Kagemusha Coleção de Fascículos
O Cinema de Akira Kurosawa
#7
Kagemusha texto por Fernando de Paulo
Coleção de Fascículos O Cinema de Akira Kurosawa #7
Kagemusha Kagemusha 1980 Akira Kurosawa
Coleção de Fascículos O Cinema de Akira Kurosawa
Ficha Técnica
Direção Akira Kurosawa Roteiro Masato Ide e Akira Kurosawa Produção Akira Kurosawa Música Shinichirô Ikebe Fotografia Takao Saitô e Masaharu Ueda Intérpretes Principais Tatsuya Nakadai - Shingen Takeda / Kagemusha Tsutomu Yamazaki - Nobukado Takeda Kenichi Hagiwara - Katsuyori Takeda Jinpachi Nezu - Sohachiro Tsuchiya Hideji Ôtaki - Masakage Yamagata Daisuke Ryû - Nobunaga Oda Masayuki Yui - Ieyasu Tokugawa Ano 1980 Duração 159 min Produtora Toho Company Título Original Kagemusha
Kagemusha O fim está próximo Para um diretor que sempre foi otimista em relação à condição humana, é de se estranhar o pessimismo e a desesperança que marcam Kagemusha e Ran. Para um filme que foi feito nos anos oitenta, não será surpresa o clima sombrio e decadente que norteia Kagemusha e Ran. O esperançoso Kurosawa se desiludira com o homem, cada vez mais egoísta e individual. o ser humano que emergia no fim do século estava preocupado apenas com poder, fama e posses. Nem mesmo a família sobreviveria ao colapso que estava para vir. A exuberância e o poderio visual de Kagemusha e Ran contrastam com a presunção e o calculismo que tomaram de assalto a alma dos personagens. A sociedade está incrustada em um enorme lodaçal e ninguém está livre de ser soterrado por tanta podridão e sujeira. Todos os atores exercem um papel social descartável, sob a cortina da falsidade e do jogo de interesses que permeia as relações humanas. Não há espaço para o amor, para a amizade e para a fraternidade. Irmãos brigam entre si, retrato cruel do Japão feudal que via qualquer possibilidade de união ser morta no nascedouro, o que acaba sendo o cerne de ambos os filmes.
Fernando de Paulo
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Estamos realmente prontos para conhecer a verdade? O fio condutor que move o filme é aparentemente simples. Shingen, um poderoso samurai do Japão feudal, temendo a morte e a posterior fragmentação de seus territórios, ordena que um sósia o substitua caso ele morra, permanecendo essa situação por três anos, para que os subordinados possam defender e expandir os territórios conquistados ainda em vida, enquanto os inimigos, membros de clãs rivais, continuarão a temê-lo, não atacando o feudo do samurai. Para que isso ocorra, um ladrão, de quem não sabemos o nome, é treinado para encarnar o papel do senhor feudal, sendo a verdade conhecida apenas pelos vassalos mais próximos a Shingen. Após a morte do verdadeiro comandante, o substituto entra em ação, auxiliado pelos conselheiros do feudo e sob intrigas e mentiras, além do receio de que os inimigos descubram a verdade. A aparente simplicidade do enredo se desmancha, quando vemos que a fortaleza que Shingen ergueu e que permanece intacta após sua morte carece de qualquer reserva moral, apresentando estruturas frágeis e estando condenada à lenta degradação. Kurosawa mostra que o aparato de códigos civis e de ética que movia a sociedade feudal era falso e contraditório, baseado na imobilidade
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a sombra do samurai, tendo que interpretá-lo nos mínimos detalhes, em meio a
social e na subserviência de vassalos e camponeses, sendo um retrato de um Japão que aspirava uma unidade político-territorial, mas que via qualquer possibilidade de fragmentação ser implodida por lutas territoriais e pela própria rigidez e incoerência do pensamento feudal, incapaz de unir os poderosos e de conceder clemência e igualdade aos dominados e às camadas baixas da população. E é justamente alguém de fora do aparato, um ladrão, marginalizado pela estrutura vigente, que é convocado para encarnar o todo poderoso guardião da ética. O impostor não consegue se livrar de sua essência e na primeira oportunidade, tenta roubar o conteúdo de um vaso, quando é descoberto pela própria guarda. É o último momento em que o ladrão é ele mesmo, dando voz aos seus reais desejos. Os conflitos entre o papel que encanarmos e nossa essência é marcante na obra de Kurosawa, o qual já havia tratado do tema em obras como Juventude Sem Arrependimento e Anjo Embriagado. Kurosawa foi fortemente influenciado por Platão e fazia menções ao Mito da Caverna em seus filmes, sendo Kagemusha a obra em que a sombra, intérprete de nossa alma e leitora de nossas reais vontades, é o verdadeiro eixo da história. O espectro de Shingen está presente com ainda mais força após sua morte, como seu filho próprio filho atesta, quando diz que “mesmo depois de morto, ninguém escapa dele”. A figura do pai continua a martirizá-lo, ao perceber que Shingen não confiara nele e por isso nomeou o neto como herdeiro, já que a criança ficará sob júdice dos conselheiros do samurai. Katsuyori sente que está condenado a não conseguir obter o respeito do pai e que este preferiu recorrer a um impostor para comandar o feudo. A humilhação torna-se ainda maior quando o filho é obrigado a chamar um ladrão de pai e tem que conviver com o fato de que um falsário está no lugar que deveria ser seu. O mesmo sentimento é compartilhado pelo irmão de Shingen, Nobukado,
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quando confessa para o impostor que dedicou tanto tempo de sua vida ao irmão, chegando muitas vezes a atuar como seu dublê que, após a morte do samurai, não sabe como viver, já que nunca havia vivido para si, sempre agindo conforme a necessidade e a vontade de Shingen. Fato parecido ocorre com o impostor, conforme passa a encarnar com mais veracidade o papel. Em certo momento o falsário tem um pesadelo em que é perseguido pelo verdadeiro Shingen em meio a um cenário macabro, com fortes tons de vermelho na paisagem, assemelhando-se ao inferno. O fardo que carrega é muito pesado e Kurosawa nos mostra isso de forma sórdida e cruel quando, durante uma batalha, a guarda pessoal do samurai, desconhecendo a verdade, morre para protegê-lo. A dor e a surpresa estampadas no rosto do falso samurai são claras: eles morreram acreditando em uma farsa. A falsa identidade só é percebida pelos únicos seres que ainda não foram soterrados pelo lamaçal de vícios e mentiras em que o han – domínio territorial – está localizado: as crianças e os animais. Quando o impostor encontra o neto, o pequeno Takemura, não é reconhecido pela criança, que diz que aquele não é seu avô. Após a intervenção dos conselheiros reais, a criança é demovida da idéia e passa a acreditar que aquele é realmente seu avô, logo se afeiçoando a ele, o que não diminui nem atenua o constrangimento e o remorso de todos os presentes. Já o cavalo, é o responsável por desmascarar o falsário, quando este domesticado, que era dominado apenas pelo verdadeiro Shingen. A descoberta faz que Shingen seja expulso da propriedade e relegado ao esquecimento, recebendo apenas um agradecimento de emissários dos generais que articularam a trama. Depois de mudar totalmente de vida, aprender uma série de ritos e gestos, moldar a personalidade para encarnar outro alguém, experimentando o luxo, a
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insiste em montá-lo, esquecendo-se que se tratava de um cavalo feroz e não
glória e a riqueza, que espécie de sorte estaria destinada ao falsário? As profundezas sem fim do limbo, o mais cruel e doloroso esquecimento, o nome (nome? Apenas sabemos que se trata de um impostor) apagado para sempre da história. O impostor se torna um cadáver vivo, um morto que ninguém fez questão de enterrar, vagando pelo mundo como um cavaleiro errante sem cavalo. No fim, vemos o falsário espiando de longe o enterro do verdadeiro samurai, três anos após a morte deste, olhando com dor e tristeza a participação do “neto” na cerimônia, criança fadada a se afundar na decadência e na falência moral do território comandado por sua família. O descobrimento tardio da morte de Shingen logo chega aos ouvidos dos clãs inimigos e novas batalhas são deflagradas. “A montanha moveu-se”, ironiza um rival, mencionando o lema de Shingen, “rápido como o vento, silencioso como a floresta, poderoso como o fogo, imutável como as montanhas”. A menção às montanhas não advém somente da porção guerreira do samurai, mas também do caráter divino que o tanto o samurai quanto a montanha possuem. As montanhas são consideradas sagradas no Japão, uma vez que os rios, essenciais para a cultura do arroz, base da alimentação japonesa, nascem no topo. O revestimento religioso também é reforçado pela proximidade com as nuvens, as quais avisam os pescadores sobre o tempo ensolarado ou a iminência de tempestades, bem como são importantes durante guerras e batalhas. A decadência do han erguido por Shingen é proporcional à ambição desenfreada dos funcionários, vassalos e conselheiros, que almejam conquistar Kyoto – na época, capital do Japão, e assim, unificar o país. O lago Sawa, visto como um símbolo espiritual pelos guerreiros, torna-se testemunha do enfrentamento final entre as tropas lideradas por Katsuyori e as facções rivais, mesmo após o aparecimento de um arco-íris, interpretado como um conselho de Shingen para
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que o filho não avance, uma vez que ocorrerá um iminente massacre, devido ao posicionamento privilegiado do qual gozam as tropas inimigas. A cena remete ao trecho de Rastros de Ódio, de John Ford, em que John Wayne, após o massacre da família pelos índios comanches, parte em busca de vingança juntamente com Martin, seu sobrinho, e com Brad, o noivo de sua sobrinha, e percebe que os comanches estão em número maior e que seria prudente esperar, o que é ignorado por Brad, que parte para o enfrentamento, já sabendo as conseqüências trágicas do ato, numa espécie de suicídio involuntário. De certa forma a sensação de Katsuyori e dos demais soldados é parecida, assim como o espectador, conduzido por Kurosawa, parece adivinhar qual será o desfecho da cena: o exército de Shingen é dizimado. O terreno para a derradeira batalha está preparado. Como se trata de um filme de Akira Kurosawa, o tom bélico da cena ganha ares de poesia e pintura, pela excepcional qualidade das filmagens, enfatizando o desespero dos cavalos e os contrastes que os estandartes e as armaduras dos soldados possibilitam, em mais um momento brilhantemente encenado na obra de Kurosawa, desenhista e pintor, articulador de rara sensibilidade que domina todos os elementos presentes em cada frame, em cada enquadramento, através da direção de arte primorosa, da cenografia impecável e da marcante trilha sonora de Shinichiro Ikeb.
graças a Guerra nas Estrelas e O Poderoso Chefão I e II, respectivamente, entre outros. Admiradores confessos da obra do mestre japonês, ambos devem ter se sentido impotentes ao observarem as filmagens e perceberem a perspicácia e a técnica apurada de Kurosawa, senhor absoluto de toda e qualquer imagem da obra, artesão especialista em esculpir o que não foi dito, o que permanece nas
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Durante as filmagens, Kurosawa recebeu a visita de George Lucas e Francis Ford Coppola, produtores do filme e já consolidados como diretores de renome,
estrelinhas, mas sem se deixar levar pela tirania ou pela imposição, uma vez que deixa a interpretação para o espectador. Os momentos que antecedem a última batalha são seguidos de perto pelo falso Shingen, que parece ter consciência da derrota que se aproxima. O antigo líder permanece escondido dentro de plantações, passando despercebido pela tropa que comandara durante três anos. Ao ser desmascarado e dispensado pelos antigos aliados, criadores da farsa, Shingen se torna a moldura ideal do quadro japonês da época, corrompido e decadente, ávido por poder, destinado a se afogar no lago de presunção e arrogância que não permite que o país consiga se formar, permanecendo durante séculos um território envolto em guerras e genocídios que destroem no nascedouro qualquer semente de esperança que possa brotar. A temática apocalíptica que envolve o filme é um contraponto ao humanismo e a esperança que permeiam a obra do cineasta. Após rodar Dersu Usala, em 1975, Kurosawa parece ter perdido toda a crença no ser humano, tornando-se pessimista e pintando seus filmes seguintes com as cores da desesperança. Esqueça a redenção de Viver, a sabedoria de Barba Ruiva ou o tom compreensível de Cão Danado. O mundo de Kagemusha é um retrato do que Kurosawa via na realidade à sua volta: egoísmo, frieza e desalento. Qualquer resquício de dignidade e caráter desaparece na imensidão do lago, quando o falso Shingen cai morto, com o rosto virado para baixo, rodeado pelos estardantes que se aproximam, mas não se juntam ao corpo. A reinvenção de Kurosawa é algo curioso, envolto em tons de mistério, afinal, o que teria se passado em sua vida pessoal pós Dersu Usala para que o cineasta criasse verdadeiros atestados da presunção humana em seus dois filmes da década de oitenta, Kagemusha e Ran. Em ambos a ambição desenfreada e a sede insaciável de poder se sobrepõe a tudo. Os valores não existem e a família é ir-
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relevante, meramente descartável. A sujeira e a podridão que sempre rodearam os filmes de Kurosawa, sendo impedidas de se alastrarem no final carregado de otimismo, dessa vez, porém, venceram qualquer possível resistência e se arraigaram nas entranhas de nossa civilização. Ao homem que resiste em vão, o iminente fim é a imagem de Shingen, desesperado, sozinho e órfão, correndo para a morte certa. Ao espectador que vê o filme, mais denso e pesado que o final perturbador, só mesmo a genialidade de Kurosawa, capaz de reinventar sua própria linguagem e de rever seus princípios. O trágico é perceber que ao realizar uma obra como Kagemusha, Akira Kurosawa parece dizer ao homem cruel e mesquinho.
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“Parabéns, você venceu, este é o seu prêmio – e o seu destino”.
Autor Fernando de Paulo Diagramação Ana Paula Campos Textos O fim está próximo Estamos realmente prontos para conhecer a verdade? fotos http://sarcasmalley.blogspot.com/2009/04/kegemusha-shadowwarrior.html http://www.lostandfoundclothing.com/blog/?p=2958 http://www.blu-ray.com/movies/screenshot. php?movieid=5596&position=5 http://tsutpen.blogspot.com/2008/08/when-legends-gather443.html
A Coleção de Fascículos O Cinema de Akira Kurosawa é uma produção realizada como Projeto Experimental de Conclusão de Curs, sob orientação do Prof. Dr. Jean Cristus Portela, na Faac - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação / Unesp - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” 2010
Kagemusha O Japão medieval envolto em guerras é o palco para Kagemusha, trama sobre um ladrão que é obrigado a se passar por um poderoso samurai. Após a morte do militar, o falso Shingen tem que aprender a comandar um vasto território e a lideram um enorme exército. No entanto, a sombra do verdadeiro samurai continua presente no castelo e a decadência do império é fava contada. Akira Kurosawa contou com a ajuda de Francis Ford Coppola e George Lucas para produzir o filme.