ESCRITA-AÇÃO
Os dramaturgos André Felipe e Gustavo Colombini, durante os dias da Mostra Hífen de Pesquisa-Cena, realizaram diversas ações envolvendo a prática da escrita integrando a aba ESCRITA-AÇÃO entre 02 e 18 de dezembro de 2016 no Rio de Janeiro. A partir da programação, desenvolveram uma dramaturgia da Mostra com uma produção intempestiva
de
escritas
distintas
(postagens,
poemas,
críticas),
enviando
correspondências aos artistas e ao público, disponibilizando textos para a feitura de zines, criando ações de escrita junto a colaboradores convidados e realizando seminários de discussão sobre dramaturgia.
André Felipe (Florianópolis/SC) é dramaturgo, ator e diretor, mestre em dramaturgia pelo Instituto Universitário Nacional del Arte de Buenos Aires. Gustavo Colombini (São Paulo/SP) é dramaturgo e diretor teatral formado pela Universidade de São Paulo e fez parte da terceira turma do Núcleo de Dramaturgia SESI - British Council. Ambos desenvolvem trabalhos dentro do grupo multiartístico cinza de São Paulo e ministram juntos a oficina ‘Como se transforma um texto em crocodilo?’ a partir de uma concepção experimental de dramaturgia expandida.
Também colaboraram Ariel Farace, Catalina Landivar, Marco Catalão, Vinicius Garcia Pires e Tatiana Schunck.
http://www.mostrahifen.com.br
tratado espacial sobre o hífen 1. todo hífen é uma arquitetura 2. a arquitetura está para a geografia, assim como o hífen está para a gramática 3. toda gramática sugere espaço 4. nesse caso, o espaço da gramática não é o mesmo espaço da geografia 5. nesse caso, toda geografia é composta por hífens 6. o hífen não é, necessariamente, uma reta 7. toda reta é infinita 8. por ser infinita, toda reta abriga em suas extremidades duas eternidades opostas 9. entre um hífen e uma eternidade haverá uma geografia, mas nem sempre 10. a geografia está para a cidade, assim como o hífen está para o espaço 11. dependendo do ângulo, todo hífen é horizontal 12. dependendo do ângulo, todo horizonte é uma falha imaginativa 13. nem toda falha imaginativa é um erro do pensamento
14. nesse caso, falha imaginativa e pensamento não ocupam o mesmo lugar no espaço 15. “lugar” e “espaço” são palavras que não significam a mesma coisa 16. se elas fossem a mesma coisa, estariam diante de apenas uma palavra, não de duas 17. nesse caso, as palavras mentem assim como nós, seres humanos 18. todos os seres humanos mentem 19. não há relação aparente entre o hífen e a mentira, embora todas as vogais da palavra “hífen” estejam na palavra “mentira” 20. a mentira está para a gramática, assim como o espaço está para a geografia 21. a geografia das palavras, nesse caso, não é a gramática do espaço 22. dependendo do ângulo, toda mentira abriga um hífen 23. dependendo do ângulo, todo hífen é um pedaço de infinito 24. o infinito está ligado ao tempo, assim como o eterno está ligado ao espaço 25. tempo é um termo utilizado tanto na gramática quanto na geografia
26. nesse caso, o tempo dos homens não é o mesmo que o tempo das palavras 27. toda palavra abriga uma cidade 28. toda cidade sugere pelo menos um hífen 29. entre um hífen e uma cidade, pode haver o infinito 30. a palavra “infinito” não se escreve com hífen 31. nesse caso, nem todas as palavras sugerem espaço 32. foneticamente, o som da palavra “espaço” ressoa muito mal ao lado da palavra “infinito” 33. foneticamente, o som da palavra “infinito” abriga o som da palavra “hífen” 34. nesse caso, o espaço entre a palavra “espaço” e a palavra “infinito” pode abrigar uma reta 35. nesse caso, toda reta é uma falha imaginativa, assim como toda falha imaginativa pode ou não ser uma mentira 36. nesse caso, o hífen pode ser uma reta invertida 37. a imagem de uma reta invertida É um exemplo de falha imaginativa 38. dependendo do ângulo, qualquer falha imaginativa pode ser uma mentira
39. todas as vogais de “mentira” estão contidas na palavra geografia 40. uma geografia pode ser o intervalo entre um tempo e um espaço 41. as palavras “tempo” e “espaço”, ao serem utilizados numa mesma frase, podem sugerir uma arquitetura gramatical 42. toda arquitetura é composta por intervalos de tempo 43. intervalos de tempo podem ser separados por hífen 44. nesse caso, um hífen também é um intervalo de tempo 45. dependendo do ângulo, a palavra “tempo” abriga todos os hífens de um espaço possível 46. dependendo do ângulo, a palavra “espaço” possui um hífen sob sua quinta letra sucessiva 47. letras e hífens são gramatical e diretamente proporcionais a si mesmos 48. tempo e espaço são gramatical e inversamente proporcionais a si mesmos 49. a gramática está para o infinito, assim como o hífen está para o espaço 50. nesse caso, todo hífen é uma arquitetura
Por que o teatro estuda o teatro com teatro? O que é a dramaturgia na dança? Por que a dramaturgia estuda a dramaturgia com dramaturgia? As palavras dançam? Onde se estuda a palavra? Quando eu digo que danço, já estou dançando? Quando a escrita é dança? A dramaturgia se faz na presença ou na ausência? Quando escrever é dançar? Dramaturgia é palavra? Quando a dança é escrita? Movimento é palavra? Quando dançar é escrever? Memória é palavra? Qual a estrutura da palavra que eu leio? Espaço é palavra? Qual a estrutura da palavra que eu ouço? Tempo é palavra? Qual a estrutura da palavra dentro de mim? Palavra é tempo? Que movimento tem a palavra? Palavra é espaço? Qual o corpo da palavra? Palavra é memória? Qual o corpo do som da palavra? Palavra é movimento? Será que quando elas não estão sendo vistas, as palavras dançam? Palavra é dramaturgia? Imaginar uma dança é dançar duas vezes? Como você criou essa dramaturgia? Como viver em uma sociedade que não sabe lidar com os seus fracassos coletivamente? Ausência constrói presença? Não seria a ficção a única forma de salvar o mundo? E a presença constrói ausência? Quando a dança faz o pensamento dançar? Como a dança marca o tempo e o espaço? Quando o pensamento faz o pensamento dançar? As imagens estão: a) na sua voz? b) no espaço? c) na minha cabeça? Quanto espaço a palavra ocupa? Quem dança aqui: você ou eu? Quanto espaço o espaço ocupa? Onde está a dança? Quando a dança termina? Se este texto fosse publicado, ainda assim ele seria dança? Quando a palavra termina? O que se move? Em que momento dança e palavra são a mesma coisa? O que se move em mim quando eu me lembro de algo? Em que momento dança e palavra não são a mesma coisa? A palavra ocupa e abre espaço? Em que momento dança e palavra não podem ser a mesma coisa? Que perguntas são essas? Existe teatro sem teto? Eu só danço com o meu corpo? Onde nasce uma pergunta? Sinapse é dança? O silêncio é uma pergunta? Não pode responder? Quem foi que colocou a flor no palco? Foi você que colocou a flor? Quem foi que colocou a flor? Por que a gente separa dança de teatro? Dramaturgia de espaço? Texto de palavra? Imagem de todo o resto? Por que a gente separa as coisas? Como explicar esse espetáculo pra alguém? Por que a gente usa a palavra espetáculo? Qual outra palavra a gente poderia usar? O “porque” de fazer arte é junto ou separado? Por que a palavra sobrevive? Por que a imaginação é livre? A imaginação é livre? No que a memória sobrevive? Sempre a memória sobrevive? A memória é ficção? A memória nos engana? A dança é uma memória? Por que há aplauso? Por que não o aplauso? O que é aplauso? Quando a dança acaba? A dança acaba? O que me conduz a imaginar? Se eu paro de imaginar, eu paro de imaginar? Em que medida eu faço parte da sua memória? Como eu entro pra sua memória? A memória é minha ou sua? No escuro eu consigo ver? O infinito é escuro? Você dança no escuro? Barulho ocupa espaço? Barulho pode ser música? Som é presença? Você responde mentalmente as perguntas? Qual é a próxima pergunta? Seria essa? Um dia as perguntas acabam? Memória
é mentira ou criação? Uma coisa anula a outra? Não sei, será? Por que precisamos de respostas? O desejo de uma pergunta é ser respondida? Quem é que pode responder essas perguntas? Quem é que não pode? Alguém se arriscaria a responder essas perguntas? É preciso poder para responder? É preciso falar para responder? Poder é poder? O que é poder? O que é luz? E o choro? O que? E o choro? O que? Como? Eu posso falar? Posso responder? Eu posso morar dentro do seu movimento? Ocupa eu? Vamos ocupar? Vamos? Quando você se move, você pode me mover? O que era a chuva? Você dançou quando estava tudo escuro? Como você se aquece pra fazer essa peça? Você gosta do seu nome? Por que o escuro em algumas de suas criações? O que você muda nas apresentações? Esse trabalho tem alguma ligação com o espírito encarnado Erê? A dramaturgia mudou muito desde a estreia? Por que a seleção dessas memórias? A dramaturgia está escrita em palavras? Por que você começou a trabalhar sobre a memória? Como é receber várias perguntas e não poder responder? Quais eram as expectativas de vocês quando vocês entraram ali na sala de teatro? Falta alguma coisa à pergunta? Toda vez que você chama gente até aqui, você inventa uma coisa nova? Quais eram as suas expectativas em relações às nossas perguntas? Será que memória é inventar? Eu consigo te ver no palco? Ela não está no palco o tempo todo? Ela não estava na plateia? É preciso estar para estar? Seria possível prolongar essa experiência por umas três horas ou quatro? Seria possível prolongar essa experiência por uma vida inteira? Essa experiência só acontece dentro de espaços como esse? Por que espaços como esse possibilitam essa experiência? É preciso um espaço para acontecer algo? As palavras podem invadir os corpos? Falando de produção, o custo desta experiência, em correlação a uma experiência mais, digamos, comercial, seria equivalente ao tempo e ocupação do espaço e dos recursos necessários técnicos? O caminho é longo? Para dançar precisa ter música? Para ter música é preciso ter música? Por que estamos fazendo perguntas? Alguém tem mais perguntas? A arte será eterna? O que vai ficar dessa experiência: mais respostas ou mais perguntas? Quando o Temer sair, a gente ainda vai falar “Fora Temer”? Quando o Temer sair, esse espetáculo vai ser o mesmo? Falar e fazer é a mesma coisa? Temer vai sair? Lula vai ser preso? E se alguém fosse lá no palco no meio do acontecimento e tirasse aquela fita crepe? O prédio cairia? Por que ninguém foi lá tirar aquela fita crepe? Você está arrependido? O movimento voltaria? Por que a gente respeita limites? A gente respeita limites? Tem alguma coisa embaixo daquela fita crepe? Terminamos? Sim? Como fazer uma pergunta que não existe para respostas? Existe resposta pra alguma pergunta? Tem pergunta? Dança comigo? O que? Uma angústia pode ser o resultado disso tudo? Dancem? Dancem? Dancem? Dancem? texto coletivo criado a partir de entre ver, de denise stutz (14 de dezembro de 2016) ESCRITA-AÇÃO // mostra hífen de pesquisa-cena
AMOR CRISTÃO Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga. Na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca. Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena. Amor é você esconder a arma em um buquê de rosas. E oferecer ao primeiro que aparecer. De carro importado. De vidro fumê. Nada de beijo. Amor é dar um tiro no ente querido se ele tentar correr. Amor é o bife acebolado que a minha mulher fez para aquele pentelho comer. Filhinho de papai, lá no cativeiro. Por mim ele morria seco. Mas sabe como é. Coração de mãe não gosta de ver ninguém sofrer. Amor é o que passa na televisão. Bomba no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios. Condomínios fechados. E bancos. O amor invade. O amor é também o nosso plano de ocupação. Amor que liberta. Meu irmão. Amor que sobe. Desce o morro. Amor que toma a praça. Amor que de repente nos assalta. Sem explicação. Amor salvador. Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue. Meu Filho. Não é amor. (Rasif, Mar que rebenta – Marcelino Freire)
m entro pela esquerda do palco só respiro também deixo o ar entrar com como a maré eu deixo o cheiro da maresia entrar eu estou na praia da d te da ilha é a praia que eu ia todos os verões com a minha família eu a para a direita a alguns metros está minha irmã sentada na areia olhand de um baldinho talvez ali dentro tenha água e na água um peixinho na ha irmã sempre gostou de cuidar de animais e de pessoas também. mai minhas tias algumas sentadas em cadeiras de praia duas deitadas em c das um cheiro de sundow e bronzeador misturado ao de maresia eu e de todos de todas eu estendo um dos braços para o alto da direção das s o céu da praia da daniela está nublado mas o tempo está abafado eu ma linha reta o caminho da praia para a casa de praia branca janelas e um muro baixo fácil de pular lá dentro um chão vermelho queimad escuro um pouco úmido e fresco um armário de madeira vazio apen de ouro guardado a notícia do câncer do tio richter circulando pela casa s uma penteadeira rosa com nomes dos primos mais velhos escritos no o sobre o mesmo ponto aí onde você calcula eu pulo incessantemen o peito ardendo um pouco por culpa do meu sedentarismo chove ouveincessante vindo de fora um gato siamês filhote perdido na chu ando na edícula esse nome edícula o meu gato no carro sendo levado mento da trindade me abaixo lembro dos vinte um anos que passamos irmãos eu e o gato chico levanto a perna direita e a música começa a sub
Cara Tatiana, Essa deve ser uma produção-precária. Essa carta é justamente um pedido de resposta sem qualquer pergunta pra se responder. Grace Passô, dramaturga mineira, escreveu uma carta para Vinicius Arneiro, diretor carioca, para que a mesma carta, fosse transformada em uma criação cênica. Na carta de Grace, ela diz
Diante dessas palavras endereçadas a outra pessoa, espantadas e de força, queríamos convidar você a uma produção-precária. O único limite que propomos é uma página de uma folha de papel A4. Nesse “limite”, você estará livre para responder como quiser – não limitado à proposição de um texto. Mas para essa carta chamaremos de “texto”. Você pode ocupar essa página da maneira que lhe parecer possível. As pessoas que lerão o seu texto, tradicionalmente chamadas de leitores, deverão perceber nesse texto, de alguma forma, que estão criando junto com você uma situação, no momento do encontro com esse trabalho. Seu trabalho deve ser uma ode, uma declaração de amor, uma exaltação extrema à liberdade – sem que você (em hipótese nenhuma) mencione essa palavra. Para começa-la, você deve escolher UMA (apenas uma) dessas possibilidades de início: 1) 2) 3) 4)
Uma lista de perguntas sobre estar no mundo hoje; O trecho de um livro que você goste muito, sem mencionar seu autor; Uma fotografia com algum tipo de presença humana; ou Uma definição de dicionário.
Com carinho, André Felipe e Gustavo Colombini ESCRITA-AÇÃO (Mostra Hífen de Pesquisa-Cena)
Diz se
Ainda que tenha encontrado não quer dizer que definiu. Aparece em formato breve, ou denso, ou de quase em quase - sempre mantém uma maior vida se substantivo do que em adjetivo ou advérbio. Apesar de ser opções fica num jeito de uso mais leve e menos profundo, pois pode ser isso ou aquilo. Continue, não acabei ainda e a leitura também não. Esse pode ser um dos aspectos que nos separa a todos: alguma preguiça desistente de continuar a ver os sentidos e não se bastar naquilo que já ouviu e que já está e que por assim ser, já nada diz. Alguma palavra lhe choca?
Tatiana Schunck 15/12/2016
Descolonizar a crítica
Colônia, pesquisa-espetáculo dos artistas Vinicius Arneiro, Renato Livera e Gustavo Colombini, propõe um desafio a quem o presencia: como descolonizar o olhar? Como não penetrar o espaço movediço proposto pela cena com a arrogância epistemológica de quem já conhece de antemão a verdade? Para responder a esse desafio, me propus mergulhar no evento como num rio noturno, sem projeções ou expectativas, deixando que a sua água tépida ou gelada, leve ou viscosa, me envolvesse livremente. Imaginei um espaço intocado para onde eu me encaminharia despido de preconceitos ou de noções rasteiras de propósito, ganho ou investimento, mas logo me dei conta de que esse espaço só poderia existir como perda, porque o simples fato de imaginá-lo já era uma forma oblíqua de colonização. Como me livrar do entulho de informações que condicionava meu olhar numa direção determinada? Eu já conhecia algumas experiências artísticas de Gustavo Colombini, já vira algumas imagens dos ensaios da peça, já sabia um pouco da história do manicômio da Bárbara Cena... Como não projetar naquele espaço obscuro a luz falsa das minhas certezas sobre qual deveria ser a atividade de um artista numa questão sobre a qual reflito há alguns anos? O simples fato de nomear Colônia como ”pesquisa-espetáculo dos artistas Vinicius Arneiro, Renato Livera e Gustavo Colombini” já estreita o evento, conferindo-lhe não apenas uma etiqueta e uma filiação histórica (que não seria menos estreita se eu mudasse a denominação para “palestra-performance” ou “pesquisa-cena”), mas também um certificado de propriedade. Decidi então fazer o percurso inverso; em lugar da miragem de uma experiência incontaminada por expectativas e projeções que inevitavelmente a contaminariam e a transformariam em outra coisa, busquei o território incerto da crítica virtual: renunciei a escrever sobre a performance concreta (que sequer presenciei) e me interessei pelos seus arredores, esses elementos tradicionalmente considerados como parateatrais, mas que podem ser tão importantes para o sentido de uma experiência cênica quanto sua própria realização efetiva.
Em primeiro lugar, é impossível para mim não ouvir a voz de Foucault ao refletir sobre as “vidas singulares, tornadas, por não sei quais acasos, estranhos poemas” nessa compilação de horrores da Bárbara Cena. Confesso que ler sobre o “Holocausto Brasileiro” que serviu como ponto de partida para este espetáculo (e saber que se trata de apenas um entre tantos holocaustos passados, presentes e futuros) me leva mais longe do que qualquer experiência cênica, me faz sentir fisicamente (como se pudesse haver outro modo de sentir) como é supérfluo fazer teatro. Pergunto-me sobre a legitimidade de colonizar essas “existências destinadas a passar sem deixar rastro”, de transformá-las em objeto de fruição, horror e piedade; em suma, em arte. Como as “vidas dos homens infames” trazidas à luz por Foucault, o que arranca da obscuridade as vidas desses homens mineiros (homens do subterrâneo) é o encontro com o poder: “o poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam”. Em que medida devemos colonizá-las novamente, transmutá-las em cena graças ao nosso duvidoso poder estético? Colônia me faz pensar também na nossa impossibilidade de erigir projetos coletivos minimamente viáveis, na nossa invencível tendência a antropomorfizar tudo à nossa volta. Por que as abelhas e as formigas deveriam ser republicanas? Por que as bactérias deveriam ser indivíduos e não simples vetores inconscientes de si mesmos? Mas vetores não são abstrações humanas? A inconsciência só existe para nós, os vergonhosamente conscientes. Impossível não me lembrar de Kafka, talvez o artista que tenha ido mais longe na tentativa de descolonizar a imaginação humana, criando vozes para macacos, toupeiras, insetos monstruosos e seres híbridos que já não podem ser reduzidos à nossa normalidade demasiado humana. Há cerca de cem anos, o artista da Praga colonizada escrevia Na colônia penal, fábula terrível que trata do confronto dos corpos com a norma, ou das vidas mínimas com o poder absoluto. Não entrarei aqui nos meandros do “aparelho singular” descrito minuciosamente pelo autor e sobre os seus efeitos nos prisioneiros que se veem forçados a confrontá-lo. Só queria lembrar o discurso do soldado nomeado juiz: “O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. (...) Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras, e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais”. Discurso do poder estranhamente próximo, anacronicamente contemporâneo, que me faz cogitar em que medida é possível permanecer à parte, observar tudo com a impassibilidade de um explorador que descobre um costume exótico, ou com a irresponsabilidade de um espectador que se limita a observar, aplaudir e voltar para casa. Colonizado pelas questões suscitadas por Colombini, Livera e Arneiro, só posso escavar minha insônia incerta e desamparada. Colonizado
desde antes do meu nascimento, não posso propor senão interrogações sem resposta, no limiar da lei e da cena.
Obras citadas: FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.203-222. KAFKA, Franz. O veredicto / Na colônia penal. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Marco Catalão é poeta e dramaturgo. Atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado na ECA/USP sobre o potencial epistemológico das criações artísticas e a performatividade dos discursos críticos (Bolsa Fapesp, processo 2015/07437-0)
Querida Catalina, Esta deberá ser una producción-precaria. Esta carta es justamente un pedido de respuesta sin cualquier pregunta para contestar. Grace Passô, dramaturga de Belo Horizonte, escribió una carta a Vinícius Arneiro, director de Rio, para que la misma carta, fuese transformada en una creación escénica. En la carta de Grace, ella dice ¿Qué repertorio creamos en nuestra vida para convivir con aquella o aquel a quien, en realidad, no me gustaría que existiera en el mundo? Al final, hoy, 2016, o enfrentamos esta pregunta o convivimos con un asombro cómodo e inocente de estar frente “al otro”, “a la otra”.
Frente a esas palabras direccionadas a otra persona, con espanto y fuerza, nos gustaría invitarte a una producción-precaria. El único límite que proponemos es una carilla de un papel A4. En este “límite”, estarás libre para contestar como quieras – no limitado a una proposición textual. Pero en esta carta llamaremos “texto”. Vos podés ocupar el papel de la manera que te parezca posible. Las personas que lean tu texto, tradicionalmente llamadas lectores, deberán percibir en este texto, de alguna manera, que están creando junto a vos una situación, en el momento del encuentro con este trabajo. Tu trabajo debe ser una oda, una declaración de amor, una exaltación extrema a la libertad – sin que vos (en ninguna hipótesis) diga esta palabra. Para empezar, deberás elegir UNA (solamente una) de estas posibilidades de inicio: 1) 2) 3) 4)
Una lista de preguntas sobre estar en el mundo hoy; Un fragmento de un libro que te guste mucho, sin decir el autor; Una fotografía con algún tipo de presencia humana; o Una definición de diccionario.
Cariños, André Felipe y Gustavo Colombini ESCRITA-AÇÃO (Mostra Hífen de Pesquisa-Cena)
¿Dónde se ubica la tensión de las manos… …para no aplastar? ¿Dónde están los hilos que sostienen los brazos de los que odian? Todos los odios detrás de las espaldas…
DOMADOS Para evitar/nos las piedras en las caras. ¿Y si se cortan las tanzas, y podemos arañar los párpados? Observar-nos las partes enrojecidas que la piel aprieta desde siempre. ¿Hay piel o miel entre las piernas? Saltemos al vacío- como en una escalera súbita-. Que se caiga detrás de nosotros TODO EL VIENTO DEL MUNDO, Y empuje Y se muevan las hojas de los árboles. ¡GRITEN LOS QUE PUEDAN! Mis cuerdas vocales estallaron ya. ¿ALGUIEN SABE DEL DOLOR DE NO PODER DECIR? ¡Saquen las lenguas de los huecos! ¡Aprovechen ustedes! Hay cosas detrás del plástico. Lo juro. Cositas en miniatura que pueden ser PLACER Si corremos A LA VEZ todo puede detenerse donde queremos. O avanzar hacia el punto. Será inmediata la transformación. ¿Quién no busca volverse algo nuevo? ¡Es rasgar para ver detrás de la cortina! ¡SOPORTEN MI ALIENTO! ¡Es rancio pero tiene razón! NO DUDEN. NO DUDEN. NO DUDEN. NO DUDEN.
Caro Vinicius, Essa deve ser uma produção-precária. Essa carta é justamente um pedido de resposta sem qualquer pergunta pra se responder. Grace Passô, dramaturga mineira, escreveu uma carta para Vinicius Arneiro, diretor carioca, para que a mesma carta, fosse transformada em uma criação cênica. Na carta de Grace, ela diz
Diante dessas palavras endereçadas a outra pessoa, espantadas e de força, queríamos convidar você a uma produção-precária. O único limite que propomos é uma página de uma folha de papel A4. Nesse “limite”, você estará livre para responder como quiser – não limitado à proposição de um texto. Mas para essa carta chamaremos de “texto”. Você pode ocupar essa página da maneira que lhe parecer possível. As pessoas que lerão o seu texto, tradicionalmente chamadas de leitores, deverão perceber nesse texto, de alguma forma, que estão criando junto com você uma situação, no momento do encontro com esse trabalho. Seu trabalho deve ser uma ode, uma declaração de amor, uma exaltação extrema à liberdade – sem que você (em hipótese nenhuma) mencione essa palavra. Para começa-la, você deve escolher UMA (apenas uma) dessas possibilidades de início: 1) 2) 3) 4)
Uma lista de perguntas sobre estar no mundo hoje; O trecho de um livro que você goste muito, sem mencionar seu autor; Uma fotografia com algum tipo de presença humana; ou Uma definição de dicionário.
Com carinho, André Felipe e Gustavo Colombini ESCRITA-AÇÃO (Mostra Hífen de Pesquisa-Cena)
Um grito. Como descrever um grito? Como descrever esse grito? O grito. Esse único grito que desprende muitos gritos? Esses gritos que formam um só grito? O grito que se contrapõe ao silêncio. Silenciar, diferente de calar, ser calado. Diante do grito, a mudez, a impossibilidade de falar, de dizer algo, de descrever, de nomear. O grito como uma fresta que deixa escapar a desordem, o incontrolável, o irrepresentável. É nesse grito que mora o sentido. Como representar um grito? Um grito é apenas um grito, nada além dele. Um grito é um grito é um grito é um grito. Diante do grito, a surdez, gente tapando os ouvidos, ensurdecendo, palavreando, batendo panelas para não ouvi-lo, não escutando e fazendo não escutar. Mas um grito se impõe. Um grito no claro, no escuro, de costas, um grito abafado, aberto. Como agir diante do grito – dos gritos? Diante do grito, o retorno do pensamento, o começo do mundo, que é o contrário da morte do pensamento, um descampado, árvores taladas. Diante do grito, o silêncio, o deixar-se ouvir, deixar que as ondas sonoras toquem não só os tímpanos, mas cada uma das células, porque o grito também toca os surdos, ondas mecânicas rebatendo cada uma das células do corpo e do espaço. Por isso um grito não se arranca com facilidade de um lugar, um grito fica impregnado nas coisas, nas coisas das coisas e nas coisas das gentes, o grito é tato. Um grito não se limpa com omo, creolina ou esquecimento. O grito é físico, é material. Um grito se desgasta talvez, não com o tempo, com o uso talvez. Aí então é preciso um novo grito, novos gritos. Um grito é um grito é um grito é um grito. Horror, espanto, vitória. Um grito é algo assim, algo em si mesmo, não se pode representar um grito, nem o grito pode representar. Um grito tampouco é criado, evocá-lo é se conectar a todos os gritos, ao grito. No entanto, um grito nunca é igual ao outro porque cada grito é dono de si mesmo.
para el teatro innominable queridos, ¿les puedo hablar en castellano? me llama mucho la atención que los tres actores hayan recurrido a la infancia o a la adolescencia para construir sus “figuras” y narrativas - un tipo obsesionado por sus recuerdos de canciones y películas de la infancia, una mujer infantil con un vestido quinceañero ochentoso, un muchacho disfrazado de su héroe de adolescencia favorito (una suerte de guerrillero entre che y fred mercury). yo pensé: hay algo ahí. traté de entender de qué manera este recurso se relaciona con las preguntas disparadoras del proceso creativo de la obra - ¿cómo convivir con el otro? ¿cómo amar lo diferente? me ocurrió que justamente la infancia y la adolescencia se tratan de momentos de formación y diferenciación del individuo. es cuando nos damos cuenta gradualmente de que no somos todos así tan iguales como tal vez algún día creemos. somos más altos, más gordos, más pobres, más feos, más ricos, más burros, más lindos, más amorosos, más inteligentes, más brutos, más caprichosos, más tranquilos. unos tratan de esconder sus diferencias y mezclarse a los demás (adaptados a la cultura y a la moda normativa vigente), otros de acentuarlas y afirmarse junto a los pequeños grupos de los disonantes, los creepies. o tal vez todos juguemos entre la parecencia y la diferenciación. la paradoja de la igualdad. o de la diferencia. pensé: hay algo ahí. la infancia es un laboratorio de convivencia y de tolerancia. en la escuela, aunque en medio a muchos conflictos, los niños encuentran estrategias diarias de convivir con la diferencia - desde la ingenuidad a la violencia. hay algo ahí. en principio la convivencia en la niñez parece algo posible que cambia radicalmente con el paso de los años. imaginar hoy un reencuentro con mis colegas de la primaria recolectados en el facebook - con sus caritas de coxinhas y mortadelas - por ejemplo, me resulta una idea insoportable y terrorista que no quiero arriesgarme a pasar. hay algo ahí. me parece que volver a la infancia, a las experiencias y referencias que nos construyeron como individuos, es de alguna manera diagnosticar nuestras diferencias (construidas sin querer o a propósito), el punto justo donde encontramos nuestras identidades, nuestras diferencias y, a la vez, nuestras intolerancias. bajo el amor, el odio. hay algo ahí.
un beso enorme,
jeannette
Querido Ariel, Esta deberá ser una producción-precaria. Esta carta es justamente un pedido de respuesta sin cualquier pregunta para contestar. Grace Passô, dramaturga de Belo Horizonte, escribió una carta a Vinícius Arneiro, director de Rio, para que la misma carta, fuese transformada en una creación escénica. En la carta de Grace, ella dice ¿Qué repertorio creamos en nuestra vida para convivir con aquella o aquel a quien, en realidad, no me gustaría que existiera en el mundo? Al final, hoy, 2016, o enfrentamos esta pregunta o convivimos con un asombro cómodo e inocente de estar frente “al otro”, “a la otra”.
Frente a esas palabras direccionadas a otra persona, con espanto y fuerza, nos gustaría invitarte a una producción-precaria. El único límite que proponemos es una carilla de un papel A4. En este “límite”, estarás libre para contestar como quieras – no limitado a una proposición textual. Pero en esta carta llamaremos “texto”. Vos podés ocupar el papel de la manera que te parezca posible. Las personas que lean tu texto, tradicionalmente llamadas lectores, deberán percibir en este texto, de alguna manera, que están creando junto a vos una situación, en el momento del encuentro con este trabajo. Tu trabajo debe ser una oda, una declaración de amor, una exaltación extrema a la libertad – sin que vos (en ninguna hipótesis) diga esta palabra. Para empezar, deberás elegir UNA (solamente una) de estas posibilidades de inicio: 1) 2) 3) 4)
Una lista de preguntas sobre estar en el mundo hoy; Un fragmento de un libro que te guste mucho, sin decir el autor; Una fotografía con algún tipo de presencia humana; o Una definición de diccionario.
Cariños, André Felipe y Gustavo Colombini ESCRITA-AÇÃO (Mostra Hífen de Pesquisa-Cena)
Olá Vin íci us! O mu ndo es tá ca in do, mas a gen te a inda es tá em pé . Muit a s aud ade , si m. A com pan ho a Jane la des de aq uí e t enh o m uit o pr oxim o a vo ces . Aq uí o pa is est a nu ma e tap a d e m ui to retr oce so, ma s na int imi dad e a v id a co nti nua ac on te cend o. Eu est ou a ctiv o, trab alh and o e m co isas qu e m e d ao e sper anz a o u, ao m enos , c ert o s en ti do. A p eca Cons tan za mue re f oi s uce sso , m ai s do q ue eu pod ia e sper ar. Ag ora e st ou n um mom ent o en que que ro esc ri vi r mu ita co isa , fa zer coi sas no va s. Ach o m uit o i mp or tant e n ess a e p o ca ter mui ta sen si bi lida de com o qu e acon tec e e , a o me smo tem po pod er t er u ma ati vid ad e crea tiv a f ort e. E voc e? Ado rei a s cube rta s d os li vr os d e E id Rib ei ro . A Jan ela fo i lind a, nao ? E u es tive pr ocu ran do i r pa ra o e nce rr am ento ma s n ao co ns egui . O 20 16 fo i um a no mui to lo uc o, c on tra bal ho , viag em e s ens ac oe s fo rte s. Vol te i do P uer to Mad ry n, na P ata gon ia, n a terc a . Lá nad ei c om le ões ma rin hos . Eu e sta va ves tin d o um te rno mu it o espe sso pa ra su po rtar a águ a g el ad a. Os le ões ma rin h os t êm olh os gr an des e s ão mui to curi oso s. Eu es to u um po uco as ím , olha ndo to do co m a ex tra nhe za e a curi osi dad e d e quem ol ha pel a pr imei ra vez . O m un do e nte ro, pe la p rime ira ve z. Você va i d esc ul pa r me u P ort ugu ês . É ru im, eu se i. E o g oog le tra ns la te n ão aju da. Esta ca rta é um a car t a. Mas ta mb én vai se r p art e de um pro jet o d e Gu stav o e An dré e m Rio, na mo str a hi fen. El es me co nv idar am par a e sc re ve r uma pá gin a e ache i b oa o coin cid enc ia co m sua men sag em. A o mesm o t emp o q ue e u de ver ia esc re ve r pa ra a m ost ra no r io, eu de ve ri a es cre ver pa ra v ocê. Em am bos o s caso s d esd e B ue no s Ai res pa ra o Bras il. A dr ama tur gia é p ara mim um a f or ma de cri ar pre se nt es p ara co mpa rt il har. E ach o q ue esta ca rta , q ua lq uer esc rit o, po de ser um a s upe rf íc ie s obr e a qu al e star pe nsa ndo n o temp o. Ago ra me sm o . E ste te mpo . O temp o d a e scr it a. O t emp o d e l ei tu ra. E n o m eio , a geog raf ía que m ud a. Envi e c ump rim en to s a Sar a, Pab lo e o b ebê . E fo ra, fo ra, f or a. F ora to dos o s cana lha s. Abra ço e b oa ta rd e. Arie l.
exercício de rubricagem sobre o Curto-circuito #3
Círculo de cadeiras, sofá, banco e poltrona. Secam o chão molhado. Sentam-se aos poucos. Agora são sete sentados, uma em pé. Um abre a janela. Mais uma chega e senta. Outra também, chega e senta. Um começa a falar e interroga alguns. Um ri. Alguns tomam café. Folhas caem, alguns recolhem. Uma ajeita a direção dos refletores, mini holofotes. Ele fala mexendo as mãos, às vezes sacode a cabeça. São nove sentados e uma em pé. Ele segue falando e gesticulando. Um gato mia incessantemente. Uma tira os sapatos e cruza as pernas sobre o sofá. Um limpa os olhos. Outro faz anotações em uma caderneta. Um concorda com a cabeça. Outro cobre a boca com uma das mãos. Uma esvazia o olhar enquanto segura um pequeno copo plástico de café. Mais outra se aproxima, senta e apoia os braços sobre a mesa para tirar uma foto, fazer sustentação. Outro olha para ele tentando se mostrar atento, com uma caneta preparada sobre um banquinho. Eu escrevo em um computador, letra por letra, sem poder voltar atrás. Enquanto eu descrevo os outros já mudaram de posição, executam outras ações. Mas ele segue impassível em sua fala quase sem pontos, movendo as mãos como quem desenha as palavras no ar. Faz principalmente movimentos circulares, uma mão sobre a outra. Dois ventiladores sopram em direção à roda. O gato silenciou um pouco. A chuva aumenta. A fotógrafa circula pelo espaço com a câmera que mal cabe nas suas mãos pequenas, mas com a destreza de quem domina o objeto. Aquele que concorda, agora também anota palavras em um caderno grande. Outro cruza os braços e afasta a cabeça. O gato volta a miar. A chuva aumenta. As mãos estão aliadas as palavras, ajudam a explicar quando a palavra não é suficiente. É difícil precisar o que elas comunicam. Seria possível fazer um dicionário das mãos? Dessas palavras? Ou talvez ela serve mais como pontuação, para sublinhar, para fazer pausa, voltas. Acho que como a voz, ela modula a linguagem, modula palavras, entonação e pontuação. O escritor coça o ouvido com o dedo mindinho, acaricia o próprio pescoço. Mais dois cruzam as pernas. Outro descruza. E volta a cruzar. Agora apenas um tem a pena descruzada. Mas enquanto escrevo ele também cruza. Há também uma linguagem nesse cruzar e descruzar de pernas. A fotógrafa se esconde atrás dos ombros de um para enquadrar sua foto, imagino. Ele vai diminuindo a velocidade da fala e das mãos. Alguém repete uma palavra. Ele silencia. Silêncio de cinco segundos. Alguém ri. Outro começa a falar. Ele tem as mãos adestradas, as cruza para que fiquem quietas. Mas logo elas tremem, fremem e se soltam. Se mexem com alguma timidez, comedidas. Alçam pequenos voos. E já começam a se arriscar. Uma das mãos aponta o teto e gira. Alguém levanta, sai e volta com um copo de café. As mãos dos que estão silenciosos repousam, umas cruzadas sobre o colo, outras apoiadas no queixo e sobre a boca, outra espalmada sobre a coxa, as unhas pintadas e outras duas sustentando canetas, escrevendo, se comunicando com o papel. As mãos do que fala seguem se mexendo, pontuando sua fala. Mas é outro o tempo das suas mãos. Outro em relação às mãos do que falava antes. Já não são comedidas, se estendem, movem-se os dedos, os punhos, exibem um grande anel em um dos dedos da mão esquerda. Novamente a dança das pernas, uns cruzam,
outros descruzam as pernas. O escritor toma café com a mesma mão que antes coçava o ouvido. O gato silenciou. A chuva continua no mesmo ritmo. Alguém repete uma palavra do orador. As mãos desse parece que situam as palavras do espaço, as colocam de um lado e de outro, invertem o sentido com um só gesto de girar dois desdos, um sobre o outro, como se enrolasse uma linha. A mulher descalça estica os dois braços, se espreguiça. Ele volta a falar quando o outro pontua a última palavra. Ele volta a girar suas mãos. Alguém vem de fora, parece sacudir um guarda-chuva na rua. Ela entra no espaço, mas se dirige ao lado oposto da roda, vai embora. O gato volta a miar. Os dois trocam palavras. O outro agora escondeu suas mãos para trás do seu corpo, agora fala sem o auxílio delas, mas sem elas parece que sacode mais a cabeça. Opa, uma das mãos se levanta rapidamente, o punho fechado, apenas um gesto rápido que sublinha aquilo que falou. Os pés também se mexem mais agora. A fotógrafa solta a câmera e segura um copo de água, o único copo de vidro da sala. O escritor limpa seus óculos na camisa. Outra levanta seus dois braços, espreguiça. A fotógrafa tosse, se engasga com a água. Alguns riem, o gato mia. O de bigode morde a caneta. Muitos cruzam os braços. As mãos do que fala se soltam e voltam a se mexer. Um rapaz ajeita sua barba e sacode a perna. A chuva incessante. As paredes de pedras cruas e expostas dão a sensação de proteger, como um forte. As janelas gradeadas estão abertas e vez ou outra alguém passa, um carro desce o morro. Agora as pernas de muitos se mexe, como se estivessem um pouco inquietos. Uma garota entra, está completamente seca, como se não tivesse vindo da rua. Ela se senta fora da roda, em um canto atrás da mesa, ao lado da fotógrafa que largou sua câmera há um tempo. O escritor sai da sala pela segunda vez. O de bigode muda de lugar, fugindo da luz do refletor sobre seus olhos. Em seguida volta à poltrona que estava antes. A fotógrafa desvia o refletor. A mulher descalça fala pela primeira vez. Move apenas uma das suas mãos, o outro braço está cruzado sobre seu corpo. Os movimentos de suas mãos são mais retos e certeiros, duvidam pouco. Agora descansam um pouco sobre o colo. Enumera algo nos dedos. Tira e coloca os anéis, tem três, as unhas rosas. Quando parece se esquecer de algo as mãos se mexem mais, como puxando as palavras. São onze pessoas sentadas debaixo do teto de madeira que protege as cabeças da chuva, que não para. O gato voltou a silenciar. Dentro da casa há outros ruídos. Ela repete bastante os gestos, a impressão é essa mesmo, de que os gestos dela puxam as suas palavras. Vários concordam com palavras e com a cabeça. Vários têm o olhar perdido, no espaço, sobre o corpo. Alguém assovia e grita lá fora. Um carro preto desce. Um táxi amarelo desce. Os gestos dela voltam a se tornar mais duros, secos, seguros. Ela não pousa o olhar, olha para vários, um por vez. Barulho de porta de carro fechando. Um ônibus cheio desce. Ela cutuca o homem que está ao seu lado, como chamando sua atenção. Aponta longe, localizando as cidades que cita no espaço, mostrando que são muito longe. Ela fala em aplauso e aplaude. Gira os dedos quando fala “outras”. Olha principalmente para ele e para o rapaz de bigode. Junta os dedos quando fala “é preciso juntar”. A fotógrafa levanta e se posiciona para tirar uma foto dela. Dois carros descem juntos. Barulho no portão de entrada, alguém sai. Alguém boceja pela primeira vez. Ruídos de câmera. O gato continua silencioso. Beija as palmas da mão, “tchau, beijo do gordo”. Suas mãos agora são mais expansivas, parecem ter ganhado ainda mais confiança. Gestos rápidos, “corpo dos atores”. Um homem sobe a
rua. Um carro vermelho desce. Beija os dedos de uma das mãos, “no fofo”. Alguém aperta a mola da caneta várias vezes. As mãos dela às vezes vão à boca. Enumera em seus dedos. Um caminhão da prefeitura desce. Ele anota uma palavra no caderno. O escritor coça a barba com o mindinho. São onze sentados, iluminados por um holofote grande e diversos pequenos. Ela gira as mãos com rapidez. Barulhos de caneta, chuva, ela fala, faz uma pequena pausa, uma van desce. A fotógrafa sai na direção do quintal da casa. Alguém se ajeita no sofá. São dez sentados com as pernas cruzadas. Alguém sacode a caneta na mão. O de bigode anota e concorda com a cabeça. Ela grita e agita as mãos de forma bastante expansiva. Faz aspas com os dedos. Fala de funil e fecha dois dedos como um buraquinho, “o funil tá apertado”. Os gestos ilustram. O gato volta a miar. A chuva diminuiu. Um ônibus desce. Fecha uma das mãos e apoia na boca quando diz que vai finalizar a fala. Repete a frase e o gesto muitas vezes. Enumera palavras no dedo. O escritor ajeita a costeleta com dois dedos. Alguém tosse. Ela silencia. Uma senhora passa na rua. Alguém levanta e pega o celular na bolsa. Ela pega uma bolsinha vermelha de filtro e outra amarela de fumo. Arma um cigarro na seda. Tosse com o filtro apoiado entre os lábios. Monta o cigarro com muita rapidez. Ele volta a falar e mexer as mãos de forma circular. Uma traça cruza a roda, iluminada pelo holofote grande. As suas mãos fazem sombras ondulantes no chão claro e um pouco molhado pela chuva. A fotógrafa voltou e parece conferir fotos na tela da câmera. Duas pessoas tossem. O gato não mia. Um carro desce. Ela levanta, se dirige à janela aberta e acende o cigarro. Senta no parapeito largo da janela. Ele se cala. Três pessoas roem a unha. Um coça a nuca. O de bigode fala, aponta e faz um gesto de tesoura com os dedos. Nove pessoas sentadas, duas em pé. Um carro vermelho desce. O de bigode dá pequenos murros com uma mão na palma da outra. Alguém tosse. Alguém faz automassagens no braço. O escritor coça o topo da cabeça. Ela fala sentada no parapeito, sustenta o cigarro entre dois dedos, o que de modo algum limita seus gestos. Vários trocam palavras. Uma senhora de capuz preto desce. Ela tosse enquanto fuma. Estão todos mais desorganizados, os corpos mais cruzados. O gato volta a miar. Barulhos da câmera da fotógrafa. Com dois dedos, ela mostra o intervalo de espaço entre quinze anos. Muitos se coçam, a boca, o pescoço, o ombro, o rosto. Um homem sobe a rua, um carro prateado desce. Três anotam algo em seus cadernos. Ela desce do parapeito e volta tossindo ao sofá. Um adolescente desce a rua, um carro da polícia desce a rua, um táxi desce a rua. Duas pessoas cruzam a perna ao mesmo tempo. O gato mia. Alguém toma água em uma garrafa plástica. Em seguida outra pessoa também toma na mesma garrafa. Ele fala e gesticula. Um táxi. Ela levanta do sofá com rapidez e sai da roda. Barulhos no banheiro. Um táxi. A fotógrafa circula pelo espaço e vai embora. O de bigode expõe seu caderno a todos. Descarga. Torneira. Ela volta ao sofá e funga. O homem ao seu lado tosse tapando a boca com a mão. A fotógrafa entra por uma porta e sai por outra. Um táxi. Alguém se ajeita na cadeira. O escritor arranca pelos da barba. Um homem entra por uma porta e sai por outra. O gato volta a miar. O de bigode faz aspas com os dedos. Um homem de mochilão sobe a rua. Um rapaz entra por uma porta e sai por outra. A fotógrafa, mais uma vez, entra pela mesma porta e sai por outra. Barulhos no portão. A fotógrafa aparece na janela, detrás das grades tira novas fotos. Um homem sustenta a cabeça no braço, o olhar distante. Um grupo de jovens desce a
rua. Um táxi desce a rua, um carro preto também. A fotógrafa muda de janela e segue tirando fotos. O gato mia apenas duas vezes. As cabeças de vários se projetam sobre uma tela apoiada na parede. Um ônibus barulhento desce. O de bigode fecha o caderno e se levanta, sai da roda e se serve de água na mesa do fundo. Serve-se de café. A fotógrafa volta a entrar. O de bigode volta para a roda. Outros dois saem e se servem de água e café. Sete estão sentados. Quatro estão de pé. O computador quase cai da minha perna. O de bigode senta em outro parapeito e fuma um cigarro na janela. Uma traça cruza o ar iluminada pelos holofotes. Um ônibus desce. A chuva não faz mais barulho. Apenas o som dos ventiladores e das vozes. E da porta de um carro que fecha lá fora. Uma garota entra e senta na poltrona fora da roda. Outro que saiu para pegar café a cumprimenta com os dois beijos do Rio. Alguém muda da cadeira para a poltrona onde antes estava o de bigode. O gato mia duas vezes. Um caminhão desce a rua. Duas mulheres de capa de chuva param na frente da casa e espiam a sala. Um celular vibra. Ela treme o braço, fala algo sobre esforço. Há três pessoas sentadas na mesa. Um deles lê um papel. Barulho de chaves. Alguém brinca com seu colar, alguém arranca os pelos da barba, alguém toma café, alguém escreve. Somos oito sentados na roda e três sentados nas imediações. Pessoas conversam lá fora. Um táxi desce. Ela aponta para ele e diz “você”. Aponta para si e diz “eu”. O escritor coça o topo da cabeça. Um ônibus desce. Um táxi desce. Alguém repete uma palavra dela. Alguém concorda. Um carro preto desce. Alguém anota muitas coisas em seu bloquinho. O escritor coça a sobrancelha e ajeita os óculos no rosto. Ela faz círculos com o dedo em riste. Aponta para a boca e diz, “língua”. Ele levanta do banco e corre em direção ao banheiro. O gato chora. Uma mulher entra. Ela pega a bolsa de filtro e de fumo. Segura um filtro com os lábios, fala uma frase assim. Tira o filtro e segue falando. Ele volta e senta no banco. Um táxi desce. Ele levanta e pega um cigarro com o de bigode, agora sentado em outra cadeira. Ele senta no parapeito e acende o cigarro. O escritor levanta e se dirige para fora do espaço. Alguém me mostra um papel, eu concordo com a cabeça. O de bigode fala e esmurra muitas vezes uma mão contra a outra, ruidosamente. Desce o carro de gás com uma música baixa. Duas pessoas se despedem. Duas se aproximam da casa. Ela, com o cigarro armado, aceso, volta à janela. Duas pessoas entram na sala, o homem com uma cadeira na mão. Ele e ela fumam, em janelas opostas, sentados sobre parapeitos. Somos cinco sentados na roda. Dois sentados fora. Eles fumando na janela. Um ônibus desce. Alguém sobe a escada. Um carro desce a rua. Alguém caminha sobre o nosso teto, faz ruídos na madeira. Alguém sustenta um copo plástico vazio na boca, entre os lábios. Uma mulher entra no espaço com um guarda-chuva nas mãos. Senta em uma cadeira. Os dois descem do parapeito. Ele volta ao banco. Ela interpela um holofote e projeta grandes sombras na parede. Desce um carro. Alguém boceja. Um carro desce. Alguém acaricia a poltrona. Desce um táxi. Desce um táxi. Desce um táxi. Desce um táxi. Um homem de camiseta verde sobe a rua. Alguém sobe a escada da sala. Ela segue projetando grandes sobras. O homem de verde desce a rua. Alguém desce a escada da sala. Desce um ônibus. Alguém boceja. 18:22. Alguém deitada, com os pés sobre os braços da poltrona. Alguém sacode as pernas. Alguém estica as pernas. Ela volta a acender o cigarro e tosse. Desce um ônibus barulhento. O de bigode aponta na direção dele. Outro levanta e faz sobras na parede, sua silhueta completa. Sai da roda.
Ele e o de bigode falam juntos, mexem as mãos juntos, como refletindo o outro. Todos que estavam no sofá levantaram, o sofá está vazio. Ela agora projeta a sombra de sua cabeça na parede, está de pé no meio da roda. Sacode os braços. Um rapaz sobe a rua com uma bicicleta nas mãos. Vários se levantam e se despedem. Dois saem, vão embora. Todos se agitam, se movimentam, finalizam. Conferem a hora.
17 de dezembro de 2016
uma mulher com autoridade ĂŠ chamada de difĂcil um homem, ĂŠ chamado de forte
Mostra HĂfen de Pesquisa-Cena Rio de Janeiro, Dezembro de 2016