura, como já havia dito, é o feminino da palavra ouro, que é o material mais valioso, pelo menos, o mais badalado entre os humanos. Tentei brincar com essa história, botar para o feminino para remeter a coisa mais valiosa entre os humanos de sentimento abstrato que é o amor. É por aí a brincadeira. Por que destacastes no teu tra-

balho o amor no sentido dramático, cafona, brega? Na verdade é essa coisa diversa de amar, porque quando se ama, a gente se nivela a todos os seres humanos. Então tem gente que não segura a barra e, enfim, acaba que faz de tudo para ter o amor próximo e se sujeita a várias coisas. Na música “Que brega é você?” tem muito isso aí e a “Sei lá, entende?” também. Na verdade, quando se ama desbravadamente, o amor é cafona, é luxo. Ele deixa o ser humano igual. Nem menor e nem maior que ninguém. É por aí. Por que quisestes imprimir no teu trabalho essas misturas entre músicas tradicionais locais e pop urbana? A gente buscou, eu e os colegas, justamente fazer merecer toda a história que eu tenho dentro da música que foi via trabalho auto-

ral projetado para tratar da tradição popular brasileira, no caso, mais da Amazônia. Então, nos meus outros trabalhos com o Ronaldo Silva e com o Cincinato, no Arraial do Pavulagem e no Quaderna, a gente protegeu muito essa direção. E nesse, como eu estava tentando encontrar um caminho que fugisse, entre aspas, desse percurso caminhado com eles, busquei justamente dialogar com o presente com essa “coisa” confusa, radiofônica, midiática. Essa conturbação urbana, essa “coisa” de várias informações. É claro, para isso, a gente tem que falar dos ritmos que permeiam essa atmosfera toda mercadológica fonográfica. Eu quis brincar entre meu pé na tradição e o que eu consigo enxergar no presente, a minha maneira. Tentando imprimir a minha forma de compor, me projetando para essa atmosfera urbana. MARÇO DE 2016

O ARTISTA

Use um leitor de QR Code para ouvir a canção “Que Brega é você?”, no disco “Oura”, de Allan Carvalho

Ouça outras canções do músico

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MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

uma lenda do futebol paraense TEXTO ORLANDO CARDOSO ILUSTRAÇÕES JOCELYN ALENCAR

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Antônio Manoel de Barros Filho 1899-1922


N

as décadas de 20 e 30 do século do passado, o futebol, trazido da Europa no século XIX, já era uma febre em gramados brasileiros, com uma infinidade de jovens almejando as glórias das conquistas com o balão de couro nos pés. Surgiram também os primeiros ídolos. Craques como Arthur Friedenreich (1892-1969), Leônidas da Silva (1913-2014) e Heleno de Freitas (1920-1959) têm seus feitos descritos em verso e prosa e que criaram uma aura mítica em torno desses nomes, que se tornaram lendas. No futebol paraense, o confronto entre Remo e Paysandu também adquiriu contornos épicos, e igualmente fez surgir grandes mitos. O primeiro deles foi o de Suíço, o atleta Antônio Manoel de Barros Filho, cujo nome serviu para cognominar o próprio Paysandu, conhecido como o “Time de Suíço”, tal a identificação que houve entre o jogador e o clube naquela década de 20, e que ganhou contornos de paixão, quando o atleta morreu muito jovem, aos 23 anos, em 1º de julho de 1922. Sua lenda pessoal inclui a convocação para a Seleção Brasileira, em 1921, pela antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antecessora da atual CBF. Mas, parece que a corrupção na entidade máxima do futebol não é recente. Naquele ano, o tesoureiro da CBD sumiu levando 150 contos de réis da entidade, apenas parte do desvio de 1 mil contos de réis aplicado na praça do Rio de Janeiro. Com o golpe, a CBD ficou sem dinheiro para pagar a passagem de Suíço no navio do Lloyd que o levaria ao Rio de Janeiro, para se juntar ao “escrete” que disputaria o Sul-Americano de 1921, contra a hegemonia que tinham na época a Argentina e o Uruguai. Suíço não viajou mas continuou a ser o jogador no Paysandu. E foi carregando o estandarte bicolor que Suíço inscreveu seu nome na história, nos gramados do Pará, e em excursões pelo Maranhão e pelo Amazonas. De acordo com o historiador do Paysandu, João Batista Ferreira da Costa, autor de mais de uma dezena de livros sobre o futebol paraense, a fama de Suíço atravessou os limites do Estado. “Com ele, o Paysandu arrebatou vitórias incontáveis, taças e troféus em grande número; a imprensa nacional o considerou o ‘maior player do Norte do Brasil’”, conta. Suíço, que tinha esse apelido porque, quando garoto, foi mandado pela família para estudar na Suíça, conheceu a febre do futebol em terras europeias. Ao retornar a Belém, passou a jogar no Guarany Foot-Ball Club, uma das muitas agremiações formadas por jovens da classe média de Belém. Naquela época, ser de um clube era como integrar uma família. Não havia como pular a cerca. Mas, segundo o relato de Wagner Viana, um dos pioneiros do futebol no Paysandu, tanto Suíço, quanto

seu irmão, Abel Barros, acabaram conquistados pelas cores do nascente Paysandu, fundado em 1914 para fazer frente à hegemonia do Clube do Remo. E essa supremacia não era de brincadeira. Reorganizado em 1911, o Leão Azul não perdia um campeonato e dificilmente era derrotado. Mas foi com Suíço em campo que o alviceleste venceu pela primeira vez seu maior rival, no terceiro confronto entre os clubes, em 31 de janeiro de 1915, no atual estádio da Curuzu, por 2 x 0, gols de Abel Barros. No jogo seguinte à revanche, nova vitória, 2 x 1. O Paysandu crescia, mas não a ponto de ser campeão. Foi vice em 15, 17, 18 e 19, até que, em 1920, conquistou seu primeiro título de campeão paraense, e engatou logo mais duas conquistas, em 21 e 22, sagrando-se tricampeão, com Suíço em campo, já então um ídolo. Em seu último jogo, ele fez uma partida memorável, marcando seis gols, numa espécie de despedida, da qual ninguém desconfiava. Segundo os relatos da época, ele era portador de malária, contraída no município de Acará, de onde sua família era originária, e caiu doente, no final de junho de 1922, com infecção intestinal, provocada por uma unha de caranguejo estragada, consumida no arraial de São João, na praça Brasil. Sua causa mortis foi descrita como: “toxicoinfecção intestinal e hemorragia complicada com terçã maligna”. Suíço morreu dias depois, em 1º de julho, ao lado da mulher, Raymunda Castelo Branco Spíndola, a Yaiá, e do único filho, Max, na casa dos pais, na rua dos Tamoios, no bairro do Jurunas. E o que se viu em seguida foi uma comoção popular. Belém chorou a morte do jogador. Os relatos dizem que mais de 4 mil pessoas acompanharam seu enterro. Remadores da regata que ocorria naquele sábado compareceram ainda uniformizados à cerimônia. Milhares de pessoas percorreram as ruas da cidade até o cemitério de Santa Izabel, na avenida José Bonifácio, onde, mais tarde, com contribuições da torcida, foi construído um mausoléu para Suíço. Dez bondes e 30 carros participaram do cortejo. A admiração por Suíço cresceu mais ainda quando, um ano depois de sua morte, em 15 de julho de 1923, em jogo válido pelo Campeonato Paraense, Remo e Paysandu se enfrentavam. A partida estava em 0 x 0 até quase no final, quando o juiz marcou um pênalti contra o Paysandu. O goleiro João Moraes foi para o centro da meta, então, teria ouvido nitidamente Suíço dizendo-lhe que se jogasse para o lado direito. O “guarda-redes” disse que não teve dúvida, fechou os olhos e atirou-se para o lado indicado pela voz do além, agarrou a bola e rapidamente a chutou para o atacante Vadico, que, livre de marcação, fez 1 x 0 para o Paysandu. Assim, surgiu uma lenda. MARÇO DE 2016

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AGENDA

VIDEOARTE

HELLY PAMPLONA

EXPOSIÇÃO NO SHOPPING

Contemplado no Programa Rede Nacional

As belezas naturais de Belém ganharam

convivem em harmonia com a paisagem

maio, dois dos mais importantes artistas de

destaque na exposição fotográfica “Belém

urbana de Belém.

Belém: Alberto Bitar e Armando Queiroz. Os

400 anos”, que esteve em cartaz na Praça

Entre os flagrantes estão as garças que so-

trabalhos de Alberto Bitar surgem da expan-

Central do Shopping Pátio Belém. Com 24

brevoam o mercado Ver-o-Peso, além dos

são da fotografia. Seus vídeos são fotografa-

fotografias, a mostra contou a história da

principais pontos turísticos da capital, como

dos e não filmados. Já Armando Queiroz opta

carreira do fotógrafo marajoara Helly Pam-

a Estação das Docas, Praça do Relógio, Praça

por equipamentos simples e o mínimo de edi-

plona, que expressa em seu trabalho um

da República, Teatro da Paz, Vila da Barca, o

ção. Cada artista apresentará quatro obras,

olhar diferenciado sobre a cidade, retratan-

bairro da Cidade Velha e referências da culi-

projetadas sobre a parede e em monitores

do a exuberância natural da capital paraense

nária, a exemplo do açaí e da manga.

de TV. A programação diversificada incluirá

e sua riqueza da fauna e da flora.

Quer escolher as fotos mais bonitas da ex-

ainda palestras dos dois artistas sobre seus

As fotos fazem parte também da votação

posição? Participe da votação que elegerá

respectivos processos de criação.

que escolherá quais imagens ficarão ex-

as 12 imagens que irão ilustrar as fachadas

postas na fachada do shopping. Os regis-

do empreendimento, nos acessos pelas

EXPOSIÇÃO

tros fotográficos valorizam a preservação

travessas Padre Eutíquio e São Pedro. O

O Centro Cultural Sesc Boulevard , em Be-

ambiental e destacam as espécies de ani-

público pode votar até o dia 16 de março,

lém, segue com a exposição “Mundo Invi-

mais silvestres da região amazônica, que

no site patiobelem.com.br/400anos.

sível”, da fotógrafa Mara Hermes. A mostra

Funarte Artes Visuais – 9ª Edição, o projeto Estação Videoarte leva à Goiânia, no dia 16 de

revela a beleza da velhice, juntamente com

il,

a vulnerabilidade da idade. A exposição traz registros fotográficos do cotidiano dos idosos residentes em instituição

-

asilares, retratando a condição social do envelhecer. A entrada é gratuita. Para mais informações: (91) 3224-5654.

UFPA A Universidade Federal do Pará (UFPA) abriu inscrições do concurso público que oferece 16 vagas para professor do quadro HELY PAMPLONA/ DIVULGAÇÃO

r.

permanente da instituição nos campi Belém, Cametá, Tucuruí, Breves, Altamira e Abaetetuba. As inscrições para mestres já encerraram-se, mas os doutores podem se inscrever até o dia 28 de março. Mais informações no site www.ceps.ufpa.br.

FESTIVAL

“Queremos divulgar o patrimônio musical e

REVISTA

Seguem abertas até 27 de março as inscri-

popular de Belém e do Pará, principalmen-

A Coordenação de Aperfeiçoamento de

ções para o III Festival de Música Popular

te, nesse momento de 400 anos da capital.

Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ins-

da Universidade do Estado do Pará (Uepa).

Além de divulgar e valorizar a cultura re-

tituto Federal do Pará, recebe até o dia 30

O objetivo do Festival é incentivar a produ-

gional, promovendo uma integração entre

de abril, propostas de colaborações auto-

ção artística local, dando oportunidade

sociedade e universidade”, afirma a coor-

rais para a edição de um número especial

aos compositores e intérpretes oriundos

denadora. Os interessados em se inscrever

da Revista Brasileira de Pós-Graduação,

da Instituição. De acordo com a coorde-

no concurso podem participar com até

focalizando as contribuições da pós-gra-

nadora do Núcleo de Arte e Cultura (NAC),

duas músicas originais e sem plágio, tanto

duação para a produção de conhecimen-

Ana Telma Sousa, o evento promove uma

na melodia quanto nas letras. O edital e

tos sobre o tema Ecossistemas Brasileiros:

interação entre universidade e comunida-

outras informações podem ser encontradas

Potenciais de Desenvolvimento. Informa-

de acadêmica por meio da arte e da cultura.

no site www.uepa.br.

ções no site www.belem.ifpa.edu.br.

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MARÇO DE 2016


FAÇA VOCÊ MESMO

Blusas com recortes e amarrações O calor amazônico já começa a dar as caras e se as blusas puderem aliar estilo, conforto e ventilação, melhor ainda. Os instrutores das oficinas Curro Velho ensinam como criar um modelo que tem tomado conta das vitrines, com pequenos cortes nas costas, laterais, frontais e com ou sem tranças. Neste modelo, que precisa apenas de uma blusa de malha da cor escolhida, a

Do que vamos precisar?

Uma camisa de malha de algodão

Uma tesoura

Uma régua

técnica é de recortes e amarrações. O resultado é uma blusa com design moderno, confortável e que serve tanto para o dia a dia, quanto para ir à academia ou passear. Lembrando que ao dominar a técnica, a experimentação leva a novas formas de fazer. Quem empreende no ramo de camisetas pode experimentar para incrementar os produtos.

INSTRUTOR: LUIZA NEVES / COLABORAÇÃO: DILMA TEIXEIRA COORDENADORA DE ARTES VISUAIS DAS OFICINAS DA FUNDAÇÃO CURRO VELHO FOTOS : JACK NILSON E OLÍVIA NEVES / MODELO: BRUNA CAROLINA FRANÇA: MODELO MARÇO DE 2016

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1

Comece cortando as mangas e a gola da blusa de malha rente à costura. Estique e ela ficará parecida com uma blusa regata.

2

4

Estique a blusa de forma que as tiras enrolem.

5

7

Dobre a blusa ao meio e inicie os recortes na parte de trás. O primeiro corte deverá ter 10 cm de largura, reduzindo gradativamente o tamanho. A distância entre as tiras deve ser de 1 cm.

Torça a primeira tira, formando um pequeno círculo. Pegue a segunda tira e transpasse por dentro do círculo formado. Prossiga torcendo e transpassando até a penúltima tira.

Dê um nó caprichado nesta última tira cortada, passando um dos lados pelo espaço da penúltima tira.

8

3

Abra a blusa

6

A última tira deverá ser cortada ao meio para fazer o acabamento.

Está pronta a customização com amarrações para desfilar no calor da cidade.

Para saber mais Quem quiser conhecer mais sobre técnicas artísticas pode se inscrever nas oficinas da Fundação Curro Velho, do governo do Estado do Pará. Crianças a partir de 12 anos podem participar. A Fundação Curro Velho fica localizada na rua Professor Nelson Ribeiro, nº 287, esquina com a travessa Djalma Dutra, bairro do Telégrafo. Telefones: (91) 3184-9100 e 3184-9109. 64 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

MARÇO DE 2016

RECORTE AQUI

ATENÇÃO: Essa atividade pode ser feita por crianças, desde que acompanhadas por um adulto responsável

FAÇA VOCÊ MESMO


Olimpo

Nunca fui de acreditar muito em mim mesmo e creio que é preciso pedir perdão.

Anuncio as duas sentenças porque mês passado foi aniversário do meu primo Edgar, grande amigo de aventuras e enrascadas na infância na Pedreira, da nossa Belém de outrora. Uma delas envolve meu autodescrédito e um pedido de desculpas atrasado. Vivíamos o luto pela morte da lendária vovó Santina, nossa bisavó que morreu em 1990. A família estava reunida. Parentes vieram de longe para chorar a perda da nossa icônica matriarca. Dentre eles, os primos que nasceram em Santos, São Paulo. Toda noite tinha a reza do terço para que a alma da bisa descansasse em paz. Longe da tristeza fúnebre, as crianças faziam festa nos bastidores porque estava todo mundo junto. E todo mundo sabe que

LEONARDO NUNES

BOA HISTÓRIA

moleque reunido é o diabo na terra. Numa das tardes pré-terço, sigo para casa do tio José, palco das ladainhas. Antes, encontro na rua o Edgar trocando pedradas com Adilson, outro primo-amigo de infância, e Joe, um dos que vieram das terras paulistas. Brincadeira das mais saudáveis, só que não. Observo a cena e me abaixo para pegar um caco de telha do tamanho de um pastel de feira. Toco no ombro do Edgar, e digo fingindo ser um atirador de elite: “Não sabe nem brincar. Deixa comigo”. Falo sem nenhuma crença em acertar um dos meninos, porque nunca fui bom de mira, nem bom em nada que envolvesse habilidades físicas. Lanço o artefato no ar. Naquele dia, os deuses do Olimpo estavam olhando pra mim e enviaram seus poderes sobrenaturais. A pedra voou em câmera lenta sobre a rua de terra, o canal de lama e as estivas em que a dupla

de primos adversários estava. Tum. Bateu direto na cabeça do Joe. E a cena voltou à velocidade normal. Olhei e vi o moleque com a cara toda ensanguenta e não acreditei que tinha acertado a pedra numa distância de quase 300 metros. Só deu tempo de berrar: correeee. E o Edgar e eu sumimos na ladeira, como dois bandidos. À noite, não voltei para o terço temendo a Justiça. No dia seguinte, o buchicho era de que o tio João, pai do Edgar, tinha dado umas boas cinturadas no moleque por ter quebrado a cabeça do Joe. Levou a culpa, o coitado. Eu, que nunca acreditei que fosse um ás nas pedradas, passei incólume pelo episódio, sem um ralho sequer. Vinte e cinco anos depois, eu assumo a culpa pelo crime. Perdão pelo vacilo, Edgar e Joe. E feliz aniversário atrasado, Edgar. MARÇO DE 2016

Anderson Araújo

é jornalista e escritor

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NOVOS CAMINHOS

Guerra silenciosa na Amazônia No final de fevereiro deste ano, Ronair José Lima foi baleado quando seguia para uma reu-

THIAGO BARROS

é jornalista, mestre em Planejamento do Desenvolvimento Sustentável (NAEA-UFPA) e professor da Universidade da Amazônia @thiagoabarros

nião de trabalhadores em São Félix do Xingu, no sul do Pará. A esposa e a filha dele também foram acertadas por pistoleiros. Não é a primeira ameaça, mas poderia ser a última. A menina passa bem, mas o casal ainda corria risco de morte no hospital (até o fechamento desta edição) e continuará sendo alvo na guerra pela posse da terra que assombra dezenas dos maiores municípios da região amazônica. Ronair está na lista dos grileiros porque luta contra a apropriação indevida de grandes áreas de floresta e defende a criação de assentamentos no município. Sob a sombra de temas badalados na agenda pública internacional - como queimadas, desmatamento, pirataria de biodiversidade e recursos hídricos -, o embate silencioso pela posse da terra nos grotões da Amazônia não permite trégua, mas só ganha destaque a partir casos emblemáticos, como o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, em Anapu, na Transamazônica, em 2005. Pouco mais de uma década depois, a pressão contra comunidades que sobrevivem do que a floresta e a terra oferecem continua na mesma intensidade. Somente em 2016, segundo informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT), seis pessoas foram assassinadas. Entre elas, indígenas, camponeses ou lideranças populares como Ronair, que já registrou vários boletins de ocorrência em delegacias de conflito agrário das redondezas. Nos últimos oito anos, no Sul do Pará, foram registradas cinco mortes provocadas por conflitos pela posse de terra. Mas este tipo de violência não é exclusividade paraense. Outros estados alcançados pela fronteira de exploração

66 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

MARÇO DE 2016

de recursos naturais contabilizam execuções e atentados, de acordo com o relatório denúncia “Amazônia - Um Bioma Mergulhado em Conflitos”, produzido pela Articulação de CPTs da região. Dos 50 assassinatos no campo registrados no Brasil em 2015, aponta o relatório denúncia, 47 ocorreram na Amazônia, a maioria em Rondônia (20) e no Pará (19). Maranhão (6), Amazonas (1) e Mato Grosso (1) completam o ranking negativo. Metade das tentativas de assassinato tem como palco municípios amazônicos. Neles também é feito o maior número de ameaças de morte - ao todo foram 93 no ano passado. A CPT afirma que a região abriga atualmente nove grandes conflitos agrários. No relatório, a coordenação nacional da CPT defende que os confrontos rurais são recorrentes na Amazônia porque a região abriga grande parte da terra cultivável do planeta, tem água doce em abundância, recursos naturais em grande escala - como ouro e minério de ferro - e biodiversidade ainda desconhecida. Em síntese: essa riqueza atrai a atenção de grileiros que rechaçam qualquer iniciativa legal dentro de territórios paralelos onde o poder público não chega. P. S.: Falar sobre conflitos no campo traz à memória a história do extrativista José Cláudio Ribeiro da Silva e da esposa dele, Maria do Espírito Santo, que viviam da produção sustentável de castanha-do-pará na zona rural de Marabá. Para ele, matar uma árvore significava cometer assassinato. Pela luta contra a derrubada de exemplares de uma das mais suntuosas e emblemáticas árvores da Amazônia, eles começaram a receber ameaças de morte. Foram assassinados por pistoleiros em 2011.

“Confrontos rurais são recorrentes na Amazônia porque a região abriga grande parte da terra cultivável do planeta, tem água doce em abundância, recursos naturais em grande escala e biodiversidade ainda desconhecida”


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