Revista Amazônia Viva ed. 51 / novembro de 2015

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REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.

NOVEMBRO 2O15 | EDIÇÃO NO 51 ANO 5 | ISSN 2237-2962

DESASTRE AMBIENTAL EM

BARCARENA Passado um mês do naufrágio com cinco mil bois no porto de Vila do Conde, o que a tragédia tem a ensinar aos órgãos de controle e empresas daqui para frente?

SEGURANÇA

A presença efetiva da polícia na comunidade

AGRICULTURA

A produção agrícola ganha espaço na zona urbana

DEVOÇÃO

Camilo Salgado e o culto ao santo popular




EDITORIAL

PUBLICAÇÃO MENSAL DELTA PUBLICIDADE - RM GRAPH EDITORA NOVEMBRO 2015 / EDIÇÃO Nº 51 ANO 5 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA Presidente Executivo ROMULO MAIORANA JR. Diretor Jurídico RONALDO MAIORANA Diretora Administrativa ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA Diretor Industrial JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO TARSO SARRAF

MAR MORTO

Barqueiros retiram bois afogados do rio Pará, onde ocorreu o naufrágio do navio Haidar

Uma tragédia ambiental na vida das pessoas O acidente ambiental que levou para o fundo do rio Pará, que pas-

Além do cenário desolador de

sa em frente à Vila do Conde, em

bois mortos à beira da praia, tam-

Barcarena, milhares de cabeças de

bém tivemos de presenciar um

bois entrou para a história como

jogo de empurra-empurra sobre

um dos mais graves no Estado. A

a responsabilidade do acidente.

tragédia envolve não somente o

A empresa dona da carga, os pro-

meio ambiente, mas também a

prietários do navio afundado e a

vida de seres humanos, vitimados

Companhia Docas do Pará (CDP)

por um conjunto formado pelo in-

ainda não se entenderam sobre o

fortúnio e pela falta de gerência do

ocorrido e nem sequer chegaram a

poder público e privado diante de

um acordo para solucionar o pro-

acontecimentos como esse.

blema. Enquanto isso, acumulam

“Intrigante também saber que o porto sequer possui Plano de

FELIPE JORGE DE MELO Editor-chefe 4 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

conter a abrangência dos danos.

Diretor JOSÉ LUIZ SÁ PEREIRA Conselho editorial RONALDO MAIORANA JOÃO POJUCAM DE MORAES FILHO GUARANY JÚNIOR LÁZARO MORAES REDAÇÃO Jornalista responsável e editor-chefe FELIPE JORGE DE MELO (SRTE-PA 1769) Coordenação geral LUCIANA SARMANHO Editor de arte FILIPE ALVES SANCHES (SRTE-PA 2196) Pesquisador e consultor técnico INOCÊNCIO GORAYEB Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Pará de Notícias, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Universidade Federal Rural da Amazônia, Fundação Cultural do Pará - Oficinas do Curro Velho (acervo); Camila Machado, Fabrício Queiroz, Victor Furtado, Anderson Araújo, Moisés Sarraf, Sávio Oliveira, Arnon Miranda, Natália Mello, Vito Gemaque, Fernanda Martins, Brenda Pantoja (reportagem); Moisés Sarraf e Fabrício Queiroz (produção); Fernando Sette, Roberta Brandão, Carlos Borges, Tarso Sarraf, Igor Mota (fotos); Thiago Barros (artigo) André Abreu, Leonardo Nunes, Jocelyn Alencar, Sávio Oliveira (ilustrações); Alexsandro Santos (tratamento de imagem). FOTO DA CAPA Praia de Vila do Conde, em Barcarena, por Tarso Sarraf AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade/ RM Graph Ltda. CNPJ (MF) 03.547.690/0001-91. Nire: 15.2.007.1152-3 Inscrição estadual: 158.028-9. Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco - Belém - Pará.

milionárias multas impostas pelo Estado.

Emergências. E o resultado não

Já os moradores do entorno da

poderia ser mais desastroso”, disse

tragédia, ainda cheios de esperan-

à equipe de reportagem o especia-

ça, aguardam alguma saída que

lista em Gestão Ambiental e mestre

lhes devolva a dignidade, pois só

em Gestão e Auditoria Ambiental, o

cestas básicas não são suficientes.

sociólogo Paulo Melo, ao lamentar

Os prejuízos causados pelo nau-

que eventos como o de Barcarena

frágio do navio Haidar ainda são

ainda ocorrem em grandes propor-

incalculáveis. Mas o que já se sabe

ções na Amazônia sem que nenhu-

é que a Vila do Conde nunca mais

ma política ambiental eficaz possa

será a mesma.

NOVEMBRO DE 2015

Diretor de Marketing GUARANY JÚNIOR

amazoniaviva@orm.com.br

PRODUÇÃO

REALIZAÇÃO

REVISTA IMPRESSA COM O PAPEL CERTIFICADO PELO FSC - FOREST STEWARDSHIP COUNCIL


NESTA EDIÇÃO

EDIÇÃO Nº 51 / ANO 5

38

Uma mancha em Barcarena Naufrágio com cinco mil bois no Porto de Vila do Conde causou um dos maiores desastres ambientais do Estado CAPA

FERNANDO SETTE

IGOR MOTA

ROBERTA BRANDÃO

ROBERTA BRANDÃO

34 58 16 48 SEGURANÇA

SAMBA

O professor do Programa

A intérprete Mariza Black

FÍSICA

de Pós-Graduação em Se-

AGRICULTURA

se consolida como umas

O doutor em Física

gurança Pública da UFPA,

Produtores da Associa-

das principais vozes do

Sanclayton Moreira, da

Edson Ramos, apresenta

ção Agrícola da Terra

samba no Estado. Sua

Universidade Federal do

estudos sobre a relação

Firme, em Belém, provam

carreira é marcada por

Pará, faz importantes pes-

“polícia e comunidade”, e

que é possível cultivar

parcerias na música regio-

quisas sobre as proprieda-

acredita que a sociedade

os próprios alimentos na

nal e nacional e a cantora

des ópticas dos óleos da

começa a mudar o olhar

cidade grande, e ainda

está a um passo para o

região amazônica.

sobre os militares.

gerar emprego e renda .

gravar primeiro CD.

QUEM É?

ENTREVISTA

COMUNIDADE

PAPO DE ARTISTA

E MAIS 4 6 7 9 11 13 14 15 17 17 18 19 19 20 21 22 24 60 62 63 65 66

EDITORIAl AS MAIS CURTIDAS PRIMEIRO FOCO TRÊS QUESTÕES AMAZÔNIA CONNECTION ELES SE ACHAM FATO REGISTRADO PERGUNTA-SE EU DISSE APLICATIVOS CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE DESENHOS NATURALISTAS CONCEITOS AMAZÔNICOS AVES DA AMAZÔNIA COMO FUNCIONA CIÊNCIA OLHARES NATIVOS MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS AGENDA FAÇA VOCÊ MESMO BOA HISTÓRIA NOVOS CAMINHOS NOVEMBRO DE 2015

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TARSO SARRAF

NOVEMBRO2015


ASMAISCURTIDAS DESTAQUES DAS EDIÇÕES ANTERIORES

CARLOS BORGES

MESTRE Parabéns ao espaço dado ao saudoso Mestre Chico Braga, morto em setembro na bela ilha de Maiandeua. A reportagem “Cortejo para um mestre” (Primeiro Foco, outubro de 2015, edição nº 50) contou em detalhes a despedida de um mito do carimbó. Mariana Bueno Marudá-Pará

CRIANÇAS APRENDIZADO AINDA NA INFÂNCIA

A reportagem sobre a formação cidadã e cultural das crianças da Amazônia foi a mais curtida e compartilhada em nosso Facebook na edição passada. MARCELO KALIF DE SOUZA

Muito oportuna a reportagem de capa nº 50 da Amazônia Viva (“A simplicidade das crianças”, outubro de 2015). Ao investimos na educação e formação social das crianças, com certeza teremos um Estado e um país melhores. Jonas Amorim Belém-Pará

ÇAIRÉ A festa do Çairé nos mostra o quanto nossa cultura é rica e desconhecida. Passei a conhecer e me apaixonar ainda mais pelos ritos amazônicos graças à reportagem (“Çairé, celebração santarena da cultura”, Comunidade, outubro de 2015, edição nº 50). Jandira Costa Belém-Pará

FUTEBOL Li com um prazer nostálgico buscando registros no mais fundo de minha mente a entrevista com o jornalista João Batista Ferreira da Costa sobre a centenária “guerra” entre Remo e Paysandu. (“Lembranças de um futebolista”, Arte + Pesquisa, edição nº 49, setembro de 2015). Do alto dos meus 68 anos, guardo muitas lembranças dos jogos clássicos em meu coração alviceleste. Francisco Pantoja Belém-Pará

CAMARÃO NOSSO DE CADA DIA

A foto do leitor Marcelo Kalif de Souza foi a mais curtida no Instagram da revista em outubro. O vendedor solitário trabalha pelo seu ganha-pão em uma luta diária. CARLOS BORGES

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NOVEMBRO DE 2015

para o endereço: Avenida Romulo USE UM LEITOR DE QR CODE PARA ACESSAR A EDIÇÃO DIGITAL DE NOVEMBRO

Maiorana, 2473, Marco, Belém - Pará, CEP 66 093-000 ou FAX: 3216-1143.


O QUE É NOTÍCIA PARA A AMAZÔNIA CRISTINO MARTINS / ARQUIVO O LIBERAL

PRIMEIROFOCO

400 anos de Belém inspira a moda O AMAZÔNIA FASHION WEEK ANTECIPOU AS HOMENAGENS AO ANIVERSÁRIO DA CIDADE

PÁGINA 8 E 9

HISTÓRIA

RARIDADE

Arqueólogos acreditam que vestígios cerâmicos na região do lago Tefé, no Amazonas, datam de 400 a 1.500 anos depois de Cristo. PÁG.11

Morcego albino da espécie Diaemus youngi foi encontrado em área rural do município de Pacajá, no sudoeste do Estado. PÁG.15

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PRIMEIRO FOCO

A nona edição do Amazônia Fashion Week (AFW), de 4 a 7 de novembro, teve como tema “Quatro séculos de moda”, em alusão aos 400 de anos de Belém, que serão comemorados no dia 12 de janeiro de 2016. O evento, desde o início, busca valorizar a moda paraense e estilistas locais - dos mais populares até os mais renomados na moda nacional -, sempre trazendo projetos com identidade amazônica. Numa época de crise econômica, a concorrente amazônica da São Paulo Fashion Week também dá destaque a negócios voltados à moda regional e muitos deles novos, reforçando a cultura do empreendimento com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Pará (Sebrae-PA). Apesar o evento ser em novembro, a AFW movimenta estilistas e estudantes do curso de Moda da Estácio-FAP o ano todo. Ainda em agosto, no lançamento, e Associação de Costureiras e Artesãs da Amazônia (Costamazônia) apresentaram a exposição de lançamento “Sociedade de moda: memória da Belém 400”. No mesmo dia, os alunos do curso de Especialização em Moda e Design de Moda da Estácio-FAP apresentaram a exposição “Mabe: 400 anos de moda e arte na cidade de Belém”, inspirado no Museu de Arte de Belém. Ambos os desfiles foram resultado de um trabalho de pesquisa antropológica dos alunos do curso de Design de Moda, sob a orientação do historiador e professor Rui Martins Júnior. Algumas das peças conceituais tinham inspiração no mercado do Ver-o-Peso, no açaí, nas festas de aparelhagem, Mangal das Garças e erveiras do Ver-o-Peso, por exemplo. Entre outros desfiles antes da semana principal, a artista plástica Jackye Carvalho apresentou a exposição “Eco-Lógica Moda Pará”,

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CRISTINO MARTINS / ARQUIVO O LIBERAL

A moda é inovar

GLAMOUR

O Amazônia Fashion Week deste ano levou às passarelas todo o charme da Cidade das Mangueiras, que completa 400 anos em 12 de janeiro de 2016


TRÊSQUESTÕES RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO

Mudança social a partir da consciência Em 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra. E num período em que crimes de racismo e preconceito racial vêm à tona na política, esporte, cultura e educação, o professor Frederik Matos, mestre e doutorando em História Social da Amazônia e coordenador do curso de História da Universidade da Amazônia, fala sobre a data, o preconceito e discriminação racial.

O que é consciência negra e o que a data representa? A expressão “consciência” nos remete ao termo que denota conhecimento, visibilidade de existência do outro. Nesse sentido, busca-se a valorização de uma das identidades étnico-culturais que integram uma das matrizes étnicas na formação da sociedade CRISTINO MARTINS / ARQUIVO O LIBERAL

brasileira, a etnia negra, que obteve liberdade judicial, mas não a liberdade social.

Por que o preconceito racial parece estar mais forte hoje? A discriminação e a violação de direitos baseada na raça, cor, ascendência, origem

com um enfoque na preservação do meio ambiente através da moda sustentável. Os desfiles lembraram nomes da moda amazônica, como o marajoara Dener Pamplona de Abreu, considerado o criador da moda brasileira, e os atualmente reconhecidos André Lima, Lino Villaventura, Rogério Vasques e Sandra Machado. O AFW é um espaço de revelação de talentos já atuando na cidade e com reconhecimento nos cenários nacional e internacional. Os estilos e tendências acompanham tudo o que é mostrado nas passarelas do Brasil e do mundo. Tudo o que fez parte dos desfiles já é resultado de diversas oficinas feitas antes do evento, como uma oficina voltada apenas para meninas de 6 a 11 anos.

Os principais desfiles e atrações culturais da AFW 2015 ocorreram na Estação das Docas, Espaço São José Liberto, Radisson Hotel Maiorana e Faculdade Estácio-FAP. “Quisemos focar na história da moda em Belém, analisando o passado e fazendo a ligação com os novos rumos da moda no mundo globalizado, valorizado a sua democratização”, explica Felicia Assmar Maia, organizadora do evento e professora da Estácio FAP. A estilista Sandra Machado, paraense radicada em São Paulo, foi a convidada especial da semana de moda, apresentando a coleção “Metamorfosis”, da qual já ofereceu um preview durante o Encontro Paraense de Moda e Artesanato, em maio.

étnica ainda acontecem no mundo de forma brutal, sendo que a hipocrisia brasileira vivencia o mito da democracia racial, o qual a sociedade age com condescendência de acordo com a situação socioeconômica, demarcando assim a maior exclusão social, mas que precisa ser superada.

Como a consciência negra pode ser trabalhada na sociedade? É essencial perceber e reconhecer as diferenças, enxergá-las como uma somatória de riquezas e peculiaridades, mas não fazê-las de maneira hierárquica. O caminho para a superação ainda é pela educação, que deverá proporcionar a desconstrução do preconceito e da discriminação.

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MARIO CAMARÃO/ DIVULGAÇÃO

ESTILOSOS

O AFW é um espaço de revelação de talentos já atuando em Belém e com reconhecimento nos cenários nacional e internacional


PRIMEIRO FOCO OSWALDO FORTE/ ARQUIVO O LIBERAL

E S PAÇ O

CASA DO AÇAÍ A Prefeitura de Belém lançou o espaço “Casa do Açaí”, voltado para informar e capacitar os batedores do produto. A população também vai poder denunciar no local irregularidades em pontos que vendem açaí de forma duvidosa. “A Casa do Açaí vem para ser um centro de referência não só para o batedor artesanal, como para toda a população. Vamos oferecer para os batedores do produto cursos de capacitação para eles entregarem para a população um líquido de qualidade”, afirma a gerente do local, Camila Miranda.

P LA NO

MUDANÇAS CLIMÁTICAS Uma boa notícia para os milhões de brasileiros que estão sofrendo no calor escaldante e para os mais de 1.400 municípios que já decretaram emergência ou calamidade pública por eventos climáticos extremos este ano: o Brasil ganhou um plano para se adaptar às mudanças climáticas. O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), traça diretrizes para a sociedade se preparar para os efeitos das mudanças do clima no Brasil. O documento prevê ações para o período de 2016 a 2019 e uma revisão a cada quatro anos. Entre as metas do PNA estão aprimorar a qualidade das projeções climáticas, a integração de dados para monitoramento dos impactos, a capacitação de governos, entre outros.

S O LT U R A

FILHOTES DE TARTARUGA Cerca de 6,5 mil filhotes de tartarugas que estavam em cativeiro no município de Piçarra, no sudeste do Pará, foram soltos no rio Araguaia. O objetivo da ação é conscientizar as comunidades ribeirinhas sobre a importância da conservação das tartarugas no local de origem. Alunos e professores de escolas públicas atravessaram o rio até Ilha Bela, que fica na zona rural do município. Eles fazem parte de um projeto de preservação de quelônios do rio Araguaia, onde os répteis são colocados em baldes e soltos pela própria comunidade. 10 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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CONTAGEM REGRESSIVA

Belém lança cronômetro para os 400 anos A capital paraense completará 400 anos no dia 12 de janeiro de 2016 e para comemorar a data a Prefeitura Municipal de Belém organizou uma programação especial que aciona um cronômetro que irá fazer a contagem regressiva para o aniversário da Cidade das Mangueiras. Inspirado na caravela do navegador português Francisco Caldeira Castelo, fundador de Belém, o projeto do monumento foi exibido na praça do Relógio em uma tela com recursos 3D. Ele consiste

em uma escultura de 12 metros de altura, feita em concreto armado, revestida em granito e detalhes em aço pintado. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, disse que o funcionamento do cronômetro marca o início de uma série de eventos festivos: “Precisamos elevar sempre o nome da nossa cidade e todos devem fazer sua parte. Seja o Estado, o município e a população, precisamos juntos demonstrar o amor por Belém e comemorar os 400 anos de história de nossa cidade”, afirmou o prefeito.


LAGO TEFÉ

AMAZÔNIACONNECTION

Pesquisa define datas de vestígios arqueológicos Uma pesquisa arqueológica realizada na região do lago Tefé, no Amazonas, identificou que os vestígios cerâmicos encontrados na região datam entre 400 e 1.530 anos depois de Cristo. O trabalho foi realizado pela pesquisadora Jaqueline Belletti, por meio de uma parceria entre o Instituto Mamirauá e o Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa visava identificar a diversidade da Tradição Polícroma da Amazônia nos vestígios encontrados nos sítios arqueológicos do lago Tefé. Antes desse trabalho, as últimas pesquisas arqueológicas na região foram na década de 1950. Outro resultado importa nte da pesquisa foi o indício de relação

A REGIÃO EM CONEXÃO COM O MUNDO

entre diferentes gr upos cultura is que ocupava m a região nesse período, ev idenciado a pa rtir das a nálises das cerâ micas. Jaqueline ressa lva que este tipo de relação entre produtores da Tradição Polícroma e produtores de outras tradições é a inda hoje um assunto pouco trabalhado, o que reforça a importâ ncia do estudo. A pesquisadora destaca que, entre as próximas etapas do projeto, a principal meta é levar para as comunidades as informações geradas pela pesquisa “Nosso principal desafio entre este ano e o próximo e conseguir fazer a devolução dos resultados já alcançados as comunidades na quais pesquisamos e aos moradores do lago Tefé como um todo”.

Noruega ajuda a reconstruir a flora e a fauna O Biodiversity Research Consortium Brazil-Norway (BRC) foi criado em 2013, a partir de um termo de cooperação interinstitucional assinado entre a Universidade de Oslo (UiO), Noruega, o Museu de História Natural, a companhia de mineração norueguesa Hydro, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e a Universidade Federal do Pará (UFPA). O objetivo principal é realizar pesquisa em restauração da biodiversidade de ecossistemas, levantamentos da flora e fauna e pesquisa em emissão de gases de efeito estufa. Atualmente, três projetos vêm sendo desenvolvidos na área da mina de bauxita da Hydro, em Paragominas. A intenção é que o BRC consiga implementar outros projetos nessa área,

AMANDA LELIS / INSTITUTO MAMIRAUA / DIVULGAÇÃO

buscando fundos que possam custear novos projetos e demonstrem como indústria e instituições de pesquisa podem cooperar para desenvolver tecnologias ambientais que ajudem na conservação dos ecossistemas amazônicos, fomentando a formação de recursos humanos por meio dos cursos de graduação e pós-graduação das instituições participantes. O governo da Noruega já investe em parcerias científicas na Amazônia. Espera-se que o BRC possa ser um agente importante dessa cooperação com o governo da Noruega e as instituições de pesquisa locais possam participar nas decisões de conduzir investimentos em áreas prioritárias para a região. Neste mês, dentro de uma curta agenda de visitas ao Brasil, o príncipe norueguês, Haakon Magnus, visitará o Pará para firmar um convênio de cooperação com o governo do Estado. A visita faz parte de outro evento científico sobre conservação da biodiversidade amazônica, organizado pelo BRC, que será no Museu Goeldi.

ACHADO

Os vestígios cerâmicos encontrados na região do lago Tefé são de 400 a 1.530 anos depois de Cristo

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PRIMEIRO FOCO

Inpe cria ferramenta para prever raios Um sistema inédito vai prever, com antecedência de 24 horas, a incidência de raios em todo país, incluindo a Amazônia. A ferramenta, lançada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos (SP), vai antecipar a informação sobre descargas elétricas. O sistema consegue prever, por meio de um programa abastecido com informações como velocidade e direção do vento, umidade, temperatura e concentração de gelo na atmosfera quais áreas são mais suscetíveis às descargas elétricas. A intenção é que o siste-

ma evite mortes por conta do fenômeno. A ferramenta foi desenvolvida durante cinco anos pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) e deve estar disponível no próximo ano no site do instituto, como já ocorre com a previsão do tempo. De acordo com o coordenador do Elat, Osmar Pinto Júnior, o mecanismo tem como objetivo indicar as regiões que apresentam potenciais de descargas elétricas. A margem de acerto é de 85% em uma área de 10 quilômetros - o que permite a previsão por municípios e regiões, como a Amazônica.

INPE / DIVULGAÇÃO

EM 24 HORAS

L E I TE

PRODUÇÃO E QUALIDADE A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater), através do escritório local da Emater em Conceição do Araguaia, no sudeste do Estado, emplacou o Projeto Leite com Qualidade, entre as 100 melhores práticas do Brasil. O projeto está selecionado entre os semifinalistas do Prêmio Melhores Práticas em Gestão Local 2015/2016, da Caixa Econômica Federal, que acontece a cada dois anos como um reconhecimento aos projetos de experiências sustentáveis. O Projeto “Leite com Qualidade-Resfriamento do Leite in natura na Agricultura Familiar” beneficia 12 municípios.

PESQUISA

AVIÃO SOLAR Cientistas do Laboratório de Sistemas Autônomos da Universidade ETH, de Zurique, na Suíça, vão coletar dados atmosféricos nas florestas do Pará de maneira inédita: usando um avião solar não tripulado. O equipamento - desenvolvido durante o doutorado de um estudante da ETH e batizado de AtlantikSolar- vai sobrevoar um trecho da floresta saindo de Barcarena em direção a Melgaço, onde fica uma parte da Floresta Nacional de Caxiuanã. O avião vai levantar, por meio de sensores, informações atmosféricas sobre ventos, umidade, temperatura e radiação em trechos da floresta antes nunca estudados. O voo marca o fortalecimento de parcerias científicas e de inovação tecnológica entre Brasil e Suíça.

DESCOBERTA

CACHORRO-VINAGRE Pesquisadores fizeram registros de uma espécie de cachorro selvagem raro na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no município de Maraã, no Amazonas. Este foi o primeiro registro da ocorrência do cachorrovinagre (Speothos venaticus) em florestas de igapó da Amazônia. O feito causa surpresa, pois o animal não é comum em áreas alagadas. O animal é classificado como “quase ameaçado” pela International Union for Conservation of Nature (IUCN). No Brasil, a espécie é considerada “vulnerável” pela lista oficial de espécies ameaçadas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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ELESSEACHAM POR QUE MIMETISMO É UMA COISA NATURAL

FUTURO

Um projeto-piloto vai estudar as interações de floresta com o sistema de clima, incluindo a troca de CO2 com a atmosfera e como isso se dará frente às mudanças climáticas. Em Manaus (AM), pesquisadores americanos do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (LBNL) se reuniram com pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI) e de outras instituições brasileiras para dar início às ações de trabalhos do “Experimentos da próxima Geração sobre Ecossistemas Tropicais ou NGEE-Tropics, na sigla em inglês”.

INOCÊNCIO GORAYEB

Estudo da floresta ajuda a entender o clima Para o diretor do Inpa, o projeto NGEE é “extremamente promissor” para o estudo global do clima nos trópicos na próxima década. “Não há como entender clima, ambiente e planeta se não houver uma interação entre pesquisadores que tenham expertises e conhecimentos já sedimentados que se unem para somar”, diz o diretor do Inpa. O projeto terá dez anos de duração, financiado pelo Departamento de Energia dos EUA e liderado pelo LBNL, está na fase inicial e em busca de parceiros com outros países que tenham interesse em florestas tropicais.

Pulgões e a “Morte Branca” A vida entre pequeninas folhas de plantas pode ser uma batalha sem precedentes pela sobrevivência. E, para determinadas espécies, pode ser como matar um pulgão por dia. Como o soldado finlandês Simo Häyhä, o famoso agente “Morte Branca”, terror do Exército soviético, a larva cobre-se de branco para espreitar o inimigo. Explicase. Dos insetos, os pulgões certamente não são os mais famosos. Muito se fala sobre as AGÊNCIA PARÁ

formigas e suas variedades. As borboletas esvoaçam beleza por aí, as baratas espalham o nojo. Mas os pulgões, bom, ninguém os conhece, mas são como cigarrinhas, de um a sete milímetros. Na alimentação do pulgão, está a seiva de plantas. E é aí que a briga começa. Da família Aphidoidea, divisão Homoptera da Ordem Hemiptera, são pelo menos 250 espécies. Um batalhão considerado uma séria praga para a agricultura, jardinagem e florestas. Geralmente, colonizam plantas em grandes populações, perfurando tecidos das folhas e caules moles, transmitindo vírus e outros patógenos para as plantas. Mas esse ataque também atrai outros insetos em função da disponibilidade de matéria orgânica e seiva associadas. As larvas de insetos da ordem Neuroptera, especialmente da família Chrysopidae, atacam sem piedade os pulgões já instalados em seus processos de colonização. Jogando sobre seu corpo o lixo produzido pelos pulgões, a larva age como o “Morte Branca”, o filandês que camuflava-se na neve para atingir os soldados soviéticos durante a Guerra de Inverno entre a Finlândia e a União Soviética, em 1939. A ele são atribuídas mais de 500 mortes. A larva, camuflada, passa despercebida pela colônia de pulgões, devorando-os um a um. NOVEMBRO DE 2015

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FATO REGISTRADO

INOCÊNCIO GORAYEB

Igarapé, reservatório da biodiversidade na Amazônia A beleza cênica da imagem, em que uma pequena cachoeira se debruça sobre um igarapé, rouba a atenção do leitor, mas, ao fundo, a foto também registra uma pequena tapera com uma mesa, onde jaz um microscópio necessário à entomologia, o estudo dos insetos. A intenção da pesquisa era alcançar insetos que colonizavam as águas mais oxigenadas e turbulentas do igarapé.

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A imagem registra as imediações da capital amazonense, Manaus, já que a cerca de 30 quilômetros que fica a Reserva Ducke do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), onde realizavam investigações científicas de diversas naturezas. Como em 1977 era necessário um tempo um pouco mais elevado de exposição do filme à luz, a cachoeira aparece como que um véu aos pés das espécies amazônicas.

Nas proximidades de onde a foto fora tomada, também foram registrados os primeiros dados sobre fêmeas de piuns (Simuliidae, Diptera), depositando ovos nos igarapés. Nessa mesma área, bandos de guaribas (Alouatta belzebul) faziam das matas seu lar, comprovando o bom estado de conservação daquelas matas à época. De estranho ao lugar, apenas o olhar humano.


RARIDADE

PERGUNTA-SE

Morcego albino é encontrado em Pacajá

FERNANDO SETTE

ASCOM ADEPARÁ

A captura de um animal raro surpreendeu os servidores da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará) em Pacajá, no sudoeste do Estado, em uma ação para controle de foco de raiva em herbívoros. Durante o trabalho realizado, foi capturado um morcego vampiro albino, da espécie Diaemus youngi, que se alimenta preferencialmente do sangue de aves. De acordo com Wilson Uieda, pesquisador do Departamento de Zoologia da Unesp de Botucatu, especialista em Zoologia e Ecologia de Morcegos, esta é a segunda captura registrada no Brasil de um exemplar albino dessa espécie. Como o animal estava em uma área de coleta de morcegos que se alimentam de mamíferos, ele foi capturado e tratado, pois pode ter sido contaminado. O morcego com alteração genética é um macho e foi capturado dentro de uma propriedade. Ele recebeu uma pasta anticoagulante para que possa fazer o controle da raiva no abrigo dele e depois foi devolvido à natureza.

POIS É PRECISO ESCLARECER MITOS E VERDADES

Sesta depois das refeições facilita ou dificulta a digestão? Após uma refeição leve, o repouso de cerca de 15 minutos é até recomendado. Porém, alguns moradores da Amazônia têm o costume de dormir depois do almoço, hábito reforçado após uma tigela de açaí. Mas quanto mais comida ou mais “pesada” a refeição, mais prejudicial pode ser a sesta por tornar a digestão ainda mais lenta. E se esse repouso for deitado, há risco de indigestão e até de BICHO RARO

O morcego albino é da espécie Diaemus youngi e se alimenta preferencialmente do sangue de aves

refluxo, como explica a nutricionista Lorena Furtado Falcão, especialista em Nutrição Clínica e professora da Universidade da Amazônia (Unama). Ela também ressalta que quanto melhor

PRESERVAÇÃO

ISENÇÃO

Representantes da Embrapa, do Programa

Quem gera sua própria energia elétrica -

refeições muito calóricas, gordurosas e

das Nações Unidas para o Desenvolvimento,

com painéis solares ou aerogeradores, por

em grandes quantidades, a sesta deixa

da Agência Nacional de Assistência

exemplo - acabou de ganhar uma isenção

de ser recomendada. O sono virá de um

Técnica e Extensão Rural (Anater) e do

tributária que fará muita diferença na conta

jeito ou de outro, afinal, o organismo ne-

Ministério do Meio Ambiente lançaram o

de luz ao final do mês. O governo publicou a

cessita de muita energia e recursos para

projeto “Integração da conservação da

derrubada do PIS-Cofins da tarifa de energia

a digestão, só que aí é melhor esperar

biodiversidade e uso sustentável nas práticas

para os consumidores que geram alguma

um pouco. Caso a refeição tenha sido

de produção de produtos florestais não

porção de quilowatt para uso próprio. Até

composta de vegetais, pouca gordura e

madeireiros e sistemas agroflorestais em

então, a incidência desses tributos - e do ICMS

quase nada de industrializados, 15 mi-

paisagens florestais de usos múltiplos de

- na conta de luz do mini ou microgerador

nutos de sono com a cabeça levemente

alto valor para a conservação”. Desenvolvido

faziam com que o cidadão perdesse cerca de

inclinada para cima ajudam bastante.

nos biomas Amazônia, Caatinga e Cerrado,

30% da energia que produz para o fisco. Só

a iniciativa tem duração prevista de

para o PIS-Cofins, eram 10%. Esse é o primeiro

cinco anos e atuará em territórios com

passo do governo, após a edição da Resolução

alta biodiversidade, baixo IDH e onde há

482 que permite a micro e minigeração, para

presença de comunidades agroextrativistas e

incentivar de fato que os brasileiros passem a

agricultura familiar.

gerar sua própria eletricidade.

COMUNIDADES

ENERGIA LIMPA

a mastigação, mais fácil será a digestão. E como o paraense costuma fazer

MANDE A SUA PERGUNTA Envie perguntas instigantes sobre hábitos, costumes e fenômenos da região amazônica para o e-mail: amazoniaviva@orm.com.br

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QUEM É?

SANCLAYTON MOREIRA

Físico pesquisa os óleos amazônicos TEXTO ARNON MIRANDA FOTO ROBERTA BRANDÃO

E

ncarar um problema acreditando ser merecedor do desafio tem sido a especialidade do doutor em Física Sanclayton Moreira, pois sempre optou pelas previsões ruins de seus professores sobre a física experimental, ainda na graduação em Licenciatura em Física pela Universidade Federal do Pará (UFPA), concluída em 1979. Eles diziam que não era um “bom negócio”, para os formandos, pela falta de laboratórios e de equipamentos, que eram caros. Dado o desafio, Sanclayton buscou o mestrado, concluído em 1989, e o doutorado, 1993, em Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi lá que a experiência foi aprimorada com o uso da Espectroscopia Raman, técnica que incide uma fonte de laser em um objeto para identificar sua estrutura física e química. De volta à UFPA, não havia nenhum equipamento no setor de Física capaz de fazer os mesmos experimentos realizados na UFC. O único equipamento que havia na

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universidade cearense e também na UFPA era uma ponte de capacitância que estava sem uso, no setor de Geofísica. Com o aparelho, que mede constantes dielétricas e outras propriedades, Sanclayton quis entender as propriedades físicas dos óleos vegetais da Amazônia. Para melhorar a situação do laboratório, Sanclayton Moreira fundou, em 1995, o Grupo de Física de Materiais da Amazônia (GFMA), que busca analisar as propriedades óticas, térmicas e elétricas desses óleos. Assim, desenvolveram novas tecnologias e aplicabilidades desses insumos. Um dos primeiros resultados foi o descobrimento da eficácia do óleo de buriti como protetor solar, pois o raio ultravioleta (UV) não consegue ultrapassar a camada desse material e chegar à pele. Essa tecnologia já é utilizada pelas indústrias e foi reconhecida em revistas científicas, mas o grupo perdeu a oportunidade de patenteá-la. O grupo também descobriu que os óleos da Amazônia têm a capaci-

dade de produzir luz e gerar novas cores. “Isso deu um ‘boom’ no nosso trabalho e gerou vários artigos e algumas patentes científicas através desses estudos. Ficamos apaixonados com o óleo de buriti, mas como perdemos a patente, a ideia era fazer películas para janelas, óculos de proteção solar e fazer um polímero a partir desse óleo e criasse um plástico que mantivesse essas características”, destaca Sanclayton Moreira. Foram produzidas no laboratório as blendas, que são plásticos misturados com óleo. As pesquisas estão em andamento, e o objetivo é que esses compnentes possam ser usados no futuro para a produção de LEDs e células de energia solar. Atualmente, Sanclayton comanda o projeto “Rede Norte de Pesquisas e Aplicações sobre Óleos Típicos da Amazônia”, para formar uma rede de pesquisa sobre as propriedades físicas dos materiais da Amazônia, que permite intercâmbio de pesquisadores de nove instituições no Brasil.

NOME

Sanclayton Geraldo Carneiro Moreira

IDADE 60 anos

FORMAÇÃO

Doutor em Física

TEMPO DE PROFISSÃO 31 anos


EU DISSE

APPLICATIVOS

DIVULGAÇÃO

BOAS IDEIAS NUM TOQUE DE DEDOS

“Que as pessoas enxerguem a Amazônia não só para extrair ingredientes, mas como um lugar de referência para pesquisar, avançar, para inovar”.

Alergia a Medicamentos Desenvolvido pelo médico Fábio Morato Castro, este app ajuda o usuário a descobrir se

Roberto Smeraldi, coordenador do Centro Global de Gastronomia e Biodiversida-

tem alergia a algum medicamento. Basta in-

de da Amazônia, durante exposição da culinária paraense em Milão, Itália.

formar o princípio ativo do remédio e descobrir quais podem ou não causar problemas. A interface em português é bem simples de usar. Entretanto, o app é para consultas mais simples e nunca poderá ser usado como substituto de uma opinião médica.

“O potencial de desenvolvimento florestal do Brasil é enorme. Precisamos traduzir esse potencial em riqueza, em inclusão, em tributos, em empregos”

Plataformas: Android e iOS Preço: Gratuito

Charity Miles

Francisco Gaetani, do Ministério do Meio Ambiente, durante o lançamento do Inventário Florestal Nacional, uma parceria entre o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

Um app de saúde e caridade. Com ele, o usuário é encorajado a caminhar, andar de bicicleta ou correr. O exercício é medido com o smartphone e se transforma em dinheiro para doações a diversas entidades, como as

OSWALDO FORTE/ ARQUIVO O LIBERAL

de combate ao câncer, ajuda humanitária, entre outras. A cada milha percorrida, você ajuda uma causa com doações. Plataformas: Android e iOS Preço: Gratuito

Segurança do Trabalho O app reúne dicionários de termos técnicos de segurança do trabalho, legislações (NRs ou normas reguladoras), dá dicas de segurança, contém vídeos de trabalho seguro, notícias e até informa vagas de emprego. O app conso-

“A forte ligação entre o Japão e o Brasil está refletida em diversos projetos de grande porte” Akishino, príncipe japonês, em visita a Belém, pelas comemorações dos 120 anos da “Amizade Brasil-Japão”. O Pará concentra uma das maiores comunidades nipônicas do país e é um dos principais

lida de forma mais prática as leis trabalhistas e melhores práticas que estão em constante atualização e facilitar o acesso a pessoas que não são técnicos de segurança do trabalho. Plataforma: Android Preço: Gratuito

exportadores de minérios para o Japão. FONTES: PLAY STORE E ITUNES

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CURIOSIDADES DA BIODIVERSIDADE

INOCÊNCIO GORAYEB

Florestas amazônicas maduras: crescimento e fim do carbono As árvores estão erradicando o carbono. E isso é bom! Pelo menos segundo conclusões da monografia “Mudanças na biomassa, dinâmica e composição da floresta amazônica (1980-2002)”, publicada ainda em 2009 pela “União Americana de Geofísica”. É que as florestas amazônicas maduras têm adquirido biomassa, composta por carbono, apresentando crescimento acelerado. E, por isso, funcionam como sumidouro de carbono. Os autores notaram um considerável aumento líquido de biomassa em árvores que já chegaram a pelo menos dez centímetros de diâmetro do

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caule ao longo dos séculos XX e XXI. O processo foi diagnosticado na floresta amazônica. Caso outras florestas tropicais estejam realizando o mesmo, a taxa de sumidouro de carbono será surpreendentemente maior. Os resultados são especialmente promissores em função da ação do ser humano e outros fatores responsáveis pelo aquecimento global. Os pesquisadores ainda apontaram a possibilidade de que, no futuro, haja risco de que esses ecossistemas passem por transições de sumidouro de carbono em função da maior respiração, maior mortalidade e por mudanças na composição florística, como a troca para

plantas de madeira mais leve. Assim, as florestas continuam demonstrando um impacto real em mudanças climáticas, biodiversidade e ao bem-estar humano, embora a aceleração documentada do crescimento e mortalidade arbóreos já pareça estar afetando as interações de milhares de plantas e milhões de espécies animais. Os autores da monografia são Niro Higuchi, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa); Simone Vieira, da Universidade de São Paulo (USP); Oliver Phillips, Timothy Baker, Kuo-Jung Chao e Simon Lewis, University of Leeds.


DESENHOS NATURALISTAS

CONCEITOSAMAZÔNICOS O VOCABULÁRIO REGIONAL É UM PATRIMÔNIO

Pelo interior a fora e mesmo nos quintais de meios urbanos, basta dispor um pequeno banquete que os pássaros aparecem: um mamão cortado ao meio é o suficiente para a festa de bem-te-vis, soítas e pipiras. Volta e meia, aparece um passarinho um pouco mais raro. Já pensou num papa-capim-de-coleira palitando o bico ao lado da sua janela? Para as casas em que ele ainda não apareceu, o desenho de 1871 apresenta o bichinho. Em preto e branco, com o bico curto, olhos quase castanhos e um ar curioso, eis o papa-capim-de-coleira. O desenho foi publicado no periódico Ibis, prancha XI, como ilustração da descrição da espécie feita por Pelzeln. O passarinho pertence à espécie Dolospingus fringilloides, família Thraupidae, única nesse gênero. A espécie é pouco conhecida, ocorrendo no extremo noroeste da Amazônia, mais ou menos entre os

estados de Amazonas e Roraima. Sua preferência é por campinas, campinaranas, capoeiras e vegetação de cerrado no topo de serras. No Brasil, foi registrado em veredas úmidas do rio Xié, tributário do rio Negro e, ainda, no Parque Nacional do Jaú, no Amazonas. Recentemente, a área de abrangência desse passarinho cresceu e muito. Já foi registrado no norte do Mato Grosso, afora a Pan-Amazônia: Venezuela, Colômbia e Guiana. Para conhecê-lo melhor, basta procurar por “canto Coleiro Sil Sil” em sites de busca na internet para ouvir o papa-capim-de-coleira. A bem da verdade, vai ser meio difícil avistar esse passarinho comendo frutas no quintal. Então, façamos melhor. Plante um mamoeiro ou um cajueiro, que vão aparecer pica-paus, casas-velhas, sabiás, curiós e toda uma leva de sócios no negócio das frutas.

ILUSTRAÇÃO: SÁVIO OLIVEIRA

ACERVO DE OBRAS RARAS DO MUSEU GOELDI

Pássaro amazônico quase desconhecido

A boiuna e as grandes histórias da região Como nos rios que mudam de tonalidade, de textura, de composição e bravura, assim vão os mitos pela Amazônia: sempre, de lugar pra lugar, no decorrer do tempo, contados com algum elemento diferente, mas compondo o todo numa bacia de rios, baías e igarapés. Desse jeito contam-se as várias histórias, na boca da noite da soleira familiar. Desse jeito se conta a história da cobra grande. Dentre as várias narrativas na bacia hidrográfica de mitos, uma índia engravidou da serpente. Deu à luz, então, a duas crianças-cobras gêmeas: um menino chamado Honorato e uma menina chamada Maria. Mas rejeitou os filhos, atirando-as ao rio, onde se criaram. Na história, Honorato era bom, mas Maria, má. Menina que seguia a causar problemas e prejuízos a animais e pessoas. Honorato, então, acaba por assassiná-la. O menino, porém, por vezes conseguia tornar-se gente, virando um rapaz elegante. Para quebrar totalmente o encanto, era preciso que alguém derramasse leite em sua boca e fazer um ferimento que sangrasse em sua cabeça. Um dia, como se conta, em Cametá, município da região do Baixo Tocantins, no Pará, um caboclo conseguiu a tal façanha.A boiuna está também no conto “Acauã”, de Inglês de Sousa, que narra a vida de uma menina nascida da cobra.

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AVES DA AMAZÔNIA

Amarelinho-da-amazônia O amarelinho-da-amazônia ( Inezia caudata) é uma ave passeriforme da família Tyrannidae. Seu nome científico é uma homenagem a Enriqueta Iñez Cherrie, filha do ornitólogo George Cherrie, que descreveu o pássaro; mais a terminação “caudata” (com cauda longa/ curta). Logo, a espécie é uma “ave de Iñez com cauda longa”. Mede 12 centímetros e pesa entre 7 e 8 gramas. O amarelinho-da-amazônia tem uma ampla e característica sobrancelha branca que parte da região supraloral e vai até a parte imediatamente posterior aos olhos. Os lores são brancos. Os olhos são de coloração amarelo-claro. A fronte é verde acinzentada, já a coroa, manto, uropígio e parte dorsal da cauda são verde-oliva. As asas são escuras e apresentam duas barras alares claras bastantes distintas. As rêmiges são escuras com as bordas claras, assim

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como as retrizes que apresentam na extremidade final uma fina linha clara. O peito apresenta coloração amarelo-acinzentada que se torna mais clara quanto mais próximo do ventre que é amarelo pálido. O crisso é amarelo, e o bico, tarsos e pés são cinza escuro. A ave possui duas subespécies: Inezia caudata caudata (Salvin, 1897) , que ocorre do Sul da Venezuela até as Guianas e no extremo Norte do Brasil; e Inezia caudata intermedia (Cory, 1913), que ocorre nas planícies da costa caribenha do Nordeste da Colômbia e no Norte da Venezuela. O amarelinho-da-amazônia é encontrado em matas de terra firme, manguezais e plantações, matas secundárias e capoeiras. Muito ativo e irrequieto, a espécie persegue pequenos insetos nos ramos mais externos das copas das árvores e arbustos, às vezes entre bandos mistos de pássaros insetívoros.

FICHA TÉCNICA

Reino: Animalia Filo: Chordata Classe: Aves Ordem: Passeriformes SubOrdem: Tyranni Parvordem: Tyrannida Superfamília: Tyrannoidea (Vigors, 1825) Família: Tyrannidae (Vigors, 1825) Subfamília: Elaeniinae (Cabanis & Heine, 1860) Espécie: Inezia caudata FOTO: FEROZE OMARDEEN/ WIKICOMMONS


COMO FUNCIONA

A salga do pirarucu TEXTO E ILUSTRAÇÃO SÁVIO OLIVEIRA

As primeiras fábricas de salga de pescado datam do século 2 d.C, implantadas pelos romanos na Lusitânia. Com o Império Romano, a técnica de salgar

alimentos, se difundiu pelo mundo. Os egípcios utilizavam a conserva para alimentar o povo no período de seca do rio Nilo. Os fenícios começaram

a salgar aves e carnes de carneiros e peixes no transporte de comércio de sal. Os portugueses salgavam carnes para abastecer tripulações em alto

mar. Das inúmeras expedições portuguesas pelo mundo, uma chegou às terras brasileiras, que trouxe a técnica de salgar o pirarucu amazônico.

PASSANDO O SAL

Como conservar um dos peixes mais típicos da região

O pirarucu é um dos maiores peixes do mundo, podendo chegar a 3m e ao pesando 200kg.

FONTES: DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO E PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO BRASIL: A IMPORTÂNCIA ANTROPOLÓGICA E CULTURAL DA SALGA COMO MÉTODO NATURAL DE DESITRATAÇÃO DA CARNE. MARIA VICENÇA FROTA RODRIGUES DAMÁSIO. MANEJO DO PIRARUCU: SUSTENTABILIDADE NOS LAGOS DO ACRE. WWF-BR

Para a captura, devem ser usados arpão ou redes. O anzol fura o estômago do peixe, causando um processo bacteriano na carne.

Após a captura, o peixe deve ser lavado e as escamas devem ser totalmente retiradas.

As mantas são obtidas realizando cortes ao longo da espinha dorsal, da nadadeira anal até a cabeça do peixe.

Deve-se lavar bastante para que não haja coágulos de sangue na carne.

Após secar, as mantas devem ser “filetadas” novamente, sendo divididas em mais três, quatro ou seis peças, para que o sal se distribua uniformemente.

Na salga seca, as mantas são empilhadas em camadas de sal grosso e fino. O processo demora de cinco a oito dias.

Na salga úmida, a salmoura é feita em uma caixa térmica. O sal entra nas fibras do peixe, à medida, que a água deixa a carne.

Daí o peixe vai para o varal ficar de duas a três horas para retirada do excesso do sal, podendo ser consumido em até 2 anos. NOVEMBRO DE 2015

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CIÊNCIA CIÊNCIA

No rastro das línguas nativas Grupo de linguistas do Museu Goeldi pesquisa as formas de comunicação entre índios amazônicos e padres europeus entre os séculos XVII e XVIII TEXTO FERNANDA MARTINS FOTO ROBERTA BRANDÃO

O

LINGUISTAS

Cândida Barros e Gabriel Prudente trabalham para resgatar e preservar as origens indígenas

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rém, os colonizadores perceberam que havia um tronco linguístico comum. Nesse esforço de evangelizar, os jesuítas acharam muito mais viável adotar uma língua indígena do que impor o Português. Para isso, eles padronizaram uma língua baseada no termos nativos e fizeram documentos como esses que norteiam nossa pesquisa. Desta forma, eles mesmos conseguiam aprender esta língua e a reproduzir para os colegas. A função da língua geral foi a de ser uma língua de comunicação supra étnica”, observa o pesquisador Gabriel Prudente, que integra o grupo liderado pela linguista Cândida Barros. As tentativas de traduzir os valores religiosos para a língua indígena ficam claras nas páginas dos manuscritos pesquisados no projeto, escritos por padres jesuítas da Europa Central, que atuaram na Amazônia em meados do século XVIII. Os sacerdotes eram chamados de “tapuitingas” pelos indígenas. O termo era diferente do “caraíba”, destinado

aos portugueses, mostrando a percepção dos povos daqui. “Tapui significa bárbaro; por isso se alguém dá tal nome ao povo daqui, não gostam, embora êles nos dêem o mesmo nome a nós outros que somos brancos, mas não lusitanos: mas acrescentam ao nome a palavra tinga, que significa branco, donde tapuitinga, isto é, bárbaro branco”, relatou o jesuíta húngaro David Fay, em uma carta de 1753. A língua não possuía uma forma escrita recurso inexistente na cultura indígena - que foi toda convencionada pelos jesuítas. “Os catequistas precisavam ter um discurso homogêneo. Não dava para cada um chegar a um lugar e desenvolver seu próprio discurso. Por isso, esse empenho em criar um padrão”, explca Cândida Barros. O esforço dos jesuítas em realizar sua missão, aliás, é claramente percebido quando comparados manuscritos como “Doutrina Christaã em lingoa geral dos índios do Estado do Brasil e Maranhão, composta pelo P. Philippe Bettendorff, traduROBERTA BRANDÃO

problema era tão complexo que levou séculos para ser superado. As diferenças linguísticas entre europeus e os povos tradicionais brasileiros eram apenas a ponta de um iceberg de disparidades culturais. Para viabilizar a questão básica da comunicação, nasceu a língua geral da Amazônia - mais tarde chamada de Nheengatu. O idioma unia características das diversas línguas nativas do tronco tupi locais, com pitadas do português, e se tornou bastante popular em toda a região amazônica, persistindo ainda hoje, com estimados 200 mil falantes no Norte do Brasil. Uma equipe de linguistas do Museu Paraense Emílio Goeldi trabalha para resgatar e preservar as origens deste tesouro cultural, que permite uma melhor compreensão da história da Amazônia. Era um mundo novo, de fato, para o colonizador europeu que chegava à Amazônia nos séculos XVII e XVIII. Espantavam-se com o clima, fauna e flora. Entretanto, o grande desafio ficou por conta da comunicação com os povos nativos. No mundo globalizado de hoje pode ser difícil compreender a dimensão do choque cultural entre europeus e índios. Toda a estrutura de crenças e valores, suas rotinas e costumes eram distintos. Naquele momento, os jesuítas, que chegavam com a missão de catequizar os nativos, perceberam o trabalho que teriam para se fazer entender. “Quando os europeus chegaram, cada grupo falava seu próprio dialeto. Eram mais de 700 línguas. Po-


DIGITALIZAÇÃO

Tão fascinante quanto a história que os linguistas descobrem é a dos manuscritos em si. Resultado de pilhagens, confiscos e doações, os documentos que narram a história da Amazônia estão espalhados por todo o mundo. Muitos deles - acreditam os pesquisadores - ainda estão por serem descobertos, permanecendo enterrados, como verdadeiros tesouros de conhecimento, em porões e baús de antigas bibliotecas e coleções pessoais. Por outro lado, quando encontrados são recebidos com muita festa pela comunidade científica que, para democratizar o acesso ao conteúdo, cada vez mais se esforça por disponibilizar os documentos on-line.

“SALUTATIONS LARMOYANTES”/ JEAN DE LÉRY, 1580

DOIS MUNDOS

O encontro entre os índios Tupinambá e colonizadores europeus nem sempre foi amistoso, principalmente pela falta de compreensão dos idiomas “SALUTATIONS LARMOYANTES”/ JEAN DE LÉRY, 1580

zida em lingoa g[eral] irregular, e vulgar uzada nestes tempos”, de autor desconhecido, escrito no século XVIII e localizado na Biblioteca da Universidade de Coimbra, em Portugal com o “Dicionário Português-Língua Geral e Língua Geral-Português”, datado de 1756, encontrado na Biblioteca Municipal de Trier, Alemanha. “Existem vários termos cristãos que não existiam naquela língua. Então, para facilitar a compreensão dos nativos, os jesuítas criaram neologismos e ressignificaram expressões do vocabulário indígena para explicar a doutrina cristã”, diz Gabriel Prudente. Tupã é um exemplo clássico desta prática. Este era o nome que os indígenas atribuam ao raio, um fenômeno da natureza. Para tentar explicar o conceito de divindade aos nativos, os jesuítas associaram Tupã a Deus. “A questão do Deus uno e trino gerava muita confusão na cabeça dos índios e os jesuítas precisavam encontrar uma forma de utilizar os termos indígenas para tentar traduzir uma realidade que não era conhecida por eles”, acrescenta o pesquisador. Outra questão fundamental que deu trabalho para ser moldada na língua foi a da sexualidade nativa. O Catolicismo prega a importância da virgindade - que dá sentido à história de Maria - e transforma o sexo em algo pecaminoso. No entanto, o conceito de virgindade, tal como entendido pelos cristãos, não existia originalmente na língua tupi, o que dificultou sua tradução pelos missionários. “Nos primeiros catecismos escritos pelos jesuítas na língua geral, Maria era definida como ‘mulher sem buraco feito por homem’, o que chega a ser até meio cômico”, conta Cândida.

Use um leitor de QR Code, pelo celular ou tablet, e acesse o site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde você pode consultar um extrato do dicionário Língua Geral-Português, de 1756

Este será o destino do dicionário Língua Geral-Português, localizado por acaso em uma biblioteca alemã. O documento datado de 1756 faz muitas referências à região do Xingu e foi encontrado em 2012 pelo linguista luxemburguês Jean Claude Miller, que buscava fontes dos jesuítas sobre a Índia. “Essa descoberta acabou mudando o nosso projeto, devido sua importância. Tanto que este é o dicionário mais recente localizado mas será o primeiro a ser divulgado”, revela Cândida Barros. O projeto prevê colocar o dicionário completo disponível para pesquisa via mecanismos de busca on-line. O conteúdo será hospedado pelo site da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Por outro lado, disponibilizar o teor destes documentos não é tarefa simples. “Há um trabalho de transcrição, que leva bastante tempo”, conta Gabriel, que é o responsável por essa parte do projeto. Entre as habilidades necessárias para tal estão a compreensão do Português arcaico e a - não menos difícil - da caligrafia dos jesuítas. Isso sem falar na necessidade de um nível de conhecimento da

própria língua indígena, para poder perceber eventuais lapsos do escriba ao escrever na língua geral. E, ainda, no caso dos manuscritos escritos por jesuítas “tapuitingas”, alguns erros de Português que denunciam a falta de proficiência do autor e aumentam a complexidade do trabalho. Por enquanto, apenas o verbete da letra A pode ser consultado no site da biblioteca. Na lista de documentos pesquisados pelo projeto do Museu Goeldi está um manuscrito feito em Santos, São Paulo, datado de 1591. Ele foi localizado na biblioteca da Universidade de Oxford (Inglaterra). “Este documento foi levado do Brasil durante a pilhagem de uma vila brasileira no século XVI. Tudo foi destruído. Porém, o pirata não era um vândalo qualquer. Era um antigo aluno de Oxford, que recolheu os manuscritos e doou para a universidade. Seu conteúdo só foi descoberto no século XX”, conta Cândida. Ela acredita que muitos outros seguem incógnitos, esperando por pesquisadores curiosos e obstinados que os tragam à luz do conhecimento atual. NOVEMBRO DE 2015

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OLHARES NATIVOS

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Pescador

Ribeirinho conserta a rede antes

de mais um dia de trabalho nos rios de Santarテゥm. FOTO: FERNANDO SETTE

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OLHARES NATIVOS

Na feira Peixeiro vende o surubim pescado no litoral do Estado FOTO: FERNANDO SETTE

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Paraíso O banho à beira-rio em uma praia de Mosqueiro FOTO: FÁBIO PINA

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OLHARES NATIVOS

Calmaria O outro lado de Salinópolis quase desconhecido FOTO: RENATA CORRÊA

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Nas Docas Guindaste icônico de um dos principais cartões-postais de Belém FOTO: carlos borges


OLHARES NATIVOS

Parceiros

A jogatina de velhos amigos em um fim de manhã no porto do Sal, em Belém FOTO: OSWALDO FORTE

O frei e a Sé

A estátua de Caetano Brandão compõe o cenário em frente à Catedral Metropolitana de Belém FOTO: CAMILO FERREIRA 30 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Dia de Finados

Cemitério Santa Isabel, em Belém. Homenagem aos mortos. FOTO: OSWALDO FORTE

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OLHARES NATIVOS

Víbora A cobra à espreita de sua vítima em uma mata de Belém FOTO: CARLOS BORGES

Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos 32 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail amazoniaviva@orm.com.br acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!


OPINIÃO, IDENTIDADE, INICIATIVAS E SOLUÇÕES TARSO SARRAF

IDEIASVERDES

Triste cenário O TRÁGICO ACIDENTE EM BARCARENA QUE CAUSOU UM DOS MAIORESDESASTRES AMBIENTAIS NO PARÁ

PÁGINA 38

SEGURANÇA

AGRICULTURA

O professor do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública da UFPA, Edson Ramos fala sobre a relação polícia e comunidade. PÁG.34

Comunidades do bairro da Terra Firme participa de programa de produção agrícola em pleno zona urbana da capital paraense. PÁG.48


ENTREVISTA

A

atuação da polícia na repressão ao crime, desde as manifestações coletivas, passando por pequenas infrações isoladas, a conflitos que envolvem um maior número de pessoas e delitos, é alvo de muitas críticas da sociedade em geral no Brasil. Por ser remanescente da ditadura civil-militar brasileira, a formação dos agentes de segurança ainda traz resquícios de uma visão repressora no que se refere ao cidadão. Em meio a esse contexto de transformação que o país atravessa, foi criado o Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PPGSP) da Universidade Federal do Pará (UFPA). O projeto mira num propósito: formar agentes que desempenhem funções na área de segurança pública e analisar os impactos positivos e negativos desse trabalho na sociedade, levando em consideração os aspectos da democracia e os direitos do cidadão garantidos por lei. Diversas frentes de pesquisa são trabalhadas no programa, segundo o estatístico e doutor em engenharia de produção, professor Edson Ramos, também docente do curso. Membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ele resume: “a gente trabalha muito com a população”. Os estudos foram tomando outros caminhos na área de segurança pública, e o que antes era primordial avaliar, como manchas de crime em bairros considerados perigosos, passam a tomar um ar globalizado. “Saímos dos gargalos de dentro das comunidades porque percebemos que a criminalidade migra quando existe repressão”, considera. O trabalho passa a ser um reflexo aguardado pela sociedade. Após a chacina ocorrida em Belém em novembro de 2014, quando onze pessoas foram mortas em cinco bairros da cidade durante uma madrugada, a sensação de impunidade ainda ronda

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“A visão que se tem da polícia melhorou muito” É O QUE AFIRMA O ESTATÍSTICO EDSON RAMOS, PROFESSOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEGURANÇA PÚBLICA DA UFPA. PARA ELE, A ATUAÇÃO DA POLÍCIA NA SOCIEDADE TEM AMADURECIDO GRAÇAS AO CONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. TEXTO NATÁLIA MELLO FOTO ROBERTA BRANDÃO


ANDERSON SILVA/ AGÊNCIA PARÁ

“A proximidade (entre a polícia e a comunidade) pode ocorrer através da implementação de novas políticas públicas de segurança. As UPPs são um bom exemplo disso.” as comunidades. Os profissionais formados pelo programa de mestrado em segurança pública já chegam a 35, dentre 72 aprovados nos últimos cinco anos. Ramos revela que a expectativa é de que seja possível ter um bom corpo de gestores quando esse número de qualificados chegar a 500. “Poderemos transformar os resultados dos trabalhos em políticas públicas e perceber a renovação natural nos quadros das polícias”. Confira a seguir a entrevista com Edson Ramos. Como se configura a relação entre a polícia e a comunidade hoje? A proximidade pode ocorrer através da implementação de novas políticas públicas de segurança, visando a duas coisas: a redução da criminalidade e aproximação da polícia da comunidade. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são um bom exemplo disso. Os policiais são convidados a ouvir a comunidade e conhecer as pessoas daquele bairro. Dados

PROXIMIDADE

A implantação de novas políticas públicas ajuda a reduzir a criminalidade e aproximam a polícia das comunidades, afirma o professor Edson Ramos

divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que as duas maiores reduções dos índices de criminalidade do país foram no Rio de Janeiro (6%) e em São Paulo (4,3%). Belém também experimenta uma queda no índice de mortes violentas (2,6%), que envolve homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. De que forma políticas públicas que abrangem essa área podem ser construídas?

O curso é multidisciplinar, tem estatístico, sociólogo, psicólogo, geógrafo, profissional do direito, é uma congregação de profissionais. Então, o programa busca que os nossos alunos comecem a estudar as políticas e metodologias que vêm dando certo no mundo todo para a redução da criminalidade e ver como isso se encaixaria em algumas comunidades de Belém. Os resultados serão transformados em políticas públicas. Um caso de sucesso do programa é o estudo de um aluno nos primeiros 10 km da BR-316. Ele elaborou uma metodologia que hoje as rodovias federais adotam no Brasil. Por conta disso, caímos da 1ª NOVEMBRO DE 2015

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ENTREVISTA

ficar onde estão as maiores deficiências do sistema para atuar lá, ou implementar políticas públicas e fazer estudos na área. A partir desses levantamentos, por exemplo, contribuímos com o Plano Municipal de Segurança de Belém. Hoje, as câmeras são colocadas em pontos estratégicos da cidade a partir de um mapeamento que nós fizemos.

“Desenvolver uma cultura científica para combater a violência e a aproximação com a comunidade é o grande ganho do programa”

para a 18ª ou 19ª posição entre as rodovias mais violentas. Há projetos que aproximam a população do trabalho da polícia? Temos um convênio com a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Segup), em que a gente tenta identi36 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Como pode ser aprimorada a formação de profissionais nessa área? Juntamos a prática policial com a teoria da academia. O curso é para agentes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil e Militar, Corpo de Bombeiros, IML (Instituto Médico Legal) e da sociedade. Qualquer pessoa de nível superior que trabalha com a temática de segurança pública pode ser aluno do mestrado. Isso tem trazido a oportunidade de discutirmos temas mais relevantes, como a criminalização dos crimes virtuais, como lidar com os bitcoins, que são moedas virtuais. A gente discute como o sistema e a legislação brasileira vai atuar nisso. Por que investir em equipamentos e técnicas de inteligência? A importância é que cada vez mais a gente consegue salvar vidas. Investindo nisso, o policial pode não se expor tanto durante uma ação, novas práticas de rua estão ensinando o policial a se proteger. As abordagens ao cidadão passam a ser planejadas e todas as vertentes que têm o trabalho policial são analisadas de forma científica. Isso é transformado em política pública e investimento no sistema. O que a gente está vendo é que o programa está criando uma nova cultura baseada no planejamento em pesquisas. O senhor considera que os direitos humanos tiveram avanços? Temos alguns especialistas em direitos humanos no programa. Talvez seja o campo da segurança pública que mais tem avançado. Alguns legisladores brasileiros criticam muito o fato dos direitos


RODOLFO OLIVEIRA/ AGÊNCIA PARÁ

humanos avançarem em favor dos presos e pouco em favor do cidadão, porque o direito do cidadão comum não é tão respeitado quanto o direito do preso no momento do flagrante. Mas estudos revelam que há um avanço muito grande no Brasil no que diz respeito aos direitos humanos e que as políticas públicas pensadas de uma forma geral levam em consideração o direito humano. Que impactos podemos ter na sociedade a médio e a longo prazo, pensando em mudanças qualitativas no que se refere ao combate à violência? Além do ganho científico para a região e para o país, financeiramente muda pelo fato de que um acidente é extremamente caro. Um dado da PRF aponta que o Pará economizou algo em torno de R$ 3 bilhões que seriam gastos com acidentes e mortes nas estradas paraenses e toda a metodologia que foi desenvolvida aqui está sendo replicada no país todo. Então, desenvolver uma cultura científica para combater a violência e a aprox imação com a comunidade é o grande ganho do programa. Além disso, existe uma produção gigantesca de conhecimento em várias áreas da segurança pública, que podem ser transformadas em políticas públicas, e talvez seja o grande ganho do programa. Ainda existem muitas críticas nas abordagens da polícia. O senhor consegue vislumbrar uma melhora de perfil do policial?

ESTUDO A atuação policial no Estado é tema de pesquisas na UFPA, que têm alcançado resultados promissores

Muitos dos nossos alunos que chegaram aqui são policiais. Depois de observar o fenômeno da criminalidade, mudaram a postura. A visão que se tem da atuação da polícia melhorou muito. O que é curioso é que as pessoas que vêm para o programa começam a ser como sementes e espalhar que existe um jeito de estudar isso de forma científica, de fazer política pública e melhorar o sistema, com equipamento, treinamento, identificando as falhas dos policiais. Quando chegarmos a 500 agentes formados, podemos esperar um movimento nessa direção de mudança dos resultados desses policiais. NOVEMBRO DE 2015

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Desolação em

Barcarena UM DOS MAIORES DESASTRES AMBIENTAIS DA HISTÓRIA DO ESTADO REFLETE A NECESSIDADE DE UM EFICIENTE PLANO DE GESTÃO, CONTROLE, FISCALIZAÇÃO E MEDIDAS URGENTES DIANTE DE ACIDENTES, COMO O NAUFRÁGIO COM QUASE CINCO MIL BOIS EM VILA DO CONDE

N

O dia após o desastre Morador caminha ao lado de dezenas de carcaças de bois na praia de Vila do Conde

TEXTO DILSON PIMENTEL FOTOS TARSO SARRAF

o dia 6 de outubro, o navio Haidar, de bandeira libanesa, que transportaria cinco mil bois vivos para a Venezuela, afundou no porto de Vila do Conde, em Barcarena, no Pará. O naufrágio causou um desastre sem precedentes em uma região já habituada a danos ambientais. Comunidades inteiras foram afetadas pelo acidente. Parte do óleo da embarcação vazou e uma grande quantidade de animais mortos foi parar na praia de Vila do Conde, de onde já houve a retirada. Carcaças também chegaram às comunidades ribeirinhas. A maioria dos bois, porém, permanece em avançado estado de putrefação dentro do navio, que está no fundo. Por causa dessa contaminação, pescadores e comerciantes não podem realizar suas atividades. Praias ao redor foram interditadas. Os moradores acumulam prejuízos e vivem dias de incertezas. Diante desse cenário desolador surge um desafio: o que deve ser feito para evitar novas tragédias ambientais e humanitárias como a de Barcarena? Nesse desastre, o que mais preocupa o professor Hélio Ferreira, doutor em Ciências da Gestão e do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade do Esta-

do do Pará (Uepa), é o total despreparo para enfrentar situações dessa natureza. “Foi uma surpresa! Francamente, ainda que fossem 500 bois, ou mesmo 50 bois. Não tínhamos um plano para agir, para reagir à situação que se manifestou. Isso é que conta: o fato de acharmos que isso nunca vai acontecer em um porto é inaceitável”, diz. Segundo ele, não ter um plano de gestão de riscos e justificar que não tem é para deixar a sociedade bastante preocupada. “Para efeito de lembrança, gostaria de citar dois fatos recentes ocorridos em aeroportos em Belém e em São Paulo. O avião que literalmente saiu da pista e atolou durante procedimento de manobra no aeroporto de Val-de-Cans, causando transtornos aos usuários por vários dias. Outra situação ocorreu no aeroporto de Guarulhos, quando um avião teve um pneu furado ao aterrissar, e ficou vários dias parado na pista, interrompendo as operações do aeroporto por quase uma semana. Em ambas as situações não havia equipamentos para remover os aviões da pista. Os exemplos citados servem para ilustrar que não colocamos em prática a gestão de riscos, instrumento necessário para evitar e minimizar os danos provocados por esse gênero de ocorrência”, afirma o professor. NOVEMBRO DE 2015

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Hélio Ferreira tem pesquisas tanto na questão hidroviária quanto nos aspectos de sustentabilidade para empresas. Nessa linha, atuou na criação da grade de um curso sobre Transporte Hidroviário e Gestão Portuária, da Uepa, no qual buscou enfatizar aspectos como legislação ambiental, segurança do trabalho e responsabilidade socioambiental. Ele diz que ser competitivo é uma condição essencial para sobreviver no mundo contemporâneo. “Entretanto, respeitar e compreender a importância do meio ambiente, da segurança daqueles que trabalham em condições que lhes obrigam a conviver com risco é uma exigência que precisa estar muito clara nas ações que as empresas desenvolvem. É importante registrar que 40 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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seguir princípios socioambientais também se constitui um fator que colabora para promover a imagem das organizações junto à sociedade, inclusive em alguns casos favorece também o acesso a linhas de financiamento mais acessíveis”, comenta. “Por essa razão, a formatação de nosso curso de Transporte Hidroviário e Gestão Portuária foi efetuada a partir de contatos com especialistas no tema, que atuam nos segmentos público e privado, privilegiando esses dois aspectos, levando em consideração o contexto amazônico, nossa casa”, completa. O professor lembra que vivemos em uma região de dimensões continentais. “Porém, isso não quer dizer que, por conta das dificuldades geográficas, preci-

samos deixar de lado as normas de segurança que devem ser rigorosamente seguidas, independentemente da situação que se manifeste. Essas normas devem ser continuamente aperfeiçoadas para estar em sincronismo com os avanços tecnológicos, que ocorrem muito rapidamente”, afirma. Quanto ao transporte de cargas, explica Ferreira, a natureza nos deu uma região onde, em muitos casos, o rio é a rua. “Faz-se necessário que este rio seja sinalizado de forma adequada para permitir que a navegação ocorra de forma segura. Além disso é preciso proteger ambientalmente nossos rios. É urgente que a sociedade se conscientize não apenas da importância econômica que o rio tem, mas também que ele é

TRISTEZA

Morador olha, ainda sem acreditar, para o gado morto em frente à sua casa. Ele usa máscara por causa do forte odor de carne apodrecida.


um provedor de recursos para a vida em nossa região”, alega. Hélio Ferreira diz que os órgãos responsáveis pelas gestão e fiscalização das normas ambientais precisam ser mais eficientes. “Não pode ser simplesmente negligenciado o que deve ser realizado por falta de capacidade de realizar e deixar de ser feito por não contar com os recursos necessários para efetivar o que está previsto em lei para ser feito”, afirma. E completa: “Finalmente, trabalharmos diuturnamente na conscientização dos cidadãos, para transmitir a importância do meio ambiente e do cumprimento de normas de segurança para reduzirmos os impactos que continuamos a provocar e as dores que os acidentes causam a sociedade”. Acidentes ocorrem, mas o professor Hélio Ferreira diz que isso não é justificativa para ser adotada como resposta. “Fiscalizar de forma intensiva e contínua. Capacitar recursos humanos para atuarem de forma a poderem agir preventivamente. Disponibilizar recursos para reagir rapidamente. Por exemplo, o material usado para contenção da mancha de óleo rompeu dois dias após ser colocado. Creio que esse material deveria suportar condições bem adversas. Por isso, indago-me sobre o estado desse material utilizado, que poderia mais uma vez minimizar os danos ambientais, evitando a expansão da área atingida, uma vez que atua na contenção da mancha de óleo”, diz. O pesquisador acrescenta também que é impossível evitar todos os acidentes, porém nas circunstâncias em que ocorreu o desastre em Barcarena é preciso se trabalhar com a premissa de minimizar os danos que poderão ser causados, sejam eles econômicos, sociais ou a perda de vidas humanas ou de animais. “Contudo, pode-se perceber que não se trata de não estar preparado para um acidente desse porte, mas de reconhecer e agir para sejam evitados outros acidentes no futuro. Quanto às responsabilidades, cabe a realização de investigações que apurem com rigor os

POLUIÇÃO

Além dos bois mortos, uma grande quantidade de óleo vazou do navio Haidar, que afundou no porto de Vila do Conde, no rio Pará. As baias de proteção se romperam e não conseguiram conter o produto.

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fatos e os culpados sejam exemplarmente punidos. Registre-se que nada disso terá valor se as lições extraídas do acidente não servirem para que ações concretas sejam planejadas e implementadas, uma vez que este é o roteiro para uma operação portuária segura e responsável”, opina. ÁREA DE RISCO O sociólogo Paulo Melo, especialista em Gestão Ambiental e mestre em Gestão e Auditoria Ambiental, destaca que o porto de Vila do Conde está localizado numa área de risco ambiental, cuja vulnerabilidade vem aumentando na medida em que novas operações são efetuadas no terminal portuário. “A intensificação no embarque de carga viva sem dúvida aumentou esse cenário de risco e, como em outros acidentes ocorridos na região, era uma questão de tempo para acontecer. Conforme informações da empresa Minerva Foods (proprietária dos bois embarcados), a carga do navio era de 4.984 animais, considerada pequena e a embarcação também de porte pequeno. Ou seja, chama a

atenção o fato de que o volume de animais a cada embarque é crescente pois há navios com capacidade para 20 mil animais. E aí surge uma questão importante: como estava ocorrendo o controle de carga pelos órgãos fiscalizadores? Sabe-se que a Companhia Docas do Pará terceirizou a certificação do embarque a outras empresas”, diz. Paulo Melo afirma perceber fragilidades no controle dos embarques e na tomada de decisões a partir do momento em que começou o acidente, pois foram várias horas de mera expectação, ou pelo menos de tentativas frustradas de evitar o afundamento da embarcação. “Intrigante também saber que o porto sequer possui Plano de Emergências. E o resultado não poderia ser mais desastroso. Total descontrole da situação que se desenvolveria a partir de então causando poluição hídrica e afetando diretamente a população residente na Vila do Conde, que, mais uma vez, está sendo duramente penalizada. O que parecia uma festa com muita carne para fazer o churrasco logo se tornou um tormento para toda a população da região,

pois os animais começaram a apodrecer e o odor insuportável permanece até hoje nas proximidades do local. Inclusive a maior parte da carga permaneceu dentro da embarcação, apodrecendo e contaminando os cursos d’água da região, somando-se a isso a grande quantidade de combustível que atingiu as praias não só de Barcarena”, analisa. Segundo o especialista em Gestão Ambiental, esse foi um acidente com impactos de permanência duradoura e consequências muito abrangentes para toda a região. Inclusive, explica, ainda não se sabe como o ambiente vai responder a essas consequências a médio e longo prazo. “A pluma de contaminação tem atingido comunidades de Abaetetuba e deve ser monitorada essa dispersão de contaminantes pelos órgãos ambientais e de saúde pois a preocupação deve ser focada nos efeitos na população exposta. Náuseas, vômitos, irritação cutânea e das mucosas das vias aéreas foram alguns agravos na saúde da população da Vila do Conde, além dos impactos na socioeconomia lo-

SOFRIMENTO HUMANO E ANIMAL

Os primeiros dias do desastre foram marcados pela demora na solução do caso 6 de outubro

8 de outubro

9 de outubro

Pela manhã, após o carregamento das 4,8 mil cabe-

O juiz da comarca de Barcarena, Deomar Alexan-

Comissões e comitês multidisciplinares são monta-

ças de gado, o navio Haidar, da Minerva Foods, co-

dre de Pinho Barroso, expediu um mandado

dos em Barcarena para acompanhar as operações

meçou a virar e naufraga ainda atracado no pier 300

de intimação que previa, dentre uma série de

de limpeza e investigações, além de dar suporte

do porto de Vila de Conde, em Barcarena, nordeste

determinações, que a Companhia de Docas do

direto aos moradores que passem qualquer dificul-

do Pará. A embarcação ia para a Venezuela. Os 28

Pará (CDP), a Minerva Foods e a Global Agência

dade enquanto o problema não for solucionado.

tripulantes são custodiados pela Polícia Federal.

Marítima iniciassem de imediato a retirada dos

Investigações e cuidados foram tomados para aler-

animais mortos do rio Pará, devendo ser dada

tar a população que não consuma a carne dos bois

7 de outubro

uma destinação adequada de modo a não

mortos devido a riscos de contaminação, tampouco

O pier, três praias de Vila do Conde e a praia de Beja

causar prejuízos ambientais e à saúde das

que qualquer consumidor compre carnes

foram interditadas para banho e aproximação. A

pessoas. Além disso, a CDP e demais empre-

sem selo de inspeção sanitária e mar-

Companhia Docas do Pará (CDP), a Polícia Civil do

sas deveriam providenciar a retirada imedia-

cas de procedência. A mancha

Pará, a Marinha do Brasil, a Secretaria de Estado de

ta do volume de óleo diesel depositado nos

de óleo diesel do combustível

Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), a Capi-

tanque do navio que vem se espalhando pelas

da embarcação começa a

tania dos Portos da Amazônia Oriental e o Instituto

águas. Outra exigência é que fossem elabo-

crescer e a amea-

Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

rados e encaminhados relatórios diários das

çar outras

Renováveis (Ibama) abriram inquéritos para investi-

atividades desenvolvidas à autoridade policial

praias do

gar - cada órgão na sua atividade fim - as causas do

competente bem como ao Ministério Público do

nordeste

acidente e responsáveis.

Estado do Pará.

paraense.

FONTES: CAPITANIA DOS PORTOS DA AMAZÔNIA ORIENTAL, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO PARÁ, GOVERNO DO ESTADO, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ

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cal, pois a praia foi interditada, a atividade pesqueira e comercial sofreram imediato déficit, tendo as famílias que sobreviver de doações de cestas básicas, inclusive consumindo água mineral fornecida”. Segundo Paulo Melo, o município de Barcarena possui política de meio ambiente consolidada a partir de vasta legislação publicada, cujos instrumentos previstos vão desde a educação ambiental, licenciamento e fiscalização ao monitoramento ambiental. A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Barcarena (Semade) passou por reformulação no início da atual gestão objetivando modernizar a atuação nas questões ambientais do município. Outro fator importante para o avanço da gestão ambiental na cidade foi a celebração de convênio de descentralização com o órgão estadual, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), principalmente para o licenciamento ambiental de atividades poluidoras de impacto local. “A Semas licencia as atividades poluidoras de impacto intermunicipal e regional, além

de ser responsável pela fiscalização e apuração de danos ambientais das atividades para as quais emite a licença. No caso do Ibama, atua na fiscalização das empresas de grande porte e licencia as atividades de impacto interestadual. Porém, o que se percebe é a fiscalização esporádica ou apenas quando ocorrem acidentes ambientais, faltando ações preventivas e corretivas, bem como auditorias ambientais e sociais para o avanço da gestão nessa área de risco. Até mesmo o licenciamento ambiental é realizado com várias fragilidades, ora por falta de equipes técnicas para dar conta da demanda de empreendimentos ora pelas falhas no acompanhamento de cumprimento das próprias condicionantes das licenças emitidas”, diz. O gestor ambiental afirma que, no caso do acidente em Vila do Conde é necessário analisar cuidadosamente como estava sendo realizada a fiscalização dessa atividade de embarque e se a empresa cumpria de fato as condicionantes da licença de operação. Outra questão importante que ele destaca é a política ambiental que deve

ser integrada, pois os órgãos responsáveis pela gestão devem agir com planejamento estratégico na aplicação da legislação, sem sobreposição de competências, principalmente, se tratando de uma área de risco como a nossa. “Surgem outros questionamentos fundamentais: por que somente quando ocorrem acidentes dessa natureza aparecem os órgãos das variadas esferas administrativas com dezenas de caminhonetes e técnicos especializados? Não deveria isso ser uma ação rotineira com vistas à prevenção de acidentes?”, questiona Paulo Melo. O sociólogo diz ainda que, na pesquisa sobre a gestão ambiental em área de risco em Barcarena para sua dissertação de mestrado, levantou a discussão sobre como se desenvolvia a gestão empresarial fazendo contraponto com a gestão pública. “Observei que a gestão empresarial é um investimento que visa a garantir a boa imagem das empresas com vistas à sustentabilidade exigida pelo mercado. Por isso, muitas dessas empresas buscam certificação ambiental para que seus produ-

11 de outubro

12 de outubro

grama para a retirada de todo o óleo e dos carcaças

Uma das barreiras de contenção dos cadáveres se

Os comitês e comissões começam a distribuir

que ainda estão no interior do navio. A retirada dos

rompe. Os primeiros bois mortos começam a flutuar e

máscaras respiratórias para que a população mais

animais mortos começa.

aparecer nas praias interditadas. O mau cheiro come-

afetada não sofra com o mau cheiro e contamina-

ça a exalar e incomodar, além de adoecer, moradores

ção. Pessoas com problemas de saúde e idosos

16 de outubro

passaram a ser retirados de casa pela Defesa Civil

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara

para evitar agravamento de quadros de saúde ou

Federal que investiga maus-tratos a animais, visitou

contração de novas doenças.

a cidade de Barcarena para obter mais detalhes so-

do entorno. Barcarena é tomada por protestos em vários horários. Os moradores reclamam que as famílias estão

bre a operação de limpeza, investigações policiais

recebendo apenas um garrafão de 20 litros de água mineral,

15 de outubro

e punições aos responsáveis. A ideia de incinerar os

mas que precisa de mais.

O Ministério Público Federal, o Ministério Público

corpos dos animais foi descartada pelo governo,

Nenhuma indenização em

do Estado do Pará e a Defensoria Pública do Esta-

que acredita que a melhor solução seria enterrar os

do do Pará ingressaram com uma ação liminar que

animais mortos e começa a buscar o local adequa-

exigia a paralisação total das atividades no terminal

do para isso.

dinheiro estaria sendo apga aos comerciantes que dependem da praia.

portuário de Vila do Conde. Era exigido que fossem assegurados o fornecimento de máscaras contra

17 de outubro

odores, distribuição de água potável e ajuda finan-

novos vazamentos de óleo e o Governo Federal

ceira para os moradores impactados pelo desastre

oferece ajuda às famílias prejudicadas junto com a

ambiental, bem como que seja definido um crono-

Minerva Foods.

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tos sejam ecologicamente corretos e se submetem a rigorosas auditorias. No caso da gestão pública trata-se de um desafio para os órgãos ambientais em face da burocracia e desaparelhamento, além do fato de que o meio ambiente não é prioridade para muitos governantes”, afirma. Ele também apontou algumas conclusões que julga ainda serem necessárias: mudança da concepção de desenvolvimento baseado na lógica do capital internacional para uma base sustentável que inclua as populações tradicionais e seus saberes; valorização dos servidores que atuam na gestão ambiental, a partir de remunerações compatíveis com a importância da atividade desempenhada; qualificação e aperfeiçoamento dos servidores; fortalecimento da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Barcarena; cobrança rigorosa das empresas poluidoras; e mudança na relação empresa e comunidade; aplicação dos recursos financeiros das multas nas comunidades atingidas, como forma de compensação pelos danos ambientais sofridos; remanejamento das comunidades que ainda residem na área industrial. Paulo Melo afirma ainda que, após o acidente, foi utilizado o equipamento de uma empresa instalada na área industrial para fazer a contenção dos animais e do combustível que vazou da embarcação, pois nem o porto, nem bombeiros e órgãos ambientais possuíam as condições necessárias para o contingenciamento da situação. O gestor ambiental lembra que, em audiência pública realizada na Vila do Conde, no dia 16 de outubro, para tratar da situação e tomada de providências após o acidente no porto foi proposta, pela Divisão Especializada em Meio Ambiente (Dema), a criação do Centro Integrado de Meio Ambiente. “Isso também corrobora o que discuti na pesquisa referida sobre a implan44 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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COMUNIDADE

A população busca respostas para o acidente ocorrido em Barcarena. Passado mais de um mês do episódio, alguns problemas ainda não foram solucionados.

tação de um posto avançado da Secretaria de Estado de Meio Ambiente voltado para a fiscalização e monitoramento ambiental, pois entendo que, somente com ações integradas e planejadas pelos diversos órgãos ambientais e sociedade, avançaremos no fortalecimento da gestão e prevenção de

acidentes ambientais, haja vista que, nessa área de risco, já está operando o terminal graneleiro e implantando-se mais um porto hidroviário, cujos impactos cumulativos e sinérgicos não estão sendo avaliados adequadamente”. No mesmo dia 16 de outubro, a Semas


soube do acidente, mas por meio da população em Vila do Conde. Em nenhum momento chegou um documento oficial da Companhia Docas do Pará (CDP) formalizando o acidente e passando as informações necessárias para a melhor condução desse acidente, afirma Paulo Melo. Como secretaria de meio ambiente e sustentabilidade, a Semas diz ter enviado imediatamente equipes de fiscalização e licenciamento para Barcarena para averiguar a situação do acidente. A partir daí, todos os procedimentos administrativos foram abertos em desfavor das empresas responsáveis pelo acidente, bem como foi cobrado o plano de ação para que o descarte dos resíduos da embarcação fossem realizados com segurança ambiental e de forma imediata. O papel da Semas, como órgão ambiental do Estado, é fiscalizar, autuar, multar, monitorar e notificar as quatro empresas responsáveis pelo acidente e também a CDP. Cumprindo o seu dever com a população que vive próximo ao local do acidente e, sabendo que o impacto ambiental causou transtorno a essa população, a Secretaria afirma cobrar, desde o início das operações, um plano de ação sólido da companhia portuária para que o descarte dos bois seja realizado de forma segura para o meio ambiente e para a sociedade que vive na região. Até o momento, a Semas já emitiu doze autos de infração e quatro notificações cobrando o plano de ação que é obrigatório pela CDP. Um multa de R$ 2 milhões também está correndo pelo descumprindo de todas as notificações que foram entregues às empresas e à CDP. O plano solicitado está sendo avaliado por uma equipe técnica de plantão da secretaria para que seja feita uma análise rápida. Ao todo, 20 servidores da Semas estão envolvidos nessa missão: 14 técnicos das equipes de fiscalização e licenciamento estão em campo acompanhando tudo de perto. A secretaria vai continuar acompanhando todo o procedimento

ÓLEO E SANGUE

No dia do naufrágio, a praia de Vila do Conde ficou tomada por corpos de bois mortos. Ribeirinhos tentavam limpar o rio Pará usando varas e as próprias canoas.

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da retirada do óleo do rio Pará, bem como das carcaças dos bois e da embarcação como um todo, para proteger a população e o meio ambiente. E esclarece que todas as medidas legais também já foram tomadas. Como forma de prevenir novos acidentes, a Semas entendeu que interditar embarcações de transporte de carga viva no porto de Vila do Conde era a melhor forma de conduzir a situação até que sejam providenciados os planos detalhados, bem como o plano de contingenciamento de carga viva. A administração do porto é da Companhia Docas do Pará (CDP), liga-

do à Secretaria de Portos da Presidência da República, que afirma ter adotado todas as providências cabíveis. O diretor-presidente da companhia, Parsifal Pontes, joga a culpa para os responsáveis pelo navio. “Essa responsabilidade está dentro do navio. O capitão do navio, os operadores de dentro do navio é que terão essa responsabilidade, digamos, subjetiva”, afirmou em coletiva logo após o acidente. Prefeito de Barcarena, Antonio Carlos Vilaça diz que as grandes empresas se instalaram no município, mas “pouca coisa foi criada para proteger a popula-

ção. Foi pouco lembrado (por esses empreendimentos) que aqui em volta existe a população. Esse é mais um acidente, o 18º, e até agora nenhuma providência foi tomada. Afundou um navio cheio de óleo e de animais e não se sabe o que fazer. A população está totalmente prejudicada. Sempre foi assim”, afirma. E completa: “Precisamos criar um mecanismo para socorrer esse povo”. Ele, inclusive, decretou situação de emergência nas áreas do município afetadas pelo desastre ambiental com contaminação por vazamento de combustível. Segundo o prefeito, os locais

LIMPEZA

Empresas contratadas usaram tratores para limpar a praia. Trabalho de remoção dos cadáveres durou dias em Barcarena.

A TRAGÉDIA EM NÚMEROS

Acidente alcançou proporções colossais em Vila do Conde •

4,8 mil cabeças de gado estavam embarcados

interditadas, além do próprio pier onde ocorreu

no navio Haidar, da Minerva Foods, de bandeira

o naufrágio

libanesa;

Pelo menos 500 trabalhadores - número que

Os 28 tripulantes do navio ficaram sob custódia da Polícia Federal

O prejuízo é estimado em quase R$ 800

Cerca de 200 bois foram salvos

participou de audiência pública - que depen-

milhões, sendo R$ 14 milhões do custo dos ani-

4,6 mil animais morreram, alguns enquanto

dem das praias foram prejudicados.

mais e R$ 200 milhões em seguro

tentavam nadar para se salvar e outros se

8 mil pessoas moram em Vila do Conde

afogaram ainda presos no porão do navio, sem

40 dias serão necessários para a limpeza total

chance de resgate. •

R$ 150 mil é o custo diário de operação para a

A limpeza total e descontaminação da água pode levar até 6 meses

das praias

700 toneladas de combustível estavam carre-

600 máscaras de proteção

limpeza dos estragos

e 80 litros de água mineral

90 dias é o prazo final para a emissão do laudo

estão sendo disponibilizados

Desses, 730 mil litros ainda estão submersos

que apontará todas as causas do acidentes e

às famílias pela Minerva Foods,

3 praias de Vila do Conde e a praia de Beja foram

responsabilidades de cada órgão

Governo Federal e Governo do Estado

gadas e uma quantidade ainda não estimada vazou, mas acredita-se que foi quase tudo. •

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atingidos pela contaminação são povoados por moradores e ribeirinhos que sobrevivem da pesca e se utilizam da água do rio e que esses locais são considerados pontos turísticos com uma intensa frequência nos finais de semana, “trazendo prejuízos aos proprietários dos estabelecimentos comerciais ao longo de toda a orla fluvial e risco aos frequentadores”. Petronilo Progênio Alves, que faz parte do grupo de trabalho que representa as comunidades impactadas pelos grandes empreendimentos industriais e portuários de Barcarena, diz que a implantação do parque industrial e portuário no município desalojou famílias tradicionais “que foram engrossar os bolsões de miséria nas grandes aglomerações urbanas juntamente com um índice elevado número de migrantes, vindo dos mais diversos estados brasileiros e vários municípios paraenses que ali se estabeleceram, gerando um aumento populacional desordenado, violência, desemprego e favelização”. Em nome daquele grupo, Petronilo também apresenta propostas consideradas urgentes, entre as quais a criação de uma central de gerenciamento, monitoramento e controle ambiental, formada pelos órgãos ambientais das três esferas de governo, com a participação das empresas e a sociedade civil organizada; e a constituição de um fundo de desenvolvimento socioambiental para garantir a sustentabilidade das comunidades na execução de projetos sociais e a garantia de segurança alimentar para a população atingida em caso de acidente ecológico. A professora Simone de Fátima Pereira, da Faculdade de Química e coordenadora do Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam) da Universidade Federal do Pará (UFPA), tem um histórico dos acidentes ambientais registrados em Barcarena. A Universidade faz pesquisas na região há sete anos. Simone disse ainda que os estudos do Laquanam mostram que as águas dos rios e das comunidades de Barcarena não devem ser usadas pela população para consumo. Ela também disse que as atividades industriais e portuárias necessitam de reformulação, le-

vando em consideração os impactos ambientais causados à população e ao meio ambiente. E que a Semas deve exigir das indústrias e dos operadores portuários planos de contingência. O desastre em Barcarena demonstra, portanto, que muito ainda precisa ser feito para evitar a ocorrência de acidentes dessa natureza no Estado. Também falta muito para que sejam adotadas medidas urgentes e eficientes logo após a ocorrência dessas tragédias. E que, tão importante quanto preservar o meio

ambiente, é cuidar do ser humano, sobretudo dessas famílias que sofreram e continuam sofrendo os impactos dos danos ambientais. O apelo feito por Jackeline Gomes da Costa, que mora em uma ilha de Belém e que, assim como outros habitantes das comunidades ribeirinhas da região, estão sofrendo por causa do desastre nos serve de reflexão diante dessa tragédia. “Estão esperando a gente morrer para poder agir? Queremos ação. Tem gente passando fome”. NOVEMBRO DE 2015

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COMUNIDADE

Agricultores da zona urbana Associação cultiva produtos orgânicos em Belém, gerando emprego e renda a dezenas de famílias TEXTO FABRÍCIO QUEIROZ FOTOS IGOR MOTA

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P

ra sábado, pouco mais de 8 horas da manhã e o sol já estava a pino. Mesmo de calça e sapatos, podia sentir as formigas caminhando naquele terreno, enquanto nos ouvidos soava o zumbido das abelhas. Um pouco mais longe ouvia-se uma conversa em voz alta. Cercado por pés de macaxeira, batatas, couve, cheiro-verde e cariru, estava Mérisson Rezende, um engenheiro agrônomo desconhecido para mim até três meses atrás quando comecei a produzir

esta reportagem sobre iniciativas de agricultura urbana em Belém. Entre idas e vindas, finalmente conheci seu trabalho voluntário junto a uma associação de agricultores. Cerca de 300 metros separam o ponto de encontro do grupo da principal via urbana da localidade. O verde da floresta que cerca a estrada da Ceasa, no bairro Curió Utinga, parece encobrir a existência e a resistência de produtores que há quase 30 anos tentam construir ali um sonho de viver da agri-

cultura em pleno centro urbano. Inserida em políticas de desenvolvimento social e combate à fome, a agricultura urbana é considerada uma alternativa à agricultura tradicional rural, geralmente voltada à monocultura e a mercados externos. Em pequenas áreas dentro ou no entorno das cidades, a chamada zona periurbana, essa modalidade de produção visa suprir a necessidade de produção para consumo próprio e para as demandas locais. Desta forma,

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COMUNIDADE

possibilita uma série de benefícios ambientais, sociais e econômicos para a população, como preservação de áreas verdes e da biodiversidade, geração de emprego e renda e segurança alimentar. Tão perto da cidade, mas longe dos olhares e das preocupações de muita gente, iniciativas desse tipo carecem de investimentos e conhecimento técnico para o seu desenvolvimento. Foi o que aconteceu com a Associação Agrícola da Terra Firme (Asproter) que mantém desde 1988 um espaço de oito hectares imaginado para ser um dos núcleos de produção de alimentos que poderia abastecer a capital. Quem lembra da história é Antônio Carlos Ferreira, 42 anos, mais conhecido como Toddynho. Há 27 anos, um grupo ocupava uma área próxima ao antigo Núcleo Pedagógico Integrado da Universidade Federal do Pará, quando então foram transferidos pela prefeitura e governo do Estado para este terreno nas proximidades da Ceasa. Além da terra, tratores e outros equipamentos agrícolas, insumos e linhas de empréstimo foram dadas aos produtores. Com o tempo o incentivo público cessou, mas a persistência dos envolvidos manteve a associação. “Nunca abandonei, gosto disso aqui e até hoje temos essa fé de trabalhar. Conquistamos muita coisa através da associação”, diz o agricultor que junto com a família tem uma produção de hortifruti, macaxeira e criação de galinhas caipiras. Na área, 18 associados produzem em um sistema familiar semelhante, em pequena escala e com uma estrutura modesta, mas com um grande desejo de que o rural possa ser reconhecido como parte importante da cidade. “Dentro de Belém ninguém acha que tem agricultura. Os departamentos nem conhecem a nossa estrutura, não sabiam nem que a gente existia. Agora a gente está reclamando esses direitos que são dados a todo agricultor, mas que em Belém ainda era muito fraco”, conta Paulo 50 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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TERRA FÉRTIL

Os produtores da Associação Agrícola da Terra Firme recebem a orientação técnica do engenheiro agrônomo Mérisson Rezende (no detalhe)

de Tarso Amarante, presidente da Asproter. Hoje, a associação passa por um momento de transição em que tenta articular com instituições como Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) para que o modelo de agricultura urbana seja fortalecido com transferência de tecnologias e conhecimentos. “Às vezes, com os defensivos, a gente pensa que está fazendo uma coisa boa, mas em compensação está fazendo mal porque não tem mais formiga, as próprias abelhas também vão sumindo. Quanto mais orgânico, melhor. É uma produção mínima, pequena, mas dá mais saúde para pessoa e renda também”, afirma Toddynho, que junto com os NOVEMBRO DE 2015

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COMUNIDADE

outros agricultores projeta os ganhos que uma produção orgânica trará para eles e para a população em geral. “Muito do que a gente consome vem de fora e isso encarece a cada dia mais o nosso custo de vida. E a gente aqui dentro, tendo um espaço bom, um espaço verde que possa usufruir, é muito bom”, completa.

INVESTIMENTO

As mudanças inseridas na lógica de

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cultivo da associação começaram há dois anos, quando Mérisson Rezende chegou ali para desenvolver as ações sociais da Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado do Pará. Investindo tempo, recursos próprios e, sobretudo, a boa vontade ele hoje vê satisfeito os resultados da dedicação prestada em nome de um sentimento simples: empatia. “Me sinto realizado como profissional e me sinto realizado como cidadão por

poder também contribuir pra que outras pessoas tenham um apoio do meu conhecimento para que elas realizem o sonho delas. Eu sou um cara realizado em todos os aspectos, tudo que você almeja na vida eu alcancei, batalhei, corri atrás e o que eu puder fazer pra que as pessoas que estão ao meu redor possam atingir também, eu vou fazer”. Para ele, o passo necessário para desenvolver a associação era difundir o


CONHECIMENTO

Além do trabalho na lavoura, os agricultores se reúnem constantemente para trocar experiências e expor dificuldades e soluções

conhecimento acumulado das ciências agrárias, bem como contribuir para a autonomia real dos agricultores. “A gente precisa de tecnologia, mas uma tecnologia lógica com máquinas pequenas passíveis de serem trabalhadas pelo agricultor e o custo baixo com eficiência alta. Aí você pega uma motocultivador de R$ 4 mil e uma roçadeira de R$ 1,8 mil e faz um trabalho de uma maquina maior, ou que ele não iria conseguir fazer na mão. Isso é pegar o conhecimento teórico e le-

var para prática, fazer com que a tecnologia que é a mais adequada seja adotada, fazer com que o teu conhecimento como profissional esteja a serviço de alguém”, observa. O exemplo parte dele mesmo. Ali, Mérisson Rezende coloca a mão na terra, orienta sobre técnicas de compostagem e demonstra ser possível plantar e colher diferentes variedades de macaxeira, batata doce, bananas e hortaliças em um solo pouco fértil. Superando as adversi-

dades e um senso comum que desacredita a capacidade dos produtores, ele pensa que a confiança e a solidariedade podem incentivar o desenvolvimento da agricultura urbana. “Belém, para se tornar hoje uma cidade modelo, precisa de ações solidárias, não somente do compromisso político nem pontual. As pessoas veem a solidariedade como alguma coisa ligada a uma grande campanha ou a alguma grande política ou a instituições como ONGs. Não. Ser solidário


COMUNIDADE

TRABALHO

Com o projeto de agricultura urbana, os moradores de Terra Firme encontraram uma fonte de renda

é todo dia”, pontua o engenheiro agrônomo. Diante de um cenário em que a demanda por produtos orgânicos aumenta, a Asproter tem a expectativa de que novos projetos como a criação de uma feira possa atrair consumidores e em consequência mostrar a importância e as necessidades desta comunidade e ou54 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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tras no entorno de Belém. “O projeto da feirinha mostra que a gente quer abrir a associação para população. Vai ser uma possibilidade da gente vender toda a nossa produção, mostrando que nós temos produção boa e orgânica, e quem sabe com isso venha apoio. Nós queremos que a população venha para ajudar tanto nós quanto quem está ao nosso redor”, co-

menta Paulo de Tarso. Por saber que, de fato, só se colhe o que se planta, Toddynho acredita que o trabalho duro está germinando e dará frutos em breve. “Nós estamos com uma meta que, se Deus quiser, nos fará ser vistos pelas pessoas. Também quero que Deus nunca deixe eu desvanecer dessa luta. Eu quero vencer aqui, ficar velhinho por aqui”.


ARTE, CULTURA E REFLEXÃO FERNANDO SETTE

PENSELIMPO

Samba da gente A INTÉRPRETE MARIZA BLACK SE DESTACA COMO UMA DAS PRINCIPAIS VOZES DO SAMBA NO PARÁ PÁGINA 56

DEVOÇÃO

POLÍTICA

O médico Camilo Salgado ficou conhecido pelos atos de caridade. Depois de sua morte, é cultuado como santo. PÁG.60

As investigações da operação federal Lava Jato expõem o interesse das empreiteiras com os grandes projetos na região amazônica. PÁG.66

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PAPO DE ARTISTA

Tem mulher na roda de samba MARIZA BLACK É UM DOS PRINCIPAIS EXPOENTES DO RITMO NO PARÁ, IMPRIMINDO FEMINILIDADE NO TERRITÓRIO DE GRANDES BAMBAS TEXTO VITO GEMAQUE FOTOS FERNANDO SETTE

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A

intérprete paraense Mariza Black, conhecida nas rodas e casas de samba de Belém, tem na voz inconfundível a sua marca registrada. Seja em cima do palco ou puxando um desfile de escolas de samba no Carnaval, a cantora tenta de maneira única levar alegria para o público. Nos 13 anos de carreira, ela já possui no currículo apresentações em aberturas de shows em Belém, como da diva da música brasileira, Elza Soares, em 2009; representou o Pará no evento “Rua do Samba Paulista”, em São Paulo, e no “Auto do Círio” já dividiu o palco com Dominguinhos do Estácio. Mariza Black também esteve no mesmo palco que Marcelo D2 e Farofa Carioca (2010), banda Araxé (2011), Leci Brandão e Leandro Sapucahy (2012). Na expectativa de lançar o primeiro CD, a cantora falou com a revista Amazônia Viva sobre música, influências, negritude e o futuro do samba paraense. O que é o samba para você? O que ele representa? O samba é vida, é arte, o samba é amor, é a alegria. O samba é a inspiração da minha vida. Em alegrias e tristezas a gente está com o samba. É ele que está junto.

Como foi a sua carreira no samba? Como foi a busca por essa vertente da arte? Eu gosto de música desde pequenininha. Eu sempre participei de programas de dança, por influência dos meus pais, que gostam muito de música. Era onde eu tinha o primeiro contato. A minha família ama samba. Eu posso dizer que eu cresci em uma família em que as pessoas gostam de samba. E foi essa influência que eu tive no início da minha carreira profissional, no início da trajetória com o samba. Na verdade, eu cantei por um mês MPB. Foi um amigo meu, o Carlinhos Gutierrez, quem me batizou como Mariza Black. Eu ia muito para videokê. Na noite, conheci NOVEMBRO DE 2015

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PAPO DE ARTISTA

o Carlinhos, que do videokê me colocou um microfone na mão e me empurrou para um barzinho na Cidade Nova, em Ananindeua. Dei uma canja e ele me disse: “olha, teu nome vai ser Mariza Black”. Muita gente questionou porque “black”. Por que não “brown”? Eu disse não, o Carlinhos me batizou como Black e foi como ficou. Logo em seguida, um mês mais um menos, eu comecei a visitar rodas de samba, tive contato com o pessoal da Diretoria do Samba, onde uma pessoa me apadrinhou e eu fiz parte do grupo, por mais ou menos uns três anos. Isso foi em 2003, e partir da Diretoria do Samba, no mesmo período, eu entrei em um bloco de Ananindeua chamado Caprichosos da Cidade Nova, onde o presidente é a dona Raimunda e o seu Mário, o vice. Eu ingressei nesse bloco quando era do grupo B e nós acessamos para o grupo A. Hoje em dia nós somos uma escola de samba do grupo de acesso, fomos subindo etapas graças a Deus.

VOZ PODEROSA

Mariza Black emprega sua personalidade de mulher negra e amazônica nos sambas que canta

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A gente sabe que em nível nacional há grandes expoentes do samba, conhecidos mundialmente, servindo como uma grande vitrine para o Brasil. Ao mesmo tempo, a gente tem um samba feito na Amazônia. O que você pode falar sobre esse samba feito aqui? Qual é a particularidade dele? Eu acho a gente pode citar a questão do sotaque. Nós temos como cultura tradicional o carimbó e o brega e eu acredito que nós temos esse sotaque impresso no samba daqui. Não que ele seja melhor ou pior, não posso falar isso, mas a gente tem o nosso sotaque. A gente tem o nosso jeito de fazer samba. Eu sou intérprete de samba, eu canto tanto samba nacional quanto regional, nós temos composições boas. No Rio de Janeiro, gravei um samba de um paraense, o Toninho Nascimento. Aqui em Belém, eu não tenho um CD pronto. Eu ia fazer um EP com seis músicas e fui para o Rio para poder fazer isso. Cheguei lá e me deparei no estúdio com uma música do Toninho. Ele me

“Nós temos como cultura tradicional o carimbó e o brega e eu acredito que nós temos esse sotaque impresso no samba daqui. A gente tem o nosso jeito de fazer samba.” deu “Senhora do Mar” para gravar, na verdade é dele com a parceria do Lúcio Mariano, com quem tive contato no estúdio. Ele disse: “tu vieste do Pará e tu vais gravar a música de um paraense”. E o Toninho Nascimento é renomado, fez composições para Clara Nunes, foi campeão pela Portela em samba-enredo. Ou seja, é um cara de responsa e referência. Eu falo que nosso samba paraense tem o seu sotaque. No show, a gente acaba fazendo essa mistura gostosa. Eu acabo tocando alguns carimbós em ritmo de samba. O samba é uma herança cultural dos negros, e aqui no Pará temos isso muito forte com a presença de quilombos. O Pará é o Estado que mais tem regiões quilombolas. Como você vê essa influência negra na música paraense como uma intérprete? Essa influência vem não só para o samba, vem para todas as vertentes no Brasil. Sempre tem aquele pezinho. E é algo lindo. Eu já fiz parte de grupos regionais. Eu dançava em um


grupo onde a gente viveu essa herança, a gente podia demonstrar através da dança essa cultura negra. Eu acho lindo, o samba vem da mesma raiz. Ele é a raiz. É prazeroso trabalhar nessa vertente do samba expressando a cultura negra e a arte. Você acha que a cultura ainda hoje é expressão dessa cultura? Com toda certeza ele representa. De onde ele nasceu da cultura negra não tem como desvirtuar se ele vem ou não de lá. Ele representa sim. Algumas questões que envolvem o combate ao racismo estão mais presentes hoje. Apesar de ser uma coisa que ainda persiste no Brasil é algo que cada vez mais se discute como as cotas em universidades e em concursos públicos para negros

e pardos. Como você avalia essa tentativa de acabar com o preconceito? Eu como mulher negra sou a favor. A gente tem que pregar não ao racismo, mas há pessoas que são contra as cotas. Nós sofremos um preconceito. Até hoje ainda existe esse preconceito mascarado. Eu já sofri esse preconceito, quando iniciei minha carreira como cantora. Por que samba até então é coisa de homem. As rodas de samba era para homem. Uma das pioneiras que ingressou nas rodas de samba é a Dona Ivone Lara, que ainda está viva, ela é uma grande referência de mulher negra e foi a primeira a fazer parte dos compositores de samba. No Brasil, a questão do preconceito ainda existe. Claro que não posso dizer que é como era antigamente. A mulher negra vem lutando no dia a dia, a mulher

em geral, vem lutando contra o preconceito. Ver uma mulher em ascendência é sempre bom.

RAÍZES

“É prazeroso trabalhar nessa vertente do samba expressando a cultura negra e a arte”, acredita Mariza Black

Qual é a sua perspectiva do samba no Pará. Daqui a alguns meses será Carnaval. Como você vê esse novo ano? Eu tive que entrar numa academia agora para poder aguentar o pique do Carnaval porque ele é intenso. E a gente tem que se preparar todos os dias. A verdade é essa. A minha perspectiva é que o samba no Pará está tendo uma ascendência maior com um amigo chamado Arthur Espíndola, um cantor que a maioria das pessoas já conhece e está fazendo esse “samba amazônida”. O artista paraense começou a se incorporar, abriram várias associações para a gente poder ter uma força, para o samba do Pará ter uma força maior. A união faz a força. NOVEMBRO DE 2015

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MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

O médico do povo e para o povo TEXTO BRENDA PANTOJA ILUSTRAÇÕES JOCELYN ALENCAR

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Camilo Salgado 1874-1938


L

ogo na entrada do cemitério Santa Isabel, no bairro do Guamá, uma sepultura chama a atenção pela quantidade de velas, flores, fitas e placas de agradecimento. Em frente a ela, é comum ver muitos visitantes fazendo orações a Camilo Henriques Salgado Junior, o renomado médico paraense que, após a morte, tornou-se figura de devoção popular. Ainda hoje são reproduzidos os relatos de curas milagrosas e conservadas as lembranças de um homem caridoso e profissional competente. Quando iniciou os estudos na Faculdade de Medicina da Bahia, o jovem Camilo Salgado talvez não imaginasse a dimensão do vasto legado que deixaria também como professor e político. Nascido em Belém em 22 de maio de 1874, frequentou o Liceu Paraense, hoje chamado Colégio Estadual Paes de Carvalho. Depois de iniciar a formação em Salvador, em 1891, Camilo concluiu o curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, passando pelos dois únicos polos de ensino médico de sua época. Retornou ao Pará em 1897, já formado, mas logo decidiu aprofundar os conhecimentos e embarcou para Paris. Ao voltar definitivamente para a terra natal, atuou como médico generalista (atual clínico-geral) e cirurgião, em hospitais como a Santa Casa de Misericórdia do Pará, Hospital da Ordem Terceira e Beneficente Portuguesa. Camilo foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, criada em 15 de agosto de 1914. Ele também contribuiu para a instalação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em 1919, onde foi diretor e lecionou até sua morte. A trajetória política transcorreu paralelamente, uma vez que ele foi eleito ao Senado Estadual em 1918 e 1927, e como vereador em 1935. Todo o prestígio da figura pública não impedia que o médico fizesse atendimentos domiciliares ou concedesse consultas e cirurgias gratuitas para pacientes carentes. “No início do século XX, a ciência médica estava em processo de consolidação, com os profissionais se articulando para fortalecer sua atuação e a confiança na medicina científica. FONTE: A LINHA IMAGINÁRIA E OUTRAS LINHAS, RUY GUILHERME BARATA, SECULT, 2014.

Camilo esteve à frente de muitos projetos e era reconhecido pela competência técnica e pela maneira como se doava aos pacientes”, ressalta o antropólogo e historiador Éden Moraes da Costa. Pela qualidade da formação no exterior e o trabalho em uma região necessitada de recursos, o médico chegou a ser considerado um homem à frente de seu tempo. Aliado a esses aspectos, sua morte repentina contribuiu para a construção da imagem de santo popular. Dentre as muitas histórias conhecidas e admiradas do médico, está a de que ele trabalhou até o último dia de sua vida, mesmo sentindo os sintomas de uma crise de angina, complicação cardíaca que o matou em 2 de março de 1938. Ele faleceu em casa, na rua dos Pariquis, de onde saiu um cortejo até o cemitério de Santa Isabel. “O processo de glorificação começou ali mesmo e a devoção segue forte até hoje, quase 80 anos depois, alcançando muitos jovens”, observa Éden. Desde então, todos os anos, na primeira semana de novembro, em função do Dia de Finados, é enorme o fluxo de devotos ao túmulo de Camilo Salgado, mas a missa em honra aos mortos também reúne muita gente que pede por saúde e proteção ou agradecer as curas alcançadas. A celebração é realizada toda segunda-feira no cemitério onde ele está enterrado e muitos participantes aproveitam a ocasião para recitar uma prece que foi escrita em homenagem a Camilo. Oficialmente, a Igreja Católica se refere ao médico como uma “alma santa e bem-aventurada”, mas a “santificação” foi um processo popular. “O interesse pela pesquisa surgiu porque existe uma circularidade cultural dessa devoção, que acontece entre pessoas de diferentes níveis econômicos e educacionais, e mesmo quem não conhece a trajetória dele, sabe fazer referência ao médico”, explica. A crença nas curas milagrosas não anula a busca dos devotos pela medicina tradicional. Ao recorrerem a Camilo Salgado, um homem que reconhecidamente praticou o bem para a população local, como um santo popular, esses devotos buscam não só fortalecer a saúde, mas também revigoram a fé. NOVEMBRO DE 2015

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AGENDA AGÊNCIA AMAZONAS

TRANSAMAZÔNICA A mostra “Do que Permanece” fica em exposição no Museu Paraense Emílio Goeldi até o dia 6 de dezembro, e faz parte da Edição 2015 do Arte Pará. As obras, em fotografia e vídeo, se concentram diversos temas como o declínio da memória e o retrato de ilusões perdidas na Transamazônica. O espaço fica aberto à visitação de quarta-feira a domingo, de 9h às 15h. TRADUÇÃO O III Simpósio Tradução & Memória será realizado de 17 a 20 de novembro, no Auditório Setorial Básico I, da Univerisdade Federal do Pará. A proposta é consolidar a participação e inclusão da UFPA como centro disseminador de pesquisa e intercâmbio com pesquisadores de diversas universidades, nacionais e internacionais, no âmbito dos estudos de tradução. Mais informações por meio do site 3tradumemo.wordpress.com.

Obstetrícia para mulheres ribeirinhas

PSICOLOGIA

O IX Congresso Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal (COBEON) e o 3º Congresso Internacional

O X Congresso Brasileiro de Psicologia do

de Enfermagem Obstétrica e Neonatal, serão realizados, de 2 a 4 de dezembro, no Hangar. Realizado a

Desenvolvimento – CBPD 2015, acontece de

cada dois anos, o encontro vai abordar em sua programação científica a realidade das mulheres ribei-

18 a 21 de novembro, no Hangar. Com o tema

rinhas, quilombolas e indígenas. Está é a primeira vez que o Congresso será realizado na região Norte.

“Inovação Científica e Tecnológica e Com-

Informações e inscrições no site: www.cobeoncieon2015.com.br/.

promisso com o Desenvolvimento Humano, o evento trará apresentação de trabalhos, cursos e atividades que serão desenvolvidas,

TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

contando com a importante participação de renomados profissionais, educadores e pesquisadores de todo o Brasil que trarão

gia da Informação e Comunicação

as suas contribuições científicas. A progra-

(SATIC) da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), será de 7

DIVULGAÇÃO

A II Semana Acadêmica de Tecnolo-

mação completa pode ser acessada no site cbpd2015.com.br.

a 11 de dezembro, no prédio central da Universidade. Com o tema

INOVAÇÃO

“Valorização do Profissional de TI”, a

Empresas brasileiras e espanholas, que atu-

Semana Acadêmica conta tam-

am na área de inovação tecnológica, vão ter o

bém com outra novidade em sua

apoio de um programa anunciado pela Finan-

programação: a presença do diretor

ciadora de Estudos e Projetos (Finep), do Mi-

executivo da Linux Foundation, Jon

nistério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O

Maddog Hall, um dos criadores da

edital objetiva o desenvolvimento de projetos

Linux e um dos desenvolvedores do

das empresas dos dois países para impulsio-

“Project Cauã”, projeto de escala

nar a inovação de seus produtos, objetivando

mundial para criação de soluções

o mercado mundial, e está aberto a projetos

baseadas em software livre e

de todos os setores de atividades econômicas

hardwares abertos. Inscrições e

e qualquer tecnologia de base. As inscrições

compras de ticket através do site:

podem ser feitas até o dia 31 de dezembro.

www.eventick.com.br/iisatic.

Mais informações www.finep.gov.br.

62 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

NOVEMBRO DE 2015


FAÇA VOCÊ MESMO

Lenço afro artesanal Em alusão ao Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, as Oficinas Curro Velho ensinam o leitor a fazer uma lenço afro, tingido com uma técnica da ilha de Java, na Indonésia, chamada batique (“batik”), que apesar de não ser da África, tem uma proximidade muito grande com a moda africana, que esbanja coloridos exuberantes. O acessório, que deve ser de tecido

Do que vamos precisar?

• •

leve e fino, ganha estampas coloridas com efeitos degradê e que acompanham muito bem penteados com estilos africanos ou outros acessórios. Depois de fazer o primeiro modelo, experimente fazer outras combinações de cores, tecidos e texturas. Mas lembre-se que a consciência negra vai muito além de apenas um usar um acessório.

Pedaço de tecido sedoso (crepe de seda, cetim,

Um pincel grosso Nº 18

oxford)

Um vidro de guta (delineador)

Tinta aquarela silk (ou tinta para tecido diluída em

Uma tesoura com pontas arredondadas

água) nas cores laranja, amarelo-ouro, amarelo-

Godê (cuba de gelo)

-pele, violeta, azul-celeste, vermelho-fogo, verde-

Borrifador

-abacate, preto

Uma régua de madeira / Bastidor de madeira

Folha de papel 40 kg

Giz de cera

Um pincel fino Nº 08

Percevejos (tachinhas) / Fita crepe

Um pincel médio Nº 14

Sal de cozinha

INSTRUTOR: MIGUEL BARROS / COLABORAÇÃO: LUIZA NEVES (TÉCNICA EM GESTÃO CULTURAL – ARTES VISUAIS) / FOTOS: WALACE FERREIRA / MODELO:JANIELY SILVA NOVEMBRO DE 2015

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FAÇA VOCÊ MESMO

4 7

Corte um pedaço de tecido no tamanho 1,40 x 50 cm e defina as margens com o lápis e a régua de madeira.

2

Com o giz de cera, desenhe no papel 40 kg (cortado no mesmo tamanho do tecido) a imagem escolhida para estampar o tecido.

Com o giz de cera ou lápis transfira a imagem do papel para o tecido.

5

Retire o tecido já desenhado e estique-o em uma mesa ou bastidor de madeira, utilizando os percevejos.

Separe as tintas na cuba de gelo e, com o pincel, passe levemente a tinta sobre cada parte do desenho, alternando as cores e lavando o pincel a cada troca de cor.

8

Borrife água para espalhar a tinta e coloque pequenas quantidades de sal para criar um efeito especial.

3 6

Com a guta, contorne todo o desenho (as partes riscadas com a guta não receberão a tinta), isolando assim as cores escolhidas. Aguarde 24 horas para a completa secagem.

9

Lave o tecido a partir de duas horas após o processo de pintura e faça o acabamento queimando levemente as bordas do tecido com vela ou faça a bainha. Seu lenço afro está pronto!

Posicione o tecido sobre a folha de papel 40 kg desenhada e passe a fita crepe ou grampeie as laterais para deixá-lo bem esticado.

Para saber mais Quem quiser conhecer mais sobre técnicas artísticas pode se inscrever nas oficinas Curro Velho, da Fundação Cultural do Pará.

Crianças a partir de 12 anos podem participar. A Fundação Curro Velho fica localizada na rua Professor Nelson Ribeiro, nº 287, esquina com a travessa Djalma Dutra, bairro do Telégrafo. Telefones: (91) 3184-9100 e 3184-9109. 64 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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RECORTE AQUI

1

ATENÇÃO: Essa atividade pode ser feita por crianças, desde que acompanhadas por um adulto responsável


LEONARDO NUNES

BOA HISTÓRIA

Feio

A história estava quase perdida na cidadezinha, misturada à

falação do povo, puída pelo tempo, como a roupa de Tenório, que dormitava em frente à igreja, feio como sempre, de olho vazio e baço de tristeza antiga. A feiura foi uma marca que na infância rendeu ao menino Tenório zombaria e moldou uma timidez taluda, pesada, que o fazia andar nas sombras dos muros com medo de ser visto. Sem querer, pela boca das Matildes, soube de Marília, a filha do prefeito, que se encantava por rapazes sem nenhuma beleza. Os bonitos? Nem olhava, era o que diziam. Já aos horrorosos destinava suspiros e comentários. Diziam por aí que estava de namoro com Joca, logo ele, o horror do dedão do pé ao cabelo ralo. Tenório ouvia maledicências sobre musa dos tronchos e passava na porta da mocinha de pescoço espichado, quase morto de vergonha de ter o olhar flagrado.

Já rapaz estudado e enleado pela poesia, Tenório ouviu que Marília o tinha visto e quis saber quem ele era. Sem saber se era verdade ou não, ouviu de um quase amigo que a moça lhe rendeu elogios às avessas. “Como é feio, meu Deus!”, teria dito ela. Desde então não dormiu mais direito. Passou a sonhar com a donzela, suava em sonhos românticos. Estava mais amuado do que nunca. Escrevia cartas e guardava. Já tinha uma sacola cheia. Faltava coragem para entregá-las. Num domingo, viu Marília na igrejinha. Teve plena consciência que ela lhe sorriu. Acalentou ainda mais o amor ao descobrir que Joca, logo ele, era página virada de verdade e para sempre. Num abril qualquer, a angústia de Tenório venceu a encabulação. Ele contou a aflição à mãe, finalmente. Ela, sem muito tato, cortou o mal pela raiz e avisou: Marília casaria no mês seguinte,

com Gervasinho, o filho do fazendeiro. O noivo? Alto, forte e lindo, como um astro do cinema. Tenório desatinou. Percorreu as ruas empoeiradas da cidadela por dias. Deixou a mãe em desespero e todos sem notícias, sumiu para nunca mais. Voltou anos depois, como andarilho, sem ser reconhecido por ninguém, sem parentes vivos para lhe amparar. A história dele ainda existia, já totalmente deturpada em versões de todo gosto e tipo. Roto e faminto, passou a dormir na porta da igrejinha onde recebia moedas e comida. Alimentava a esperança de ver o casal do seu passado, mas Marília e Gervasinho partiram fazia anos para Belém com os filhos a tiracolo. A Tenório restou o velho saco de cartas transformado em travesseiro para amenizar a dureza e o frio na calçada do templo. NOVEMBRO DE 2015

Anderson Araújo

é jornalista e escritor

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NOVOS CAMINHOS

A GÊNESE DAS Políticas ambientais equivocadas A forte presença de empreiteiras no cenário político brasileiro não é um pro-

cursos naturais podem ser claramente

cesso atual. Esta relação, pautada hoje

O mais recente e simbólico foi o que

pelas investigações da operação Lava

permeou as discussões sobre o Código

Jato, começou na década de 1940, quan-

Florestal. Bancadas específicas atua-

do o Estado começou a se retirar da ati-

ram em benefício próprio e não para o

vidade construtora direta. Assim, as ati-

bem-comum. A atuação do Ministério

vidades foram divididas: o governo seria

Público Federal (MPF), com atenção es-

responsável pela captação de recursos e

pecial à questão da usina de Belo Mon-

planejamento da infraestrutura; às em-

te, no Pará, tem criado obstáculos à re-

preiteiras, caberia a execução de proje-

produção dessas práticas.

tos e obras, ampliando a demanda para o setor privado nacional.

THIAGO BARROS

é jornalista, mestre em Planejamento do Desenvolvimento Sustentável (NAEA-UFPA) e professor da Universidade da Amazônia @thiagoabarros

Os embates pela apropriação dos reobservadas no Congresso Nacional.

As investigações da operação Lava Jato já demonstraram que as princi-

O auge dessa expansão ocorreu nos

pais empreiteiras do Brasil estão es-

governos militares, sobretudo com os

truturalmente associadas ao sistema

grandes projetos para a Amazônia – a

de elaboração de políticas públicas. O

maioria deles relacionados à construção

lobby dessas empresas tem como obje-

de hidrelétricas, após a criação da Ele-

tivo o lucro. O investimento em benefí-

trobrás, em 1962. Desde então, afirmam

cio à sociedade fica em segundo plano

especialistas de renome, as empreitei-

– sem contar que as etapas necessárias

ras ganharam espaço na definição de

ao licenciamento de grandes projetos,

políticas públicas na região.

como os estudos de impacto ambien-

Um dos maiores especialistas em

tal, consultas a populações indígenas

energia, sociedade e meio ambiente do

e audiências públicas, são geralmente

Brasil, Oswaldo Sevá Filho – falecido

atropeladas.

este ano – sempre destacou que a rela-

Interferências como estas são gera-

ção entre Estado e empreiteiras inter-

das em grande parte pelo elevado apor-

fere gravemente nas políticas públicas

te de recursos aos partidos por meio de

voltadas para a matriz energética bra-

empresas, criando uma relação de “tro-

sileira e provoca o silenciamento de al-

ca de favores”. Desde as eleições de Fer-

ternativas à construção de megausinas

nando Henrique Cardoso, Lula e Dilma,

hidrelétricas, a exemplo das obras em

as empreiteiras têm sido as maiores do-

afluentes do rio Amazonas.

adoras para campanhas.

Projetos em fase de implantação sim-

Para a doutora em Direito Délia Fer-

bolizam decisões de “peso, já tomadas”

reira Rubio, brechas neste processo po-

pelo governo e grupos de pressão, afir-

dem conduzir a uma “colonização das

mava Sevá. Relações e disputas entre

estruturas estatais por parte de grupos

empresas e outros grupos de influência

privados economicamente poderosos”.

reduzem a independência técnica e a

Quando isso acontece, dirigentes e polí-

elaboração de projetos que realmente

ticos podem deixar de atuar em prol da

reflitam as necessidades do país e res-

sociedade, transformando-se em agen-

peitem a legislação ambiental.

tes de grupos de interesse.

66 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

NOVEMBRO DE 2015

“Os embates pela apropriação dos recursos naturais podem ser claramente observadas no Congresso Nacional”


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