Desverniz de Michelle Braz

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Desverniz

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Desverniz Em todas as escalas musicais Op. 15

Michelle Braz

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Concepção, reportagem e texto Michelle Braz Diagramação Ana Paula Campos Sarah Moralejo Ilustração Renato Caetano de Jesus Capa Bruno Zago Assessor de Produção Bruno Wan-Dick

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Aos meus av贸s: Geraldo Moreira, Joana Moreira e Ana Antunes 7


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...os jornais noticiam tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida... “Os Jornais” - Rubem Braga 9


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Sumário Notas da Autora Prelúdio

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O Festival Ensaio de orquestra

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Auditório Cláudio Santoro Ponto de Diminuição

43 53

Master Class Instrumento

61 75

Escalas Quiálteras Contratempo O Público News Concert: the method Diapasão O bom ladrão Perguntas de uma repórter (clandestina) Agradecimentos

85 95 105 117 127 135 145 155 163

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Notas da autora

Em julho de 2008, quando iniciei a pesquisa no Festival de Inverno de Campos do Jordão, recordo a explicação sobre o projeto para o então diretor pedagógico do evento, Arcádio Minczuk: — O livro não será diário de bordo! Eu procuro uma reflexão lapidada por fatos, uma essência, a significância social da música. Desde aquele julho, Desverniz me perseguiu por 17 meses. No período do Festival, procurei ir além da rotina de entrevistadora: EU, aquele que pergunta; TU, só responde. Fui viradora de página de um bolsista de piano, descobri as mil peculiaridades de cada instrumento, dormi numa capa de contrabaixo acústico, participei de inúmeras pizzas, fogueiras, barzinhos e, para alguns, fui uma “espécie” de cúmplice, confidente ou até um “muro das lamentações”: — Repórter! Você tem que colocar no livro que a comida é... – recordo-me de um bolsista sugerindo as abordagens do livro. Como Desverniz não corresponde a um diário, o livro permite a leitura de maneira aleatória, com exceção ao primeiro e último capítulo. Assim, você pode ir ao sumário e pensar: — Quiálteras! Mas o que é isso? Vou começar com esse capítulo... Além disso, por se tratar de um livro com temática musical, 12


procurei mesclar o discurso textual com símbolos da partitura. Embora de universos distintos, música e texto apresentam inúmeras conexões: o respeito à pausa, à sonoridade, à repetição de trechos, etc. Como disse para mim um bolsista de viola: — Nós contamos as mesmas histórias! Só que de maneiras diferentes. Todos os símbolos musicais foram intencionais e complementam o discurso textual. Cabe ao leitor selecionar se quer encarar tais símbolos como ornamentos ou parte integrante da leitura. Dessa maneira, disponibilizo aqui o significado dos símbolos utilizados:

Pausa: corresponde à ausência do som

Contratempo: deslocamento do acento musical

Ponto de diminuição: reduz o tempo da nota

Ponto de aumento: expande o tempo da nota

Fermata: expande a duração da nota 13


Quiálteras: notas que não obedecem ao tempo normal do compasso

Símbolo que remete à repetição a partir de outro trecho musical

Pentagrama: linhas onde se escreve a partitura

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Prelúdio

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Moderato da sinceridade

Essa coisa aqui precisa de desprendimento, mesmo que momentâneo. Esqueça a amada imortal de Beethoven e, sobretudo, sua surdez. Esqueça a esquizofrenia de Schumann, a tuberculose de Chopin, a cegueira de Bach, as crises de asma de Vivaldi, a unha encravada de Villa-Lobos. Esqueça também a homossexualidade de Tchaikovsky, o temperamento contestador de Debussy, os talentos culinários de Rossini, o perfeccionismo de Mahler, a rebeldia de Paganini, a fortuna de Mendelssohn, o misticismo de Scriabin. Não falarei da valsa de Strauss, nem do bolero de Ravel, nem do dodecafonismo de Schoenberg, nem da Carmen de Bizet... Não discorrerei sobre possibilidades: as ideias nazistas de Wagner, as amantes de Liszt, a rivalidade entre Salieri e Mozart, o amor platônico entre Brahms e Clara Schumann, a síndrome de Marfan em Rachmaninoff. Nenhum mito, jornada do herói, doença terminal, crítica musical, curiosidade e/ou mexerico histórico.

Em italiano, a palavra moderato significa “moderadamente”. Na música, moderato corresponde a um andamento mediano - entre um tempo rápido e um lento.

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Essa coisa aqui foi composta no presente do indicativo. Música, Brasil, século XXI. Eu precisava de uma matériaprima, um espaço/tempo, aquilo que os pesquisadores chamam de corpus – senhora robusta de temperamento intrigante. Entretanto, nesse mundo em que “a comunicação morre por excesso de comunicação”♪. Ah! Tudo já foi dito, explicado, industrializado, midiatizado em nobres verborragias... Ou quase tudo? Foi acreditando no “quase tudo” que essa coisa existe. Para resumir o processo, eu recorro ao queísmo (os puristas que me desculpem!): a pianista frustrada que virou estudante de jornalismo que queria escrever um livro esdrúxulo que encontrou uma meia dúzia de pessoas que acreditaram no seu projeto. E onde estava a senhora robusta? Ela estava próxima: Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Senhora de vários parentes: patrocinadores, co-patrocinadores, políticos, apoiadores culturais, apoiadores institucionais, produtores, artistas, imprensa, críticos musicais... Mas os “parentes” já eram famosos, ou pelo menos conhecidos, fontes oficiais acostumadas a discursos. Eu queria o não dito, o anonimato musical: aquela “massa” de aproximadamente 150 músicos chamada bolsista. — O que você é? ♪

SFEZ, Lucien. A comunicação. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2007. p. 28.

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— Eu sou bolsista! No guia de programação do Festival, bolsista se resume a uma tríade remissiva: instrumento, nome e país. Quiçá, uma matéria no jornal para confirmar a excelência do evento. E foi assim, sem muita burocracia e/ou formalismo, que obtive “livre acesso” às atividades do Festival de Inverno nos anos de 2008 e 2009. Aqui, o verbo to be aceita apenas uma modalidade: eu estava no Festival, mas eu não era um dos membros. Aqui, o “estar sem ser” não foi tão ruim: essa peculiar condição permitiu as conversas, a espontaneidade e até a cumplicidade com “os” bolsistas e tantos outros anônimos de Campos do Jordão. Mas eu fui repórter? — Por mediação e não finalidade. Isto é, não tive aquela urgência em veicular reportagens para a senhora imprensa. Eu fui repórter se você aceita a postura de que este pode ir além de “registrar fatos”: repórter pode compartilhar, rir, chorar, sentir e identificar-se. Caso não concorde, talvez eu possa me definir como “bolsista-repórter”: Naipe – não identificado. Instrumento – cadernos de anotações vermelhos e qualquer caneta ou lápis. Nome – M. B. S. País – Brasil. Por um “quase tudo” essa coisa aqui existe. Por acreditar 20


numa transposição: retiramos a preposição sobre e escrevemos com – com música, com músicos, com pessoas.

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O Festival

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Andante dos cenários

Muitos são as expressões que rondam o Festival de Inverno de Campos do Jordão: “o mais importante festival de música erudita da América Latina”, “o responsável por algumas gerações de músicos do país”, “local de apresentação de ídolos aos jovens bolsistas”, “grande oportunidade de aprendizado”. Mas entre o real e o parecer real, inúmeras transposições musicais ocorrem...

Preventório Santa Clara. Tuberculose. Prevenção. Por muitas décadas, Campos do Jordão foi apenas destino de pessoas enfermas. Em minha primeira corrida pela cidade, o taxista Mariano sentenciou: — Hoje é bonito dizer que se mora em Campos do Jordão! Cidade cara, turística. Mas uns 30 anos atrás, quando dizia que morava aqui, existia aquele olhar estranho como quem pergunta: “você é tuberculoso?” O principal local de estudo dos bolsistas é um antigo preventório para crianças órfãs de pais tuberculosos. Atualmente, ♪

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O movimento do Andante corresponde ao andar humano, a velocidade mediana.


pertence à Sociedade de Cardiologia, sendo que a produção do Festival aluga o espaço. Preventório. Local labiríntico em que qualquer espaço se transforma em sala de estudo. Banheiros se tornam locais disputadíssimos, já que muitos professores aconselham tocar em frente ao espelho para se observar a postura. Sempre existe algum contrabaixista embaixo de uma escada. E o gramado da entrada torna-se local acirrado em dias ensolarados. Preventório é a mini-cidade do festival. Lugar para as refeições (almoço e jantar), momentos da sesta no gramado, o xerox, a sala de informática e até um “futebolzinho”descompromissado. Local para buscar aquele “cafezinho” na copa administrativa lá pelo fim da tarde. — Mas seja discreta! – aconselha-me um dos professores do festival. Preventório. Babel de sons, línguas e gestos. Em apenas dez passos, você pode encontrar um professor alemão que ministra aulas em inglês, outro professor holandês que entende “alguma coisa” do português. Para ter uma identidade com os alunos brasileiros, muitos professores estrangeiros aprendem a indicar os dedos da mão: — (sotaque de gringo) Pri-mei-ro de-do... Se-gun-do de-do... Ter-cei-ro dedo... Quar-to de-do... Preventório. Árduo local de pesquisa: tantas aulas, ensaios, conversas... Tudo acontecia ao mesmo tempo! E um dia andando pelos corredores com meu caderninho em mãos, o professor 27


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