Revista Sagaz No. 2 Brasil

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ARTE & CULTURA

MARÇO 2020/ No.2

WALKING TOURS:

História arte e cultura a seus pés


No prelo

LANÇAMENTO: MARÇO DE 2020


Editorial Logo no início das nossas reuniões para elaborar o projeto editorial que resultaria na criação da Sagaz Arte & Cultura, o jornalista Mauro Malin, nosso parceiro e colaborador de primeira hora, refletindo sobre um dos perfis possíveis para nossa revista, disse: “Acho que a Sagaz deveria trazer a público todos os ‘judeus’ de nossa sociedade”. Ele não se referia somente aos membros das diversas etnias judaicas, mas sim a todos os oprimidos do mundo, em especial do Brasil. E é este um dos alicerces sobre os quais estamos construindo a Sagaz Arte & Cultura. Depois da excelente receptividade ao primeiro número, a revista ganhou ainda mais força para seguir no intuito de contemplar seu público leitor com todo o espectro de produção nas artes e culturas de diversos segmentos sociais. Isto sem abdicar de um olhar atento e crítico a todas as formas justas, e principalmente às injustas, das manifestações humanas no âmbito social. É assim que vemos nossa missão e temos certeza de que já estamos encontrando eco entre nossos leitores. Nesta edição, entre muitos outros, apresentamos um trabalho de Gladys Chalom, descrevendo a “Rede não cala”, uma frente feminina contra um panorama desolador em relação à quase total ausência de respeito aos direitos inalienáveis da população feminina no nosso país. Também expondo uma crítica social, temos a reportagem de Marco Antonio dos Santos sobre o Zé do Caroço (o policial aposentado José Mendes da Silva) e o samba de sucesso inspirado por suas atividades beneméritas no “seu” morro, no Rio de Janeiro. Na mesma esfera musical, o artigo de Nelson Nisenbaum sobre uma composição de Shostakovich, inspirada no poema “Babi-Yar”, de Yevtuchênko, ambos um grito de revolta contra o stalinismo, de macabra memória. Ainda no âmbito da preocupação com o social, foi esta a premissa que levou Vladimir Herzog à morte nas garras da política ditatorial, como relata Fernando Pacheco Jordão em Dossiê Herzog, livro comentado por Cristina Konder. Também fiz uma resenha, esta sobre Judas, de Amós Oz. Da minha perspectiva, ele abusou um pouco dos clichês românticos... Leiam também as indicações para obras suplementares, colaborações de pessoas bem qualificadas para fazerem suas sugestões! Tenham todos proveitosas leituras e até mais! Regina Igel e Elias Salgado

Staff Diretor Editorial Elias Salgado Diretora e Editora Executiva Regina Igel Diretor de Art Design Eddy Zlotnitzki Projeto Gráfico e Arte Diagramação Eddy Zlotnitzki Diretor de Projetos Fábio Silva Revisão Regina Igel Colunistas Henrique Cymerman Regina Igel Fernando Lattman-Weltman Alexandre Antabi Nelson Nisenbaum Colaboram neste número Jamil Chade Cristina Konder Gladys Chalom Marco Antônio Dos Santos Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores

Sagaz Arte & Cultura é uma publicação da Talu Cultural www.talucultural.com.br contato@talucultural.com.br


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CAPA

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NO MUNDO/BRASIL HOJE

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TODOS OS GÊNEROS:

Walking Tours: A Diversidade em roteiros teméticos

Irrompem os monstros do Brasil/ Jamil Chade

PALPITE FELIZ

À guisa de retrospectiva, ou novo capítulo da interminável série “elucubrações extemporâneas”: violência e utopia

Rede Não Cala

LITERATURA

Resenhas: “ Judas” de Amós Oz e “Dossiê Herzog”

MÚSICA

Clássica: Décima terceira sinfonia de Shostakovich - Babi-Yar Popular: “Zé do Caroço”

TECNOLOGIAS

A LGPD está chegando


A Talu Cultural e o IBI - Instituto Brasil Israel, lançarão no Brasil, em Israel e em Portugal, ainda neste semestre, o novo livro do mais premiado correspondente internacional para o Oriente MÊdio da atualidade.

Site Talu:

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NO MUNDO / Brasil hoje / Jamil Chade

Irrompem os * Monstros do Brasil Com método e objetivo, Governo Bolsonaro reforça política de Estado de destruição dos consensos históricos do país para desenhar identidade que fragiliza ainda mais a democracia


Não há mais espaço para rir. Nem tempo a perder repassando absurdos de um governo de demagogos como se Brasília tivesse sido tomada por incultos. Quem está hoje no poder no Brasil tem método e objetivo. E um projeto claro: destruir o que existe para, em seu lugar, reconstruir um modelo desejado por essas pessoas no comando para a sociedade. Nesta semana, o novo secretário da Cultura, Roberto Alvim, derrubou um dos ativos mais poderosos do Brasil no exterior: sua diversidade artística. Ao discursar na sede da Unesco, em Paris, ele deixou governos estrangeiros pasmos ao anunciar que teria como função, entre outras coisas, o resgate dos clássicos. E, assim como outros líderes já fizeram no passado, atacou a cultura e a arte que não sejam de sua ideologia. Mas seu discurso também tinha outra lógica: a da destruição dos padrões estéticos do Brasil. Para ele, até Bolsonaro chegar, tais ramos da atividade humana no país eram uma “propagação de uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do nosso povo”. A arte, segundo o secretário, fazia parte durante 20 anos de um “projeto absolutista” e “instrumentos centrais de doutrinação” por governos de centro e de esquerda no Brasil. Alvim insiste que tudo isso acabou. Com a eleição de Bolsonaro, “os valores ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade encontraram uma nova atmosfera”. Em seu texto, porém, uma frase revela que a preocupação não é estética. “Estamos comprometidos com a redefinição da identidade e da sensibilidade nacionais, em consonância com os valores e os mitos fundantes de nossa nação”, disse. A redefinição da identidade, portanto, passa por apagar traços de uma certa cultura indesejada,

ignorar uma periferia historicamente abandonada, silenciar a rebeldia. Em seu lugar, Alvim foi explícito: “vamos promover uma cultura alinhada às grandes realizações de nossa civilização judaico-cristã”. Essa sim, a base da “edificação de nossa civilização brasileira”. Loucura para alguns, delírio para outros. Mas, entre membros do Governo, não há nada de irracional em sua fala. O que existe claramente é uma estratégia de destruição e da substituição de uma realidade por uma ideologia com fortes traços de intolerância. O termo “Judaico-cristão” para um país miscigenado não surge por um deslize num discurso da sede da Unesco. No Itamaraty, o chefe da diplomacia também passou a usá-lo. E, não por acaso, entrou no novo dicionário alucinógeno de Brasília inspirado pelo projeto de poder de Steve Bannon. O termo faz parte de um dos pilares da estratégia do exconselheiro de Donald Trump. Mas ele não vem sozinho e nem acontece no vácuo. Para que essa cultura seja “resgatada”, é preciso que um governo limite o fluxo de pessoas que entram no país. E é nesse contexto que se introduz a obstinação pelo nacionalismo, pela soberania e pelas fronteiras. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” é simplesmente uma tradução dessa estratégia que, para existir, precisa atacar diariamente o pluralismo, igualitarismo e secularismo. Não é por acaso que, ao longo de meses, o Itamaraty também vem promovendo uma destruição dos parâmetros de direitos humanos e do pluralismo na família ou no ser humano. Existe, para a diplomacia nacional, apenas homens e mulheres. Família é no singular e não há espaço para a criação de novos direitos. Para isso, o governo não mede esforços para


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rever o posicionamento do Brasil no mundo e até questionar o direito internacional. Uma vez mais, o projeto é claro: destruir o que existia antes, romper consensos históricos em textos internacionais, abrir brechas, criar divisões para que conflitos de percepções se instalem e, assim, reconstruir uma “nova sociedade”. Em Brasília, sinais dessa destruição também podem ser vistos quando o Palácio do Planalto opta por ignorar de forma consciente o Dia da Consciência Negra. Ou quando silencia diante de um ato de vandalismo deliberado por parte de um deputado.

o “crime de pensamento” do mesmo Orwell. Em março, em sua primeira visita aos EUA, Bolsonaro avisou: seu Governo seria o da destruição. Um ano depois, o plano está sendo meticulosamente implementado. Também durante este ano, a resistência se mostrou viva e o projeto de civilização da extrema direita sabe que conta com desafios. Mas, parafraseando Antonio Gramsci, enquanto o velho mundo agoniza e um novo mundo tarda a ver a luz do dia, “irrompem os monstros”. Conscientes, determinados, financiados e altamente organizados.

Também vimos a erupção de comentários monarquistas por membros do Governo, no dia da República. Uma vez mais, nada ao acaso. A história, ao ser revista, questionada, profanada e confundida, é a receita para a transformação de um futuro manipulado. Desmontar o sistema também passa por romper até mesmo com os veículos que permitiram a chegada ao poder de Bolsonaro, como o partido de aluguel conhecido como PSL. Em seu lugar, surge uma formação que sequer se dá ao trabalho de incluir as palavras “democracia” e “república” em seu manifesto. Sua milícia digital age exatamente da mesma forma, recriando de maneira virtual a “Polícia do Pensamento” (thinkpol) de George Orwell. Não existem para propor políticas. Mas para, de forma consciente, criar confusão, desinformação e polêmicas. A meta? Romper o tecido social, enfraquecer uma democracia já fragilizada, romper laços familiares, amizades e alianças. E, em seu lugar, construir um novo modelo distante das bases fundamentais do respeito ao diverso. Um sistema em que ganha vida

* Artigo originalmente publicado no El País Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


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10 PALPITE FELIZ/ Fernando Lattman-Weltman

À guisa de retrospectiva, ou novo capítulo da interminável série “Elucubrações Extemporâneas”: Violência e Utopia* A violência é inerente à vida em sociedade. Mesmo quando não se manifesta de modo mais explícito e frequentemente indesejável, sob a forma de atos que envolvem agressões físicas e dano pessoal ou material, ela também pode ser percebida como constrangimento, coação, restrição efetiva ou presumida do comportamento, ameaça explícita ou suposta de sanção. Atuando, portanto, como mecanismo mais ou menos latente de repressão e causa de medo, insegurança e sentimento de exclusão ou risco mais ou menos iminente à integridade física ou moral da pessoa. A rigor, ela é simplesmente constitutiva da vida em todas e quaisquer das suas formas, das mais naturais – os documentários sobre o mundo animal que nos digam! – às mais «civilizadas», como diria o sociólogo Norbert Elias. A questão do debate sobre a violência é, portanto, e como sempre, muito mais a de que significados atribuímos às diferentes formas de violência, e sobre quais destas devem ou não ser toleradas e como. E levando-se em conta, desde logo, que algumas dessas formas serão forçosamente incorporadas, uma

vez que são inerentes à vida social. Assim, o que chamamos – talvez com razão – de vida civilizada é apenas aquela em que as formas mais explícitas de violência física, mas também verbal, passam a ser exorcizadas pela Lei e/ou pelos costumes mais aceitos e devidamente socializados. E talvez, por isso mesmo, deixamos de considerar como violências – certamente de outra forma ou natureza – aqueles outros constrangimentos e limites, que podem, no entanto, nos ameaçar de forma ainda mais poderosa, ou incontrastável, deixando muito mais clara e evidente, talvez até de modo ainda mais desesperador, a nossa efetiva impotência individual, diante das grandes forças ao mesmo tempo humanas e inumanas da Sociedade, do Mercado, e do Estado. O primeiro e mais fundamental problema filosófico, ético e político colocado por essas circunstâncias não é, pois, propriamente reconhecer a existência onipresente de tal violência latente – ou «simbólica», como diria Bourdieu, ou «biopolítica», como diria Foucault, ou seja lá qual for a formulação mais ou menos “libertária” alternativa e favorita do leitor. Até aí, morreu Pierre, ou Michel.


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Não. O mais importante é incorporar o fato de que se a violência pode ser tudo isso, ela não só é efetivamente onipresente, mas, portanto, inevitável. Ou seja: não há margem efetiva para utopias que não incorporem tais formas inevitáveis de violência como parte do seu pacote. E é por isso que o realismo de Elias – mas também o de Bourdieu, de Foucault, e companhia ilimitada – não deixa de remeter a outro horizonte utópico, talvez apenas um pouco mais modesto: o de uma Sociedade, um Mercado, um Estado, onde as únicas formas de violência toleradas seriam justamente certas modalidades latentes e inevitáveis. E de preferência aquelas cujos efeitos perversos de geração de sentimentos mais ou menos difusos e imprecisos – mas não menos reais – de repressão, medo, insegurança, risco e impotência pudessem ser democraticamente, ou seja, mais ampla e igualitariamente, minorados. Certa «civilização», pois. Mesmo que este seja um mote que pareça atrair cada vez menos aderentes. Ou aderentes cada vez menos entusiasmados.

* Este artigo foi publicado originalmente no livro “A Deriva: Crônicas da inconstância política e outros vícios” (Talu Cultural, selo Postagens Sagazes, 2019)

NOSSO COLUNISTA SAGAZ: FERNANDO LATTMANWELTMAN

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1987), mestrado em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em Ciência Política-pela SBI/IUPERJ (2000). Atualmente é professor e pesquisador do Departamento de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


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TODOS OS GÊNEROS / Rede não cala / Gladys Chalom*

A palavra de ordem é jamais calar “Our lives begin to end the day we become silent about things that matter.” Martin Luther King, Jr.

A Rede NÃO CALA é uma rede de professoras da USP para enfrentar a violência de gênero na Universidade


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Ela surgiu na esteira do escândalo das acusações de estupro por diversas alunas da Faculdade de Medicina, por um aluno do mesmo curso. O rapaz saiu praticamente ileso das acusações, (foi inocentado, apesar de tantos testemunhos, conseguiu se formar e hoje tem CRM e atua como médico), enquanto as moças foram discriminadas, perseguidas e várias abandonaram o curso, com problemas psicológicos. Porém, como em todos os lugares do mundo, no momento em que o assunto é discutido e vem à tona, muitas mulheres se sentem fortalecidas e apoiadas para poder denunciar suas vivências de abusos e discriminações.

Assim, a Rede NÃO CALA e o escritório USP Mulheres (vinculado ao projeto HeforShe da ONU) criado em 2016 e dirigido até 2019 pela Profa Eva Blay, recentemente substituída pela Profa. Maria Arminda do Nascimento Arruda, atual diretora da FFCLH, se uniram em projetos e ações afirmativas de enfrentamento a diversos tipos de discriminação e violência que as mulheres sofrem em geral e também dentro da Universidade. Com isso, diversos coletivos e comissões se formaram ou se fortaleceram nos vários institutos para debater estas questões e discutir formas de acolher as vítimas de violência ou discriminação. A Rede, além de atuar muito incisivamente em


14 todas as frentes, organizou e auxiliou muitos debates e treinamentos em acolhimento nas diversas unidades da USP, reunindo para isso muitas médicas, psicólogas, advogadas, antropólogas além de outras especialistas. Esta experiência foi muito enriquecedora para os diversos coletivos e comissões, que foram se fortalecendo com esse apoio da Rede. E também para o coletivo “Mulheres do IME” no Instituto de Matemática e Estatística que reúne professoras, funcionárias e alunas. Através da atuação do coletivo, obtivemos a implementação de uma “Comissão de Acolhimento da Mulher” no IME, que é uma comissão assessora da Diretoria, constituída por professoras, alunas e funcionárias e renovada anualmente. Esta comissão já atendeu diversos casos ao longo destes últimos anos, atuando tanto no acolhimento quanto na prevenção da violência, e hoje há comissões semelhantes em outros institutos.

DEPOIMENTO / Profa. Eva Blay Trazemos aqui um depoimento da socióloga Eva Blay professora emérita da Universidade de São Paulo (USP) e ex-coordenadora do Escritório USP Mulheres e ganhadora do Prêmio USP de Direitos Humanos 2019, no qual fala sobre a importância da igualdade entre gêneros “Para os homens sempre conto esta historinha: “Eu fazia a conta. Você [homem] ganha R$ 20. A tua mulher ganha R$ 10. Quanto entrou na sua casa? R$ 30. Então ficou faltando quanto? Quem ficou com esses R$ 10 [que estão faltando]? Quando você joga essa pergunta: ‘quem ficou com os R$ 10?’ – e não foi nem você, nem sua mulher nem sua casa – é fantástico O feminismo avançou muito ao longo dos anos, mas a consolidação dos direitos das mulheres no mundo nunca foi, de fato, consagrada. Na sociedade não existe, nunca [houve] uma consolidação. O que existe é sempre um processo. A violência contra a mulher continua em todo o mundo e no Brasil a distorção é ainda pior. O Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres.

*Membro da Rede NÃO CALA, Gladys Chalom é Doutora pela USP e professora do Departamento de Matemática e do Instituto de Matemática e Estatística da USP

O dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, não começou no dia 8 de março. Começou com a Clara Zetkin, uma socialista que apresentou em um congresso socialista [2º Congresso Internacional de Mulheres Socialistas], em 1911, uma proposta de um dia internacional para as mulheres.


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“O feminismo avançou, mas não consolidou os avanços”, diz socióloga Eva Blay Então, como socialista, ela queria uma coisa geral. Naquela época, mais ou menos como agora, havia uma série de dificuldades. Mas acho que, naquela época, a situação era pior. As mulheres não tinham horário de trabalho. Então, trabalhavam 12 horas, 15 horas, as crianças trabalhavam. Quando as mulheres, naquela época, saíram às ruas com essa proposta - ainda era época do czar - elas achavam, e aí já não eram as socialistas, que podiam conseguir do czar um certo apoio, uma certa redução da jornada, mas ele mandou a polícia para cima delas e foi um morticínio total. Depois disso, sempre do ponto de vista político, as mulheres continuaram a lutar por um dia de reivindicação, um dia de luta, não festivo. Mas em vez de pensar em luta, o que a sociedade capitalista inventou? Vamos dar bombons e flores. Ora, nós não queremos bombons e flores apenas. Venham os bombons e as flores, mas não só isso. O que nós queremos é a igualdade de direitos e de deveres como está na Constituição de 1988. Homens e mulheres são iguais perante a lei.

Eva Blay, Profa. Emérita da USP

E ser igual significa o que? As mesmas oportunidades de estudar, de não ter limitações nas carreiras, de não ter um teto de vidro que limita a ascensão das mulheres nas carreiras. Enfim, uma mudança geral na estrutura da sociedade. E estou falando especialmente da brasileira. Mas isso acontece em todas as outras sociedades. Por volta dos anos 50, essa reivindicação tornou-se o centro do movimento feminista no mundo todo. Não era só socialista, era feminista,


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era suprapartidária. E o movimento feminista incluiu todas essas reivindicações: a igualdade de direitos, a igualdade sobre, por exemplo, na família, de a mulher poder dizer quem é seu filho e quem é o pai do seu filho. Nós não podíamos fazer isso. A mulher, para trabalhar, precisava de autorização do marido. Para viajar, precisava de autorização. Ela não podia nem usar o próprio dinheiro. O movimento feminista começou a trabalhar todas essas questões. E, de uma certa maneira, avançamos. Avançamos do ponto de

E qual foi a área que não avançou? A violência. Na violência, nós não conseguimos avançar. Ela continua. Na pior situação, há o assassinato de mulheres, a violência dentro de casa, o estupro, o incesto. Tudo isso continua acontecendo e esta é a área que a gente menos conseguiu avançar. Não só no Brasil como na América Latina toda e no mundo, de forma geral. Mas aqui a distorção é muito pior. O Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres. Acho que vivemos um momento em que há várias forças em atuação. Evidentemente, quando você pega alguns grupos religiosos ou muito conservadores, eles não admitem os avanços que nós conseguimos. Tem um aí que acha que a mulher tem que ser subserviente ao homem. Ou ele acha que o casamento entre homossexuais Professora Eva Blay recebe Prêmio USP de Direitos Humanos é uma aberração. Não concorda com o aborto mesmo em caso de vista do direito, do ponto de vista da educação, anencéfalos. Até em coisas que já avançamos as mulheres se tornaram altamente escolarizadas existem aqueles que querem voltar atrás. Por comparando com os homens e muitas foram isso, acho muito importante a gente nunca para a universidade. O caminho da universidade perder de vista que o feminismo avançou, mas é mais ou menos heterogêneo. Nas carreiras não consagrou os avanços. Você tem que estar que são das ciências chamadas duras ou exatas, sempre alerta porque senão volta para trás.“ temos menos mulheres que homens. Mas estamos fazendo muita força para ampliar isso.


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18 CAPA/Todas as Culturas/Walking Tours/Redação

Passeios Temáticos:

Eles vieram


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O primeiro walking tour oficial de que se tem notícia aconteceu em Berlim, na Alemanha, em 2004. De lá para cá, a atividade cresceu e hoje existe nos principais destinos turísticos do mundo

para ficar Roteiro “Rio Africano”, com alunos da Harvard Kennedy School, guiado por Monique Sochaczewski Goldfeld e Maurício Santoro (Foto: Monique Sochaczevski Goldfeld)


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Os walking tours são passeios culturais temáticos em centros urbanos, feitos a pé e que permitem aos participantes uma imersão cultural mais profunda que os tours tradicionais. Os walking tours chegaram ao Brasil no início desta década e vieram para ficar. Já são realizados nas principais cidades do país, dentre elas Rio de Janeiro e São Paulo, as pioneiras. Sagaz Arte & Cultura entrevistou a historiadora carioca Monique Sochaczewski Goldfeld, autora do livro Trópicos Orientais, Orientes Tropicais: Reflexões sobre o Brasil e o Oriente Médio (Ed. Talu Cultural, 2019), uma das pioneiras na realização de walking

tours no Rio e que vem obtendo um enorme sucesso com seu projeto “Rio Global”. Seus roteiros tratam do passado médio-oriental da cidade e também judaico, africano, chinês, europeu, além de também tratar da história de militares, diplomatas e das mulheres e seu significativo trabalho comunitário no Rio. “Minha ideia é mostrar que o Rio é mais cosmopolita do que se pensa e que também é mais do que um balneário em que se bate palma para o pôr do sol”, afima Monique em sua entrevista exclusiva à nossa revista, que o leitor pode ler a seguir:

Elias Salgado entrevista:

Monique Sochaczewski Goldfeld Quem é Monique Sochaczewski Goldfeld? R - Boa pergunta! Sou uma senhora de 44 anos com a clara sensação de que tenho muito o que aprender sobre o mundo e sobre as pessoas. Sou apaixonada por História, livros, biagens e, sobretudo, gente. E sou uma eterna curiosa. Como é ser uma historiadora num país onde o governo diz ser a História uma disciplina sem importância e uma ferramenta ideológica? R - Eu sou uma historiadora que primordialmente atua na área de Relações Internacionais (RI). Amo RI, mas a verdade é que cada dia que passa acho a História a disciplina mais Monique importante do mundo. Quando se Sochaczewski Goldfeld e seu estuda História a sério, coloca-se editor, Elias tudo em perspectiva e questiona-se Salgado, no tudo e todos. Um dos historiadores lançamento de seu mais que mais admiro, David Armitage, recente livro, no da Harvard University, publicou IUPERJ um texto primoroso no The Guardian, em 2014, chamado “Why politicians need historians”. Nele, ele ressalta que a História é uma ciência crítica porque questiona visões de curto prazo, complexifica


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histórias simples sobre causas e consequências e descobre caminhos não tomados. A História pode incomodar o consenso estabelecido, expandir os horizontes estreitos e também manter os poderosos acordados de noite. Se algum governo sente-se incomodado com a História, acho que aqueles que a praticam estão fazendo um bom trabalho. Por que o Oriente Médio como objeto de estudo e pesquisa? R - Eu morei no Oriente Médio dos 14 aos 19 anos e quando decidi voltar ao Brasil não pensava em tê-lo como tema de pesquisa. Percebi, porém, que a vivência e o domínio de algumas das línguas da região eram um asset que eu tinha e que valia investir nisso minha carreira acadêmica. O Oriente Médio é região incrivelmente sofisticada e complexa (diferente do que prega o senso comum), com a qual o Brasil tem relações profundas desde o século XIX, sobretudo por conta de levas migratórias oriundas de lá. Percebi que estudá-lo, portanto, não era somente válido por eu já ter experiência com a área, como porque estudar o Oriente Médio é também entender uma parte importante do Brasil, ainda pouco explorada. E sobre seu recém lançado livro, Trópicos Orientais, Orientes Tropicais: Reflexões sobre o Brasil e o Oriente Médio, qual foi a motivação para escrevêlo? R - Sempre gostei de falar e de escrever sobre os temas que amo – logo, sobre o Oriente Médio - para o público não necessariamente não acadêmico. A ideia foi então juntar reflexões sobre as relações do Brasil com a região, desde o orientalismo peculiar de

D. Pedro II até as correntes relações do Brasil com o Marrocos e divulgá-las de modo a compartilhar o que já encontrei, mas também para estimular novas pesquisas e questionamentos. Além de uma brilhante historiadora, especialista em Oriente Médio, você tem feito um trabalho excelente e que vem recebendo um feedback muito positivo, como se afirma em seu livro, na realização de walking tours. Contenos um pouco da sua experiência e do panorama no Brasil desta nova tendência. R - Agradeço pelas palavras gentis. Não sei se sou brilhante e sempre tomo cuidado em não me apresentar como especialista em Oriente Médio, mas como uma estudiosa empenhada em decifrar região tão complexa e volátil. Não se trata de falsa humildade, mas de humildade sincera, porque a disciplina histórica e a região - Oriente Médio exigem. Quanto aos walking tours, a ideia nasceu quando lecionava na FGV a primeira edição do curso “Oriente Médio: História e Questões Correntes”. Pensei, muito inspirada no projeto “Le Paris Arabe Historique”, do Institute du Monde Arabe


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de Paris, que seria muito mais interessante levar os alunos para o “bairro árabe” do Rio, o SAARA, quando tratasse da história da imigração do Oriente Médio para o Brasil. A aula fez sucesso e vários alunos pediram para levar amigos, significant others, parentes e tal. Passei a incorporar walking tours em meus cursos então (isso começou em 2011), sempre com os alunos muito empolgados em ter aula ao ar livre e de forma interessante. A partir dessa experiência, criei o projeto de walking tours “Rio Global”, com roteiros que tratam não só do passado médio-oriental da cidade, mas também judaico, africano, chinês, europeu, além de também tratar da história das mulheres no Rio e também de militares e diplomatas. Minha ideia é mostrar que o Rio é mais cosmopolita do que se pensa e que também é mais do que um balneário em que se bate palma para o pôr do sol. Há muita história interessante pelo Centro do Rio e que vale conhecêla. Meu público é primordialmente de cariocas ou de residentes no Rio, mas tenho feito nos últimos tempos também tours com estrangeiros que estão de passagem, como empresários ou estudantes de universidades estrangeiras. De uma maneira geral, adoro esse trabalho, porque sinto que com ele estou usando todo meu treinamento de historiadora, mas de uma maneira leve e mesmo gostosa. E, na realidade, não estou sozinha. Há muita gente fazendo roteiros muito legais pela cidade, como o pessoal do Rolé Carioca, da Universidade Estácio de Sá, ou a querida Teresa Montero, que tem roteiros sobre Carmen Miranda e Clarice Lispector. Fico super feliz também quando vejo professores de Ensino Médio guiando suas turmas pela cidade. O Rio é uma grande sala de aula e temos que usá-la com mais assiduidade.

Uma dupla que faz a diferença pelas ruas do Rio: Roteiro “Rio Judaico” Ezequiel Pessach e Monique Sochaczewski Goldfeld criaram uma parceria imbatível, ao idealizarem e realizarem, pelas ruas do centro do Rio, o roteiro “Rio Judaico”, o pioneiro em seu gênero na Cidade Maravilhosa. A seguir, Eze, como é mais conhecido o Ezequiel Pessach, argentino formado em História pela Universidade de Tel Aviv e que adotou o Rio como seu novo lar em 2014, nos conta, em curto depoimento, como nasceu este projeto. “O roteiro surgiu a partir de um feliz encontro que tive com Monique Sochaczewski Goldfeld em um seminário onde, sem querer querendo, descobrimos que os dois buscávamos criar um walking tour judaico. Queríamos construir uma aula passeio com uma pesquisa séria, solidamente argumentada e relacionada aos lugares por onde passávamos, onde aconteceram as histórias, mas que, ao


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mesmo tempo, pudéssemos tratar as histórias numa linguagem acessível, humanamente significativa e focando em grandes processos e cenários sociais e políticos, assim como em experiências de vários e várias personagens, pessoas que atuaram nesses cenários, em diversos tempos. Centenas de pessoas têm participado nas mais de dez edições que já realizamos. Judeus e não judeus, jovens e “jovens com experiência”, pesquisadores profissionais e curiosos e penso que em geral temos conseguido dialogar com todos eles em termos de interesse e relevância”.

INDICAÇÕES SAGAZES/ WALKING TOURS * Rio Global com Monique Sochakzewski Goldfeld. Indicado pela redação da Sagaz Arte & Cultura

E nossa querida Monique Sochaczewski Goldfeld, indica

Monique Sochaczewski Goldfeld e Ezequiel Pessach no comando do roteiro “Rio Judaico” .Foto: Regina Igel

* Carmen Miranda e Clarisse Lispector com Teresa Monteiro * Rolé Carioca com o pessoal da Universidade Estácio de Sá


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TODAS AS ARTES/LITERATURA/RESENHA/Regina Igel

O que falta em Judas, de Amós Oz Judas, de Amós Oz, pode ser considerado um romance interessante por seu conteúdo temático, mas não tanto pelo tratamento literário que o revela Judas, de Amós Oz , pode ser considerado um romance interessante por seu conteúdo temático, mas não tanto pelo tratamento literário que o revela. Como alguém notou antes, há um ensaio embutido no romance. Como todo ensaio, contém um silogismo, nesse caso, baseado na premissa de que certos indivíduos universalmente tachados como traidores nem sempre o foram. O equívoco maior, segundo o autor, se dá com Judas Iscariotes (assim chamado porque ele era de Cariot, uma cidade na Judeia) que durante milênios é tido como o judeu que traiu Jesus, seja por apontá-lo ou por beijá-lo, sendo que o beijo seria a senha entre Judas e os romanos para identificá-lo. Fez isso para alertar os algozes sobre quem era o acusado em meio aos demais apóstolos na praça em que se ergueria uma cruz, instrumento de tortura e morte que, inventado ou não pelos romanos, era por eles aplicado àqueles que julgavam “delinquentes” ou “dissidentes”. Para o “serviço” prestado, Judas teria recebido trinta moedas. O romance faz uma minuciosa revisão do incidente que teria acontecido há mais de dois mil anos, dando voz a Judas, que se explica pela extensão de um longo capítulo (p. 47). Pela voz do próprio Judas e por explanações distribuídas ao longo do romance, Oz procura demonstrar que, ao contrário do que se acredita, Judas foi um dos mais fiéis

seguidores de Jesus, talvez até o maior dentre eles, pois acreditou tanto na sua divindade e imortalidade que o estimulou a ir a Jerusalém e deixar-se levar pelos romanos. Isto porque, aceitando a divindade de Jesus, Judas tinha certeza de que o mestre não chegaria a ser crucificado, saltaria do objeto de tortura e seria consagrado como o divino filho de Deus. Para Judas, Jesus era imortal, como é característico de uma entidade divina, o que, no entanto, não se mostrou verdadeiro. Diante do fracasso de seu plano e de sua desilusão, Judas se sentiu culpado por ter convencido Jesus a se deixar prender, e derrotado ao vê-lo morto. Assim, o peso da culpa e o sentimento de derrota o levaram ao suicídio. Amós Oz procura mostrar que é pura invenção pós-data que Judas se tenha vendido por trinta moedas. Sendo dono de terras e de rebanhos, não iria denunciar Jesus por tal ninharia (como seria a quantia para um homem tão abastado) ou por dinheiro algum, visto serem dois grandes amigos. De todos os apóstolos, Judas foi o mais deslumbrado, o mais convicto da divindade de Jesus e o mais fiel de seus seguidores. Tampouco teria o encargo de mostrar aos romanos quem era Jesus, pois quem o desconhecia? Era o ser mais visto, ouvido, seguido e perseguido daquelas paragens. No entanto, Judas foi estigmatizado como seu traidor e os judeus são julgados, tantos mil anos passados, como seus herdeiros morais.


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(Em um passado não muito distante, a efígie de um homem vestido com trapos era erguida em alguma árvore ou parede para ser espancada ou “malhada” por homens, mulheres e crianças portando bastões ou martelos em suas mãos. A “malhação de Judas” tem sido executada no “sábado de Aleluia” em inúmeras localidades onde o Catolicismo é religião predominante. Com a passagem do tempo, em alguns locais têm-se substituído tais imagens por figuras de administradores e políticos contra os quais o povo guarda ressentimentos. A pancadaria expressaria desgosto popular pelos rumos do governo reinante.) O romance também introduz certo item político (como se a questão do Judas não fosse política o bastante, ainda que tenha aspecto religioso). Amós penetra por terreno

bem espinhoso, mas, na verdade, está dentro dessa arena há muito tempo. Seu posicionamento nesse campo é universalmente conhecido, e o romance apenas coloca em formulação ficcional o que o autor tem dito e escrito em artigos ao longo dos anos. No campo da política, o embate emblemático entre Ben Gurion e o personagem Shaltiel Abravanel, como narrado em Judas, revela o que cada um deles pensava e como agia em relação ao sionismo. O plano de Ben Gurion foi o que prevaleceu, como se sabe, enquanto Abravanel representaria os opositores a esse plano. Shaltiel é o pai falecido de Atalia, mulher de 45 anos que mora na casa onde um jovem, Shmuel Asch, conseguiu um emprego de acompanhante e interlocutor de Guershon Wald, um senhor semi-inválido. A moça é nora de Wald e viúva do seu filho Micha, que morreu na guerra de 1948, cerca de doze anos antes do foco da narrativa. Amós Oz reuniu pela duração de um inverno, no cenário de uma casa de pedra, em Jerusalém, essas três pessoas: Atalia, Shmuel e Guershon, mais os


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fantasmas de Micha e de Abravanel. Shmuel se apaixona por ela depois de um revés sentimental com sua exnamorada Iardena, que o abandonara pouco antes para se casar com outro. Sogro e nora, em momentos distintos, contam para Shmuel sobre a decepção de Abravanel, ativista político que imaginava um país onde judeus e árabes vivessem juntos, lado a lado e mesclados, sem identidade particular e sem denominação de Estado. Para os tempos de Ben Gurion, tais ideias não eram mais do que heréticas, e o levaram a ser expulso das organizações sionistas de então. Sofreu ostracismo e passou seus últimos anos isolado de tudo e de todos com quem tinha antes mantido amizade, como líderes políticos, intelectuais, artistas e gente do povo em geral – judeus e árabes, pois não fazia distinção entre eles. Visto como traidor da ideologia sionista não só por suas ligações políticas e amistosas, mas principalmente pela teimosia em firmarse na sua ideia de Israel e Palestina como território comum aos dois povos, Abravanel morreu para o mundo muito antes de falecer, de manhã, tomando café e lendo

um jornal, na cozinha de sua casa. Seus escritos, fórmulas para a convivência harmoniosa e talvez utópica entre judeus e árabes, foram destruídos por ele mesmo. Nada sobrou das suas ideias e lutas, dos projetos e miragens de um mundo ideal. O arquétipo representado por Abravanel no romance foi repelido da memória política, enquanto sobressaíram-se Ben Gurion e o sionismo prevalecente, com poucas modificações. Daí que se apresentam dois fusos ao redor dos quais gira a narrativa: a pseudotraição de Judas Iscariotes a Jesus e a ambígua traição de Shaltiel Abravanel ao sionismo, como era aceito então. São inegáveis as virtudes literárias de Oz, já amplamente difundidas nos vários idiomas em que suas obras se encontram traduzidas. Esta narrativa, no entanto, parece não corresponder às coroas de louros que têm circundado sua cabeça riquíssima em imaginação, envolvendo paisagens, personagens, conflitos pessoais, dilemas políticos, interesses egocêntricos e paixões infelizes. Em Judas, no entanto, o romancista refoga em movimentos circulares (indo e voltando ao mesmo ponto, às mesmas atitudes, às mesmas descrições), e, ao longo das


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primeiras cento e algumas páginas, certas situações não se desatam antes de além da metade do livro. Serão as últimas 160 páginas que mostrarão alguma atividade diferente e mais do que necessária para que o romance tenha um episódio central – qualquer que seja – entre os personagens principais. Como narrativa, o texto pode ser reduzido a um conto ou, no máximo, a uma novela, isto é, entre história curta e romance. As primeiras páginas se ocupam de descrições (repetidas e iguais entre si) de Atalia, que passou a ser a mulher dos desejos de Shmuel Asch, cerca de vinte anos mais jovem do que ela. Uma vez instalado no emprego de servidor acompanhante quase silencioso das conversas com o sogro dela – o que acontece logo no início da narrativa –, o romance empaca nas intenções de Atalia, que permanecem veladas o tempo todo. Tampouco se faz mais ágil ao penetrar pelo cérebro labiríntico de Shmuel. Também descreve, de forma iterativa e quase ad nauseam, os cabelos revoltosos e impenetráveis do rapaz e sua barba

abundante e enroscada. Shmuel é recortado como típico personagem romântico-popular: aquele que não se alinha ao convencional e cultiva um aspecto físico um tanto excêntrico, mirando-se e arrumando-se no espelho com frequência. O autor lhe empresta surtos asmáticos: na falta do que fazer com suas mãos, o personagem de vez em quando leva um tubinho à boca para aspirar. E, para completar o quadro romântico, aparece outra de sua faceta rebelde: cartazes com a foto de Che Guevara e de líderes similares a ele são pregados por Shmuel numa das paredes do seu quarto, localizado na água- furtada da casa. O desvão que lhe é destinado no alto de uma escadaria também faz parte da atmosfera de isolamento e solidão que se respira pela moradia daqueles quase esquecidos do mundo. Dos três personagens vivos na residência, Atalia é a mais misteriosa, de poucas palavras, entrando e saindo da narrativa como se fosse a diva de alguma ópera. Nesse papel, ela lembra Carmen, de Bizet, sempre com uma das mãos num dos quadris, rodopiando pela cozinha da casa ou hermeticamente fechada no seu quarto, sua concha


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indevassável. Também é amplamente repetido que ela usava perfume exoticamente carregado de um aroma de violetas. Por essas imagens, o escritor parece reproduzir o padrão típico dos romances românticos de séculos anteriores: Atalia é mulher enigmática, de olhar difuso e presença inconstante, com ironia e sarcasmo engatilhados na sua boca áspera e isenta de sorrisos. Mas o modelo maior na sua construção parece ser os poemas medievais referentes às donzelas da Idade Média. Como elas, Atalia se faz inacessível a um simples humano idealista e fracassado em suas aspirações acadêmicas e amorosas, como é Shmuel Asch. Este chegara ao ponto de começar a escrever uma dissertação acadêmica em que examinaria Jesus sob a ótica dos judeus, ou seja, Jesus visto pelos seus companheiros de fé. A falência comercial do pai, até então seu amparo financeiro, o impediu de continuar os estudos, daí a necessidade de buscar um emprego, o qual

encontrou na casa pétrea de Guershon Wald. Além de tomar chá com mel e fazer piada do deslumbramento de Shmuel por sua nora, Guershon falava e gritava ao telefone com personagens que se mantiveram incógnitos em todo o decorrer da narrativa. Contudo, como professor aposentado, encobre mal uma vibrante passagem pela história de Israel como militante do sionismo, representando a geração que fundou o país e que o manteve bem montado até o aparecimento da geração seguinte, representada por seu único filho, sacrificado para manter o sionismo vivo. A geração dos anos 1960 possivelmente estaria representada por Shmuel, um homem à deriva, sem eira nem beira, aguilhoado pela dificuldade em resolver sua vida. No decorrer do romance é observado como um fracassado, um nébich, como se define em ídiche (a língua de comunicação entre judeus do leste europeu, antes do


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Holocausto) um coitado, digno de piedade e, ao mesmo tempo, merecedor de censura. Importante recurso literário empregado por Oz é o de afastar o narrador onisciente e entregar certas lacunas da história para serem preenchidas pelos demais personagens. É assim que Shmuel se informa do que aconteceu com aquela gente em 1948, e, depois, por relatos fragmentados: um pouco pela memória de Atalia, em um dos seus momentos generosos para compartilhar suas lembranças, e de um só jato por Wald, instigado pelo jovem. Outra disposição literária é a inclusão de carta, como aquela escrita pelo pai de Shmuel, pela qual se fica sabendo o quanto seus pais se sentiam culpados por ele ter abandonado os estudos e como queriam que

seguisse o exemplo da irmã, labutando para se formar em Medicina numa universidade italiana. Os pais teriam traído seus sonhos universitários? Uma aura romântica, característica literária do século XIX, é imposta pelo escritor nesse livro, embora um tanto deslocada de sua obra como um todo. É salientada em pormenores e por molduras coerentes com o clima pesado do inverno em Jerusalém: a casa de pedra é circundada por pedregulhos úmidos e, quando pisados, barulhentos; é isolada; não recebe visitas; há um degrau de madeira apodrecida na porta de entrada, reflexo da negligência dos seus principais moradores (o que provocou uma queda de Shmuel, daí ele ter refinado seu aspecto de “coitado”).


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Há noites chuvosas e frias; outras, luarentas e suaves. Passam gatos esfomeados e miando, e tampouco faltam, para completar os quadros romantizados, ciprestes balançando-se à brisa ou ao vento. Nesse cenário, Shmuel é visto ora caminhando solitário e ensimesmado; ora estremunhando-se, envolto num cobertor, no parapeito da janela do quarto; ora sentado sozinho em um restaurante húngaro, sempre saboreando o mesmo prato quente. Essas cenas e outras semelhantes fazem parte de quadros românticos tradicionais que Amós Oz apresenta no romance, os quais pouco ou nada acrescentam à sua formidável obra literária. Tudo indica que é uma narrativa armada com o objetivo de divulgar suas perspectivas sobre Judas, sobre a fundação do Estado de Israel e sobre a situação dos problemas entre palestinos e israelenses. Embora esses tópicos sejam muito importantes na narrativa, o entorno que os sustenta é fraco em contraposição à obra geral do escritor. Os personagens são

superficialmente apresentados, não existe aprofundamento em nenhum deles, desenhados que são por breves e repetidas pinceladas descritivas. Ademais, agem segundo critérios românticos já bastante utilizados: isolamento, mistério, segredos, águafurtada, idealismo revolucionário, discussões políticas, algum verniz sentimental, um pouco de orvalho sexual, lembranças aflitivas, restrições pessoais, obstáculos mentais e assim por diante. Em suma, falta ao romance o que, em iídiche, se chama de tám, isto é, o gostinho, o sentido prazeroso que uma narrativa pode emprestar aos leitores e que não se encontra nesse novelo de atividades inócuas que não levam a lugar algum. Falta a tensão que estimularia a curiosidade em ver o que vai acontecer mais adiante. Mas é ao lembrar-se da repercussão positiva e justa da carreira literária do autor que se pode ir adiante, imaginando que algo está por ser descoberto; que uma epifania emocional talvez esteja ali perto, ao dobrar a esquina, ao virar uma página. Mas não há surpresas (com exceção de uma, interpretável pelo comportamento “generoso” de Atalia em certo momento da história), tampouco há um raio de esperança para qualquer um dos personagens. Todos eles – com exceção do morto Micha, falecido em circunstâncias mais do que trágicas – são apresentados como anti- heróis. Participam da trama com a equivalência de sufocados pela vida, pela morte e pela resignação, na falta de melhores recursos, ao status quo de seu país. Retirando-se o mistério de Atalia ou de seu quarto, nada sobra da personagem. É feita de papel impermeável emprestado de uma ópera ou de peça teatral. Retirando-se a cabeleira encaracolada de Shmuel ou sua barba revoltosa, sobra um homem sofrido e infeliz, mas sem a dimensão literária que poderia trazer


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algum valor artístico à sua história dramática. Desligandose o telefone de Guershon Wald, sobra um homem amargurado pela morte do único filho, embora ainda disposto a criticar, zombar e rir das tragédias humanas. Talvez seja este homem o personagem melhor projetado entre os que perambulam pelas páginas do romance. Ou talvez seja Shaltiel Abravanel, como descrito por sua filha e por Guershon, o mais profundamente perscrutado pelo autor: aí estava um sonhador, um idealista, um homem que acreditava que árabes e judeus poderiam viver no mesmo torrão, conviver no mesmo território sem que fosse etiquetado como Estado Judeu ou Estado Palestino. Expulso das organizações sionistas então vigentes, foi marcado como traidor pelos que aderiram aos planos de configurar um Estado de Israel. Suas ideias foram decepadas pela raiz e não há possibilidade de que sejam revividas, sendo os tempos outros e tendo as gerações passado por experiências que ele, Abravanel, não previra em seus planos. O que resta de um livro como Judas é o desperdiçado potencial de ser um romance em que o narrador se aprofundasse nos personagens e não se apegasse quase exclusivamente à mensagem política que quis demonstrar. Pode ser visto como um romance de tese, faltando-lhe, no mínimo, o cinzelamento literário que tanto projetou o escritor em outras obras. Acrescentam-se, ainda, algumas observações a respeito do livro em relação à edição brasileira: a tradução do hebraico ao português deixa a desejar. Há falhas de pontuação e sobram sentenças construídas sem cuidado como, por exemplo, na página 40: “Pareceu-lhe ter captado certo distanciamento, ou diferença, entre as palavras dela e a voz dela.” [grifos meus neste e nos demais exemplos], onde poderia ser “entre as palavras e a voz dela”. Outro engano se vê na página 47: “E sobre o teto de sua água-furtada, bem em cima de sua cama, desenham-se oceanos”. Bem, os desenhos devem estar sob ou no teto, não sobre. E, na página 154: “teve de combater uma leve sonolência que fez seu corpo relaxar na cadeira e seus olhos piscar e se fechar.” Não apenas faz falta uma vírgula depois de “sonolência”, como também parece que ainda não foi descoberto o infinitivo

pessoal, essa maravilha da língua portuguesa, que tornaria a sentença bem melhor ao escrever “seus olhos piscarem e se fecharem”. Além dos trechos selecionados, a gramática portuguesa brasileira sofre “ferimentos” parecidos em outras passagens da narrativa. Enquanto traduções de outras obras de Amós Oz no Brasil transmitem – dentro do possível enquanto tradução – o estilo e o brilho literário do autor, essa versão parece não ter muito a ver com o estilo original. Nem sempre é possível emular o original, mas uma boa tradução consegue chegar bem perto. Nesse romance, parece que, em vez de tradução, se trata mais de uma “transmissão” em português, pois não mostra preocupação com o estilo do autor nem com a escolha correta ou adequada dos torneios e das ambiguidades presentes no original. Para finalizar, a contracapa do livro expõe uma apresentação um tanto alheia ao romance, introduzindo: “Cristo, o judeu fundador de uma religião”. Pergunto: desde quando Jesus fundou uma religião? Além disso, entra em contradição ao afirmar: “Amós Oz revolve, [...] o coração da tragédia palestina. Como Judas nos mostra de forma inconteste, o ódio sem motivo é sempre pior do que o amor sem motivo”. Bom, se há “tragédia palestina”, há ódio sem motivo? E existe “amor sem motivo” na narrativa? Fora de foco. O tema da falsificação histórica do comportamento de Judas em relação à crucificação de Jesus já foi examinado por estudiosos versados naquele período da História. Amós Oz serviu- se de alguns dentre os trabalhos desses autores para corroborar seu ponto de vista da não traição de Judas, e é bastante convincente enquanto tese. Na outra face da moeda, não há como negar que Amós Oz é corajoso por manter sua posição com firmeza no setor da política israelense pós- 1948. No entanto, nessa obra de ficção do escritor, de qualidades literárias comprovadas ao longo de uma carreira, esperava-se mais de sua criatividade. A narração em Judas pode chegar a ser interessante em alguns trechos, pois tem seus enlaces de ternura, historicidade e contemplações em ambientes internos e externos propícios, mas faltam à arte de narrar fibra, energia e sustentação emocional.


32 TODAS AS ARTES/Literatura/Resenha/Cristina Konder*

Dossiê Herzog:

Prisão tortura e morte

“É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”. (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri)

Naqueles idos de 1969, eram esses os tempos. Imperava o AI-5, de tenebrosa memória. Todos os direitos políticos haviam sido cassados. Homens, mulheres e crianças eram sequestrados e levados para o DOI-CODI, incomunicáveis Torturava-se. Matava-se. Não havia habeas corpus. Ninguém se sentia seguro. Ninguém. Mas especialmente os que não concordavam com a ditadura militar que governava o Brasil desses tempos sem sol. Infeliz a nação que precisa de heróis, disse Brecht na época do nazismo na Alemanha de Hitler. Infeliz de nós brasileiros que precisamos de heróis... Vladimir Herzog, brasileiro, judeu, sobrevivente da II Guerra, não escapou desse tempo terrível. Foi preso, torturado, resistiu e foi assassinado no DOI-CODI, no mesmo dia em que foi preso, 25/10/1975. Fernando Pacheco Jordão, corajosamente, começa então seu levantamento e sua pesquisa para o livro sobre a saga de seu grande amigo, que seria lançado em 1979 e seria intitulado Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil.

O livro mostra não só a prisão, tortura e morte do Vlado, como Vladimir era chamado por seus amigos e companheiros, mas descreve muito bem a situação política da época; a sensação de insegurança e medo que todos viviam; a repressão aos partidos democráticos e a seus militantes; a caçada aos jornalistas que lutavam por um país livre da ditadura. “Quando Vlado foi preso, o número de jornalistas presos já chegava a onze: Sergio Gomes, Marinilda Marchi, Frederico Pessoa da Silva, Ricardo de Moraes Monteiro, José Pola Galé, Luiz Paulo da Costa, Anthony de Christo, Paulo Sergio Markun, Diléa Markun, George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Nenhuma prisão tinha sido comunicada à Justiça Militar e todos estavam incomunicáveis, mesmo os detidos há mais tempo, como Sergio Gomes, que estava no DOI-CODI desde 5 de


33 outubro. Eram verdadeiros sequestros, em desrespeito até à Lei de Segurança Nacional, criada pelo próprio regime militar, que estabelece 10 dias de incomunicabilidade e necessidade de instauração anterior de um inquérito para se efetuar a prisão.” Os militares, especialmente os do DOI-CODI, trabalhavam sem culpa e sem medo de punição. Estavam acima do bem e do mal, respaldados pelos seus superiores. Quando Vlado não aguentou a tortura e morreu, criaram uma história insustentável, de que havia se suicidado. A notícia da morte de Vlado mobilizou os jornalistas de São Paulo. No mesmo dia, se dirigiram ao Sindicato dos Jornalistas para uma assembleia para discussão do que se deveria fazer. Todos estavam com raiva pelo acontecido e tinham medo. Muito medo. Sabiam que qualquer passo errado poderia desencadear o terror. E Audalio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, juntamente com a diretoria do sindicato, soube como ninguém evitar as precipitações, as aventuras e os erros

COLABORADORA SAGAZ: CRISTINA KONDER Formada em jornalismo pela USP, com longa experiência no comando de redações de jornais e revistas, foi vice-presidente do Jornal do Brasil. Ativista política engajada nas grandes causas humanistas nacionais.

INDICAÇÕES SAGAZES/LITERATURA * “A Lebre com olhos de âmbar”, Edmund De Wall. Indicado por Eva Blay * “Os Valorosos”, Albert Cohen. Indicado por Betty Lozinsky * “O complexo de Portnoy”, Philip Roth. Indicado por Valter de Almeida * A Tetralogia de Elena Ferrante. Indicado por Kátia Del Porto

que poderiam ter sido cometidos. Foi feito o velório, o enterro, a cerimônia ecumênica de sétimo dia com muita tensão, cuidado e heroísmo. Mas sem desencadear o terror que precipitaria o desenlace da briga que já se sentia entre os militares: direita X ultradireita e que culminou com a queda do ministro do Exército, general Sylvio Frota, em 1977. Vladimir Herzog e seus companheiros, foram delatados por Claudio Marques. Ele desencadeou uma campanha contra os jornalistas da TV Cultura, especialmente o Vlado, afirmando que eram comunistas. Escrevia no Shopping News, “Coluna Um”. Em sentença do jovem e corajoso Juiz Federal Márcio José de Moraes, a União é responsabilizada pela morte de Vladimir Herzog. Vladimir Herzog, sobrevivente da II Guerra, morreu no Brasil pelas mãos de seus torturadores. Um mártir. O livro é um tributo candente à sua memória.

* “Órfãos do Eldorado”, Milton Hatoum. Indicado por Rogério Carvalho * “Caiu na Rede é Post”, Paulo Valadares. Indicado por Sara Ribeira * “A Deriva: Crônicas da inconstância política e outros vícios”, Fernando Lattman-Weltman. Indicado por Marcia do Valle * “Agudas e crônicas: O olhar clínico”, Nelson Nisenbaum. Indicado por Violeta Pascoal * “O Fim do Mundo e outras histórias de beirario”, Elias Salgado. Indicado por Fernanda Erbiste * “O Auto da Compadecida”, Ariano Suassuna. Ida Kalman

NOSSA EDITORA E COLUNISTA SAGAZ: REGINA IGEL PhD em Literatura Portuguesa. Coordena o Dpto. de Língua Portuguesa da Universidade de Maryland, USA. Autora do clássico “Imigrantes Judeus, escritores brasileiros”. Ed. Perspectiva, 1997. Regina nos honra no cargo de Editora Executiva da Editora Talu Cultural e edita a coluna de Literatura, da Sagaz Arte & Cultura.


34 TODAS AS ARTES/Música Clássica/ Nelson Nisenbau

A Décima Terceira Sinfonia de Shostakovich-Babi-Yar Dimitri Dimitreievich Shostakovich (19061975) é um grande compositor russo do século XX que, na visão deste colunista, jamais obteve o devido reconhecimento, algo que certamente o tempo corrigirá. O mesmo aconteceu com Johann Sebastian Bach, esquecido por longas décadas até que Felix Mendelsohn ressuscitasse sua obra de forma quase espetacular. Talvez, em algumas décadas, Shostakovich se torne uma disciplina à parte no mundo acadêmico musical Shostakovich compôs uma extensa obra, incluindo 15 sinfonias, concertos para piano e orquestra, violoncelo, violino, sonatas para instrumentos solo, trios, quartetos, quintetos, cantatas, música para teatro, cinema, ballet e ópera, entre outras composições. Embora não fosse judeu, a cultura e a música judaica foram tratadas em sua obra, seja nas composições para poesias judaicas populares, o aproveitamento de temas melódicos em algumas partituras e, de forma mais pungente, na Décima Terceira Sinfonia, Babi-Yar. A obra, de grandes proporções (cerca de uma hora de execução) temporais e orquestrais, foi escrita para orquestra sinfônica, coro masculino e baixo solo, compondo, na realidade, uma grande Cantata em 5 movimentos, todos musicando poemas de Ievguêni Ievtuchênko (grafia registrada na Wikipedia em português), entre os quais, o bloco “Babi-Yar” que dá o nome à obra e que foi a grande

Esta gravação é a ‘World Premiere”, ou seja, foi a primeira vez em que a obra foi apresentada ao público, lá no longínquo ano de 1962 sob a regência do maestro Kiril Kondrashin

motivação de Shostakovich, que se sentiu estimulado a compor uma obra exclusivamente a este bloco. No entanto, mudou de ideia posteriormente ao ler outros poemas alusivos à fase negra do stalinismo, ampliando sua composição para as dimensões sinfônicas. Shostakovich comunicou a Ievtuchênko as suas intenções apenas quando o primeiro bloco estava pronto, o que ocasionou o encontro entre os dois e a posterior ampliação. “Babi-Yar” trata da tragédia ocorrida na cidade de mesmo nome, na Ucrânia, onde teve lugar talvez o maior massacre isolado da Segunda Guerra Mundial, fato que só foi trazido a público na era Krushev, quando a URSS abriu os arquivos


CORAL A TEMPO Um dos grupos do Estúdio Encanto, São Paulo, Capital Regência: Walter Chamun Regente Assistente: Daniel Carvalho Diretor Administrativo: Silas Carvalho

da era Stálin e foram descobertos este entre outros crimes contra a Humanidade. A revolta do poeta, endossada grandiosamente pelo compositor, foi causada pelo fato de ter se descoberto que Stálin, diante da invasão nazista, ordenou expressamente que a cidade não fosse defendida. Sua “motivação” para isto foi o seu antissemitismo. Estima-se que 30.000 judeus (entre todos os cidadãos), absolutamente indefesos, tenham sido massacrados pelos nazistas. O texto descreve o terror sentido pelo poeta ao visitar a arrasada Babi-Yar, onde não se encontrava qualquer lápide ou monumento que descrevesse ou prestasse homenagem às vítimas. Segue então em um denso emaranhado de descrições e emoções, relatando a tragédia do antissemitismo russo e a sua revolta com o que descreve como sendo uma perversão do verdadeiro caráter russo, fazendo ainda alusão à tragédia de Anne Frank e aos pogroms. Nos movimentos seguintes (Humor, No Mercado, Medos e Uma carreira), o poeta e a música exploram o universo escuro do stalinismo, onde o humor conseguiu sobreviver, onde as mulheres mostraram sua força e dignidade e, ao fim, em um certo tom satírico, o poeta ironiza o totalitarismo cultural e científico que assolou a URSS. A estrutura do primeiro movimento guarda semelhanças com o formalismo do século XIX, em particular com o primeiro movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, onde o tema apresentado logo à introdução será desenvolvido até o clímax estrondoso, que coincide com a parte que descreve a queda da casa de Anne Frank. Shostakovich não usa parcimônia nas emoções, sem entretanto fazer concessões. O segundo movimento é um clássico scherzo

35 típico de outras obras do compositor, onde agrega algo de lúdico e irônico. O terceiro movimento é quase uma passacaglia, onde a repetição temática faz alusão à dura rotina da mulher russa, que recebe aqui uma homenagem não menos que monumental pelo poeta. Lento, profundo, traz um pouco da herança de Mahler, com seus longos mergulhos nas emoções como no adagieto da sua Quinta Sinfonia. A experiência da audição desta obra é transformadora. Não é possível continuar a ser a mesma pessoa depois de ouvir a obra e ler o texto que a inspirou. Diversas gravações registram o esplendor desta sinfonia, desde a primeira, gravada ao vivo na sua estreia em Moscou, com o teatro cercado de blindados e a divulgação do texto proibida. Aprecio em particular as versões de André Previn, de Bernard Haitink e a de Mariss Jansons (recentemente falecido), que considero a melhor (disponível para os assinantes do Spotify). Curiosamente, a obra não é popular entre judeus, ainda que certamente seja a maior obra musical de protesto contra o antissemitismo jamais escrita. Espero também que o tempo corrija este fato e que um dia este grande compositor Dimitri Dimitreievich Shostakovich - faça parte da educação e das reverências judaicas.

NOSSO COLUNISTA SAGAZ: NELSON NISENBAUM Médico, músico amador, escritor e membro do Coral A Tempo de São Paulo

INDICAÇÕES SAGAZES/MÚSICA CLÁSSICA

* As 4 Estações, Vivaldi. Indicado por Ingrid De

Cusatis * Kol NIdrei Max Bruch, Indicado por Sofi Ninio * 5a. Sinfonia de Beethoven. Indicado por Luis Antonio Gomide * Carmen de Bizet. Indicado por Sergio Afonso Arruda


36 TODAS AS ARTES/Música Popular/ Marco Antonio dos Santos

Está faltando um “Zé do Caroço” no pedaço “No serviço de alto-falante Do morro do Pau da Bandeira Quem avisa é o Zé do Caroço Que amanhã vai fazer alvoroço Alertando a favela inteira...”


37 A verdadeira história do samba “Zé do Caroço” Uma das canções mais empolgantes de samba é Zé do Caroço, escrita em 1978 pela cantora Leci Brandão. A letra conta a história verdadeira de José Mendes da Silva, policial aposentado que se tornou uma das lideranças da favela Morro do Pau da Bandeira, que fica ao lado do bairro histórico Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Para se comunicar melhor com a favela, José Mendes resolveu colocar um alto-falante em cima de sua casa para ler notícias, dar notas de falecimento, falar

A cantora e compositora, Leci Brandão, autora de Zé do Caroço, um samba icônico de protesto

de campanhas educativas, alertas sobre o risco de tempestades. Com o tempo, ele se tornou referência entre os moradores. Se o Zé falava era verdade, diziam. Quem não gostou da história foi uma dona de casa, casada com um militar, que morava perto da favela. Como era plena Ditadura Militar, ela chamou a polícia para reclamar que o som do alto-falante a incomodava, principalmente na hora de assistir suas novelas na televisão. De boca em boca, a luta exemplar de José Mendes virou música nas mãos de Leci Brandão, com tom de samba social, com crítica à alienação da população por meio das telenovelas e a necessidade do povo de se organizar para brigar por seus direitos.

A história não para aí. Leci Brandão tentou gravar a música em 1981, mas a gravadora Polydor censurou. A cantora rescindiu contrato para lançá-la em outra gravadora, a Copacabana Records em 1985. A canção se tornou seu maior sucesso e é a mais regravada de Leci nos últimos tempos, com versões de Art Popular, Revelação, Mariana Aydar e ainda a releitura que fez escola por parte de Seu Jorge, no DVD em parceria com Ana Carolina. Ps.: Zé do Caroço faleceu no início da década de 2000, tendo tido a oportunidade de ver seu nome e sua luta eternizados num dos maiores sambas de todos. Zé do Caroço é música título deste álbum, com a primeira gravação da música

INDICAÇÕES SAGAZES/MÚSICA POPULAR

* Scarborough Fair, música tradicional inglesa de autor desconhecido. Indicado por Sefora Elbaz * Não deixe o samba morrer. Composição de Edson Conceição e Aloísio Silva. Indicado por Alvia Pitombeira * Afogamento. Composição de Gilberto Gil e Jorge Bastos Moreno. Indicado por Antonio Carlos Rosa * Felicidade. Composição de Lupicínio Rodrigues. Indicado por Raul Silva e Castro * Lua Branca. Composição de Chiquinha Gonzaga. Indicado por Alda de Oliveira Souza * Lamento Sertanejo. Composição de Dominguinhos e Gilberto Gil. Indicado por Félix Azevedo


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TECNOLOGIAS / Alexandre Antabi Desde 25 de Maio de 2018, a GDPR (General Data Protection Regulation) encontra-se implementada como regulamentação aplicável aos países signatários, pertencentes à União Europeia, salvaguardando dados e direitos de seus cidadãos frente aos seus provedores de serviço. Eu participei do projeto de compliance para uma multinacional de TI e me interessei por demais pela área


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A LGPD está chegando e ela pode ser boa para o seu negócio! Embora aqui as discussões já estivessem em estágio avançado quando a norma europeia foi criada, em partes o Brasil se inspirou na GDPR para criar a LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados, que tem como objetivo proteger a liberdade e a privacidade dos indivíduos, balanceando esta, com as necessidades de negócio e inovação das empresas. Nossa lei entra em vigor em agosto de 2020 e traz com ela, certos direitos que nós, indivíduos, passaremos a ter por aqui, conforme o artigo 18 expõe:

I - Confirmação da existência de tratamento; II - Acesso aos dados; III - Correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV - Anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; V - Portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa e observados os segredos comercial e industrial, de acordo com a regulamentação do órgão controlador; VI - Eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses


40 previstas pela lei; VII - Informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados;

aos dados e ao fato de possuírem em sistema dados de quase mil profissionais enquanto haviam menos de 300 efetivamente ativos.

VIII - Informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa;

Outra multa na Alemanha, para uma rede social onde houve vazamento de aproximadamente 800.000 contas de e-mail e 1.800.000 informações de usuário e senha. A multa foi de €20 mil Euros, amenizada pela cooperação com a entidade de proteção de dados.

IX - Revogação do consentimento, conforme disposto em lei. Como empresas e empreendedores de qualquer porte, nós teremos a responsabilidade de oferecer estes direitos aos nossos clientes, usuários, prospects, fornecedores, funcionários, etc como parte integral do provimento de nossos serviços. Teremos a obrigação de informar o que, como, onde, quem e por quanto tempo os dados serão processados. Só poderemos processar os dados dentro dos critérios pré-estabelecidos (contrato, consentimento, proteção à vida, interesse legítimo, etc.). Teremos a obrigação de preservar os dados e tratá-los com cautela para evitar acessos não autorizados. E deveremos nos desfazer dos dados (ou anonimizá-los, embora esse procedimento ainda seja muito controverso) após sua vida útil ter chegado ao fim. As multas para o descumprimento das obrigações podem chegar até a R$ 50 milhões de reais por infração. Na Europa, já temos alguns exemplos de multas sendo atribuídas às empresas:

A primeira multa foi na Áustria, em outubro, pelo uso de câmeras de segurança que filmava parte da calçada. A multa foi dada pelo fato de que o monitoramento em larga escala, de locais públicos não ser permitido. O estabelecimento foi multado em €4.800,00 Euros. Outra multa foi aplicada em um hospital Português, no total de €400 mil Euros. Uma das razões foi o fato de os sistemas permitirem acesso indiscriminado

Na França, o Google foi multado em €50 milhões de Euros pelo processamento inadequado de dados pessoais, sem fornecer a possibilidade do usuário de oferecer o consentimento de forma ampla e voluntária. Na Inglaterra, uma empresa de seguros foi multada em €60 mil Euros por instigar o envio de e-mail marketing sem o devido consentimento.

“Mas Alexandre... até agora é só coisa ruim, focar no compliance e não no valor entregue, multa... cadê a oportunidade???” Eu acredito que existem várias. Listo elas a seguir:

1. Oportunidade de se estabelecer políticas internas para o tratamento de dados, mapear os gaps, as práticas, as ferramentas e todo o processo desde a aquisição até a eliminação do dado. A LGPD nos dá a possibilidade (forçada) de revisar as nossas ações como empresa, de obter visibilidade sobre o processo, padronizar procedimentos de diferentes departamentos, escolher as melhores ferramentas, de nos colocarmos na posição do consumidor. 2. Oportunidade de corrigir nossas falhas. É uma ótima oportunidade para corrigir


41 problemas de segurança e tratamento que caíram em backlog, technical debt ou depriorizados (e que estejam relacionados ao tema). 3. Investir na capacitação da equipe. Como o LGPD não foca apenas em sistema, é importante que as pessoas que lidam com dados pessoais estejam devidamente treinadas. Por exemplo, não pegar os dados de um sistema interno e disponibilizá-los em um ambiente inseguro, carregar em um pen drive, etc. 4. Oportunidade de escolher fornecedores de TI que estejam comprometidos com a segurança dos dados. Teremos a oportunidade de trabalhar com “Processors” que colocam a qualidade do serviço e a proteção dos dados como prioridade. Afinal, a brecha deles é a sua brecha. 5. Imagem. Você mostra aos seus clientes que você se importa com eles e acima de tudo respeita suas decisões de contato. Como consumidor, quantas não foram as vezes que você pediu para sair de uma lista de marketing e nunca foi atendido?

Se você precisa de ajuda com a sua adequação, me envia uma mensagem para um atendimento customizado e personalizado. Contamos com um escritório parceiro jurídico para auxiliar no processo, com advogados especialistas em Direito Digital por algumas das maiores instituições do Brasil, e que poderão auxiliar no que for necessário, assim como nos auxiliaram quando precisamos.

Fontes: 1. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2018/Lei/L13709.htm 2. https://www.pandasecurity.com/mediacenter/ news/first-sanctions-gdpr-infractions/ 3. http://fortune.com/2019/01/21/france-finesgoogle-57-million-for-gdpr-violations/ 4. https://ico.org.uk/action-weve-taken/

NOSSO COLUNISTA SAGAZ:

ALEXANDRE ANTABI

É um momento bacana, propício, para dar aquele salto em Customer Experience. Na Macher Tecnologia (https://www. machertecnologia.com.br/)nós desenvolvemos nosso primeiro produto, o Turma na Web (https://www.turmanaweb.com.br/) já com os conceitos de privacidade (Privacy by Design & Privacy by Default) e já estando em conformidade com a LGPD. Este artigo não tem como objetivo oferecer consultoria, recomendação, direção, aconselhamento. É um material resumido desenvolvido para fomentar o pensamento e estimular o questionamento. Não oferece quaisquer garantias de acurácia, completude ou conformidade.

Alexandre traz, em sua bagagem, uma experiência de 19 anos em multinacional de tecnologia, trabalhando com projetos globais para a Web e mindset Digital. Com sólida experiência em Gestão de Projetos, é certificado como PMP é certificado como PMP (Project Management Professional) e CSM (Certified Scrum Master).


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