Descolonizar a crítica

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Descolonizar a crítica

Colônia, pesquisa-espetáculo dos artistas Vinicius Arneiro, Renato Livera e Gustavo Colombini, propõe um desafio a quem o presencia: como descolonizar o olhar? Como não penetrar o espaço movediço proposto pela cena com a arrogância epistemológica de quem já conhece de antemão a verdade? Para responder a esse desafio, me propus mergulhar no evento como num rio noturno, sem projeções ou expectativas, deixando que a sua água tépida ou gelada, leve ou viscosa, me envolvesse livremente. Imaginei um espaço intocado para onde eu me encaminharia despido de preconceitos ou de noções rasteiras de propósito, ganho ou investimento, mas logo me dei conta de que esse espaço só poderia existir como perda, porque o simples fato de imaginá-lo já era uma forma oblíqua de colonização. Como me livrar do entulho de informações que condicionava meu olhar numa direção determinada? Eu já conhecia algumas experiências artísticas de Gustavo Colombini, já vira algumas imagens dos ensaios da peça, já sabia um pouco da história do manicômio da Bárbara Cena... Como não projetar naquele espaço obscuro a luz falsa das minhas certezas sobre qual deveria ser a atividade de um artista numa questão sobre a qual reflito há alguns anos? O simples fato de nomear Colônia como ”pesquisa-espetáculo dos artistas Vinicius Arneiro, Renato Livera e Gustavo Colombini” já estreita o evento, conferindo-lhe não apenas uma etiqueta e uma filiação histórica (que não seria menos estreita se eu mudasse a denominação para “palestra-performance” ou “pesquisa-cena”), mas também um certificado de propriedade. Decidi então fazer o percurso inverso; em lugar da miragem de uma experiência incontaminada por expectativas e projeções que inevitavelmente a contaminariam e a transformariam em outra coisa, busquei o território incerto da crítica virtual: renunciei a escrever sobre a performance concreta (que sequer presenciei) e me interessei pelos seus arredores, esses elementos tradicionalmente considerados como parateatrais, mas que podem ser tão importantes para o sentido de uma experiência cênica quanto sua própria realização efetiva.


Em primeiro lugar, é impossível para mim não ouvir a voz de Foucault ao refletir sobre as “vidas singulares, tornadas, por não sei quais acasos, estranhos poemas” nessa compilação de horrores da Bárbara Cena. Confesso que ler sobre o “Holocausto Brasileiro” que serviu como ponto de partida para este espetáculo (e saber que se trata de apenas um entre tantos holocaustos passados, presentes e futuros) me leva mais longe do que qualquer experiência cênica, me faz sentir fisicamente (como se pudesse haver outro modo de sentir) como é supérfluo fazer teatro. Pergunto-me sobre a legitimidade de colonizar essas “existências destinadas a passar sem deixar rastro”, de transformá-las em objeto de fruição, horror e piedade; em suma, em arte. Como as “vidas dos homens infames” trazidas à luz por Foucault, o que arranca da obscuridade as vidas desses homens mineiros (homens do subterrâneo) é o encontro com o poder: “o poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam”. Em que medida devemos colonizá-las novamente, transmutá-las em cena graças ao nosso duvidoso poder estético? Colônia me faz pensar também na nossa impossibilidade de erigir projetos coletivos minimamente viáveis, na nossa invencível tendência a antropomorfizar tudo à nossa volta. Por que as abelhas e as formigas deveriam ser republicanas? Por que as bactérias deveriam ser indivíduos e não simples vetores inconscientes de si mesmos? Mas vetores não são abstrações humanas? A inconsciência só existe para nós, os vergonhosamente conscientes. Impossível não me lembrar de Kafka, talvez o artista que tenha ido mais longe na tentativa de descolonizar a imaginação humana, criando vozes para macacos, toupeiras, insetos monstruosos e seres híbridos que já não podem ser reduzidos à nossa normalidade demasiado humana. Há cerca de cem anos, o artista da Praga colonizada escrevia Na colônia penal, fábula terrível que trata do confronto dos corpos com a norma, ou das vidas mínimas com o poder absoluto. Não entrarei aqui nos meandros do “aparelho singular” descrito minuciosamente pelo autor e sobre os seus efeitos nos prisioneiros que se veem forçados a confrontá-lo. Só queria lembrar o discurso do soldado nomeado juiz: “O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. (...) Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras, e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais”. Discurso do poder estranhamente próximo, anacronicamente contemporâneo, que me faz cogitar em que medida é possível permanecer à parte, observar tudo com a impassibilidade de um explorador que descobre um costume exótico, ou com a irresponsabilidade de um espectador que se limita a observar, aplaudir e voltar para casa. Colonizado pelas questões suscitadas por Colombini, Livera e Arneiro, só posso escavar minha insônia incerta e desamparada. Colonizado


desde antes do meu nascimento, não posso propor senão interrogações sem resposta, no limiar da lei e da cena.

Obras citadas: FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.203-222. KAFKA, Franz. O veredicto / Na colônia penal. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Marco Catalão é poeta e dramaturgo. Atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado na ECA/USP sobre o potencial epistemológico das criações artísticas e a performatividade dos discursos críticos (Bolsa Fapesp, processo 2015/07437-0)


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