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Introdução: chancela da paisagem? ou dos territórios culturais?

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Notas

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Queria, antes de mais nada, parabenizar a equipe do IPHAN liderada por Monica Mongelli, e também a equipe do Comité Científico brasileiro de Paisagens Culturais, capitaneado por Vanessa Bello, pelo enorme esforço e pela oportuna reflexão aberta sobre o conceito da paisagem, sua normatização e seus futuros instrumentos e propostas de gestão sustentável. Queria agradecer também o apoio, o carinho e todo o conhecimento que Carlos Fernando de Moura Delphim, um dos instigadores da Chancela, me ofereceu desde que comecei a trabalhar com as Paisagens Cariocas como foco de meu trabalho para UNESCO e para o IPHAN.

Minha experiência no planejamento urbano e territorial baseado no paradigma da paisagem me coloca num lugar diferente de aquele identificado pela Chancela. Definitivamente, acredito, e afirmo rotundamente, que “todo patrimônio cultural é paisagem”, mesmo o sabre do General Osório. Esse é provavelmente o bem cultural mais pequeno tombado a escala federal, mas impossível de entender sem suas múltiplas camadas de valores, atributos e caraterísticas.

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O espírito do lugar que o criou, transforma o espaço que o envolve, a construção que o acolhe mediante processos de apropriação cultural em patrimônio de todos. Os bens são tanto seus elementos tangíveis, como edificações, sítios, paisagens, rotas, objetos, como suas dimensões intangíveis formadas por memórias, narrativas, escritos e tradições orais, mitos, ritos, festivais, que nos fazem sentir o sentimento do sagrado e acordam nossos desejos de adoração, de identificação e de valorização dos bens (De Moura Delphim, A Paisagem (texto apresentado no V Congresso Brasileiro de Paisagismo), 2010).

Dessa forma, os conhecimentos tradicionais e as formas de interação entre o homem e a natureza, transformam-se em texturas, cores, odores e outras múltiplas manifestações culturais. Dessa forma materializa-se o patrimônio cultural, transformando os elementos físicos e espirituais em algo que nos transmite valores, significados, emoções, sentimentos e mistérios que nos oferecem novas leituras sobre aquele lugar. O bem material, tangível, não pode ser considerado por tanto de forma destacada do espírito do lugar, seu componente intangível, nem das relações ecológicas com o seu entorno. Nada há de adverso entre eles, o material e o imaterial se interagem e se edificam de forma mútua e recíproca. Do mesmo jeito, as dimensões ambientais, econômicas e sociais, do entorno imediato donde o bem encontra-se inserido, interatuam com ele, de uma forma intensa, e as vezes definitiva.

Por isso, a capacidade de percepção do espírito de uma paisagem é uma experiência altamente enriquecedora ao mesmo tempo que complexa. Quando identificamos as interações entre natureza e cultura, e suas raízes sociais mais profundas, estamos construindo a ideia de lugar, de paisagem. Essa construção é, ao mesmo tempo, pessoal e social, individual e coletiva, mas sem dúvida perceptiva.

Cada espaço, em cada escala que queiramos interpretá-lo, tem uma paisagem no redeador que o define. Ao mesmo tempo, quando esse espaço, junto com outros, é apropriado, transforma-se em “território”. Os territórios têm nome e sobrenome, estão

localizados, e tem sua própria personalidade e sua sociedade, espécie ou espírito que o domina. Assim surgem os territórios quilombolas, os territórios associados a povos, indígenas, ou até os territórios da onça pintada, ou dos guarás, por exemplo. Já a paisagem pode repetir seus modelos, suas componentes, seus elementos, seus processos sem por isso perder identidade.

Figura 1 . - Todas as paisagens podem ser lidas ou interpretadas em diferentes contextos e narrativas históricas, ou ambientais, ou culturais. O mais importante é o olho do observador e a percepção.

Quando somos capazes de ler e entender os territórios dentro de uma ou várias narrativas históricas, artísticas, ambientais ou funcionais, estaremos construindo o conceito de sistemas territoriais, que podem apoiar-nos na construção de estratégias de intervenção no patrimônio cultural de uma forma agrupada e coerente com os valores e caraterísticas de estes conjuntos. Entendemos por tanto que a proposta da Chancela vai mais por um reconhecimento do que queremos denominar como “territórios culturais” e não paisagem, já que essa envolve todos e cada um dos bens culturais que entendemos como tais.

E importante destacar, nesta releitura do conceito da paisagem, que o patrimônio histórico, artístico e cultural, não pode ser separado do patrimônio natural, nem da ideia de sustentabilidade, ou de cidades habitáveis, ecológicas e territórios inteligentes. A paisagem constrói a identidade de um lugar, tornando-o mais sustentável integrando a história, a cultura, a forma urbana e a arquitetura dum lugar, ao tempo que salvaguarda sua identidade, sua autenticidade e sua originalidade.

Precisamos abordar uma ecologia da paisagem, entendendo as suas múltiplas dimensões e conexões, naturais e culturais, começando pelas logicas locais, mas entendendo sua integração em sistemas territoriais globais, de maior abrangência e significado, e integrando as leituras eruditas, técnico-científicas, com a linguagem mais popular, com a cultura que nasce da apropriação pela sociedade.

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