Revista Vereda - Contramão

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Vereda

Julho de 2010

Cont RamĂŁo

O fino rock de Nevilton

Os simpĂĄticos caras de Umuarama falam sobre novo clipe, disco de estreia e viagens pelo Brasil e Estados Unidos

Um breve passeio pelas protagonistas de Domingos Oliveira

Que mistĂŠrios tem Clarice? O lado desconhecido da maior escritora brasileira Cena do clipe O Morno


Vereda Texto Ana Paula Campos, Flávia Costa Colaboradores Davi Rocha e Michelle Braz Santos Diagramação Ana Paula Campos e Flávia Costa Fotos Contramão capa: Ana Paula Campos e Flávia Costa contracapa: http://www.flickr.com/malugreen/ p. 4: http://www.flickr.com/sandrajavera/ p. 6-10: http://www.caras.com.br/imagens/14879/em/ textos/1369/domingos-oliveira; http://observadoressociais.blogspot.com/; http://palavradofingidor.blogspot. com/; http://50anosdefilmes.com.br/2009/as-duasinglesas-e-o-amor-les-deux-anglaises-et-le-continent/; http://www.artilhariacultural.com/2010/06/16/apenaso-fim-2/; http://thestylenotebook.com/2010/07/15/ talk-to-me-calla-haynes/ p.11: http://blogdozoom.wordpress.com/2009/07/15/ fotos-do-festival-paulinia-de-cinema/fest_ paulinia_2009-020/ p. 12-16: http://www.flickr.com/nevilton/ p. 17: http://helvioromero.files.wordpress. com/2009/12/fachada-paraitinga.jpg p. 18-22: Michelle Braz Santos; http://www.flickr.com/ photos/cdrcoletivo/493380269/sizes/o/in/photostream/; http://www.claricelispector.com.br p. 23: Ana Paula Campos p. 24-25: Arquivo Cia São Genésio

A revista Vereda é uma produção realizada como Projeto Experimental de Conclusão de Curso, sob orientação do Prof. Dr. Ângelo Sottovia Aranha, da Faac - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação / Unesp - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Impressão: Master Graphic 2010


A dupla (o outro lado...)

Ana Paula Campos, 22 Morre de medo de trabalhar na Trip ou na Rolling Stone. Rouba descaradamente modos de falar alheios. Queria ser cantora, mas desistiu por falta de incentivo. Não concilia bem o id e o superego. É obcecada por franjas e faz análises minuciosas sobre cabelos em geral.

Flávia Costa, 22 Insegura. Tem medo de espíritos e de ficar sozinha. Queria ser freira, mas a ausência de um chamado divino a fez desistir do hábito. Aprecia organização e planejamento, por isso sempre traça metas e objetivos. Embora viva com a sensação de que de repente algo acontecerá em sua vida e mudará todos os seus planos.


Vereda

Julho de 2010

Bastidores Viajar, conhecer novas pessoas, ler, assistir a filmes e a peças teatrais, visitar exposições. Pode parecer férias, mas na verdade foi essa a “rotina” que Vereda nos proporcionou. Em um dia, destrinchávamos a beleza do universo das palavras, criando metáforas e procurando as expressões perfeitas para este ou aquele texto; em outro, como os artistas, brincávamos com as cores, procurando a fina sintonia entre o texto e as fotografias. Estressante, não? Mas fazer o que? Afinal, todo projeto de conclusão de curso exige certo esforço. Flávia Costa


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Entrelinhas

Cenarios

Cont Ramão

plano sequencia


plano sequencia

Elas, por Domingos Oliveira Texto Ana Paula Campos

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Muito alÊm das curvas femininas que inspiraram Niemeyer e da pele preta e do sorriso branco da menina-mulher de Jorge Ben: as protagonistas de Domingos Oliveiras são de carne e osso, defeitos e encantos, manias e doçuras


O que querem as mulheres? Questionam-se os garotos, os homens, os velhos. Dizem que Freud se encarregou de descobrir, porém morreu frustrado, deixando a pendência. Filmes, livros, músicas, autoajuda, filosofia já se propuseram a desvendar o enigma. Mas, afinal, alguma mulher sabe realmente o que procura? Percebendo o mistério não como confusão, mas como estado de graça, o diretor carioca Domingos Oliveira firmou uma aliança tácita com elas. Suas protagonistas correm de estereótipos e de tudo que seja capaz de reduzi-las. São personagens elípticas, como todo ser humano, porém com pitadas de incoerências e doces loucuras. “Seus personagens femininos são complexos, contraditórios, adoráveis em suas imperfeições – com as quais nos identificamos. Domingos não busca exatamente explicar a complexidade das mulheres, mas estabelecer cumplicidades com elas”, explica a doutora em cinema pela Universidade de São Paulo Luciana Araújo. A obra-prima de Domingos, logo de cara, foi o embrião de sua filmografia: Todas as mulheres do mundo, lançado em 1967. Desde então, passaram-se 19 direções por 43 anos de carreira e 74 de vida. O primeiro filme já desvela o estilo e a temática que o diretor manterá em seus trabalhos. “Domingos faz um cinema que, numa visão tradicional, é cheio de erros, com certo desinteresse pela questão da técnica, mas com um cuidado para falar de coisas íntimas e viscerais. Ele faz um cinema com a cara do cineasta. Prefiro um filme com problemas com a cara do cineasta a um filme sem problema e sem cara”, analisa o crítico de cinema Ricardo Calil. Quando produziu seu primeiro longa, o diretor carioca se encontrava num descompasso com o sisudo movimento do cinema brasileiro da época, o Cinema Novo. Domingos se propôs a tratar de temas que lhe cabiam e que poderia desenvolver com propriedade, enquanto os cinema-novistas apostavam num cinema político-social. “Desde o início, Domingos Oliveira investe num outro tipo de política, a dos relacionamentos, a dos afetos”, aponta Luciana. Em seus filmes, o diretor é capaz de fazer uma crônica da realidade cotidiana da classe média e tratar das grandes questões humanas – amor, morte, fidelidade – com o mesmo desembaraço e leveza. Mesclando biografia e ficção, Domingos concebe um cinema bastante pessoal, explica Calil, “é um diretor que dilui um pouco a fronteira entre cinema e vida; mais do que começo, meio e fim, ele está interessado em situações, em sentimentos”. Todas as mulheres do mundo ilustra bem essa falta de limites. Casado por três anos com a polêmica atriz Leila Diniz, foi o rompimento que inspirou a obra-prima e a protagonista Maria Alice. A personagem era tão indissociável de sua musa que Domingos escolheu a própria ex-esposa para interpretá-la. O que uns olhos têm que outros não têm?, se encanta Paulo (Paulo José) ao ver Maria Alice pela primeira vez. É a

Seus personagens femininos são complexos, contraditórios, adoráveis em suas imperfeições singularidade, e ambigüidade, de Maria Alice que conduz a narrativa. Domingos balanceia as facetas da personagem, que tem dois empregos, luta por independência financeira, prima pela liberdade, mas que também quer cuidar bem do amor, casar, ter filhos. Leila Diniz e Maria Alice não podem ser separadas de seu tempo de revoluções feminista, sexual e de contracultura, ainda que não ambicionassem revolucionar nada. “Eu sou uma pessoa sem sentido porque o meu sentido é esse: eu gosto de me divertir”, eternizou-se a carioca em entrevista ao Pasquim, em 1969. Mas se Leila fosse adolescente no final dos anos 80, ela já não chocaria muita gente. Tratava-se de uma sociedade aflita pelo fim de 21 anos de ditadura militar, histérica pela recémliberdade, fã de Raul Seixas e Cazuza. Isolar temas como drogas e sexo não era mais uma opção, e dúvidas dos filhos e preocupação dos pais tornaram-se inevitáveis. “É por isso que a peça faz sucesso. Iguala pais e filhos, na mesma experiência chamada Vida. Sem querer e meio de propósito, tocamos e balançamos certos tabus sociais que estavam pedindo para serem tocados”. A fala é de Domingos Oliveira, a peça é Confissões de Adolescente, a autoria é de Maria Mariana, sua filha. Baseado no seu diário, o roteiro se divide entre quatro co-autoras (Maria Mariana, Patrícia Perrone, Ingrid Guimarães e Carol Machada) que tornam públicas suas crises, dúvidas, aventuras e irresponsabilidades através de pequenas e descompromissadas histórias. A peça virou série. Em 1994, a TV Cultura passou a exibi-la na sua programação em forma de seriado e o sucesso de audiência foi estrondoso. “Há muito o que aprender com o adolescente. Ele é muito sábio”, a constatação de Domingos, na apresentação do livro homônimo à peça, entrega a relação de pleno diálogo com a filha – que, não por acaso, pediu que o pai dirigisse seu roteiro confessional. Maria Mariana também ganhou um personagem na filmografia de Domingos: Julia (Maria Ribeiro) e seu pai Cabral (Domingos Oliveira) formam um belo retrato do relacionamento na ficção Separações, de 2002. A troca entre eles garantiu a Domingos uma visão desembaçada não apenas do universo jovem, mas do próprio sexo feminino. Afinal, as questões amorosas que perturbam Julia não são muito diferentes


Rivalidade inventada, divergências saudáveis Numa Itália devastada pela II Guerra Mundial, o cinema italiano se redirecionou a fim de tocar nas feridas de seu povo – que estavam longe de cicatrizar. Era o Neorrealismo que emergia e reconfigurava a lógica e o modo de produção do cinema. O objetivo era retratar nas telas a realidade econômica e social da época com a maior fidelidade possível, por isso a linguagem era simples, os cenários eram reais, o elenco era constituído por atores não profissionais. Em 1958, num país um pouco mais a esquerda, outro movimento nascia: a Nouvelle Vague francesa. A partir de uma vontade de violar regras do cinema comercial, jovens cineastas na França optaram por produções de baixo orçamento, com sequências filmadas com câmeras leves e ágeis. Enquanto isso, um pequeno grupo no terceiro mundo assistia às mudanças, fascinado com as novidades européias. O Neorrealismo e a Nouvelle Vague se tonaram as bases para o que viria a ser na década de 50 o Cinema Novo no Brasil, termo que antecipa a estética de seus adeptos: nova, simples, objetiva, crua. Esses cineastas não queriam mais saber de tripés ou requintes; o foco era a mensagem, e a mensagem deveria ser contestadora. Na mesma época, Domingos Oliveira transgredia a transgressão cinema-novista, e no ano de 1967 em que Glauber Rocha, principal expoente do movimento, lança o denso Terra em Transe, Domingos provoca os engajados com Todas as Mulheres do Mundo. “Domingos foi visto com desdém, considerado um alienado. Enquanto o pessoal do Cinema Novo lidava com as grandes questões nacionais, fome, miséria, política, ideologia, ele falava de amores, questões pessoais. Mas acho muito saudável para o cinema de hoje que naquela época tivesse um contraponto como o Domingos Oliveira”, defende o crítico de cinema Ricardo Calil. Mas Domingos não se afetava e também tinha suas críticas ao movimento. Para ele, os cinema-novistas trabalharam o tempo todo com assuntos que conheciam pouco. Uma manifestação de deboche foi seu filme Edu, coração de ouro (1968), “Edu zomba o Cinema Novo, mas sem rancor; é uma brincadeira, uma ironia afetuosa”, afirma Calil.

“É possível pensar em cada personagem feminino de Domingos Oliveira como uma síntese de

todas as mulheres do mundo” das de Glorinha (esposa de Cabral, interpretada por Priscilla Rozenbaum). Agora vamos imaginar as quatro protagonistas de Confissões de Adolescente daqui a 25 anos. O que temos é o filme Feminices, de 2005, título simpático ao caleidoscópio feminino. A “brincadeira de documentário”, como Domingos Oliveira o apresenta logo no início, mostra agora quatro mulheres de 40 anos interessadas em escrever uma peça de teatro que trate de temas singulares à idade. Diana (Priscilla Rozenbaum), Isabel (Dedina Bernardelli), Bárbara (Cacá Mourthé) e Eugênia (Clarice Niskier) se reúnem, numa tarde, para trabalhar no roteiro, porém se dispersam facilmente entre dilemas e telefonemas. As mulheres de Feminices continuam confusas, ainda que com outras dúvidas, mas estão mais confortáveis com suas manias incorrigíveis e rugas inevitáveis. A beleza das personagens de Domingos reside na visão de seu criador, que não as percebe como seres estranhos e ininteligíveis, nem as resume a corpos de revistas. Seu misto de paixão e curiosidade fez delas o cerne de sua filmografia. Como conclui a pesquisadora Luciana Araújo, “sobre Domingos se pode dizer o mesmo que em relação a Balzac: se tirassem os personagens masculinos de seus filmes, eles ficariam empobrecidos, mas sobreviveriam; porém, se fossem subtraídos os personagens femininos, os filmes desabariam! É possível pensar em cada personagem feminino como uma síntese possível de todas as mulheres do mundo, só que cada uma delas com sua combinação particular dos elementos que compõem esse vasto universo”.


Eu nasci em 45, tenho uma educação burguesa e acho bacaninha ter um companheiro ao lado, alguém que diga, ‘tá pegando fogo?, então vamos apagar juntos’. Eu não sou de Marte. “Palavrões ditos com charme”, “primar pelo hedonismo”, “amor livre” são termos sempre usados para se referir à musa carioca dos anos 60, Leila Diniz. Sua despreocupação audaciosa perdurou mais que seus trabalhos como atriz. Tendo atuado em chanchadas, novelas e filmes menores, seu único trabalho que resistiu ao tempo foi o que ela mesmo inspirou, Todas as mulheres do mundo de Domingos Oliveira, seu ex-marido. Nunca teve pudores para falar de sua vida pessoal e escandalizou a sociedade com suas entrevistas à imprensa. A que concedeu ao jornal Pasquim, em 1969, é a mais célebre: “Já amei gente, já corneei essa gente e

elas já entenderam e não teve problema nenhum. Somos todos uma grande família”, “Há homens que são bons de cama, chega lá e não combina; a gente que é boa de cama, chega lá e não combina. O negócio é a ligação, está na pele”. Por frases como essas, Leila foi vista como uma transgressora mulher do futuro. Ironicamente, foi criticada pelas feministas, que se indignavam com Leila Diniz por considerarem-na uma “servente dos homens”. Mas mesmo Leila se opunha ao título de “mulher do futuro” por não ter compromisso político algum, nem intenção de transformar valores; preocupava-se em ser feliz. Por isso

mesmo, o autor de sua biografia, Joaquim Ferreira dos Santos, deu o nome a seu livro de Leila Diniz: uma revolução na praia (2008). Mais do que a frente de seu tempo, Leila estava condizente. Diante de tantas possibilidades que se abriam para as mulheres, o natural não seria se agarrar a tradições ou contrariá-las cegamente, mas estar confusa, ser contraditória. Se ela defendeu o amor livre, foi também a favor do casamento e da família. Tantos valores e referências se diluíram naquele contexto libertário que o compreensível seria justamente não ter uma única opinião fixa e inalterável.

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Domingos Oliveira

As divergências temáticas entre os trabalhos de Domingos Oliveira e a dos cinema-novistas são evidentes, mas será que só de estranhamentos viveram esses diretores contemporâneos? A doutora em cinema pela Universidade de São Paulo Luciana Araújo ressalva que não. A especialista recorda que quando o diretor Joaquim Pedro de Andrade realizou seu documentário Cinema Novo (1967), Domingos foi um de seus personagens, e acrescenta, “é importante lembrar que Domingos Oliveira começou a carreira no cinema como assistente de Joaquim Pedro no curta O poeta do castelo (1959) e, para fazer seu primeiro longa, chamou o fotógrafo Mário Carneiro, um dos principais diretores de fotografia do Cinema Novo”. Também pouco interessado em formalidades estéticas, Domingos Oliveira é leve na maneira de filmar, preferindo trabalhar com câmeras soltas. Para Luciana Araújo, o resultado é um frescor em seu cinema, “a integração entre direção de atores, diálogos, movimentação de câmera é de uma maestria absolutamente empolgante, demonstrando uma extrema intimidade com a linguagem e as possibilidades do cinema”. Ao longo de sua carreira, Domingos criou um estilo próprio, marcado por produções relativamente baratas que quase sempre contam com um elenco familiar: esposa, filha e amigos. Esse cinema artesanal é menos limitador do que parece. O baixo orçamento é contrabalanceado com a liberdade de criação, que lhe permite desenvolver um cinema pessoal e autoral. “Às vezes, Domingos precisa abdicar de uma ‘qualidade’ técnica no sentido tradicional; em contraposição, imprime outras diretrizes ao seu cinema, que não a busca por uma qualidade convencional, estipulada pelo mercado. A câmera na mão em seus filmes pode exibir desfoques e instabilidades, porque o que interessa é a dramaturgia e a capacidade da imagem e do som em representar as delícias e as dores humanas”, explica Luciana Araújo. São por aproximações temáticas e estéticas que comparações ao norte-americano Woody Allen e o nouvelle vague François Truffaut são recorrentes. Luciana observa dois principais eixos comuns aos três diretores: a forte relação com a literatura e o gosto em construir tramas calcadas nos personagens. Domingos já foi chamado de “Allen brasileiro” pelas nítidas semelhanças com o nova-iorquino: excesso de diálogos, humor refinado, preferência pelas grandes questões humanas. Convergências nada casuais, inclusive, pois Domingos, fã declarado de Woody Allen, sempre admitiu a influência do diretor em seus trabalhos. “Do Truffaut, Domingos tem muito da leveza, do agridoce, da alegria pequena com a melancolia”, coloca o crítico de cinema Ricardo Calil. Menos patente, Luciana Araújo desponta outro diretor análogo a Domingos, “em termos de metodologia de trabalho, é possível aproximá-lo do diretor americano John Cassavetes;

embora com projetos cinematográficos distintos, nos filmes de ambos a dramaturgia depende visceralmente do trabalho com os atores, de uma relação de trupe que extrapola o próprio filme e da qual o diretor extrai muito de sua força”. Descendentes do diretor de Todas as mulheres do mundo, Ricardo Calil percebe o estreante de 20 anos Matheus Souza, diretor de Apenas o fim (2008), “Matheus se declara muito influenciado pelo Domingos e já é uma nova figura de exceção no cinema brasileiro”. V

Aqui você também encontra

O que uns filmes têm que outros não têm?

Noivo neurótico, noiva nervosa (Woody Allen, 1977) História de amor e crise entre Alvy Singer (Woody Allen) e Annie Hall (Diane Keaton). Assim como Domingos Oliveira, Woody Allen se inspirou na ex-mulher Diane Keaton para criar Annie Hall e escolheu a mesma para interpretar a protagonista.

Apenas o fim (Matheus Souza, 2008) Antônio (Gregório Duvivier) é surpreendido com a notícia de sua namorada (Erika Mader): ela quer fugir de casa e refazer planos, que não o incluem mais. Os dois concordam em passar a próxima hora juntos, relembrando o passado e imaginando o futuro.

As Duas Inglesas e o Amor (François Truffaut, 1971): Filme mostra o envolvimento de duas irmãs, Anne e Muriel, com um francês, Claude, a partir do século XIX. Truffaut, com a sensibilidade habitual, pinta um belo retrato dos jogos que permeiam as relações amorosas.


A caminho e no caminho do cinema Lado A Texto Ana Paula Campos

A irmã mais rica dos festivais brasileiros chega a sua terceira edição com erros e acertos na bagagem

- Eu sou de Paulínia! - De onde? - Paulínia! Interior de São Paulo! A cidade do petróleo! Sétima maior renda per capita do Brasil! - Hum... - Aquela cidade perto de Campinas... O município de Paulínia, costumeiramente, passa despercebido pelos paulistas, que dirá por gente de outros estados brasileiros. Porém, além da já citada importância financeira para o país, a pequena cidade de pouco mais de 80 mil habitantes tem ganhado atenção pelos investimentos feitos no cinema brasileiro – curiosamente, sem ter sequer uma única sala de cinema. Já consolidada como polo produtor cinematográfico, Paulínia vem ganhando status e popularidade com o anual Festival Paulínia de Cinema, que chega a sua terceira edição em 2010. Reunindo produções inéditas, que serão exibidas entre os dias 15 e 22 de julho, o festival reserva um atrativo prêmio em dinheiro: são contabilizados R$650 mil para os filmes vencedores, sendo R$150 mil para o ganhador do Troféu Menina de Ouro – o maior prêmio pago para o primeiro lugar em festivais nacionais. Tamanho incentivo se justifica. O evento busca firmar o cinema brasileiro como agente importante na formação cultural e divulgar o polo cinematográfico da cidade, a fim de tornar Paulínia uma referência nacional em cinema. Para isso, além do festival, a cidade oferece anualmente dois editais que, somados, distribuem mais de R$18 milhões para a produção brasileira rodar seus filmes nas dependências do polo.

Para realizar a mostra competitiva, a prefeitura, grande mantenedora do evento, reserva aproximadamente R$ 3 milhões, valor que compreende a produção e a presença de profissionais e celebridades no evento. O Diretor do Festival Ivan Melo aponta que a semana simboliza uma pequena parcela de todo o empenho ao longo de doze meses, “esse é o nosso momento de celebrar, junto com os profissionais do audiovisual, o trabalho realizado durante um ano inteiro”. Em sua primeira edição, em 2008, a prefeitura primou pela ornamentação do Theatro Municipal, espaço onde as projeções são exibidas. A arquitetura clássica do teatro ganha, durante o festival, um longo tapete vermelho desenrolado em sua entrada. O paulinense Antônio Donizete, 20, estudante de cinema, se lembra do primeiro festival, “era tudo muito bonito, acho que até grandioso demais”. O glamour hiperbólico também foi percebido pelos organizadores do festival, que pontuam como o maior diferencial da terceira edição a diminuição de investimentos na infra-estrutura. “Optamos por ter o maior número possível de profissionais do mercado cinematográfico conosco em vez de investir pesado na ornamentação; queremos mostrar ao público e à indústria o que há de melhor no cinema nacional, e por isso vamos investir bastante numa programação de filmes e debates que fomentem essa discussão”, antecipa Ivan. Os debates enriquecem ainda mais a mostra, acredita Antônio, pois oferecem a oportunidade de entrar em contato direto com os profissionais do audiovisual. Porém, carecem de participação do público, “as palestras são interessantes, é uma pena que sejam bem pouco freqüentadas”, lamenta o estudante. Como é natural dos primeiros passos, o festival de Paulínia ainda tropeça. Na segunda edição, a exigência de famosos no evento, por parte dos patrocinadores, trouxe prejuízo à cerimônia final, com os atores Murilo Benício e Guilhermina Guinle notadamente alheios à mostra. Nesse mesmo ano, a imprensa encontrou dificuldade para cobrir o evento, pois foi mantida em Campinas, o que ocasionou transtornos de idas e vindas. Diante de acertos e equívocos, o festival vai ganhando maturidade e experiência. A competição gera expectativa dos produtores e do público, mas seria empobrecedor reduzi-lo a ela. Debater novos caminhos para o cinema brasileiro, propor soluções e descobrir talentos são os objetivos centrais da mostra. Nesse sentido, o Festival Paulínia de Cinema segue conquistando seu espaço, estimulando a produção de filmes de qualidade e buscando formar um público mais exigente. V

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Jukebox capa

Texto Ana Paula Campos e Davi Rocha

Sorrindo gentileza e confiança

A atitude não deixa a desejar ao velho rock’n’roll nem à cena underground atual. Além da clássica combinação guitarra-baixo-bateria e shows incendiários, o trio paranaense Nevilton sabe tirar proveito das ferramentas virtuais, recursos fundamentais para músicos em início de carreira nos dias de hoje. A banda já participou do festival Abril pro Rock e conta com o apoio daqueles, como o projeto Fora do Eixo, que sabem das dificuldades de tocar no Brasil, onde ainda há pouco incentivo a bandas novas e um pagamento irrisório nas casas de show. Jovens e otimistas, aderiram às dificuldades da vida de músico, aceitando cada desventura do caminho.


(O Morno)

o sol r e v a i r e u quarto Ele só q u e s o d a í a ca s a Mas nun certeza e a distânci o in faç Culpava a l e garantido, aí eu áci Só se for f Um Uno surrado que carrega banda, instrumentos, edredons e eventuais caronistas. Nove apresentações em nove dias, correndo por todo o Brasil. Esse é o sonho de 9 entre 10 garotos de 15 anos — e a realidade do trio Nevilton.

Qual o estado atual do Uno? Nevilton: Quando a gente saiu pra essa viagem de nove dias, estava seis graus em Umuarama (PR), então tem edredom, garrafa térmica. Agora está ficando mais calor e o edredom não tem mais utilidade. O Uno está muito zoado! Lobão: E a gente ainda deu carona pra um camarada do Fora do Eixo, de Serrana (SP) até São Carlos (SP). O cara estava com umas seis malas, com coisas da lojinha do festival, case com discotecagem. O Uno se mostrou guerreiro e acolhedor. O planejamento das viagens fica por conta de vocês? L: Temos que fazer todo o roteiro, pesquisar telefones importantes da cidade aonde iremos, decidir o lugar onde vamos dormir. N: Antes, muitas bandas esperavam um produtor ou alguém superior fazer isso, enquanto hoje a gente vai aprendendo a fazer sozinho. Além da organização das viagens, temos que pensar também no que diários e fotos dessas experiências podem gerar mais pra frente. Lado bom e ruim das viagens. L: Rola um momento de irmandade entre a gente, assuntos, brainstorms. Como o pessoal fala em Piracicaba? N: Um toró de parpite! L: Dizem que brainstorm é um toró de parpite. Surgem ideias

De repente, o sol está lindo no horizonte, depois o sol desgraçado está na sua cara, e é o mesmo sol

Nevilton on the road: trio em tour Fora do Eixo pelo nordeste

para fazer coisas, conhecemos pessoas novas, amigos legais. Bom, as partes ruins são o desconforto, estar sempre correndo riscos na estrada, sol queimando um braço só. (risos) N: De repente, o sol está lindo no horizonte, depois o sol desgraçado está na sua cara, e é o mesmo sol... L : Mas a parte boa da estrada minimiza a ruim. N: Ficar esperando no aeroporto também não é legal. L: Ficar em casa sentado também é chato. E a saudade de casa? L: De lá e de outros lugares também. N: Eu aconselharia a nunca sair de casa para não ter esse problema, se sair uma vez vai querer viajar de novo, e vai querer voltar para casa, e nunca mais vai ser normal. (risos) Como é a relação com o Circuito Fora do Eixo? L: O Fora do Eixo é uma mão na roda, a gente descobre lugares na cidade que jamais pensaríamos que desse para fazer um show. E a troca de experiência? N: É muito legal conhecer essa galera, saber que muita coisa bonita está sendo feita, independente do estilo. Tem coisas surpreendentes acontecendo no Brasil.

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Mais democracia para quem gosta de fazer ou ouvir música Ser músico em 2010 não é a mesma coisa que em 1990. Glamour, discos de ouro, muito dinheiro sem tanto suor. Para os artistas da geração online isso parece cada vez mais distante, pois agora precisam lidar com downloads gratuitos, concorrência alargada pela facilidade de divulgação de trabalhos e, na maioria das vezes, sem um produtor para assumir as responsabilidades do backstage. No entanto, a relação dos músicos com suas criações se tornou muito mais íntima, livre e autoral – larga vantagem sobre quem viveu no auge da indústria fonográfica. Com artistas cada vez mais auto-gestores, fez-se necessário um novo modelo de mercado, condizente com essa tendência. Lição apreendida: desde 2005, o Circuito Fora do Eixo trabalha para estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e o escoamento de produtos, tudo com base na Economia Solidária, sem fins lucrativos. Inicialmente abrangia as regiões centro-oeste, norte e sul do Brasil, com uma parceria entre produtores culturais das cidades de Cuiabá (MT), Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR). Hoje, são mais de 50 pontos Fora do Eixo distribuídos em 25 estados brasileiros, com sul, centro-oeste, sudeste e norte totalmente associados, com todos os estados inclusos. Formado por produtores e artistas, o Circuito Fora do Eixo permite que bandas de diversas partes do país troquem experiências, além de ampliar opções de shows às pessoas que não moram nas capitais. Anualmente, 59 festivais de pequeno, médio e grande porte são realizados pelo projeto. O Festival Fora do Eixo é uma das maiores ações de circulação de artistas independentes no país. Suas quatro primeiras edições se restringiram a cidades paulistas, e em 2010, pela primeira vez, se estendeu até o Rio de Janeiro. O Festival teve início no dia 06 de abril em São Paulo e, após percorrer dezenas de municípios, desembarcou no estado fluminense em maio. As principais bandas do Circuito em conjunto com respectivos artistas locais participam do festival, que trabalha também com workshops, peças de teatro e outras expressões artísticas.

Festival Fora do Eixo 2010, RJ Nevilton no Teatro Odisséia


Já tenho tantas outras coisas Mais preocupados em estar no palco e fazer demos a encarar um estúdio, Nevilton percorreu 70 mil quilômetros em apenas três anos de formação. Qualquer convite para se apresentarem é visto como mais uma chance de mostrarem seu trabalho. A tática tem dado certo e o trio ganhou fama pelos shows e pulos insanos de Nevilton e Lobão. É no palco que eles conquistam o público e chamam a atenção da crítica. Neste mês, Nevilton se prepara para lançar o clipe da música O Morno, o primeiro da carreira, e prometem disco de estreia para ainda este ano.

Como foi a repercussão do lançamento do EP Pressuposto? N: Bastante gente conheceu a gente através do EP. As pessoas já cantam as músicas nos shows e passaram a esperar novidades da banda. Quantos downloads do EP até agora? N: No primeiro mês 1600, hoje deve ter uns 4 mil downloads.

para me preocupar, ainda vou ter que ficar definindo meu próprio som?

Hoje uma das tarefas mais ingratas de quem fala e escreve sobre música é classificar o som que se tem feito. Como descrever músicas que mesclam tantos estilos e instrumentos? Para evitar equívocos, a pergunta mais frequente aos próprios músicos é: como vocês se classificam?, e se fechar num conceito é difícil, ou inútil, para eles mesmos. Com influências que vão de Pixies a Jorge Ben, o trio já é destaque do novo indie rock nacional. Como vocês definem o som da banda? N: Eu só falo que é rock. Já tenho tantas outras coisas para me preocupar, ainda vou ter que ficar definindo meu próprio som? (risos)

Como é a relação com a Internet? Tudo que vocês fizerem sempre vai ficar disponível para download? N: Tudo vai depender das políticas de parceria. Pode ser que a gente não libere o disco inteiro, mas nada nos impede de ir liberando aos poucos, em outros EPs. E quando não tivermos vínculos com outras pessoas não teremos porque não publicar. Quais expectativas para o clipe de O Morno? N: O clipe dará uma projeção muito legal. E até o lançamento do nosso primeiro álbum, já estaremos com mais dois clipes prontos. E sobre o primeiro disco? N: Serão 14 músicas, duas estão no EP, Pressuposto e Vitorioso Adormecido, mas terão novas versões, é claro, e deve sair em setembro ou outubro. Muito trabalho!

Aqui você também encontra

Nevilton

Vocês têm diversas influências? L: A gente não nega nossas características brasileiras, e, obviamente, não pode negar o rock britânico, o rock estrangeiro. N: Nessa viagem mesmo, quanta coisa a gente não ouviu? Hellacopters, Led Zeppelin, Originais do samba, Jorge Ben, Pixies, Super Grass. Acho que tudo isso de uma forma contamina nosso som. É uma bagunça mesmo, e até essa bagunça eu acho super rock’n’roll.

Terminal Guadalupe Banda de rock curitibana formada em 2003 nasceu da trilha-sonora feita para o curtametragem Burocracia Romântica.

Suéteres Nem só de sertanejo vive o interior de São Paulo; Suéteres, banda de Pirassununga, toca rock caipira sem puxar o R.


Nevilton de Alencar “Ton” Vocal e Guitarra

Tiago “Lobão” Inforzato Baixo

A influência do rock internacional não é só indireta. Nevilton se formou após uma viagem curta, porém transformadora de seis meses para Los Angeles. Lobão e Nevilton tinham outra banda (Superlego) que começava a se desfazer quando os dois decidiram ir aos Estados Unidos. Por lá, trabalharam em shows, pequenos e grandes, entrando em contato com diferentes experiências musicais. Voltaram renovados e ambiciosos para Umuarama — e loucos para botarem os pés na estrada novamente.

O que mudou depois de Los Angeles? L: Tudo! Mudaram as pessoas e as pessoas mudaram as coisas. N: A gente voltou com outros paradigmas de realidade, de trabalho, com vontades completamente diferentes, e nós usamos a banda como instrumento para realizar o que gente tinha mudado lá. L: A forma de tocar, de pensar a música como um produto.

A gente deve esse carinho a Umuarama, esse carinho pelo tédio, graças a ele que a gente se movimentou 16

Eder “Chapolla” Bateria

Sem contar das aventuras, fiquei sabendo que vocês até ligaram na casa do Dave Grohl. N: É... ele atende como Gus, se alguém tentar falar com o Dave Grohl, pede para falar com o Gus. (risos) Na música Nas esquinas de Umuarama vocês falam da cidade como se ela fosse entediante, mas ao mesmo tempo com certo carinho. (trecho: Todo final de semana/ Eu esqueço o que é viver/E essa vida em preto e branco/ Trago aqui nesta canção) L: É bem por aí mesmo, não tem como negar o carinho pela cidade. Para quebrar o tal do tédio que a gente tinha lá, a banda fazia festas, eventos, fanzines, página em jornal, programa de rádio. A gente deve esse carinho a Umuarama, esse carinho pelo tédio, graças a ele que a gente se movimentou. Se estivéssemos em uma cidade agitada, talvez não fôssemos revolucionários. Quem é o Vitorioso Adormecido? (música do EP Pressuposto) N: Pode ser você (risos). Algumas coisas têm que ficar guardadas. Eu acho que no processo de produção a gente pensa num lance de personagem e as perspectivas que esse personagem teria de vida, dos amigos. Você não precisa ficar falando só da sua vida, tem muito mais possibilidades. V


Música, e dúvida, entre casarões Burocracia se torna o calcanhar de Aquiles da Semana da Canção Brasileira de São Luiz do Paraitinga Texto Ana Paula Campos

Com chitas e marchinhas, cores e casarões, São Luiz do Paraitinga (170 km de SP) enche de encanto os olhos de quem a visita. Mesmo após a enchente no último janeiro que deixou seu centro histórico submerso, o colorido da cidade e de seus habitantes não se perdeu. A “cidade das mil festas”, como é conhecida, abriu o ano se vendo obrigada a cancelar seu evento de maior sucesso, o tradicional carnaval de marchinhas, que já atraiu quase 18 vezes o número de seus habitantes (recebeu 180 mil turistas em 2009). Mas, a passos largos, São Luiz conseguiu recuperar toda a infra-estrutura turística e segue caminhando para retomar o calendário festivo. É nesse contexto que a Semana da Canção Brasileira chegaria a sua quarta e, talvez, principal edição, em setembro. Chegaria — porque o evento, que se tornou uma das principais fontes de renda da cidade e contribuiria para a sua reconstrução, pode não acontecer. A dois meses da realização, o festival sofre com a falta de patrocinadores. Seria devido a um receio das empresas pelo impacto da inundação no começo do ano? Segundo a produtora da Semana, Lili Molina, não – a cidade já está preparada para movimentar o evento, que atrai 15 mil turistas (seu público é equivalente a edições da FLiP, Festa Literária Internacional de Paraty). O desgaste é, então, menos por desconfiança do que por burocracia. A produtora explica que eventos de música são enquadrados no artigo 26 da Lei Rouanet, que não dá 100% de abatimento no imposto de renda do investidor. A luta dos realizadores é para enquadrar a Semana da Canção no artigo 18, que garante esse desconto às marcas que patrocinam eventos culturais com trabalhos de formação. “A Semana tem uma grande preocupação com a execução de oficinas, cursos e palestras, mas enquadrá-la no artigo 18 ainda é a nossa dificuldade com a Lei Rouanet”, conta Lili. O projeto está em vias de ser aprovado, no entanto, a dúvida atrapalha o planejamento da Semana.

Canta, São Luiz! História da Música Popular, Educação Musical no Brasil e Poesia na Canção – esses são os pilares da Semana definidos por Suzana Salles, sua idealizadora e curadora. Suzana é enfática ao dizer que o projeto não se resume a apresentações, mas “que provoca reflexão e instiga o pensamento sobre a canção popular brasileira”. No entanto, um festival existe, ainda que de pano de fundo. É a partir dessa competição que novos artistas são revelados, e os três primeiros lugares, consagrados com troféus e prêmios em

dinheiro (R$ 15 mil para o vencedor, na terceira edição). Embora na teoria não se fale em discriminação de certos gêneros musicais, é visível a preferência pelos ritmos marcadamente brasileiros, como a estudante e fã da Semana Thais Ferreira, 22, percebeu: “notei a ausência de gêneros como rock e pop, a semana fica mais na MPB e samba, mas isso não diminui em nada a qualidade do evento”. Mas o segredo para o sucesso da Semana não é o festival. Para compor o Coreto, principal palco da cidade, são chamados prestigiados músicos brasileiros. “Correm boatos o ano todo na boca do povo para saber quem serão os convidados, com frequência aparece algum famoso para assistir a algum show, já vi Chico César pela rua, Zeca Baleiro”, conta Thais, que participa da Semana desde a segunda edição, em 2008. Nomes como Lenine, Tom Zé e Almir Sater já se apresentaram em São Luiz e neste ano Rita Lee e Milton Nascimento são atrações confirmadas, se o evento realmente acontecer. Mas a idealizadora Suzana reforça, “os shows grandes servem como chamariz e o festival de novas composições está dentro da semana, porém o principal objetivo do evento é pensar a canção brasileira”. A importância do evento no ano de 2010 não é apenas financeira. São Luiz é uma cidade de vocação musical, repleta de artistas que não só cantam e compõem a música brasileira, mas enaltecem a música caipira luizense. Em um ano que começou tão adverso, prender-se a suas tradições é mais que cultural, é uma questão de força. Realizar a Semana neste ano, em especial, é resgatar a auto-estima de uma cidade que viu parte de sua história materializada se ruir. V


Entrelinhas

Clarice, sem mistĂŠrios Por questĂľes financeiras, a escritora ingressa no jornalismo. E realizando entrevistas, a Clarice - pessoa - se revela Texto Michelle Braz Santos (*)

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Clarice, Gostei de saber que você está com a alma mais sossegada. O sentimento de grandeza que você acha que está perdendo talvez agora é que você esteja adquirindo. Sua predisposição para ficar calada não é propriamente uma novidade: a novidade é estar aceitando, inclusive, o silêncio. É bom isso, dá mais paciência, mais compreensão, dá mais sentimento às coisas — e dá grandeza. Fernando Carta de Fernando Sabino Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1953

O que distingue o criador de suas criaturas? De acordo com a Escola de Crítica Moderna, um dos grandes equívocos ao se interpretar uma obra literária é buscar no texto quais seriam as “intenções” do escritor. Geralmente, nessa armadilha, rondamse as possíveis semelhanças, as “motivações biográficas” por trás da produção literária. Clarice Lispector é exemplo notório dessa falácia. Por ser tão obssessiva nas questões existenciais de seus personagens, acabou sendo tachada, enquanto pessoa, como o próprio “mistério”. Tal mistificação promoveu pedidos enfáticos de Clarice, como por exemplo, em uma carta para o amigo Fernando Sabino em que solicita: “Pelo amor de Deus, não me considere ‘uma escritora’ e sim uma pessoa”. Entretanto, vence quem tem a melhor história – e um mito é, na maioria das vezes, muito rentável. Quando nos referimos à Lispector, o prestígio vai muito além das boas vendas na editora Rocco (detentora dos seus direitos autorais). Nos últimos dez anos, Clarice Lispector foi a autora brasileira com mais teses publicadas no Brasil. Segundo pesquisa do Instituto Itáu Cultural, Clarice também é a segunda escritora mais citada por especialistas estrangeiros, perdendo apenas para Machado de Assis. Já no âmbito editorial, ocorreram vários lançamentos de sua biografia, tais como o livro Clarice Fotobiografia, que contém mais de 800 imagens, e o recente Clarice, do biógrafo norteamericano Benjamim Moser. Para Vilma Arêas, professora de literatura brasileira da Universidade Estadual de Campinas, essa mistificação é preocupante, pois afasta (os leitores) de uma apreciação crítica estética. “Lispector acabou sendo fixada num nicho de admiração fanática, cujo fulgor dispensa qualquer formulação estética ou histórica a respeito de seu trabalho”, pontua a pesquisadora.

Entrevistada versus entrevistadora Clarice tinha receio de se “revelar demais” ou tornar-se “óbvia e previsível” em suas declarações para a imprensa. Por isso, evitava ao máximo conceder entrevistas. Uma das poucas conversas autorizadas foi com a turma do Pasquim. Mesmo assim, o entrevistador Ziraldo admite, no decorrer da entrevista, a árdua empreitada: “Você é complicada pra danar, Clarice”. Em contrapartida, a Clarice entrevistadora é descontraída, um tanto provocadora e assídua em realizar perguntas difíceis. Em suas mais de oitenta entrevistas, são frequentes três perguntas: “qual é a coisa mais importante do mundo?”, “qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?”, “o que é o amor?”. Segundo a biógrafa Nádia Gotlib, no livro Clarice, uma vida que se conta, as entrevistas de Clarice foi um território de revelação do seu modo pessoal. “Quem era essa Clarice entrevistadora? Era a Clarice, simplesmente, sem convicção do papel essencialmente jornalístico, cuja objetividade e relativa imparcialidade era substituída pelo modo pessoal com que se comportava no diálogo com seus entrevistados”.


“Eu me expus nessas entrevistas e

consegui assim captar a confiança de meus entrevistados a ponto de ele próprios se exporem. As entrevistas são interessantes porque revelam o inesperado das personalidades entrevistadas. Há muita conversa e não as clássicas perguntas” Clarice Lispector responde para a jornalista Isa Cambará, da revista Veja, quando questionada sobre o motivo de publicar De corpo inteiro, livro que reúne entrevistas da revista Manchete

Estratégias para o diálogo Quando se dedicou à função de entrevistadora, Clarice já era um nome relevante da literatura brasileira. Em conseqüência dessa situação de destaque nas letras nacionais, podemos inferir que o nome Clarice Lispector representava uma persona literária, isto é, seu nome representa uma figura “autorizada” a romper com o formato padrão da entrevista. Essa “quebra” é admitida pela própria Lispector, como podemos verificar no início da entrevista com Nelson Rodrigues: “Avisei a Nelson Rodrigues que desejava uma entrevista diferente. É um homem tão cheio de facetas que lhe pedi apenas uma: a da verdade. Ele aceitou e cumpriu”. Além dessa situação favorável, uma vez que já conhecia muitos dos seus entrevistados, observa-se uma franqueza, até desconcertante, nas perguntas de Clarice. Como por exemplo, para o ator Jardel Filho questiona: “de que maneira seria embaraçosa uma pergunta minha?”. Porém, tal sinceridade latente é acompanhada de um zelo em não constranger o entrevistado: “Djanira, você é uma criatura fechada. Como vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais simples que a mentira... Eu quero saber tudo a seu respeito. E cabe a você selecionar o seu tudo, pois não quero invadir sua alma”. Outro traço marcante de seu estilo é o respeito ao silêncio. Quando perguntou ao pintor Iberê Camargo qual conselho daria aos jovens pintores, ele, não sabendo responder, Clarice o aconselha: “Tome o tempo que quiser”. Todavia, Clarice se apresenta ácida em certos comentários. Na entrevista com a escritora de novelas, Gloria Magadan, questiona porque ela não “eleva seu nível” já que tem tanta projeção ao grande público. Outro exemplo marcante é na entrevista com um dos membros da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Ataíde. Num breve perfil introdutório, Clarice indaga com ironia o papel daquela instituição. “O que me fez nunca ir assistir a sessões públicas da Academia? Era falta de motivação? Ou simplesmente eu considerava a Academia como uma espécie de clube de cavalheiros ingleses, onde se lê jornal, conversa-se, bebe-se alguma coisa, e onde mulheres não interferem?”.

(*) Mestranda em Comunicação. Durante um ano e meio, realizou a pesquisa de iniciação científica “A entrevista em Clarice Lispector: um estudo do gênero na revista Manchete e Fatos & Fotos/Gente”, pelo Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP


Clarice Lispector, jornalista Embora a faceta jornalística de Clarice Lispector não seja tão conhecida do grande público, sua produção nesse ramo é extensa. Em 1940, enquanto cursava a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, Clarice ingressou no Departamento de Imprensa e Propaganda para exercer, a princípio, a função de tradutora, mas por falta de vagas foi direcionada a redatora e repórter da Agência Nacional. No mesmo ano, Clarice Lispector teve sua primeira entrevista com o escritor Tasso da Silveira publicada na revista Vamos ler!. Já a sua primeira reportagem (“Onde se ensinará a ser feliz”) foi publicada em 19 de janeiro de 1941, no Diário do Povo, de Campinas (SP), relatando a visita da primeira-dama da República, Darcy Vargas, a um orfanato feminino. No ano seguinte, ela trabalha como redatora do jornal A Noite e obteve seu registro profissional como jornalista. Após essa fase inicial, a escritora elaborou colunas femininas com o pseudônimo de Tereza Quadros para o jornal Comício em 1952 e, mais tarde, como Helen Palmer no Correio da Manhã, em 1958 e 1959. Além disso, foi ghost whiter da atriz manequim Ilka Soares em uma coluna feminina do Diário da Noite em 1960 e 1961. No Jornal do Brasil, Clarice Lispector teve longa trajetória como cronista, assinando aos sábados, entre agosto de 1967 a dezembro de 1973. Paralelamente, a partir de 1968, trabalhou como entrevistadora na revista Manchete e, posteriormente, na revista Fatos & Fotos, ambas pertencentes à Editora Bloch, onde sua contribuição encerrou-se em outubro de 1977, menos de três meses antes de sua morte, ocorrida em dezembro.

A coluna de entrevistas da revista Manchete era intitulada de Diálogos possíveis com Clarice Lispector. A entrevistadora procurava diversificar os nichos sociais de seus entrevistados: em sentido horário, temos as entrevistas com a então primeira-dama Yolanda Costa e Silva, a escritora Maria Alice Barroso e o médico Ivo Pitanguy.


Confissões! Por sua sensibilidade, Clarice Lispector arrancou confissões de seus entrevistadores, além de comentários reveladores sobre si mesma: — Uma das coisas que me deixam muito infeliz é essa história de monstro sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina se temendo a si própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno de mim, o que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico sozinha. Mas você sabe que sou de trato muito simples, mesmo que a alma seja complexa. Clarice Lispector em entrevista com Maria Martins — Todas as pessoas são interessantes, em maior ou menor grau. Mais uma personalidade de atleta grego é um achado. Além do mais, embora de campos diferentes ambos somos mergulhadores. Clarice Lispector em entrevista com Bruno Giorgi — Eu me considero um fracassado. Não me realizei e nem acho que alguém se realize . O único realizado é o Napoleão do hospício que não tem Waterloo nem Santa Helena. Nelson Rodrigues — Tenho uma inveja: o meu trabalho de música está exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho o direito de ficar pensando numa ideia muito tempo. Chico Buarque — Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata. Vinícius de Moraes — Talvez a coisa mais importante da vida seja não vencer a vida. Não se realizar. O homem deve viver se realizando. O realizado botou ponto final. Pedro Bloch — No fundo, sou um atleta frustrado. Millôr Fernandes — Não sou profundo. Espero que me desculpem. Érico Veríssimo — O público é que tem compromisso comigo, e não eu com ele. Jorge Amado — Nasci preguiçosa, mas há 30 anos não deixo de escrever. Dinah Siqueira de Queiroz — Talvez eu esteja realizando o sonho de todo menino: fugir com o circo. Paulo Autran V


Na briga pela prateleira

Texto Flávia Costa

Jovens vêem nos concursos literários a oportunidade de publicação de suas obras Papel, caneta, inspirações do cotidiano e palavras. Assim como para milhares de jovens, para as “Anas”, Luiza e Cristina, bastam somente esses elementos para histórias fascinantes serem criadas. A carioca Ana Cristina Melo e a rio-grandensedo-norte Ana Luiza Penha têm muito mais em comum do que o próprio nome, elas são apaixonadas por literatura e sonham em obter reconhecimento como escritoras. Ler e escrever sempre foram seus grandes hobbies desde a infância. Assim como a maioria das pessoas que anseia ser escritor, elas aproveitaram a efervescência da Internet nos anos 90 para expor seus textos em blogs para grupos maiores, ampliando a roda de amigos. Entretanto, as duas jovens escritoras ambicionavam mais do que isso. Almejavam expandir o seu público de leitores e viram essa oportunidade nos concursos literários. “A quantidade de escritores inéditos que temos atualmente é algo inimaginável. A publicação de alguns textos em blogs é um caminho para que esses escritores possam provar a qualidade dos seus textos; mas é o concurso literário que rende maior visibilidade, pois ali ele é testado entre centenas de concorrentes. E passar nesta peneira significa marcar uma estrelinha ao lado do seu nome”, explica a carioca Ana Cristina. Há uma diversidade desses concursos no Brasil, as prefeituras municipais os promovem como um programa de incentivo à cultura e as gratificações para os ganhadores variam entre publicações e um montante em dinheiro. Novos poetas, romancistas e/ou escritores de contos...todos têm a oportunidade de participar, já que há várias modalidades nas disputas. Dentre todos os concursos, um dos que mais se destaca é o Prêmio Sesc, que desde 2003 premia os vencedores com a publicação de suas obras pela editora Record e a distribuição das mesmas por todas as salas da rede de ensino do Sesc e Senac. Ana Cristina viu nas competições a chance de mostrar a qualidade de seus textos; “perdi as contas de quantos concorri, acho que cerca de sessenta. Nos primeiros anos participava de mais. Atualmente, participo de cinco ou seis por ano. Desses fui premiada em doze”, orgulha-se de si mesma. O Prêmio Othoniel Menezes, promovido pela prefeitura de Natal, reconheceu o talento de Ana Luiza Penha logo na primeira vez em que ela participou da disputa. Com um livro de

poesias intitulado Das apresentações, a autora reuniu quarenta poemas criados a partir da junção de ações corriqueiras com literatura; “Escrevi os poemas baseada no lirismo que não podemos perder ao perceber a presença das margaridas em um cantinho no jardim, quando atravessamos ruas e avenidas movimentadas”, explica. Atualmente, as duas publicaram seus primeiros livros. Para escrever a história, Ana Cristina se inspirou no caminho que trilhou até ter em mãos a impressão do seu livro; Caixa de Desejos é a realização de um sonho. Apenas adiei meus desejos, mas nunca os abandonei. E o livro fala disso, de não desistir dos seus sonhos, de guardá-los, de usar todas as boas experiências como combustível”, conclui.

No meio do caminho havia uma pedra Ser escritor no Brasil não é uma tarefa tão fácil. Ana Luiza Penha se formou em letras e se tornou professora, Ana Cristina Melo graduou-se em informática e também se tornou docente, as duas tiveram que seguir carreiras paralelas à sua verdadeira paixão. Entretanto não são somente os novos escritores que têm dificuldades. As editoras de livros também enfrentam sérios problemas no país, pois precisam lidar com a falta de tempo e a falta de hábito de leitura da maior parte da população, além do agravante do analfabetismo. Segundo dados do IBGE de 2009, 14,1 milhões de brasileiros não sabem ler; dos que foram alfabetizados, de acordo com o Instituto Brasileiro de Alfabetização Funcional (INAF) apenas 26% deles de 15 a 64 conseguem entender o que lêem. Ana Cristina sente também a falta de incentivo da imprensa e das lojas de livros, “o espaço na mídia e na maior parte das livrarias é maior para os estrangeiros”. Na rede de livraria Saraiva, por exemplo, os autores estrangeiros ocupam 70% das prateleiras, contra 30% das obras nacionais. Segundo a gerência de uma das lojas de São Paulo, o motivo está na procura, os autores internacionais vendem muito mais. Além disso, os custos para a publicação de um livro são bastante altos. Para que o jovem escritor publique o texto é necessário que a editora aprecie a obra; “não basta um escritor ser bom. Ele precisa ser vendável”, conclui Melo. V

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Cenarios

Eu sou a patroa! Espetáculo tragicômico faz crítica a permanente disputa pelo poder na sociedade Texto Flávia Costa

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Minhas Criadas leva recursos digitais ao palco

Criadas irmãs envenenam a patroa – o caso foi notícia no ano de 1933, na França. Muito mais do que uma história trágica de conflito entre patrões e empregados, o episódio levava à discussão a luta de classes, tanto econômica quanto intelectual. A partir desse fato, a Companhia de teatro São Genésio produziu o espetáculo Minhas Criadas, com direção de Antônio Apolinário. A peça apresenta dois cenários. Começa do lado de fora da sala de teatro, ideia emprestada do teatro de rua, “a intenção é promover a troca entre público e atores, tirar a impressão de que o teatro é algo fechado, transpor as barreiras que o palco impõe”, explica o diretor. Por meio da utilização de elementos multimídia e recursos sonoros especiais, a apresentação provoca no espectador a reflexão do conflito existente entre dominador e dominado, do voyerismo e da liberdade vigiada. No enredo, Madame Amer, interpretada pela atriz Daniela Varotto, vigia todos os passos de suas criadas, as irmãs Franci (Lya Bueno) e Irani (Rita Oliveira). Amer as trata com sarcasmo e menosprezo, enquanto as duas anseiam tornar-se patroas. Além da luta de classes por diferença financeira entre patroa e empregadas, há a disputa intelectual entre as irmãs; Franci é analfabeta e Irani a esnoba por esse motivo. As duas irmãs ainda vivem um relacionamento incestuoso. A presença da relação sexual entre as duas fica evidente quando Franci oferece seu próprio corpo a irmã para a realização de uma brincadeira frequente entre elas, em que uma finge ser a madame e designa ordens a outra. Para enfatizar a proposta, Franci relembra a irmã das noites em que ela visitava seu quarto. Quando Franci se apaixona por um homem, a situação se torna incompreensível para Irani e as discussões entre as duas começam. Durante a dramatização, há cenas que foram gravadas como filme, que são projetadas em toldos brancos e narram parte da história. O jogo de luzes e de sons mantém o espectador atento e apreensivo quanto à evolução do enredo. Apesar da narração se basear em uma história trágica, os diálogos e algumas ações exag-

eradas da patroa tornam a peça cômica em certos atos. Minhas Criadas também faz crítica a falta de privacidade. Madame Amer representa, “o olho que tudo vê”, e leva o público a refletir sobre as convenções e as regras que norteiam a sociedade – há sempre alguém dirigindo suas atitudes e você sempre dirige as atitudes de alguém.

Teatro no Brasil “A persistência é o caminho do êxito”. A frase é de Charles Chaplin e se aplica a realidade das ainda não reconhecidas companhias teatrais do Brasil. O investimento realizado na construção de uma peça é, na maioria casos, alto, pois envolve, além de atores, diretores e produtores, outros profissionais, como maquiadores e figurinistas, e a produção não consegue retorno de seu trabalho. Por esse motivo, muitas trupes são obrigadas a desempenharem mais de uma função, ou seja, o ator é também figurinista e produtor. Muitas vezes, no entanto, nem mesmo esse acúmulo de função é suficiente para a sobrevivência do grupo. A escassez da venda de ingressos também é um obstáculo para manter uma companhia teatral. Dessa maneira, o patrocínio de empresas privadas e leis como a Rouanet e programas como o Proac (Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo) são o que permitem a difusão do teatro no país. Outra barreira a ser transposta pelos grupos teatrais é a concorrência com as outras opções de lazer oferecidas ao grande público. A companhia São Genésio se utiliza de recursos para fugir do tradicionalismo teatral, como a inserção de tecnologia durante o espetáculo de Antônio Apolinário, e realiza espetáculos com valores de ingressos acessíveis a maior parte da população. Apesar disto, a presença do público ainda é reduzida em comparação às demais atrações culturais. “Vejo peças com menos dinheiro do que gastaria numa sessão de cinema, acredito que o acesso a este tipo de arte está mais relacionado à questões culturais do que financeiras”, considera a atriz Daniela Varotto. V


Aloha Trecho do livro Clarice Lispector – Entrevistas

Clarice Lispector entrevista Vinicius de Moraes

Vinicius, você já se sentiu

sozinho na vida? Já sentiu algum desamparo? — Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo menos eu tenho um sentimento muito agudo de solidão. — Isso explicaria o fato de você amar tanto, Vinicius. — O fato de querer me comunicar tanto. — Você sabe que admiro muito seus poemas, e, mais do que gostar, eu os amo. O que é a poesia para você? — Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios olhos. De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão mais profunda e conseqüentemente mais bela. — Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais importante do mundo, Vinicius? — Para mim é a mulher, certamente. — Você quer falar sobre música? Estou escutando. — Dizem, na minha família, que eu cantei antes de falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, minha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como me machucavam aquelas valsas antigas. — Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo música. Depois a poesia fez o resto. Fizemos uma pausa. Ele continuou:

— Tenho tanta ternura pela sua mão queimada… (Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho). Vinicius disse, tomando um gole de uísque: — É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma atmosfera de vida nada criadora. Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.


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