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Prefácio
PREFÁCIO UMA INICIATIVAFUNDAMENTAL Venício A.de Lima
[sociólogo, mestre e doutor em comunicação e professor da UnB - Universidade de Brasília]
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Desde que se constituiu um sistema nacional de comunicações com a integração do Brasil via microondas, promovida pelo regime militar no final da década de 1960, surgiram também iniciativas que revelam a consciência de que a democratização desse sistema é condição necessária para a democratização do país.
Se inicialmente a questão estava restrita a setores da academia e teve origem em discussões no âmbito de organismos internacionais como a Unesco, aos poucos ela vai sendo assumida por parcela do movimento sindical de jornalistas e empregados em telecomunicações, dos partidos políticos e outros segmentos da sociedade civil organizada.
Existe, portanto, uma inserção historicamente importante da sociedade civil organizada que se dá, basicamente, de duas maneiras: na prática concreta de experiências de comunicação alternativa e através de uma ação deliberada de busca de participação na formulação de políticas públicas democráticas.
Praticamente inexistem, no entanto, estudos que tentem reconstruir a história dessa contribuição. Além disso, na maioria das vezes, não se tem dado a devida importância às dissensões havidas dentro da sociedade civil no encaminhamento e consolidação de práticas e propostas.
Considerando o paradoxal fortalecimento e organização crescentes da sociedade civil no Brasil, desde a década de 1970, é de se esperar que tenha também ocorrido um aumento importante do número de atores (entidades sindicais, ONGs, instituições religiosas, associações e outras) envolvidos em práticas democratizadoras e interessados em participar da formulação e implementação das políticas públicas para as comunicações.
A maioria dos registros históricos sobre a democratização da comunicação, no entanto, desconsidera a discussão da década de 1970 sobre as políticas nacionais (democráticas) de
comunicação, realizadas no âmbito acadêmico e também de entidades como a Abepec (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa da Comunicação, criada em 1972) e identificam o início do movimento da sociedade civil apenas a partir da constituição da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, que veio a ocorrer doze anos depois, em 1984.
A coleção que o Intervozes agora publica, sob o sugestivo título de Vozes da Democracia, mesmo sem esgotar o tema, representa um inédito passo no sentido do registro da história das experiências práticas e das propostas da sociedade civil para a democratização da comunicação no Brasil.
São 28 textos, pesquisados e escritos por 32 repórteres, que contemplam uma impressionante diversidade, incluindo depoimentos, entrevistas e relatos de ações de resistência coletados em todas as regiões do País e – mais importante – a grande maioria deles desconhecidos porque até hoje restritos ao espaço local de sua incidência histórica.
Aqui são encontrados, dentre outros, relatos que revelam as ações de democratização da comunicação construídas, por exemplo, na igreja católica através da UCBC (União Cristã Brasileira de Comunicação), do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), do Cemi (Centro de Comunicação e Educação Popular), das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da Rádio 9 de Julho; no coletivo OBORÉ de São Paulo e nos Enecoms (Encontros Nacionais dos Estudantes de Comunicação).
São descritas experiências como do Coojornal de Porto Alegre; e outras menos conhecidas como do Grita Povo da Zona Leste da cidade de São Paulo; do grupo “Salamandra-Boi” da Vila Penteado, também de São Paulo; do jornal Posição do Espírito Santo; da Rádio Papa Goiaba do Rio de Janeiro; das experiências dos jornais Diário da Manhã e Top News de Goiânia; do Fifó de Vitória da Conquista; do Jornal da Cidade de Aracaju; da Coojornat de Natal; do Tesc (Teatro Experimental do SESC) de Manaus; do Porantim; do Resistência e do Jornal Pessoal de Belém e do Varadouro de Rio Branco no Acre.
Toda a diversidade e riqueza desses depoimentos, entrevistas e relatos de ações de resistência mostram um lado quase oculto de nossa realidade histórica: atores anônimos enfrentando os tempos sombrios da ditadura militar e contribuindo no longo e inacabado processo
de redemocratização do país. Ao mesmo tempo, esses atores marcaram posição na disputa em torno de políticas públicas democráticas de comunicação entre nós.
Esse esforço do Intervozes, que agora se transforma em livro, faz parte de um movimento mais amplo e de importantes conseqüências. O principal paradigma conceitual que tem orientado boa parte dos segmentos organizados da sociedade civil comprometidos com o avanço na área de comunicação, não só no Brasil, tem sido a idéia-força da sua democratização. Essa é, certamente, uma bandeira consensual. Todavia, uma das falácias dessa construção discursiva é que ela indica a possibilidade de que a grande mídia hegemônica, privada e comercial, seria passível de ser democratizada. Isso equivale a acreditar que os grandes conglomerados de mídia abririam espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade. Recentemente Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão fundamental, não só da esquerda, mas, sobretudo, daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível”.
Pois bem. As construções discursivas não surgem independentemente das circunstâncias históricas nas quais elas são geradas. E é por isso que a tentativa de “re-enquadrar” a luta pela democratização na perspectiva de que o direito à comunicação é um direito humano fundamental e se expressa, sobretudo, através da criação de um sistema público de comunicação igualmente independente do Estado e da iniciativa privada, pode mudar os rumos de como essa luta tem sido conduzida até agora.
É isso que o coletivo Intervozes está tentando fazer. A proposta conceitual de um direito à comunicação não é coisa nova. O novo é a retomada do conceito, apoiada numa articulação internacional, como foco principal da organização de movimentos e de propostas de ação e, além disso, vinculada à discussão concreta de um sistema público de comunicação.
É verdade que os obstáculos para sua articulação são inúmeros. Em primeiro lugar, o direito à comunicação não logrou ainda o status de direito positivado. Isso ainda não aconteceu nem mesmo em nível dos organismos multilaterais que têm a capacidade de provocar o reconhecimento internacional do conceito. Isso faz com que, simultaneamente à articulação política de ações específicas, se desenvolva também a luta pelo reconhecimento formal do direito. Em segundo lugar, há históricas e poderosas resistências ao conceito, exata-
mente pelo poder que ele teria de abarcar, sob suas asas, um imenso leque de reivindicações e bandeiras em relação à democratização da comunicação. O coletivo Intervozes está consciente dessas – e de outras – dificuldades, mas está disposto a ir em frente.
Nesses tempos em que assistimos a um esforço deliberado – e aparentemente bem sucedido – de reconstrução da memória nacional através da ótica parcial de grupos de mídia dominantes, a iniciativa do Intervozes adquire uma relevância fundamental, ao mesmo tempo em que consolida esse grupo de jovens comunicadores como ator imprescindível no cenário contemporâneo da luta permanente pela democracia das comunicações no Brasil.