REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.
MARÇO 2O17 | EDIÇÃO NO 67 ANO 6 | ISSN 2237-2962
O LADO HUMANO DAS
LENDAS
Histórias fantásticas de seres mitológicos, como mães-d’água, matintas e curupiras, refletem os dilemas do amazônida diante de temas universais, como vida e morte, amor e ódio, corpo e espírito. E as mulheres têm papel fundamental na construção desse universo cultural que atravessa gerações.
ESCALPELADAS
Vítimas de acidentes nos rios fazem ensaio fotográfico cheio de autoestima
UNIVERSIDADES
Docentes conquistam espaço nas salas de aula na área de Exatas
DESAFIADORA
A cantora Andréa Pinheiro chega aos 30 anos de carreira com vigor contemporâneo
EDITORIAL
PUBLICAÇÃO MENSAL DELTA PUBLICIDADE - RM GRAPH EDITORA MARÇO 2017 / EDIÇÃO Nº 67 ANO 6 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA Presidente Executivo ROMULO MAIORANA JR. FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: MARIA CRISTINA CARVALHO
Histórias que envolvem seres lendários da região, como a Matintaperera, expressam os anseios da sociedade amazônica
Afinal, o que dizem as lendas?
FELIPE JORGE DE MELO Editor-chefe
O hábito de contar histórias com fundamentação moralista e educativa tem registro na Grécia Antiga, fazendo parte também de outras culturas tanto do Ocidente quanto do Oriente. Lendas, fábulas e contos, com deuses, heróis e seres mitológicos, ajudaram a moldar a formação humana através dos séculos levantando questões complexas, como o certo e o errado, a vida e a morte, o sagrado e o profano. Nas histórias fantásticas contadas na Amazônia, cheias de regionalismo com elementos da natureza e povos da floresta, os mesmos questionamentos universais se encontram presentes. O tom educativo e prazeroso da prosa em família e em rodas de amigos e vizinhos reflete a preocupação dos narradores em orientar os ouvintes sobre os desafios diante da vida, os ensinamentos de questões morais e, no
4 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
CHEIAS DE SIGNIFICADO
caso particular amazônico, o respeito e a preservação do meio ambiente. “Os mitos mexem com valores mais fundos de nossa humanidade e, ao mesmo tempo que são amazônicos, demarcam nosso espaço no mundo”, diz o pesquisador Paulo Nunes, um dos coordenadores do grupo de pesquisa “Narramazônia: narrativas contemporâneas na Amazônia paraense”, que registra relatos de amazônidas sobre lendas passadas de geração a geração. Nesta edição, que coincide com o Dia Internacional da Mulher, buscamos destacar, também, o papel fundamental daquelas que fazem da Amazônia uma terra fértil para a memória cultural, para a produção sociocientífica e para a perpetuação da arte, em todos as suas vertentes, que pulsa na região. Pois sem as mulheres a vida, a realidade e o sobrenatural não seriam possíveis.
Diretor Jurídico RONALDO MAIORANA Diretora Administrativa ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA Diretor Industrial JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO Diretor JOSÉ LUIZ SÁ PEREIRA Conselho editorial RONALDO MAIORANA JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO LÁZARO MORAES REDAÇÃO Jornalista responsável e editor-chefe FELIPE JORGE DE MELO (SRTE-PA 1769) Coordenação geral LUCIANA SARMANHO Editor de arte FILIPE ALVES SANCHES (SRTE-PA 2196) Pesquisador e consultor técnico INOCÊNCIO GORAYEB Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Pará de Notícias, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Fundação Cultural do Pará - Oficinas do Curro Velho (acervo); Alinne Morais, Ana Paula Mesquita, Brenda Pantoja, Camila Santos, Victor Furtado (reportagem); Fabrício Queiroz (produção); Carlos Borges, Fernando Sette, Igor Mota (fotos); Anderson Araújo e Inocêncio Gorayeb (artigos) André Abreu, J.Bosco, Jocelyn Alencar e Leonardo Nunes (ilustrações); Alexsandro Santos (tratamento de imagem). FOTO DA CAPA Mãe D’Água, na representação de Ana Catarina Furtado, por Fernando Sette AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade/ RM Graph Ltda. CNPJ (MF) 03.547.690/0001-91. Nire: 15.2.007.1152-3 Inscrição estadual: 158.028-9. Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco - Belém - Pará.
amazoniaviva@orm.com.br
PRODUÇÃO
REALIZAÇÃO
NESTA EDIÇÃO
MARÇO2017
EDIÇÃO Nº 67 / ANO 6
FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: VALKÍRIA COSTA
32
Além da imaginação Segundo pesquisadores, lendas amazônicas, como a da Vitória-Régia, são reflexos dos sentimentos humanos que ganham forma no imaginário popular CAPA
WALDA MARQUES/ DIVULGAÇÃO
O presidente do Obser-
NAILANA THIELY
SOCIEDADE
IIGOR MOTA
NAILANA THIELY
20
28
E MAIS
48 43 MÚSICA
A cantora Andréa Pinhei-
AUTOESTIMA
vatório Social de Belém,
DOCÊNCIA
ro completa 30 anos de
Mulheres vítimas de es-
Ivan Costa, fala sobre o
Professoras da Universi-
carreira com o desejo de
calpamento por causa da
que pode e deve ser feito
dade do Estado do Pará
ir sempre adiante. Para
imprudência nos rios da
pelo poder público em
conquistam cada vez
ela, a música a acompa-
Amazônia participaram
parceria com a população
mais espaço no ensino
nha desde o nascimento
de um ensaio fotográfi-
em favor do desenvol-
das Ciências Exatas, antes
e não saberia viver sem
co especial em sinal da
vimento sustentável da
considerado um território
cantar as coisas da sua
superação da tragédia.
região amazônica.
exclusivamente masculino. alma de mulher.
OLHARES NATIVOS
ENTREVISTA
EDUCAÇÃO
4 6 7 11 13 14 15 16 17 18 19 19 41 54 55 57 58
EDITORIAl AS MAIS CURTIDAS PRIMEIRO FOCO TRÊS QUESTÕES ELES SE ACHAM FATO REGISTRADO PERGUNTA-SE EU DISSE APPLICATIVOS CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE DESENHOS NATURALISTAS CONCEITOS AMAZÔNICOS PESQUISA AGENDA FAÇA VOCÊ MESMO BOA HISTÓRIA NOVOS CAMINHOS
PAPO DE ARTISTA
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 5
ASMAISCURTIDAS DESTAQUES DAS EDIÇÕES ANTERIORES
BOTOS
ANDRÉ DIB / DIVULGAÇÃO
Lindas fotos dos botos e peixes-bois na última edição e o alerta sobre a importância de salvar suas populações foi fundamental para a sociedade (“Resgate nas águas amazônicas”, Capa, fevereiro de 2017, edição nº 66). Telma Madureira Belém-Pará
GRAFITE
SALVAMENTO DOS ANIMAIS MARINHOS
A reportagem sobre o resgate de botos, peixes-bois e tartarugas na Amazônia foi a mais curtida e compartilhada na edição passada em nosso Facebook. EDUARDO SOUZA
Sou leitora assídua desta conceituada revista e vejo cada vez mais a abertura para publicação das vozes das minorias marginalizadas de nossa sociedade. Seja com ribeirinhos, pescadores e povos da floresta, a Amazônia Viva também se preocupa em abrir espaço para os coletivos, a exemplo de movimentos negros e de mulheres. A matéria sobre as mulheres marginalizadas que encontram no grafite uma forma de expressão e liberdade mostra a maturidade jornalística e a sensibilidade social desta revista. (“Pelos muros de Belém”, Primeiro Foco, fevereiro de 2017, edição nº 66). Ana Virgínia Miranda Belém-Pará
IGREJAS Mais uma vez parabéns pela reportagem sobre a influência das religiões na história da sociedade de Belém (“E a missão continua...”, História, fevereiro de 2017, edição nº 66). Já havia comentando sobre a excelente reportagem na edição de janeiro, que abordou o catolicismo na Amazônia colonial, e foi muito bom ver o complemento final da matéria com as outras igrejas. Felipe Fernandes Belém-Pará NA VIDA TUDO É PASSEGEIRO
A foto do nosso leitor Eduardo Souza, que registrou um trabalhador do Ver-o-Peso em contraponto com a decoração do ônibus, foi a mais curtida em nosso Instagram GABRIEL MELO (BIOMA)
SIGA A AMAZÔNIA VIVA NAS REDES SOCIAIS E COMPARTIHE A EDIÇÃO DIGITAL, DISPONÍVEL GRATUITAMENTE NO ISSUU.COM/AMAZONIAVIVA
da Amazônia Viva envie comentários, dúvidas, críticas e sugestões para o email amazoniaviva@orm.com.br ou escreva
instagram.com/amazoniavivarevista
6 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Acompanho o trabalho do músico Henry Burnett, entrevistado na seção “Papo de Artista” de fevereiro passado (“As Beléns de Henry Burnett”), e acredito que trabalhos de artistas como ele merecem ser mais divulgados. Danielle Corrêa Belém-Pará Para se corresponder com a redação
fb.com/amazoniavivarevista
twitter.com/amazviva
HENRY BURNETT
para o endereço: Avenida Romulo USE UM LEITOR DE QR CODE PARA ACESSAR A EDIÇÃO DIGITAL DE FEVEREIRO
Maiorana, 2473, Marco, Belém - Pará, CEP 66 093-000 ou FAX: 3216-1143.
TEXTOS VICTOR FURTADO E ALINNE MORAIS NAILANA THIELY/ ASCOM UEPA
PRIMEIROFOCO
O QUE É NOTÍCIA NA AMAZÔNIA
Resgatadas pela solidariedade VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, MULHERES ENCONTRAM UMA NOVA VIDA NO TRABALHO DE PROFISSIONAIS QUE SE PREOCUPAM EM OFERECER UM NOVO CAMINHO PARA SUPERAÇÃO DOS TRAUMAS PÁGINA 8 E 9
ALERTA
NATUREZA
Botos que habitam o rio Tapajós têm o habitat ameaçado pela construção das hidrelétricas. Populações marinhas correm risco de extinção. PÁG.10
Igreja Católica lança Campanha da Fraternidade preocupada com o futuro da biodiversidade em todo o planeta. PÁG.12
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 7
PRIMEIRO FOCO
Mulheres da esperança TEXTO RENATA PAES
FOTOS NAILANA THIELY
Pernambucana do município de Serra Talhada, Angelina Firmina Neta, aos 10 anos, trocou as bonecas pela enxada. Chegava no início da noite em casa queimada de Sol. Não era de um dia de lazer na praia. Era o Sol da roça que queimava a pele branquinha, fina e delicada de criança, após um longo dia de trabalho. Aos 16 anos, casou-se. “Tudo no começo são flores. Depois ele passou a ter muitos ciúmes de mim”. Numa manhã, enquanto lavava roupas, o marido saiu e pouco tempo depois voltou com um líquido transparente dentro de uma garrafa. Ele a surpreendeu ao jogar álcool nela e em seguida acender um fósforo. O fogo se alastrou pelo rosto, cabeça, peito, costas e braços de Angelina. Só com a chegada dos policiais, que traziam um extintor de incêndio, foi que as chamas no corpo de Angelina foram apagadas. A dona de casa não se lembra quanto 8 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
tempo levou para o fogo cessar. Só sabe que foi o suficiente para deixar queimaduras de terceiro grau. “Ele queria me matar. Me procurou depois. Foi preso, o soltaram”, relata a vítima. Após se recuperar, foi morar em Arco Verde, Pernambuco. Lá reencontrou um novo amor. Educado, gentil e compreensível. Tempo depois, o homem cortês foi tomado pelo ciúme. Numa noite o casal saiu. Ele a levou para trás do terminal rodoviário da cidade. Parecia ser apenas um local para uma conversa sobre o relacionamento, até o homem desferir 13 facadas em Angelina, que ficou meses hospitalizada. Devido à gravidade dos ferimentos, ela perdeu o útero e tem no corpo as marcas de várias operações. Depois de outros relacionamentos frustrados, entre eles o que a fez vir para o Pará, Angelina não permitiu mais ser violentada e foi morar nas ruas de Santa Isabel, nos arredores da capital paraen-
se. Andava a esmo. Antes que algo pior acontecesse nas ruas, uma família se compadeceu, a acolheu e depois a direcionou para o Abrigo João de Deus, na Cidade Velha, em Belém. Angelina ajuda na cozinha, não por ser forçada como quando vivia com alguém, mas por livre espontânea vontade. São sete anos morando no abrigo. Nos dois últimos, ela passou a interagir melhor com os colaboradores da casa, ao desenvolver as habilidades físicas e intelectuais, participando ativamente do projeto “Atuação da Terapia Ocupacional social com moradores de rua: resgate a cidadania”, realizado pela professora Rita de Cássia Gaspar da Silva e acadêmicas do curso de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Pelo menos duas vezes na semana Angelina faz alongamentos, participa de jogos de memória e até dança. A professora Rita de Cássia destaca os benefícios
das atividades. “Os moradores de rua, em geral, são ociosos e levam uma vida sedentária. Eles se sentem excluídos socialmente, marginalizados pela história de vida que tem. Com esse projeto, eles melhoram o raciocínio, tem maior facilidade de se relacionarem entre eles”, diz. Angelina não está sozinha nas estatísticas de violência contra a mulher. De acordo com o Mapa da Violência 2015, registraram-se 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o Brasil no 5º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. Esses números se limitam ao registro de violência contra a mulher diretamente agredida. Entretanto, ao considerar os que convivem na mesma casa com o agressor, como filhos, irmãos, avôs e avós, pais, e que também se sentem violados e agredidos, certamente esses índices dobrariam. Ana Daniele Mendes Carrera, 24
anos, filha de Maria Irenice Mendes Carrera, 58 anos, sofreu durante a adolescência ao presenciar as constantes brigas dos pais. Ela começou a pensar até ser normal “briga de marido e mulher”. Segundo Ana, a mãe sofria violência psicológica constantemente. Esse tipo de agressão se configura em xingamentos e humilhações, em geral, precedidos de agressão física. “Cheguei a pensar que estar naquela situação poderia ser culpa da minha própria mãe, por várias vezes pensei que ‘é tão fácil. É só mandá-lo embora. Hoje consigo compreender que o medo a paralisava e a dúvida de não saber como manter as duas filhas financeiramente era constante”, conta Ana Daniele. Essa fase de sua vida marcou tanto que a egressa do curso de Licenciatura em Pedagogia da Uepa decidiu basear o próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com o tema “Em briga de
marido e mulher a educação mete a colher”, num estudo aprofundado da realidade das mulheres que sofrem violência doméstica. A pesquisa foi realizada com as mulheres atendidas no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAM), em Ananindeua. Ana Daniele traçou o perfil socioeconômico de cada mulher atendida e identificou que são de diferentes classes sociais e formação. Ana reforça que a educação nas escolas e nas Universidades é a saída para reduzir as diferenças entre os gêneros. Ela identificou que incentivar as mulheres a voltar à escola, se qualificarem profissionalmente, dá ânimo e forças para que saiam da condição de vulnerabilidade e dependência do parceiro, assim como ocorreu com a própria mãe, para identificar as sequelas emocionais nos filhos e orientá-los a compreenderem a origem e a saída da violência contra a mulher.
EM BUSCA DO AMANHÃ
A dona de casa Angelina Firmina Neta (à direita) sofreu, por vários anos, violência doméstica ainda jovem. Hoje, encontrou a paz no Abrigo João de Deus. A pedagoga Ana Daniele Carrera (à esquerda) pesquisou sobre a realidade das vítimas de agressão e mostra que a educação é o melhor caminho para se reverter a situação.
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 9
PRIMEIRO FOCO SIDNEY OLIVEIRA / AGÊNCIA PARÁ
HABITAT EM RISCO
De acordo com a ONG WWF, os botos que habitam o rio Tapajós estão ameaçados com a construção de hidrelétricas
RIO TAPAJÓS
Hidrelétricas aumentam risco de extinção de botos A construção de novas usinas hidrelétricas no rio Tapajós poderá prejudicar a conservação das espécies de botos tucuxi e cor-de-rosa, aponta estudo publicado na revista científica Endangered Species Research. De acordo com a pesquisa, as obras também devem favorecer a baixa variabilidade genética destas subpopulações, o que pode resultar em um processo de extinção desses animais no local. Segundo a ONG World Wide Fund Brasil, 12 empreendimentos hidrelétricos estão em processo de licenciamento na bacia do Tapajós. As obras vão ter impacto direto na vida dos botos. “Sabemos que os botos são muito afetados pela
10 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
construção de barragens hidrelétricas. Uma barragem é um obstáculo físico intransponível, mesmo para os botos, exímios nadadores”, explica Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá. Heloíse Pavanato, uma das autoras do estudo, também destaca que além de interferir na qualidade de vida dos botos as construções também podem afetar de maneira drástica todo o sistema do rio. “Os botos, por se alimentarem de peixes, estão no topo da cadeia alimentar. Então, eles têm o potencial de refletir o que acontece em toda a cadeia trófica”, diz.
ENERGIA
Plantas nocivas Pesquisadores da Universidade do Estado do Pará (Uepa) estão utilizando plantas aquáticas que crescem de forma nociva nos mananciais de Belém como fonte de energia. As chamadas macrófitas são encontradas no Parque Estadual do Utinga e ameaçam a biodiversidade dos lagos Bolonha e Água Preta. Segundo o estudo, todo lixo orgânico pode produzir gás natural durante a sua decomposição. A pesquisa afirma que é possível aproveitar este gás em estruturas chamadas digestores para produzir um combustível natural que gera eletricidade e calor quando queimado. Agora, o que os pesquisadores da Uepa fazem é verificar como obter o máximo de energia possível das plantas aquáticas, para que sua exploração como fonte de energia alternativa seja viável.
TRÊSQUESTÕES
VEGETAÇÃO NA SERRA
RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO
Pesquisadores lançam estudo sobre Carajás
O Theatro da Paz completou 139 anos em
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, uma das mais tradicionais na área de botânica. Uma das descobertas do trabalho foi o registro de mais quatro espécies da planta Ipomoea, nativa de Carajás. Os dados anteriores faziam referências a três espécies dessa f lor e com o novo levantamento foi possível atualizar este dado. Além dela, outros grupos de plantas também foram atualizados com o estudo. As cangas estão localizadas na Floresta Nacional de Carajás. Por estarem associadas às principais jazidas de ferro do país, elas são um desafio para a pesquisa. Agora, com o estudo, o objetivo é suprir parte dessa lacuna e auxiliar o diálogo entre a ciência, o setor produtivo e órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental na região.
fevereiro. É um ícone de diversas raízes culturais de Belém e da Amazônia, sendo o maior teatro da Região Norte e um dos mais luxuosos do Brasil. O diretor artístico do Theatro, Gilberto Chaves, fala sobre mudanças, planos e posicionamento social do teatro, deixando claro que manter a estrutura é caro, mas dá retorno. E esse cuidado deve ser sempre uma prioridade do poder público. Prestes a completar 140 anos, quais foram as principais mudanças do Theatro? Mudanças de estrutura e de comportamento teatral. Quando nasceu era cru. Não tinha pintura do italiano Domenico de Angelis, não tinha lustres. O formoseamento se dá na Belle Époque. A varanda foi incluída em 1904/05. Também houve um avanço do pátio. Só teve reforma mais bruscas, em 2002, para o acesso dos cadeirantes. Desde 2002, realizaJOÃO MARCOS ROSA / AGÊNCIA VALE
mos o Festival de Ópera. É um teatro receptivo, não é de aluguel. O que se espera alcançar até o aniversário de 150 anos, daqui a onze ano? Isso depende muito da nossa disponibilidade financeira, pois é uma casa custosa. A conservação não é barata. Espero poder manter o que conquistamos a partir de 2002. Não posso dizer muita coisa para não ser populista. Por que a população ainda parece tão distante e sem acesso ao Theatro? Temos feito campanhas para ver se diminuímos essa distância. De fato, tem muita gente que mora aqui e nunca entrou no teatro. Temos a orquestra sinfônica que realiza concertos didáticos gratuitos. É uma maneira de abrir as portas. Também realizamos um projeto piloto voltado para a formação de plateia infantil, com a participação de crianças atendidas pela Fundação Pro Paz. Pensamos em mostrar o teatro como um prédio vivo. Além disso, a Amazônia Jazz
BOTÂNICA
A flor-de-carajás é uma das principais descobertas na serra paraense e se destaca nos estudos da flora amazônica
Band é um sucesso e toca de graça também.
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 11
MÁCIO FERREIRA / AGÊNCIA PARÁ
Pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi e do Instituto Tecnológico Vale (ITV) acabaram de lançar o primeiro volume do estudo sobre a vegetação da Serra de Carajás, no Pará. A publicação reúne o trabalho de 55 botânicos e mais de 22 instituições do Brasil e do exterior, que apresentam informações sobre 139 gêneros e 248 espécies da f lora da região. O projeto “Flora das Cangas da Serra dos Carajás, Pará, Brasil” é desenvolvido desde 2015 e conta com a colaboração de 74 botânicos ta xonomistas do Brasil e do exterior. A ideia é que no final de 2017 os estudos possam catalogar quase 10% das 7.071 espécies da f lora ex istente no estado. No total, a pesquisa vai contar com três volumes que serão publicados na revista nacional Rodriguésia, do
Theatro da Paz em direção aos 150 anos
PRIMEIRO FOCO THIAGO GOMES / AGÊNCIA PARÁ
OCEANOS
SEM OXIGÊNIO Os oceanos do mundo perderam mais de 2% do seu oxigênio desde 1960, revelou um estudo publicado pela revista científica Nature. Segundo a pesquisa, a diminuição pode ter consequências potencialmente devastadoras para plantas e animais marinhos. O relatório constatou que a maior diminuição aconteceu perto de áreas onde o oxigênio já era baixo, nas chamadas “zonas mortas”.
QUEIMADAS
DRAMA NO PARÁ Dados divulgados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) apontaram que durante o mês de janeiro de 2017 foram mapeados 225 focos de queimadas no Pará. Em relação ao mesmo período em 2016, foram quantificados 1097 focos a menos.
CHUVAS
INVERNO AMAZÔNICO De acordo com a meteorologia, a quantidade de chuvas registrada durante o mês de fevereiro é atípica até mesmo para os meses do inverno amazônico. Nos primeiros 15 dias do período os especialistas alertaram que choveu na capital mais de 70% dos 417 milímetros estimados para o mês todo.
SALVAMENTO
ANIMAIS SILVESTRES Segundo dados divulgados no início deste ano, 510 animais silvestres foram resgatados durante o ano de 2016 na região do Amazonas. Entre as espécies mais resgatadas estão jiboias, frango d’água, gaviões-carijó, preguiças-bentinho, preguiça-real, jacarés, camaleão, a ava pariri, a coruja murucututu e os macacos da espécie sauim. 12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
BIOMA
Preservação ambiental é tema da Campanha da Fraternidade A Campanha da Fraternidade 2017, encabeçada em todo o país pela Igreja Católica, traz um tema tão necessário a ser discutido que foi pauta até no Carnaval: “Fraternidade: biomas brasileiros e a defesa da vida”, levando todos os cristãos, católicos ou não, a refletir sobre a preservação do meio ambiente, da vida e das pessoas. Com isso, a CF 2017 reforça um papel social e político da Igreja, que se mantém conectada em temas relevantes para todo o planeta. Devido ao tema, as prelazias da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Norte II - Itaituba, Xingu e Marajó - terão papel fundamental nas ações dentro do Pará. No Xingu, a usina hidrelétrica de Belo Monte tem sido uma pauta constante, mas há muito do que se falar sobre o desmatamento, poluição e extrativismo ilegal de vários recursos naturais. Todas as regionais da Amazônia terão atividades localizadas em defesa do meio ambiente, dos povos tradicionais e tentando frear conflitos agrários. “Essa campanha vem em boa hora para provo-
car a discussão sobre a Amazônia e tudo que acontece nesta região. É um bioma rico, variado e que influencia os ecossistemas brasileiros e do mundo. Algo que ocorra aqui, repercute no mundo todo”, observa o monsenhor Raimundo Possidônio (Cid), vigário geral da Arquidiocese de Belém. A CF começa na quarta-feira de Cinzas e tem período principal de atividades até a Páscoa. Contudo, as atividades e reflexões dentro da Igreja se estendem o ano todo. Monsenhor Cid destaca que a Igreja não está sozinha nessa campanha e busca se unir com as universidades, pesquisadores, ativistas e organizações em geral para formar a opinião da comunidade cristã. “O Papa Francisco tem preocupação em aprofundar esse debate sobre a riqueza e diversidade do país, frente aos grandes projetos e avanço do agronegócio na Amazônia. O desenvolvimento é necessário, mas não pode ser às custas da população e do desequilíbrio da ordem natural criada por Deus. Todos nós precisamos ter um posicionamento”, opina.
ELESSEACHAM POR QUE MIMETISMO É UMA COISA NATURAL
AMEAÇA
Parte dos ursos-polares pode desaparecer até 2050 Cerca de 30% dos 26 mil ursos-polares que existem na Terra podem desaparecer até 2050. A informação é do estudo publicado na revista britânica Royal Society Biology Letters. A pesquisa destaca que a principal razão para o possível sumiço é o derretimento das calotas polares, uma vez que o ambiente tem impacto direto na alimentação e sobrevivência desses animais. Para chegar a essa conclusão a equipe formada por cientistas americanos e pesquisadores de países como o Canadá e a Noruega, observaram o tamanho das calotas polares nos últimos 35 anos. Em seguida, os estudiosos cruzaram es-
ses dados com informações sobre as variações nas populações de 19 grupos de ursos-polares espalhados pelo Ártico. A ligação entre esses dois pontos permitiu a projeção de possíveis cenários para a população de ursos até a metade do século XXI. De acordo com os resultados finais do estudo, há 70% de chances de um terço da espécie desaparecer nos próximos 35 anos. O urso-polar está na lista vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza desde 1982. O animal é listado como “vulnerável”, pois o órgão considera que a espécie tem risco elevado de extinção.
O disfarce do morcego Artibeus lituratus (Olfers, 1818) é um morcego que muitas vezes fica de cabeça para baixo em árvores. Dependendo da situação ANSGAR WALK/ WIKIMEDIA
podem ficar vulneráveis ao ataque de predadores como corujas, cobras arborícolas noturnas e o homem. Entretanto, quando estão pendurados e estáticos nas árvores dificilmente são percebidos porque se confundem com folhas secas e frutos. Essa espécie costuma cortar as folhas de bananeiras e sororoca, chamada de banana-brava-da-mata (Phenakosper-
mum guianense) para que elas dobrem, e ficam sob elas nos cones que se formam nas dobras. Nestes abrigos provisórios ficam parecendo lesões escuras nas folhas ou frutos. Entretanto, durante o dia, essa camuflagem também é muito eficaz contra o ataque de predadores.
Artibeus lituratus, frugívoro, é uma espécie com ampla distribuição no continente americano. Pode ser encontrado desde Sinaloa, oeste do México, até Venezuela, Brasil, Argentina e Uruguai, na América do Sul. No Brasil, está representada em todas as regiões e biomas sendo uma impor-
PIRARUCU
GERAÇÃO DE RENDA
tante espécie dispersora de sementes e formadora de florestas.
Em sete Reservas Extrativistas administradas pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) no
Vivem tanto em áreas conservadas
Amazonas, é realizado o manejo sustentável do pirarucu, peixe nativo da região. A atividade
quanto em ambientes alterados, como
beneficia cerca de 400 famílias nas unidades de conservação e, segundo pesquisadores,
é caso das cidades.
movimentou mais de R$ 1 milhão em 2015. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 13
FATO REGISTRADO
Sivuca no Theatro da Paz
INOCÊNCIO GORAYEB
TEXTO INOCÊNCIO GORAYEB
A foto acima é um registro inédito do compositor e sanfoneiro Sivuca, durante um show no Teatro da Paz, na década de 70. Severino Dias de Oliveira, filho de uma família de sapateiros e agricultores de Itabaiana, pequeno município da Paraíba, contribuiu para o enriquecimento da música brasileira e recebeu reconhecimento internacional por seus trabalhos que incluem choros, frevos, forrós, baião, jazz, clássicos e outros ritmos. O músico foi um artista muito respeitado, considerado um multi-instrumentalista, maestro, arranjador, 14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
compositor e cantor. Em 1950, gravou o seu primeiro disco em parceira com Humberto Teixeira, pela Continental, que incluía a música “Adeus, Maria Fulô”. Em abril de 1955, Sivuca foi morar no Rio de Janeiro onde durante três anos foi artista contratado da rádio e TV Tupi. Em 1958, depois de várias apresentações na Europa, mudou-se para Lisboa. No ano seguinte, foi trabalhar em Paris, onde permaneceu por quatro anos. Em 1964, foi para Nova York, onde assumiu a direção musical das gravações da can-
tora africana Miriam Makeba. Excursionou pelo mundo e gravou na Suécia e no Japão. Retornando aos EUA criou músicas para filmes e realizou projetos com músicos como Hermeto Pascoal, Paul Simon e outros. Sivuca foi casado com a compositora Gloria Gadelha, com quem desenvolveu um vasto trabalho com destaque para o forró “Feira de Mangaio”. Outras parcerias bem-sucedidas foram “João e Maria”, com Chico Buarque, e “No Tempo dos Quintais” e “Cabelo de Milho”, ambas com Paulo Tapajós.
PERGUNTA-SE É PRECISO ESCLARECER MITOS E VERDADES
Coquinho da pupunha deixa burro?
FERNANDO SETTE
MEMÓRIA
Livro registra mudanças na praça Batista Campos em 1983 e para os Amigos da Praça o livro é uma forma de reforçar a história e preservar a memória do local. A vice-presidente da Associação, Francisca Oliveira, 58 anos, explica que o grupo busca desenvolver um trabalho em parceria com o poder público para auxiliar na manutenção e preservação do espaço. “Nós nos unimos com o intuito de preservar a praça, para conscientizar os frequentadores sobre a importância de manter a praça mais limpa e bem cuidada. A ideia é somar forças com o poder público, pois essa é uma das praças mais bonitas do país e faz parte da história da população”, afirmou.
RISCO
BOTO MEXICANO Com apenas 30 exemplares restantes no mundo, a vaquita-marinha, do México, o menor cetáceo do mundo, está à beira da extinção. De acordo com relatório do Comitê
FERNANDO SETTE
A Praça Batista Campos completou 113 anos de história em fevereiro. Para comemorar o aniversário do local, que já foi eleito como o mais bonito do Brasil pelo “Prêmio 100 Mais” em 2005, a Associação Amigos da Praça Batista Campos lançou o livro “Praça Batista Campos – Simplesmente Bela”. A obra traz um registro da transformação do espaço ao longo dos anos. Para contar a história do local os Amigos da Praça também usaram registros fotográficos antigos e atuais para ilustrar a obra e mostrar um pouco mais dos detalhes do local e de sua evolução para os leitores. A praça foi tombada pelo município
Tão antigo quanto o hábito de comer pupunha é uma crendice de que, quem come o caroço, também chamado de coquinho, corre o risco de perder a inteligência. Mas a nutricionista Ivie Maneschy, professora mestre e coordenadora do curso de Nutrição da Universidade da Amazônia, garante que não passa de mais uma lenda amazônica. Sequer há qualquer risco em comer o coco. “O coco da pupunha não é tão difícil de ser quebrado. Quando partido, ele apresenta uma polpa dentro que se assemelha muito com o sabor do coco fresco. Essa polpa é rica em fibras e gorduras”, esclarece Ivie. Alguns chefs de cozinha até encontraram receitas que aproveitam esse sabor do coquinho - há quem ache que se assemelha à avelã - e provaram que além de não deixar burro, o caroço da pupunha pode ser usado de forma inteligente, dando mais valor ainda ao fruto.
MANDE A SUA PERGUNTA Envie perguntas instigantes sobre hábitos, costumes e fenômenos da região amazônica para o e-mail: amazoniaviva@orm.com.br
Internacional para a Recuperação da Vaquita (Cirva), o animal deverá ser extinto até 2022. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 15
EU DISSE
“Enfiam a cultura dos outros goela abaixo, mas não podemos deixar a nossa morrer” Dona Onete, cantora paraense em entrevis-
“Numa sociedade livre, é importante que as pessoas tenham o poder de compartilhar suas opiniões, mesmo que outros pensem que elas estão erradas.” Mark Zuckerberg, em recente carta a imprensa, na qual ele defendeu a ideia de “comunidade global”. DIVULGAÇÃO
ta ao jornal O Globo, durante um show no Rio de Janeiro. Na ocasião ela fez um apelo para a preservação de ritmos brasileiros, como o carimbó e o samba.
“A conjuntura da política indigenista se afunila para um extermínio total” Dinamam Tuxá, integrante do povo Tuxá, da Bahia, advogado e mestrando em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília, sobre a política indígena.
“O Brasil é um país tão incrível, rico em recursos, com ótimas pessoas. Você está vendo as implicações do que a corrupção pode fazer a um país e tão rápido, desestabiliza.” Penny Pritzker, secretária de comércio dos EUA, sobre a situação política e econômica do Brasil nos últimos meses.
16 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
APPLICATIVOS BOAS IDEIAS NUM TOQUE DE DEDOS
“Às vezes, não precisamos mudar o mundo e fazer coisas que fiquem nos livros de história. O fato de respirarmos, de termos uma vida, de sermos deuses para os nossos filhos... Apenas isso, significa que temos uma história que merece ser contada.”
Sabores do Brasil Um livro de receitas digital com foco nas receitas regionais do Brasil. O banco de dados é constantemente atualizado com sabores novos. E ainda é possível colaborar com novas receitas. Uma boa fonte para informação e estudo sobre culinária de determinadas regiões. Ou apenas para preparar pratos típicos. Gratuito para Android.
Dicionário Priberam Um dos mais baixados dicionários de Português Brasileiro. O uso é bem prático para
Viola Davis, durante discurso ao receber o “SAG Award” como melhor atriz coadjuvante. Ela também ganhou o Oscar, na mesma categoria, este ano, pelo filme “Um limite entre nós”
quem lê em tablets e celulares como para quem usa os dispositivos como apoio nas consultas, mas requer conexão com a inDIVULGAÇÃO
ternet. O app, gratuito para iOS e Android, compila 14 dicionários diferentes para garantir a resposta o quanto antes e com a maior quantidade de fontes possível.
Semper - Aprender sem esforço A proposta do app é que, sem alterar a rotina do usuário do smartphone, seja possível estudar em pequenas doses temas à escolha. Por exemplo: ao desbloquear a tela do telefone ou abrir um outro aplicativo,
“Atores negros não precisam interpretar escravos para ganhar o Oscar” Barry Jenkins, diretor de “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, em entrevista ao Page Six. Na ocasião ele declarou que seu filme, vencedor do Oscar 2017, quebra um mito de Hollywood e prova que atores negros podem ser reconhecidos em outros papéis que não sejam os de escravos.
surge um pequeno quebra-cabeças ou uma pergunta rápida. E assim, o raciocínio estará sempre em atividade. Para quem está numa rotina de estudos, pode impedir que se perca o foco mexendo no celular. Gratuito para iOS e Android, mas com uma versão paga bem mais ampla. FONTES: PLAY STORE E ITUNES
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 17
CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE
O maior tajá do mundo TEXTO E FOTO INOCÊNCIO GORAYEB
Essa foto é de uma espécie rara de tajá gigante, que foi encontrada e fotografada pelo botânico João Batista Fernandes da Silva, na várzea do rio Juruá, no Acre. A planta é da espécie Philodendron maximum K. Krause, é encontrada no tronco de palmeiras e é considerada hemiepífita, ou seja, pode existir fi xada no solo ou na palmeira. A Philodendron maximum foi descrita e publicada cientificamente em 1913 e pode ser encontrada na Colômbia, no Equador, no Peru e no Brasil em locais de elevações de 106 a 800 metros acima do nível do mar. É a maior espécie de Philodendron do mundo e suas folhas adultas variam de 109 a 165 cm de comprimento. Recentemente, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Silva e colaboradores, 2016), fizeram estudos sobre os óleos essenciais de três espécies de Philodendron, 18 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
dentre elas a P. maximum, e apresentaram as seguintes informações: A família Araceae possui uma distribuição subcosmopolita, ou seja, pode ser encontrada em diversas regiões do mundo, com 117 gêneros e 3.300 espécies. A maioria destas distribuídas na América do Sul. No Brasil, o conhecimento de Araceae encontra-se ainda bastante incompleto por falta de estudos botânicos intensivos; Coelho e colaboradores (2014) citam 36 gêneros e 476 espécies nativas no país, tendo assim, uma alta diversidade. Dentre os gêneros com maior número de espécies se destacam Anthurium e Philodendron, com muitos representantes nativos do Brasil. As folhas de Philodendron têm uso na medicina popular como purgativas drásticas, diuréticas, anti-hidrópicas e adstringentes. São úteis em doenças como erisipela, reumatismo, otites e epidermi-
te. Os compostos alquil e arilresorcinol foram isolados das folhas e são os responsáveis pelas atividades causadoras de dermatite alérgica ocasionada por plantas deste gênero. A espécie P. scabrum é utilizada, principalmente, pela população do Baixo Madeira, Porto Velho e Rondônia para o tratamento de mordida de serpente; A infusão dos talos é utilizada como analgésico. Existem registros na literatura relatando que espécies do gênero Philodendron apresentam componentes químicos que possuem atividade bactericida e antiprotozoárias contra Trypanossoma cruzi e Trichomonas vaginalis, dentre as quais se destaca a espécie P. bipinnatifidum. As raízes de P. bipinnatifidum são utilizadas como purgante, hemostática e vermífuga, além de muitas apresentarem fragrâncias que são utilizadas na indústria cosmética.
DESENHOS NATURALISTAS
CONCEITOSAMAZÔNICOS O VOCABULÁRIO REGIONAL É UM PATRIMÔNIO
Suatá, o ritual do acasalamento “Suatá”, “Sauatá” ou “Andança” são termos usados para designar o fenômeno das fêmeas adultas do caranguejo-uçá (Ucides cordatus) fazerem a cópula com os machos adultos. As fêmeas são chamadas de conduruas ou condessas. Nos meses de dezembro a abril todos saem das tocas para o “namoro”. Neste período há o defeso, quando é proibido capturar os caranguejos. Mas, no Pará, há uma lei que proíbe a captura das fêmeas em qualquer época do ano. As fêmeas são menores, apresentam o abdômen com uma placa inteira e possuem menos pelos nas patas.
GRAVURA DE GUILHERME LEITE / REPRODUÇÃO / ACERVO DO MUSEU GOELDI
Pontas de flechas do Médio Tapajós O desenhista Guilherme Leite trabalhou no Museu Paraense Emílio Goeldi até sua aposentadoria. Ele contribuiu muito por ter ilustrado vários artigos científicos e livros do Departamento de Ciências Humanas, além de ter produzido diversas telas coloridas para exposições do Departamento de Museologia. O artista também dominava as técnicas de desenhos científicos em nanquim e pintura em óleo. As ilustrações acima apresentadas são de duas pontas de f lechas catalogadas na coleção de Arqueologia do Museu Goeldi. Na figura 1, ponta de projétil de quartzo hialino, margem esquerda do Médio Tapajós, abaixo da cachoeira do Cachorão, Pará, no registro 1273, coletada em 1958; na figura 2, ponta de projétil de sílex, margem esquerda do rio Ta-
pajós, Garimpo do Caçaba, Igarapé Tucano, no registro 1491, coletada em 1967. Essas ilustrações foram publicadas no artigo “Mario F. Simões. 1976. Notas sobre duas pontas de projétil da bacia do Tapajós, Pará. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, nova série, Antropologia, n. 62, 15p”. Dr. Simões resumiu assim o seu artigo: “Descrição e classificação de duas pontas de projétil líticas de lâmina triangular encontradas acidentalmente em locais e datas diferentes. São as únicas evidências que permite inferir a possibilidade de ter sido a Amazônia brasileira ocupada ou percorrida por antigos grupos pré-cerâmicos. É sugerida a filiação de ambas ao estágio protoarcaico ou período transicional da América do Sul, ocorrido entre 8.000 a 5.000 anos antes de Cristo.”
Já os machos são maiores, têm o abdômen estreito, alongado e com placa fendida e apresentam muitos pelos nas patas. É recomendável que os consumidores não comprem caranguejos durante o suatá e o período de defeso. O suatá acontece duas vezes por ano: durante a lua cheia e a lua nova, entre os meses de dezembro e maio. Esse fenômeno ocorre em toda a costa amazônica, do Amapá ao Maranhão, onde os manguezais são extensos e contêm alta população de caranguejos. O controle para proibir a coleta e a comercialização de caranguejos menores que 7cm de largura da carapaça além da proibição no período de defeso, são importantes para a manutenção da espécie. INOCÊNCIO GORAYEB
INOCÊNCIO GORAYEB
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 19
OLHARES NATIVOS
20 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Apesar da dor no rio... Neste mês em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, a fotógrafa Nailana Thiely nos presenteia com um ensaio especial com mulheres atendidas pela Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidentes de Motor (Orvam). A ONG, que também confecciona perucas para as mulheres mutiladas, tem como missão trabalhar a autoestima das vítimas de escalpelamento para tentar reduzir o preconceito da população e promover a capacitação e inserção dessas mulheres no mercado de trabalho. O ensaio fotográfico, originalmente intitulado “Não Fosse o Rio...”, propõe retratar o estágio de superação em que esssas mulheres se encontram, momento em que reagem e se reerguem após uma dor profunda e inesquecível. “É um trabalho sobre resiliência”, diz a autora da obra. A seguir, belíssimas fotos dessas mulheres fortes da Amazônia. FOTO: NAILANA THIELY MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 21
OLHARES NATIVOS
Regina de Lima e Odilene da Silva Duarte
Regina nasceu em Muaná, no Marajó. Profissional dedicada, tornou-se peruqueira da Orvam e atualmente ajuda outras mulheres a superarem o acidente. Já Odilene é natural de Barcarena e deseja apenas uma oportunidade de trabalho para sustentar suas filhas FOTOS: NAILANA THIELY
22 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Genir Souza e Zeranias Neves
Natural de Candido Mendes, Genir foi vítima de escalpelamento ainda jovem e, apesar de ciente de sua beleza, busca superar a lembrança do acidente. Zeranias é de Limoeiro do Ajuru, no Pará, e tenta superar o acidente com apoio da família e da espiritualidade. FOTOS: NAILANA THIELY
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 23
OLHARES NATIVOS
Larissa Paixão
Natural de São Sebastião da Boa Vista, Larissa está sendo acompanhada pela Orvam para seguir com os estudos e realizar o sonho de se tornar psicóloga. FOTOS: NAILANA THIELY
24 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Denise do Carmo Pereira
Denise nasceu em Cametá e chegou à ONG em busca de uma oportunidade de trabalho. É dedicada a tudo o que planeja e não perde a esperança. FOTOS: NAILANA THIELY
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 25
OLHARES NATIVOS
Dinilza de Melo Cohen
Natural de Cametá, Dinilza sempre foi uma estudante dedicada. Formou-se em engenharia civil com auxílio do trabalho desenvolvido pela ONG. FOTOS: NAILANA THIELY
Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos
Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail amazoniaviva@orm.com.br acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!
OPINIÃO, IDENTIDADE, INICIATIVAS E SOLUÇÕES FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: ANTÔNIO LIMA
IDEIASVERDES
Histórias pra contar LENDAS AMAZÔNICAS, COMO A DO CURUPIRA, PODEM SERVIR PARA ORIENTAR OS OUVINTES DE COMO AGIR DIANTE DA VIDA
PÁGINA 32
SOCIEDADE
EDUCAÇÃO
O presidente do Observatório Social de Belém, Ivan Costa, fala sobre os caminhos para o desenvolvimento sustentável nas cidades. PÁG.28
Mulheres docentes conquistam espaço em cursos de Exatas, antes tido como um território estritamente masculino nas universidades. PÁG.41
ENTREVISTA
A
cidade de Belém, por ser situada na Amazônia - rica ambiental, social e culturalmente -, torna-se atrativo de investidores, empresários e órgãos públicos em todo o mundo. O Desenvolvimento Sustentável da Região é um assunto que fomenta discussões políticas, econômicas, ambientais e sociais. Sobre os aspectos desse modelo de gestão e desenvolvimento da região, o presidente do Observatório Social de Belém, Ivan Costa, aponta o que pode e deve ser feito pelo poder público e pela população. O Observatório é base de muitos projetos que visam ao desenvolvimento da capital paraense e do contexto geográfico na qual está inserida. Ivan ainda explica como esses projetos são encaminhados e qual o papel do Observatório nesse plano. O que é o Observatório Social de Belém? É uma associação sem fi ns lucrativos, apartidária e propositiva, que promove o controle social dos gastos públicos municipais e a Educação Fiscal. É um espaço destinado às pessoas que querem promover o controle social e a cooperação para melhorar seu município. O Observatório Social (OS) de Belém é fi liado ao Observatório Social do Brasil, uma rede observatórios presentes em mais de 100 municípios. Nenhum dos seus associados pode ser fi liado a partido político, a fi m de garantir uma atuação isenta focada na solução dos problemas identificados e não na substituição a gestores de qualquer matiz ideológica. Como o Observatório Social de Belém pode contribuir com o desenvolvimento sustentável de uma cidade? Não se pode conceber desenvolvimento sustentável sem a participação da sociedade em determinado território. A maneira mais comum – e obriga28 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
“Não há desenvolvimento sustentável sem a participação da sociedade” O PRESIDENTE DO OBSERVATÓRIO SOCIAL DE BELÉM, IVAN COSTA, MOSTRA O CAMINHO QUE DEVE SER TRILHADO EM PARCERIA ENTRE O PODER PÚBLICO E A POPULAÇÃO EM FAVOR DE UMA CIDADE MELHOR E MAIS SUSTENTÁVEL TEXTO ANA PAULA MESQUITA FOTO IGOR MOTA
ONONNONONONONO
A sustentabilidade deve, também, se agregar aos efeitos socioculturais, sendo sensível à cultura e à dinâmica das comunidades. O turismo comunitário no Marajó é um exemplo disso.
tória – de participação social é o financiamento do Poder Público, por meio do pagamento de tributos, cujas ações terão um grande impacto sobre o desenvolvimento sustentável ou não de um dado local. Essa participação social é insuficiente e muitas vezes con-
traproducente para o desenvolvimento sustentável. Diante disso, a participação cidadã precisa ser completa. Para além do financiamento das ações do Poder Público. A definição de ações que ele deve executar e o controle de seus resultados. Um cidadão isolado ou uma en-
tidade que desconhece o funcionamento do serviço público encontrará muita dificuldade em realizar isso. Assim, encontra no Observatório um grande “locus” para realizar seu desejado exercício de poder cidadão. O Observatório contribui muito com o desenvolvimento sustentável, a MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 29
ENTREVISTA
partir da instrumentalização do cidadão e das associações que atuam na mais diversa temática no controle social dos gastos públicos em um município. Quais projetos o Observatório Social tem executado na área de sustentabilidade? Nosso primeiro programa diretamente ligado à sustentabilidade foi a criação da Rede Nossa Belém, em 2011. Que seria a articulação de pessoas físicas e jurídicas que buscam comprometer sucessivos governos e a sociedade com o desenvolvimento justo e sustentável de Belém sem vínculos partidário ou religioso. Essa rede de desenvolvimento sustentável está integrada à Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis, intercambiando boas práticas e apoio solidário a iniciativas locais em todo o Brasil que conta com o apoio de grandes instituições como a Fundação Avina, que recentemente aportou recursos com outros parceiros para a incidência cidadã em Belém nas áreas de mobilidade urbana e resíduos sólidos. Uma das ações marcantes da Rede Nossa Belém foi conseguir a adesão de seis candidatos à Prefeitura de Belém, inclusive do atual prefeito ao Programa Cidades Sustentáveis contribuindo com a inclusão de uma agenda pela sustentabilidade nos instrumentos de planejamento de Belém, assim como, uma maior transparência, disponibilizando um portal na internet, onde serão apresentados, em torno de cem indicadores do município de Belém, alinhados aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Além dessas iniciativas, existem mais projetos sendo acompanhados pelo Observatório Social? Sim. Sob a coordenação da ONG Amigos de Belém, o Projeto CatAmor que visa à redução de danos econômicos, sociais e ambientais da má gestão dos resíduos sólidos, gerando renda preferencialmente para os catadores e catadoras. Na área de transparência, além do monitoramento 30 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
TODOS JUNTOS POR UMA CAUSA
Para Ivan Costa, a participação cidadã nas questões que envolvem a melhoria das cidades precisa ser completa
das licitações, executamos o Projeto Égua da Merenda, João!, em parceria com o Ministério Público do Estado do Pará, a Controladoria-Geral da União e o Laboratório de Inovação e Controle no Setor Público (LAIC) da FACICON/UFPA. Por meio de um aplicativo de controle social, desenvolvido pelo Centro de Mídia Cívica do Massachusetts Institute of Technology, estamos atualmente monitorando a merenda escolar de mais de 25 escolas em Belém, Santarém e Ponta de Pedras. O projeto também conta com o apoio do Centro do MIT, com o COLAB – Colaboratório de Desenvolvimento e Participação – USP e o Instituto Humanitas 360, sediado em Nova Iorque. Em março, lançaremos o projeto sobre segurança pública. A Rede de Cooperação dos moradores da Cidade Velha pela Segurança e Sustentabilidade (RCS2) será lançada no bairro da Cidade Velha, onde o Observatório apoia uma rede de segurança comunitária mobilizada pela Paróquia Nossa Senhora da Graça (Igreja da Sé). Quais os principais resultados do Observatório Social de Belém? Os principais resultados do Observatório Social de Belém estão ligados à instrumentalização da sociedade civil, seja pelo compartilhamento de informações, seja pela o aperfeiçoamento da gestão pública decorrentes da sua atuação. Exemplo disso é o Portal do Programa Cidades Sustentáveis, onde a Prefeitura disponibilizou um conjunto de indicadores de diversos temas, em apenas um local, facilitando o monitoramento dos resultados de seus gastos. No momento, carece de atualização, mas já estamos trabalhando isso. Na área de mobilidade urbana, em parceria com a Prefeitura, ajudamos a sistematizar, pelo método Zopp de planejamento que subsidiarão o Plano Municipal de Mobilidade Urbana. Na área de resíduos sólidos, contribuímos com o Ministério Público no acompanhamento da gestão municipal para que promovesse a primeira contratação de cooperativa de ca-
“O Observatório contribui muito com o desenvolvimento sustentável, a partir da instrumentalização do cidadão e das associações que atuam na mais diversa temática no controle social dos gastos públicos em um município” tadores do município de Belém, durante o conturbado fechamento oficial do Lixão do Aurá. Na área de transparência, induzimos o governo do Estado a editar o primeiro decreto no Brasil que regulamenta o controle social na gestão de medicamentos. Hoje, todas as entidades de defesa de Direito à Saúde pode ter acesso à senha do sistema de controle de medicamentos do Estado, e podem participar de inspeções cidadãs ao estoque periodicamente. A expectativa é que o decreto municipal similar ao do Estado e seja editado ainda no primeiro semestre de 2017. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 31
CAPA
Imaginário
realidade E
LENDAS, COMO A DA MATINTAPERERA, FAZEM PARTE DA CULTURA AMAZÔNICA, MAS REFLETEM GRANDES QUESTIONAMENTOS UNIVERSAIS, COMO A VIDA E A MORTE, O AMOR E O ÓDIO, JUNTANDO TUDO NO CALDEIRÃO DOS ANSEIOS DA HUMANIDADE TEXTO BRENDA PANTOJA FOTOS FERNANDO SETTE
32 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: MARIA CRISTINA CARVALHO
MATINTAPERERA
Acredita-se que seja uma lenda de origem amazônica e é representada por uma mulher velha e muito feia, de roupas pretas e cabelos caídos no rosto. É tida como feiticeira, uma bruxa cabocla. Existem versões em que a matinta tem o poder de se tornar invisível, bem como se transformar em porco, pássaro (geralmente uma coruja rasga-mortalha) ou morcego, saindo sempre à noite. Sua marca é um assobio assustador que espalha medo e traz maus agouros. Uma forma de não ser perturbado por ela é oferecer tabaco e algum tipo de alimento, que ela volta para buscar no dia seguinte. Também pode ser chamada de Mati-Taperê.
A
s florestas e os rios da Amazônia são um elemento de ligação com o fantástico, pois abrigam um mundo encantado onde habitam botos, iaras, cobras grandes e muitos outros seres que fazem parte do imaginário popular da região. As lendas contadas de geração em geração integram a cultura local, refletindo os mitos cultivados por povos indígenas e os trazidos por colonizadores, bem como os grandes temas universais: vida e morte, paixões e frustrações, sonhos, devaneios, ideais, realizações... “Toda a vida e a utopia de um homem dividido entre a selva e a água dessa vasta planície”, comenta a professora Maria do Socorro Simões, coordenadora do projeto “O imaginário nas formas narrativas orais populares da Amazônia paraense” (IFNOPAP), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Criado em 1993, o grupo de estudo envolve pesquisadores, entre professores e bolsistas, de diversas esferas do conhecimento e se dedica a mapear as lendas contadas no Pará. Até agora, já foram catalogadas mais de 5,3 mil narrativas e ouvidos em torno de 2 mil informantes, em um trabalho que envolve os campi da UFPA em todo o Estado. O material reunido subsidia pesquisas nas áreas de Letras, Literatura, Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre outras, além de uma vasta produção cultural. A partir do acervo do IFNOPAP, foram publicados 25 livros, 30 dissertações de mestrado e 76 monografias de especialização. “Estamos em fase de construção do Portal IFNOPAP, onde pretendemos disponibilizar o acervo transcrito e uma parte representativa, em áudio, resultante de um projeto aprovado, pelo CNPq, em que as narrativas foram transpostas para arquivo no formato MP3”, adianta Simões. A professora pontua que tais histórias são prenhes de informações do espaço amazônico, com notações que identificam o dia a dia da vivência no espaço interiorano e na capital. “Tanto a Amazônia de hoje, quanto a Amazônia do nosso passado histórico, faz-se representar nos depoimentos dos nossos contadores. Há, igualmente, muito de reminiscência da nossa coloniMARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 33
zação, assim como a presença dos nossos antecedentes indígenas. Nas narrativas contadas, aparecem ‘príncipes valentes’ e referências a hábitos dos nossos legítimos amazônicos, os indígenas”, explica. O professor Paulo Nunes, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), ressalta que “nosso ‘ethos’ amazônico, nosso ser e estar no mundo, tem muito de mítico”. Ele é um dos coordenadores do grupo de pesquisa “Narramazônia: narrativas contemporâneas na Amazônia paraense”, que integra profissionais da UFPA, Unama e Universidade do Estado do Pará, principalmente de Comunicação e Letras. “As lendas são formas narrativas de difundir os mitos que habitam os nossos guardados afetivos e efetivos; aquele algo que, sem autoria, foi celebrizado de geração a geração. A Amazônia é vasta. Deve-se inclusive falar em Amazônias e cada Amazônia tem sua forma de narrar seus mitos. Por exemplo, há em Belém lendas urbanas que não teriam o menor sentido no Marajó dos campos”, acrescenta Nunes. O “Narramazônia”, criado há quase dois anos, promove encontros quinzenais para discutir teóricos da narrativa e convidam ao debate artistas ou professores que tenha experiência madura com a narrativa. As reuniões são abertas a qualquer pessoa interessada no tema. Ele também reforça o caráter de “hibridação de saberes” presente na região. “O imaginário das diversas etnias indígenas foi atravessado pelo discurso dos europeus aqui chegados; este caudal foi enriquecido depois com a diáspora africana. Mas não só. Se formos a fundo teremos ainda o que trouxeram judeus marroquinos, sírio-libaneses, espanhóis, 34 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: ANTÔNIO LIMA
CAPA
FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: VALKÍRIA COSTA
VITÓRIA-RÉGIA
Embora o nome da planta tenha sido em homenagem à rainha do Reino Unido, no século XIX, a história que explica a origem da Vitória-Régia vem do povo indígena. De acordo com a lenda, em uma tribo da Amazônia havia uma bela índia chamada Naiá, que acreditava que a lua escolhia as moças mais bonitas e as transformava em estrelas. Ela passava todas as noites fora de sua oca a fim de ser notada, até que um dia viu nas águas límpidas de um lago o reflexo da lua. Imaginando que haviam chegado para buscá-la, se atirou nas águas profundas do lago e morreu afogada. A lua comoveu-se com a tragédia e resolveu transformá-la em uma delicada planta.
CURUPIRA
Também chamado de Caipora, Pai-do-Mato e Caiçara em várias partes do país, é uma lenda antiga que foi registrada pelos jesuítas desde os primeiros séculos após o descobrimento do Brasil. Caracterizado como um menino com cabelos vermelhos, corpo coberto de pelos e os pés voltados para trás, ele é o grande protetor da floresta e dos animais. Segundo a crença, ele ajuda aqueles que caçam por necessidade de se alimentar, mas castiga quem caça indiscriminadamente e destrói a mata sem necessidade alguma, fazendo com que se embrenhem na mata e fiquem desnorteados sem saber como sair. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 35
CAPA
36 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
MÃE D’ÁGUA
FOTO: FERNANDO SETTE/ MODELO: ANA CATARINA FURTADO
japoneses e outros que migraram para cá. No entanto, não podemos negar que grande parte das lendas mais conhecidas tenha apelo forte das águas e florestas determinadas, no decorrer dos tempos, pelos povos indígenas e caboclos”, frisa o professor. De acordo com Socorro Simões, uma distinção interessante foi constatada na pesquisa do IFNOPAP. “As mulheres têm uma participação interessante na prática de contar histórias, mas são muito bem apoiadas pela participação masculina. As histórias contadas pelos homens são, na maioria das vezes, de teor e sentido mais heroicos, no que diz respeito à vivência neste espaço amazônico, de dimensões continentais”, observa. Embora essas narrativas fantásticas façam parte da identidade do paraense, Nunes observa que o termo exige cautela para evitar preconceitos. “Devemos perceber que identidades precisam ser abertas, dinâmicas, e constantemente realimentadas. Ao falar em identidade paraense, refere-se a qual das regiões do Pará? A manifestação de mito amazônico ou paraense tende a ser diferente se compararmos a Região Metropolitana de Belém e com o Sul e Sudeste do Estado. Nestas últimas, regiões de intensa migração desde a década de 70, notamos formas de manifestação do mito que são singulares, bem próprias das marcas de capixabas, nordestinos, gaúchos, mineiros, etc”, complementa a professora. O próprio costume de juntar a família e repassar as lendas, que por séculos era a única forma de propagá-las, carregava um significado maior. “Tinha um teor educativo e prazeroso, ao mesmo tempo. Por meio das reuniões, em família, para contar histórias, foi possível repassar orientações acerca de como se comportar ante aos desafios da vida, considerando e tendo como exemplo
Conhecida em todo o Brasil, mas bastante difundida na Amazônia, é mais uma lenda envolta em sensualidade. É uma mulher de canto irresistível e beleza estonteante, ora descrita como tendo pele branca, cabelos loiros e olhos claros, mas também pode ser uma linda morena, de cabelos negros e olhos castanhos. Uma peculiar característica não muda nas histórias espalhadas pelo país: ela é peixe da metade do corpo para baixo. Exerce forte encantamento sobre os homens, que não conseguem dominar o desejo quando a veem banhar-se nua nos rios. Quando atiram-se ao seu encontro, ela os leva para o fundo e eles nunca mais retornam.
os heróis das histórias, assim como incutir ensinamentos sobre o espaço de vivência e os meios de sobreviver, tendo um domínio seguro deste mesmo espaço”, analisa. Simões afirma que preservar suas origens e tradições é dever de todo cidadão. Publicações, registros em áudio e vídeo e seminários são opções importantes, mas ela considera a inclusão da temática no currículo das escolas locais a ferramenta mais relevante. “Repassar para as nossas crianças, em fase de crescimento e formação, as nossas narrativas, que têm tanto do viver amazônico, em suas práticas ligadas ao espaço e configuração de uma vida permeada em uma região, de importância e reconhecimento que ultrapassam as nossas fronteiras; isto deveria ser um dever de educadores”, completa. Para Paulo Nunes, é fundamental que as tradições orais persistem e são ressignificadas na produção audiovisual, difundidas através das mídias eletrônicas. “Os mitos mexem com valores mais fundos de nossa humanidade e, ao mesmo tempo que são amazônicos, demarcam nosso espaço no mundo. Nos inserem na categoria dos seres humanos porque os mitos são feitos daquilo que Carl Jung chama de arquétipos, marcas fundas que atravessam as pessoas e seus imaginários, seja no Pará, seja na Califórnia ou na Sibéria”, defende. Integrantes do “Narramazônia” trabalham, atualmente, na construção de um blog, página onde será publicado o que o grupo tem investigado sobre os mitos amazônicos. Nunes também informa que haverá, no segundo semestre deste ano, um encontro acadêmico em que serão mostrados os estudos de quase 30 pesquisadores sobre narrativas.
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 37
CAPA
“Contavam os pescadores lá do Alto Amazonas... Tinha dois pescadores, pescavam juntos. Então, um dia, quando foi um dia, aconteceu que um dos pescadores feriu o Boto. Estavam pescando. Aí, passou uns dias... aconteceu que nesse dia, o outro não foi com ele pescar. Ele foi só. Aí, então, ele estava muito longe, e aí veio aquela canoa cheia de soldado. Aí, foi encostando na canoa. Aí, encostou na canoa junto dele e disse: - Você está preso! - Mas por quê? O que eu fiz? - Não sei o quê, mas você está preso, e vamos logo. Aí, ele embarcou na canoa e saiu, quando chegou no meio do rio, aí, ele disse: - Agora feche os olhos. Aí, ele fechou o olho, e quando mandaram ele abrir... quando ele abriu, diz que tinha um palácio. Aí, mas tudo era Boto. Só era Boto, e chegou lá no quarto, estava o Boto lá deitado. Estava doente com ferimento, e disse: - Você está vendo esse Boto, aí? É aquele que, aquele dia, que você andava pescando, você furou. Acertou ele. Ele está doente. Você vai tratar dele, se ele ficar bom, você volta, se ele não ficar, você vai ficar aqui. Tinha uma velha, se deu com ele, aí, ensinava remédio pra ele. Aí, tudo o que a velha ensinava ele fazia, né, e aí o Boto foi se recuperando. E deixa, que, lá, a falta do pescador... Aí, foram perseguir o outro, para dar conta do amigo, né, que pescavam junto. E, sem ele saber, foi preso esse rapaz. Quando ninguém mais lembrava, ele apareceu. Aí, contava a história. Amarelo, cabeludo, aí, contava: - Olha, eu estava tratando daquele Boto. Contava pra eles que nós estava pescando, aí acertamos ele. E eu só voltei porque ele ficou bom, se ele não tivesse ficado bom, eu tinha ficado lá” O relato acima foi extraído do livro “Santarém conta...”, publicado pelo IFNOPAP, e
38 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
FOTO: FERNANDO SETTE / MODELOS: CARLOS SCERNE, MARINA BENARRÓS E JÉSSICA MONTEIRO
UMA LENDA, VÁRIAS VERSÕES NA MESMA REGIÃO
mostra uma das muitas versões propagadas sobre a figura encantada do Boto. Analisando o acervo coletado pelo grupo, Socorro Simões calcula que 30% das narrativas apresentam, como tema recorrente, histórias com a presença de metamorfose e relacionadas a amor, paixão, culpa, malogro e recompensa. Desse volume, o Boto é o personagem com maior representatividade, o que não necessariamente torna os enredos repetitivos, pois ele aparece de todos os tipos e gostos. A história mais conhecida no Pará é a de que o cetáceo se apresenta na forma de um rapaz de belo porte e sedutor, que inebria as mulheres. Porém, também há os casos dos Botos que preferem rapazes e dos jovens ribeirinhos que são assediados por fêmeas (botas), tão sensuais quanto os Botos machos. “Quanto ao Boto, necessitaríamos de uma enciclopédia para conseguir cingir o quanto este cetáceo tem de circulação nas nossas narrativas: desde a metamorfose em galãs, de competência de conquista indescritível, de pais de crianças por ele reconhecidas e, até, na condição de assumir a culpa e ser
BOTO
A versão mais conhecida é a do Boto que se transforma em um jovem sedutor, todo vestido de branco e usando um característico chapéu. Nas noites de festa pelo interior, encanta as mulheres ribeirinhas, sejam solteiras ou casadas, para depois desaparecer nas águas. Pesquisadores da lenda destacam o fato curioso de que o Boto não foi mencionado pelos cronistas-viajantes que passaram pela Amazônia nos séculos XVI e XVII. Somente no século XIX há o registro da superstição em torno do animal, na obra The Naturalist on The River Amazons, de Henry Walter Beates. O fato leva a crer que o mito teria sido trazido pelos colonos portugueses.
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 39
IARA
CAPA
É o outro nome dado para a lenda da Mãe D’Água. Também se apresenta na forma de sereia e atrai os homens para dentro da água. Dizem que aqueles que escapam da morte, voltam loucos do fundo do rio. A história mais conhecida sobre a sua origem conta que ela era uma bela índia, além de excelente e corajosa guerreira. Era filha do pajé da tribo e seus irmãos a invejavam tanto que decidiram matá-la. O plano não deu certo e, como defesa, Iara acaba matando seus irmãos. Com medo da punição do pai, ela fugiu, mas o pajé a capturou e resolveu lançá-la ao rio como castigo. Os peixes do rio salvaram a jovem, transformando-a em uma sereia. No Pará, é comum ver ribeirinhos e moradores do interior pedindo permissão para Iara antes de entrar nos rios e igarapés para se banhar e pescar. FOTO: FERNANDO SETTE / MODELO: MARIA MONTEIRO PEREIRA
apontado, como dissimulação de um adultério mal resolvido”, reitera Simões. Paulo Nunes salienta que narrativas como as do Boto podem ter sido criadas nas culturas como forma de transgressão. “Me parece o caso, em sociedades popularmente chamadas de machistas. Para pular a cerca, o interdito, o proibido vira mágico na conjunção entre uma mulher e um ser não-humano. Esta transgressão é aceita melhor do que uma traição convencional entre marido e mulher”, diz. O fenômeno metamórfico também está presentes nas lendas da Cobra Grande e da Matintaperera. Simões descreve que as narrativas sobre a Cobra Grande, ou Cobra Norato, são variadas, mas há um esquema comum a praticamente todas: a mulher dá à luz duas cobrinhas, que são criadas em casa durante três meses e depois são jogadas no rio. A fêmea, em geral, é má – ataca embarcações, devora pescadores - e o macho tem atitudes que se opõem às da irmã. Em geral, estes buscam formas e fórmulas para o desencantamento, mas não o conseguem por falta de coragem daqueles que se propõem a ajudá-los. Nem sempre o contador menciona ou justifica o fato de a mãe 40 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
dar à luz duas cobrinhas. Em algumas versões do mito, a Igreja tenta intermediar a relação dos habitantes da cidade com a cobra ou há até mesmo sugestões de incesto na relação dos irmãos. Paraenses costumam contar que há, sob a cidade de Belém – e de outras cidades menores –, uma enorme cobra, cuja cauda está sob a Igreja da Sé e a cabeça sob a Basílica de Nazaré. Diz-se ainda que o monstro, na verdade, se distende por todo o percurso do Círio de Nazaré, a famosa procissão do segundo domingo de outubro. Ainda no assunto da metamorfose, um exemplo importante citado pela professora é a Matintaperera. “Esta pode ser considerada a terceira presença mais impressiva dentre os fenômenos metamórficos das narrativas paraenses. Há uma enorme variedade de matintas e situações de metamorfose, mas ainda é mais comum a que se transforma em ave, com assovio estridente a cortar o silêncio das noites amazônicas”, detalha Socorro Simões. Dentre as histórias selecionadas para o livro “Abaetetuba conta…”, ela destaca uma que revela uma Matintaperera particular: tal matinta não apenas retorna no dia seguinte, após o as-
sovio, para pegar o tabaco, mas aparece absolutamente distinta das suas naturais aparições. Dessa feita, apresenta-se transmudada em mulher de aparência agradável (em geral, não o são) e ainda traz um ramalhete de flores para presentear a doadora do fumo. Ainda segundo Simões, têm sido instigantes as referências, veladas ou não, ao interdito, à falta e à punição que cercam a figura da Matinta. “É de domínio das comunidades ribeirinhas que a metamorfose a que estão sujeitas algumas mulheres se deve à grave falta cometida por algum antepassado. O incesto estaria na origem desse destino e as descendentes da família ficariam marcadas por este fado”, conta. Socorro Simões considera que os relatos colhidos em entrevistas com habitantes da Amazônia são “a verdadeira expressão da multiplicidade do viver amazônida”, além de possibilitarem uma série de análises sobre memória cultural, interações sociais e a própria arte de narrar. Enquanto existirem bons contadores de histórias e ouvintes atentos, irão perdurar as narrativas orais dos encantos que permeiam a floresta amazônica.
PESQUISA
PIONEIRISMO FEMININO
A designer Marcele Pamplona levou para os quadrinhos as histórias sobre a rasga-mortalha, que ouvia quando criança
Rasga-mortalha em HQ Designer usa as lembranças de infância para criar história em quadrinhos sobre uma das principais lendas amazônicas TEXTO RENATA PAES FOTO NAILANA THIELY
U
ma família decide sair de férias para o interior do Estado. Ela quer descanso da rotina da cidade em troca do som do vento nas árvores, do cheiro das flores e de embalos numa rede por horas a fio. Mãe, pai e os quatro filhos curtem a companhia um do outro. Para causarem medo e se divertirem à custa do irmão mais novo, João, as duas irmãs aproveitam o cair da noite para contar a lenda da Matintaperera. O irmão mais velho interrompe o momento. Totalmente descrente da existência de uma velha com os cabelos caídos no rosto, poderes sobrenaturais capazes de causar prejuízos à saúde das vítimas, e que bate na porta das pessoas pedindo tabaco, ele
se aproxima da floresta e começa a xingar e desafiar a Matinta. Tudo para provar aos irmãos que ela não existe. Em cima da árvore, a rasga-mortalha, uma coruja branca, observa toda a cena entre os quatro irmãos, que entram na casa e se acomodam para dormir. Deitado, o pequeno João não consegue pregar os olhos, reflexo do medo da história da Matintaperera. Na madrugada, o menino sente calafrios ao ouvir barulhos estranhos do lado de fora da casa. O som constante se assemelha a um pano sendo rasgado. O barulho vem do bater das asas da rasga-mortalha. A ave voa próxima a casa. Segundo a crendice popular na Amazônia, quando a rasga-mortalha produz esse MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 41
PESQUISA
som, é sinal de que algum morador por ali está para morrer. A partir daí começa o drama, suspense e terror na vida da família que desejava apenas curtir as férias. O desenrolar dessa história está nas páginas do volume 1 da história em quadrinhos “Rasga Mortalha: Matintaperera”. A HQ foi desenhada pela egressa do curso de Design da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Marcele Pamplona, de 26 anos. Dominado por um mercado tipicamente masculino e repleto de histórias em quadrinhos de super-heróis americanizados, como Homem-Aranha, Wolverine e Hulk, a designer, orientada pela professora de Design Brena Renata Marciel Nazaré, decidiu quebrar os paradigmas e apostou num trabalho inovador na região, com enredo inspirado nas lendas populares brasileiras, enraizadas na Amazônia. “Conheço muito mais ilustradores. Mas não conheço mulheres. Não sei se elas se sentem acuadas por ser um mercado mais masculino. Eu participei do Programa Ciências sem Fronteiras, morei em Vancouver, no Canadá. Fiz um curso de quadrinhos e a maioria da turma era mulher”, conta Marcele. A proposta da HQ é suprir a necessidade de mercado de histórias em quadrinhos nacionais, que abordem as culturas regionais. A criadora se inspirou no costume amazônico entre crianças, jovens, adultos e idosos em se reunirem para contar lendas. Marcele Pamplona recorda das visitas nas férias escolares à casa da avó, que mora em uma cidade no Marajó. Lá ainda permanece forte a crendice em lendas amazônicas. A designer conta que até hoje a família e os vizinhos acreditam na Matintaperera. Inclusive, um dos personagens da história é a própria avó de Marcele. A artista não se preocupou em dar nome a todos os personagens, pois quer que os leitores se coloquem na situação. “Fiz uma pesquisa na internet para saber se as pessoas tinham interesse em histórias em quadrinhos com lendas. Teve gente que disse que ninguém tinha medo do Saci, ou dos seres daqui, porque todo mundo tem medo de zumbi, e eu pensei: ‘Como não ter medo da Matintaperera?’. De todas as len42 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
das, ela é a que mais me assusta. Estamos acostumados com a cultura de fora que esquecemos a daqui. Perguntei no Facebook se tinham interesse em conhecer as lendas brasileiras. Me surpreendeu o fato de as pessoas quererem conhecê-las”, conta Marcele. Ela desenhou os personagens e o cenário com lápis e canetas, usou ferramentas de edição de imagem para auxiliar nos acabamentos e dar forma a cenários mais complexos. O Casarão, localizado na travessa Pimentel Bueno, bairro do Cruzeiro, em Icoaraci, também entrou para a história, sendo a casa da personagem Terezinha, a avó da família. Os quadrinhos são todos em preto e branco para passar ao leitor a ideia de terror. Marcele mostrou o resultado do trabalho aos amigos, que aprovaram a ideia e pediram que novos volumes sejam produzidos. De acordo com a professora Brena Marciel, há a necessidade de reviver os personagens das lendas brasileiras. “A história em quadrinho é um meio de comunicação contemporânea. Consegue chamar atenção de pessoas mais jovens quanto dos mais maduros. São varias faixas etárias que gostam. Fizemos apanhados históricos sobre as lendas. Há poucos registros escritos sobre elas. Tivemos muita dificuldade para conseguir material. Os quadrinhos seriam uma opção de deixarmos registradas essas lendas”, ressalta a professora. Sobre o crescimento do mercado de HQs baseados em lendas brasileiras, a professora orienta: “os próprios profissionais precisam visualizar isso como oportunidade. Hoje em dia há vários meios de colaboração corporativa para ganhar dinheiro com essa ideia. Falta que os profissionais se identifiquem, tenham interesse e consigam produzir algo que chame atenção”, ressalta ela. Todo o projeto de Marcele Pamplona baseou-se no próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Rasga Mortalha: projeto gráfico de uma história em quadrinhos de terror inspirado nas lendas populares brasileiras”. O trabalho ganhou o primeiro lugar no Prêmio Melhor TCC 2015 da Uepa. A premiação faz honras aos melhores trabalhos produzidos na Universidade.
EDUCAÇÃO
MUITO MAIS QUE NÚMEROS
A pedagoga Aryana Menezes, que desenvolveu uma ampla pesquisa sobre a lida das professoras do curso de Matemática da Universidade do Estado do Pará e descobriu grandes histórias de vida
Mulheres de conhecimento
M
ais da metade da população brasileira é do gênero feminino. Apesar disso, a representatividade das mulheres docentes no Ensino Superior é pequena. Ainda não há números oficiais quanto à atuação de mulheres nas universidades paraenses, porém, analisando os corpos docentes, é possível perceber que, principalmente entre os cursos de Exatas, ainda com enorme dominância masculina, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Dentro desse crescente grupo, vemos mulheres com uma participação
Antes considerada áreas masculinas, as ciências exatas contam com o trabalho de docentes nas universidades TEXTO FERNANDA MARTINS FOTO NAILANA THIELY
ainda menor: as mulheres negras. Utilizando a educação como uma poderosa arma, essas mulheres lutam diariamente contra preconceitos enraizados na alma da sociedade. Estamos progredindo? Com a palavra, as professoras universitárias. Ciência e tecnologia avançaram como jamais visto, mas a mentalidade ficou estagnada na Idade Média. Para se ter ideia, até a metade do século XX, as mulheres ainda eram vistas como impróprias para a carreira científica. Professoras, sim, mas apenas da educação infantil. Às vésperas do século
XXI, era comum se falar em “profissão de homem” e “profissão de mulher”. “A noção de que a mulher tem mais afinidade com atividades essencialmente intuitivas, consideradas mais simples, enquanto os homens seriam biologicamente preparados para tarefas mais difíceis e da grande complexidade persiste claramente até hoje. Por isso, observamos essa segregação nos cursos de Exatas”, pontua a pedagoga Aryana Menezes, que desenvolveu uma pesquisa sobre a lida das professoras do curso de Matemática da Universidade do Estado do Pará (Uepa). MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 43
EDUCAÇÃO
OLHAR PARA OS IGUAIS
A mestranda Thaís Mendonça conduziu uma pesquisa intitulada “Saíram da cozinha, mas não pra cair no samba: A história de como mulheres negras perceberam que seu lugar é na sala de aula”: uma aula de vida e fraternidade
Aryana percebeu a necessidade de mais estudos sobre o tema quando, no papel de professora em um projeto de ensino de matemática com crianças, ouviu de um menino de 12 anos que “não aceitava ordens de mulheres”. “A partir desse momento, passei a me questionar sobre o que as mulheres sofriam por ingressar em um campo considerado masculino. Se eu, que estudo pedagogia, um curso intitulado como feminino, passei por esse momento de preconceito e discriminação, imagine as que optam por exercer a Matemática”, relembra. Aliás, em julho de 2016, o curso elegeu sua primeira coordenadora desde sua fundação, há quase 30 anos. A professora doutora Acylena Costa já assumiu botando ordem na casa. “Fizemos uma faxina, reorganizamos a sala e as pessoas me diziam que tinha que ser uma mulher mesmo para reordenar aquele espaço”, comenta entre risos. Influenciada pelo pai, professor de Física e Matemática, Acylena também en44 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
frentou o preconceito. “Acho que quando cheguei à pós-graduação, a coisa piorou. Não há acusações diretas, mas com o tempo você aprende a diferenciar o que é uma pergunta de alguém que precise de uma resposta e o que é uma pergunta de alguém que quer testar seus conhecimentos. Eles são bem incisivos. Acontece muito”, diz. Após a conclusão do seu doutorado em Educação Matemática, Acylena encontrou resistência de muitas faculdades à sua contratação. “E não foi velado. Disseram na minha acara que eu não era o que eles estavam buscando. Talvez o fato de eu ser bem jovem também atrapalhasse”, relembra. Hoje, ela vê um panorama mais aberto do que quando entrou em Exatas. Ainda assim, ela conversa com suas alunas sobre a postura em sala de aula. “Eu as oriento sobre como lidar com determinadas situações. E as encorajo também. A Matemática é uma área muito estimulante”, diz.
MINORIAS DENTRO DA SALA DE AULA
E se a mulher branca ainda luta pelo seu espaço na academia, para as mulheres negras, os desafios são multiplicados. A presença negra feminina na docência ainda é bem pequena nas universidades brasileiras. A situação chamou a atenção da mestranda da Uepa, Thaís Mendonça, que conduziu uma pesquisa intitulada “Saíram da cozinha, mas não pra cair no samba: A história de como mulheres negras perceberam que seu lugar é na sala de aula.”, onde entrevistou diversas professoras negras para traçar um cenário dos desafios enfrentados por elas. A influência para a pesquisa veio de dentro de casa. “Minha mãe e minha avó são negras e são professoras. Eu cresci dentro dessa realidade, mas percebi que muita gente não via as mulheres negras nessa posição de poder, que é a de
professora universitária ou de pós-graduação”, diz. A vontade de Thaís em trabalhar na conscientização ajudou a compreender as raízes da discriminação de gênero. ”Os estudiosos acreditavam na ideia de que a mulher era um ser inferior, submisso, ao mesmo tempo em que tinha um forte apelo sexual, possuindo uma postura libidinosa capaz de corromper os homens. Esse pensamento gerou um condicionamento cultural presente até os dias de hoje. Sujeitos são formados com essa noção de discriminação e diferenciação altamente fixada em seu pensamento e este, por sua vez, é facilmente tido como natural”, avalia. Para a mulher negra, o estigma ainda se estende à sua cor. A professora doutora Creusa Santos lembra quando ingressou na universidade. “Quando entrei, o processo seletivo era extremamente difícil, quem não podia se dedicar com exclusividade aos estudos tinha muito trabalho para entrar. Isso contribuía para a exclusão das mulheres, em especial as negras e as pobres”, conta a pedagoga. O preconceito dos colegas de turma se traduzia num sentimento de pena. “Sempre fui olhada de forma diferente. Uma mulher negra da periferia chamava atenção na universidade no início dos anos 90”, complementa. Para ela, a graduação foi libertadora. “Passei a me compreender como diferente em um contexto acadêmico branco e masculino. Todos os meus professores eram homens. Mas, ao mesmo tempo, aprendi a me potencializar e incorporar meus direitos”, conta. Hoje, a professora dá aulas para a graduação na Uepa e ainda tem cadeira na Coordenação Estadual de Educação para a Promoção da Igualdade Racial (Copir), da Secretaria de Estado de Educação (Seduc). “Penso que sou uma influência positiva para as alunas negras da rede pública estadual”, opina.
ESFORÇO E SUPERAÇÃO
A professora doutora Creusa Santos sentiu o preconceito racial quando ingressou na Uepa: “Sempre fui olhada de forma diferente”, diz. Já a coordenadora do curso de Matemática da Universidade, doutora Acylena, também enfrentou a indiferença por ser mulher.
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 45
EDUCAÇÃO
PERSISTIR PARA MUDAR
O que o discurso de todas as entrevistadas tem em comum é a persistência. “A melhor forma de quebrar os preconceitos. O caminho não é fácil e pode ser bem desestimulante, mas se a mulher acreditar que ela é sim capaz de promover a mudança, mesmo que lenta e gradual, ela vai achar forças para seguir. Foi o que absorvi de todas as entrevistas”, relata a pedagoga Aryana Menezes. As entrevistas com docentes formadas em períodos diferentes revela a evolução. A entrevistada mais velha, formada nos anos 70, não teve nenhuma professora mulher, enquanto que as graduadas nos anos 90 tiveram duas professoras durante toda a formação. Atualmente, o curso de Matemática da Uepa tem 12 docentes homens e cinco docentes mulheres. Pesquisar e saber sobre a área escolhida é o principal conselho de Acylena Costa. “Saber sobre o curso, sobre o mercado de trabalho e os desafios impostos vai ajudar a deixar essa mulher consciente do que vem pela frente. É muito gratificante fazer o que realmente gosta, então, é preciso ter certeza e seguir forme”, orienta. Tanto para Creusa Santos quanto para Thaís Mendonça, as mudanças já são visíveis. “Desde o final do século XX, as mulheres negras iniciaram um movimento de tomada de consciência. Hoje, a mulher negra que entra na faculdade não é igual àquela da minha época. Ela já chega muito mais empoderada”, avalia a professora Creusa. A resiliência é uma qualidade que a mulher que busca a carreira na academia deve ter, na opinião de Thaís. “A educação é ferramenta de mudança, mas a resistência virá. Os obstáculos também. Seguir esse caminho requer muita perseverança e equilíbrio. Não é fácil, mas é muito gratificante”, diz a mestranda.
46 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
PERSEVERANÇA E EQUILÍBRIO
“A educação é ferramenta de mudança, mas a resistência virá. Os obstáculos também.”, ensina a mestranda Thaís Mendonça.
ARTE, CULTURA E REFLEXÃO WALDA MARQUES/ DIVULGAÇÃO
PENSELIMPO
O poder feminino A CANTORA ANDRÉA PINHEIRO COMPLETA 30 ANOS DE CARREIRA
PÁGINA 46
GENIALIDADE
MEIO AMBIENTE
Conheça a vida e aobra de Guilherme Maurício Souza Marcos de La Penha, um paraense que mudou a história da pesquisa no país. PÁG.52
O biólogo Inocêncio Gorayeb analisa os efeitos do desmatamento sobre a população da Amazônia. PÁG.58
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 47
PAPO DE ARTISTA
Mulher contemporânea
EM 30 ANOS DE CARREIRA, A CANTORA ANDRÉA PINHEIRO GOSTA DE ASSUMIR RISCOS PARA ALCANÇAR O QUE SE QUER, TENDO UMA COMPANHEIRA INSEPARÁVEL: A MÚSICA
TEXTO CAMILA SANTOS FOTOS WALDA MARQUES
48 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
FOTOS: DIVULGAÇÃO
E
FOTOS: DIVULGAÇÃO
“Hoje em dia, as mulheres têm uma participação fortíssima na música que acontece em Belém. Grandes compositoras e instrumentistas, inúmeras cantoras dos mais variados gêneros. É maravilhoso esse crescimento da participação feminina.”
la tem a música na alma e no sangue. Filha de músico, amante de vários gêneros, ela transita por diversos caminhos com a mesma naturalidade. MPB, choro, samba ou erudito, não importa. “Se emocionou, tá valendo”, é o que diz Andréa Pinheiro, que neste ano completa 30 anos de carreira. Para a cantora, a música a acompanha desde o nascimento e que mesmo sem se considerar uma instrumentista, experimenta de várias formas e expõe a sua arte de maneiras múltiplas. Ela é o verdadeiro retrato da mulher contemporânea - aquela que faz de tudo, que se arrisca, que busca o que quer. É o retrato da artista feminina que conquista seu espaço, e que segue na luta para alcançar ainda mais. Nesta entrevista, Andréa Pinheiro prova naturalmente essa força característica de seu trabalho. Além disso, entre outras coisas, a artista conta sobre sua
relação com a música, e também cita algumas das influências que a acompanham nessas três décadas de carreira. A música faz parte da sua vida de diversas formas. Como e quando você descobriu essa paixão? Influência de seu pai, Everaldo Pinheiro? Sou cantora. Não me considero instrumentista. Estudei violão por um determinado período e isso me ajudou muito a perceber algumas coisas que talvez fossem mais distantes se eu não tivesse estudado música. Costumo dizer que eu não descobri a música, eu nasci em meio a ela. Minha família é toda envolvida com música. Da minha infância, lembro das rodas de samba e das serestas que eram frequentes na casa dos meus avós. Cresci nesse universo. A influência do meu pai, na minha formação musical, veio muito tempo depois. Antes veio a genética, talvez. MARÇO DE 2017
ENCONTRO DE TITÃS
Andréa Pinheiro com os compositores Biratan Porto, Roberto Pinto, Max Reis e Nego Nelson: parceria culminou no CD “Vênus da Madrugada”, lançado no semestre passado.
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 49
“Sempre ouvi muita coisa. Quando criança, minhas influências vieram das músicas que ouvia meus avós e tios cantarem e ouvirem. Então por esse motivo meu repertório é recheado de coisas antigas.”
Este ano você completa 30 anos de carreira. Deve ter muitas histórias para contar. Quais os momentos mais marcantes até aqui? Claro que muitos momentos marcantes existiram e continuam se fazendo acontecer, porque arte é surpresa, é encontro, é momento. Posso citar muitos shows que fiz e outros coletivos que participei, mas esses momentos não seriam tão significativos se não fosse pelas pessoas que somaram comigo, pelos amigos que fiz e que, ao longo dessa estrada só fortaleceram meu trabalho e nossa amizade. Então, em vez de momentos, prefiro citar alguns dos músicos que sempre me acompanharam, que viveram e vivem comigo esses momentos de música e amizade, como Paulo Moura, Cardoso, Tiago Amaral, Paulo José Campos de Melo, Luiz Pardal, Jacinto Kahwage, Floriano, Príamo Brandão, Edvaldo Cavalcante, Nego Nelson, Everaldo Pinheiro, Márcio Jardim, Paulinho Assunção, Afonso Machado, João Marcos Mascarenhas... esses foram - e continuam sendo - os mais frequentes. Claro que existem também os parceiros compositores, mas aí a lista é longa. São quatro álbuns lançados até hoje, certo? Você também compõe? Como funciona o seu processo criativo? Não sou compositora, meu processo na criação é a interpretação. Posso dizer que sou parceira quando transmito o recado dos compositores. Tenho apenas uma composição feita em parceria com o Ropi, depois de muita insistência. Fiz uma letra para uma música dele que será gravada no CD que faremos neste ano, eu e o Trio Lobita. Dentre os álbuns já gravados, foram quatro: “Fiz da vida uma canção”, em que interpreto músicas do maestro Waldemar Henrique; “Diz que fui por aí”, onde canto clássicos da música popular brasileira que passam por Nelson Cavaquinho, João Bosco, Caetano
50 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Veloso, Cartola, Zé Kéti, entre outros, acompanhada pelo grupo carioca de choro Galo Preto; “Não apenas de passagem”, que tem um repertório composto por autores paraenses, entre eles Marcelo Sirotheau, Jorge Andrade, Paulinho Moura, Cardoso, Leandro Dias; e nomes da MPB, entre eles Guinga, Carlinhos Vergueiro, Paulo César Pinheiro, Afonso Machado, Paulo César Feital, Délcio Carvalho, Elton Medeiros; “Vênus da madrugada”, lançado ano passado com músicas de Nego Nelson, Biratan Pôrto e Roberto Pinto e letras de Max Reis. Você possui diversas influências, que vão do erudito ao samba. Quais os artistas e ritmos que mais influenciaram e influenciam na sua carreira? Nossa, são muitos! Sempre ouvi muita coisa. Quando criança, minhas influências vieram das músicas que ouvia meus avós e tios cantarem e ouvirem. Então por esse motivo meu repertório é recheado de coisas antigas. Mais tarde, conheci muitos compositores e intérpretes dos quais virei fã - Francis Hime, Fátima Guedes, Elizeth Cardoso, Elis Regina e por aí vai. Gêneros são muitos também, por isso tenho alguns trabalhos distintos e com cada um dos acompanhantes desenvolvo um repertório diferente. Tem um mundo de coisas pra cantar, então não dá pra pontuar. Pra mim, emocionou, tá valendo. Seu projeto mais recente, “Trio Lobita e o Quarto Elemento”, consegue contemplar o samba e o choro. Como nasceu esse projeto e como tem sido essa experiência? E qual a formação do grupo? O Trio Lobita (inicialmente com Marcelo Ramos no bandolim) conta com a formação atual de Cardosinho (violão), Paulinho Moura (violão de 7 cordas) e Tiago Amaral (clarinete). Eu entrei depois que o trio já estava formado, somando nessa formação com pandeiro e voz, daí veio o “Quarto Elemento”. Como já disse, sou cantora, não me considero pandeirista, mas sigo tentando.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
PAPO DE ARTISTA
O QUARTO ELEMENTO
Andréa Pinheiro com o Trio Lobita, formado por Paulinho Moura, Cardoso e Tiago Amaral: novo CD sai ainda neste ano
Você também está envolvida no projeto “Desencantares”, em que pesquisa a obra do compositor paraense Walter Freitas. Como surgiu a iniciativa desse trabalho? O CD com o resultado tem previsão de lançamento? Esse trabalho iniciou com o convite do Luiz Pardal para que eu interpretasse junto à Cameratamazônica duas canções do Walter. Ficou um resultado tão lindo que resolvemos estender para um registro em CD. Ano passado gravamos todas as músicas no Studio Midas (10 faixas) através de uma bolsa de pesquisa da Casa das Artes. Falta agora recurso para a finalização e prensagem. O cenário atual da produção musical paraense está mais fortalecido. Você concorda? Como você avalia esse cenário? E falando ainda mais especificamente, como você vê a participação feminina nesse processo? Realmente o cenário musical cresceu e se diversificou muito. Quando comecei a cantar profissionalmente, havia poucas cantoras atuando na noite em Belém. Instrumentistas mulheres então, nem se fala! Era raro de se ver. Hoje em dia, as mulheres têm uma participação fortíssima na música que acontece em Belém. Grandes compositoras e instrumentistas, inúmeras cantoras dos mais variados gêneros. É maravilhoso esse crescimento da participação feminina. Belém sempre foi uma cidade musical, e se tiver o devido apoio, só vai crescer. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 51
MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS
Entre a matemática e a Amazônia TEXTO ANA PAULA MESQUITA ILUSTRAÇÕES JOCELYN ALENCAR
52 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
Guilherme de La Penha 1942-1996
G
uilherme Maurício Souza Marcos de La Penha foi um cientista importante para a pesquisa em Matemática e Engenharia. Apresentou uma vasta quantidade de publicações durante a carreira acadêmica. Produziu mais de 75 artigos de pesquisa, publicados em periódicos nacionais e internacionais. Assumiu cargos importantes como vice-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na Amazônia, realizou pesquisas e simpósios que deram origem a outras teses. Sua carreira foi consolidada no sentido de gerar e gerenciar a ciência. Nasceu em Belém, dia 9 de março de 1942. Obteve o diploma de agrimensor, pela Escola de Agrimensura do Pará (EAP). Fez vestibular na Escola de Engenharia do Pará (EEP), no começo de 1960. No mesmo ano, Guilherme transferiu-se para o Rio de Janeiro para cursar Engenharia Mecânica, na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e estudou Matemática no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) como bolsista de Iniciação Científica do então Conselho Nacional de Pesquisas. A formação em Matemática rendeu a La Penha o estudo sobre Mecânica dos Meios Contínuos. O tema promoveu diversas teses defendidas em universidades nacionais e internacionais, onde atuou como professor. No período que esteve na Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), La Penha foi agente gerenciador de pesquisa cientifica na Amazônia e em nível nacional. Assim, organizou, a convite do departamento de física da Universidade Federal do Pará (UFPA), o curso de especialização em física. Doou parte de seu acervo de livros ao então mestrado de matemática da UFPA. Como vice-presidente do CNPq (1981-82), o pesquisador se preocupou com o processo acelerado de ocupação da Amazônia e percebendo as necessidades de ações do governo sobre a ciência e a tecnologia no desenvolvimento da Amazônia, escreveu um artigo sobre o papel da ciência e da tecnologia na região para solucionar as contradições cujo título era “O papel da pesquisa para uma ocupação racional da Amazônia”. Quando esteve na direção do Museu Para-
ense Emilio Goeldi (MPEG), projetos importantes foram concretizados. Um deles foi a Estação de Pesquisas Ferreira Penna, na Floresta de Caxiuanã, em Melgaço, Marajó, cujas obras foram iniciadas em 1990 e concluídas em 1992. Também investiu na expansão da infraestrutura física e das áreas de atuação do MPEG, além de iniciar a pós-graduação por meio de convênios, garantindo pela primeira vez a formação de recursos humanos de alto nível na própria região amazônica. “Transformou o museu numa instituição capaz de realizar pesquisas, promover a inovação científica, formar recursos humanos, preservar acervos e comunicar conhecimentos nas áreas de ciências naturais e humanas relacionadas à Amazônia”, diz Miguel Chaquiam, pesquisador e professor na Universidade do Estado do Pará, em sua tese de doutorado que aborda o trajeto intelectual de La Penha, cujo título é: “Guilherme de La Penha: uma história do seu itinerário intelectual em três dimensões”. La Penha criou novos departamentos e trouxe consultores renomados para prestarem assessoria ao MPEG, como o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, que permaneceu no Goeldi e formulou a teoria sobre a chegada do homem às Américas. La Penha organizou o primeiro Seminário Internacional sobre Meio Ambiente, Pobreza e Desenvolvimento da Amazônia (SIMDAMAZÔNIA) em 1992 com apoio da ONU/ UNICEF e do governo do Estado do Pará. No evento, foram debatidos dez temas, sendo um deles sobre “O papel das instituições governamentais e não governamentais de ciência, tecnologia e desenvolvimento na questão ambiental”. Chaquiam compara a intenção que La Penha tinha pelo MPEG à mesma que Emilio Goeldi expressou em palavras em 1894: “Desejo ver o Museu Paraense grande e digno do seu nome, respeitado nos círculos científicos e com o papel que lhe compete no certame internacional dos bens intelectuais da humanidade”. La Penha despediu-se da pesquisa, ciência e de todo o compromisso que ele tinha com a sociedade e com a Amazônia em 6 de fevereiro de 1996. MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 53
AGENDA ASCOM FCP
REDAÇÃO Estão abertas, até o dia 17 de março, as inscrições para o 46° Concurso Internacional de Redação de Cartas. O tema desta edição é: “Imagine que você é um(a) assessor(a) do novo secretário-geral da ONU – Qual é o problema mundial que você o ajudaria a resolver em primeiro lugar e de que forma você o aconselharia para isso?”. O estudante interessado em participar deve procurar sua escola para uma seleção prévia. Mais informações no site correios.com.br.
SAÚDE A Universidade da Amazônia realizará o II Congresso Multidisciplinar de Saúde com debates e palestras voltados para as área de psicologia, nutrição, enfermagem e fisioterapia. Será de 30 de março a 1º de abril, no Hangar, localizado na avenida Dr. Freitas. Mais informações: unama.com.br
EXPOSIÇÕES
DOAÇÕES
Projeto Livro Solidário
Ernesto Bonato apresenta a instalação gráfica multimídia “Maré.02” e Ulisses Boscolo a exposição “A sombra das manguei-
O projeto Livro Solidário está arrecadando li-
15 mil obras para salas de leitura em Belém
ras”, até a 21 de abril, na Casa das Onze
vros novos e usados, em boas condições, para
e mais sete municípios paraenses: Ananin-
Janelas, que fica na rua Siqueira Mendes,
compor o acervo de diferentes pontos de Be-
deua, Abaetetuba, Augusto Corrêa, Benevi-
Cidade Velha. A visitação pode ser feita de
lém e cidades próximas que são contempla-
des, Maracanã, Melgaço e Santarém.
terça a sexta de 10 às 16h e aos sábados,
dos com a iniciativa. As doações podem ser
Podem ser doados ao projeto livros infanto-
domingos e feriados de 9h às 13h.
feitas diretamente na sede da Imprensa Ofi-
juvenis, religiosos, didáticos e obras de lite-
cial do Estado, localizada na travessa do Cha-
ratura em geral. Parte dos novos livros arre-
PROFISSÕES
co, 2271, no bairro do Marco.
cadados vão compor os espaços de leitura
O Sesc Doca oferece de abril até junho,
Nos últimos cinco anos, o projeto de incen-
que serão instalados neste semestre pelo
os cursos de barbearia, técnica em esco-
tivo à leitura Livro Solidário, coordenado
projeto. No total, serão três novos espaços:
va, corte de cabelo, estética facial, mas-
pela Imprensa Oficial do Estado e ligado ao
Pro Paz Mangueirão; Pro Paz Ufra, na Ter-
sagem relaxante, maquiagem, receitas
Núcleo Articulação e Cidadania (NAC), do go-
ra Firme e Taboquinha, em Icoaraci. Esses
diversas, confeitaria, salgados gourmet,
verno do Estado, já doou cerca de 50 mil li-
espaços serão equipados com estandes,
tortas salgadas e salgados, sobremesas
vros para mais de 100 instituições. Somente
mesas, além do acervo literário. Mais infor-
regionais, inglês básico e outros. Informa-
no ano passado foram entregues em torno de
mações: 4009 - 7847.
ções e valores: sesc-pa.com.br.
CANTO E FOTOGRAFIA CONCURSO LITER ÁRIO
Estão abertas as inscrições para a oficina de canto e fotografia “Universo de Si”. As
Estão aber tas as inscrições para o Concurso Literário anual da Academia Paraense de
aulas serão realizadas de 8 de abril a 27 de
Letras para os gêneros conto, poesia, romance, crônica, teatro, ensaio, novela, literatura
maio, sempre aos sábados, das 15 às 18h,
infanto-juvenil e monografia. Os interessados devem se inscrever até o dia 31 de março.
no Casulo Cultural, localizado na travessa
Os livros deverão ser inéditos, escritos em língua por tuguesa, apresentados sob pseudô-
Frutuoso Guimarães, 562. Inscrições e in-
nimo e com título. Mais informações: (91) 3222- 0630.
formações nos sites casulocultural.wixsite. com e universodesi.wordpress.com.
54 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
FAÇA VOCÊ MESMO
Como customizar e reaproveitar móveis Móveis antigos, às vezes, são deixados de lado em casa. Em geral, porque estão antigos ou feios. Mas é possível dar-lhes uma nova aparência e fazê-los voltar ao uso ou até dando uma nova função na decoração da casa. Os instrutores das Oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará,
ensinam como customizar e dar vida nova a um banco de madeira, que pode servir para assento ou virar um apoiador de vasos e telefone. Com a mesma técnica, alguma prática e experimentação, é possível usar materiais diferentes e em móveis diferentes.
• Um banco de madeira • Uma lixa para madeira • Tinta PVA branca
Do que vamos precisar?
• Tinta acrílica azul ou verde • Trincha ou pincel • Retalhos de tecido • Cola branca • Copos descartáveis • Escova de aço • Goma laca ou verniz NOTA: A colagem pode ser feita com vários materiais, como tecido, papel e folhas secas.
DILMA TEIXEIRA COORDENADOR DE ARTES VISUAIS/ OFICINAS CURRO VELHO | LUIZA NEVES TÉCNICA EM GESTÃO CULTURAL | LUCA RIBEIRO ALUNO DAS OFICINAS CURRO VELHO JAQUELINE SOUZA INSTRUTORA/TÉCNICA EM GESTÃO CULTURAL – FCP | LEANDRO RIBEIRO FOTOGRAFIAS / ASCOM/FCP
MARÇO DE 2017
• REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 55
FAÇA VOCÊ MESMO
4 7 10
2
Pinte a peça com a tinta PVA repetindo a demão se necessário.
3
Após a secagem, lixe novamente toda a peça
Com a escova de aço, faça ranhuras na madeira
5
Misture a tinta azul com a tinta branca pra criar dois tons diferentes (se quiser, pingue gotas de tinta verde)
6
Pinte o assento com o tom de azul claro e a lateral com o tom mais escuro
Dê pinceladas nas demais partes do banco com o outro tom de azul, sem preencher tudo e aguarde secagem completa.
8
Faça o molde de um guarda chuva no papel
9
Transfira para o tecido escolhido
Inicie lixando toda a peça de madeira
Recorte as partes do guarda-chuva, espalhe a cola nos pedaços de tecido e cole os recortes no assento do banco (recorte também gotas de chuva em tecidos coloridos)
11
Passe uma mão de cola branca, goma laca ou verniz fosco para impermeabilizar todo o banco.
12
Agora escolha um lugar na casa para compor a decoração do ambiente ou coloque-o no jardim para receber as visitas com muito charme.
Para saber mais Quem quiser conhecer mais sobre técnicas artísticas pode se inscrever nas oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará. Crianças a partir de 12 anos podem participar. O Curro Velho fica localizado na rua Professor Nelson Ribeiro, nº 287, esquina com a travessa Djalma Dutra, bairro do Telégrafo. Telefones: (91) 3184-9100 e 3184-9109. 56 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
MARÇO DE 2017
RECORTE AQUI
1
ATENÇÃO: Essa atividade pode ser feita por crianças, desde que acompanhadas por um adulto responsável
BOA HISTÓRIA
Depois de invadir o quintal de Dina e quase empacotar de pavor, Moisés reuniu os colegas da rua para contar o que viu na casa da vendedora de chope. A invasão fora por uma boa causa: uma insistência ingênua para comprar os deliciosos sucos de fruta congelados em saquinhos plásticos, o melhor da rua naqueles idos de 1990 na baixada da Pedreira, em Belém. O erro foi ter escolhido a hora errada, o dia errado. E, debaixo de Sol escaldante e no silêncio da sesta sagrada do mormaço de uma quarta-feira comum, ele quase morreu do coração aos 10 anos de idade. Voltou voando e todo ralado, passando feito um jato entre a casa de madeira e a cerca após ser surpreendido com um uivo saído do casebre, que ele nem sabia que existia no fundo daquele terreno enorme de Dina, cheio de jambeiros, jaqueiras, abieiros e cuieiras. Chegou lanhado e pálido em casa. Não contou para mãe, mas,
LEONARDO NUNES
Uivo
mais tarde, reuniu os moleques, relatou o ocorrido com riqueza de detalhes numa esquina escura da passagem sem iluminação pública, o que realçou o horror. Eles ouviram atentos a história. Como por milagre, ficaram hipnotizados com a possibilidade de uma assombração do meio dia e não fizeram chacota. Quatro deles decidiram ir no mesmo horário comprar um chope e ver qual era. Mas, diferente do azar de Moisés, Dina estava em casa e vendeu o produto com a alegria de sempre. Resolveram realizar, então, uma perigosa inspeção noturna. Na noite seguinte, refizeram o caminho entre a cerca e a casa em silêncio e debaixo de uma lua imensa. Chegaram sem serem notados à casinha. Dina estava vendo novela na sala, alheia à presepada. De dentro do compartimento em anexo, emanava uma luz fraca, como uma vela. O brilho vazava pelas frestas da parede de madei-
ra e por elas os invasores tentaram xeretar. Por entre as árvores, o vulto se aproximou aos poucos do quarteto. Desprevenidos, só viram a idosa, de olhos baços, boca murcha e cabelos raspados a poucos metros. Correram, correram muito. Um deles molhado. Não conseguiu segurar a pressão dos rins. Cada um vazou para sua casa e, os que sabiam rezar, rezaram. No outro dia, dona Dina foi à casa de cada um dar queixa à mãe. Ela contou, mais triste que enfezada, que os demônios mirins estavam atazanando a pobre mãe dela, adoentada do juízo. Há anos, a velhinha escolheu a solidão da casinha porque preferia ficar só em diálogo eterno com as próprias lembranças. Presenças estranhas, como a dos moleques, a estressavam sobremaneira. Moisés e os demais levaram um corretivo no mesmo dia e deixaram de acreditar em visagens. Chope? Nunca mais. MARÇO DE 2017
Anderson Araújo
é jornalista e escritor • REVISTA AMAZÔNIA VIVA • 57
NOVOS CAMINHOS
Desmatamento e população na Amazônia
INOCÊNCIO GORAYEB é mestre e doutor em Entomologia, pós-doutor em sistemática zoológica e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi 58 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
Em setembro de 2016 foi publicado, na revista “Apllied Geography” no 76 (páginas 163-172), um importante e útil artigo sobre “A densidade populacional e o desmatamento na Amazônia brasileira: perspectivas sobre os padrões atuais de assentamento humano”. Os autores são Isabelle Tritsch & François-Michel Le Tourneau, da Universidade de Sorbone, Paris, França. Para a Amazônia brasileira, que representa 40% das florestas tropicais úmidas remanescentes do mundo, e presta importantes serviços de ecossistema e clima, as perspectivas são de grande relevância, embora o crescimento demográfico durante as últimas décadas tenha sido impressionante: a população da Amazônia Legal subiu de cerca de 2,5 milhões em 1960 para 24,3 milhões hoje (IBGE, 2010). No mesmo período quase 71 milhões de hectares foram desmatados, 18% da cobertura florestal original. O trabalho investiga a relação mista entre a densidade populacional e o desmatamento na Amazônia baseado no período 2000-2010. A base da análise é a referência de dados sobre desmatamento divulgada pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e os dados dos censos populacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O PROBES (Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite) do INPE é o mais completo do mundo. A metodologia utilizada dividiu a Amazônia em 40.408 quadrantes que foram classificados em 10 tipos de assentamento humanos, de acordo com os limiares de extensão do desmatamento e densidade populacionais, que são ilustrados em figuras. Quanto MARÇO DE 2017
a densidade populacional, foram classificados em desocupado, povoado, densamente povoado e muito densamente povoado. Quanto a extensão do desmatamento foram classificados como fronteira, quadrantes com baixa extensão de desmatamento, menos de 5%; florestados, com desmatamento de 5% a 40%; desmatados, aqueles com mais de 40% de desmatamento. Os resultados são apresentados num excelente mapa da Amazônia Legal em que os dados são apresentados em áreas com dez diferentes cores que representam a associação entre população e desmatamento; e círculos de diferentes diâmetros que representam os povoados. Os dados mostram que as áreas urbanas densamente povoadas estão aumentando; as florestas preservadas têm diferentes padrões de povoamento humano; baixa densidade populacional em áreas desmatadas, que estão aumentando; alto número de habitantes em áreas rurais fortemente desmatadas. Os autores discutem como principais dinâmicas de assentamento humano na Amazônia brasileira as tendências para concentração da população rural em aldeias ou pequenas cidades e “urbanização” discreta. Os dados deste artigo são muito úteis, pois revelam que as políticas públicas, sejam elas relativas a saúde, educação, segurança e outras, não podem ser lineares ou projetadas para macro, microrregiões, ou em municípios; é preciso levar em consideração estes padrões associados a densidade populacional e o grau de desmatamento, além de outros aspectos físicos e ambientais da Amazônia.
“Para a Amazônia brasileira, que presta importantes serviços de ecossistema e clima, as perspectivas são de grande relevância, embora o crescimento demográfico durante as últimas décadas tenha sido impressionante”
ECOCHARGE