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Patrimônio Cultural
from A Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Subsidios para a integração da Paisagem no Território
Brasil, 2016), seja desde a perspectiva mais holística, sintética e integradora, que hoje está sendo incorporada nos PDU, e nos planos metropolitanos, da paisagem como conceito de sínteses nas análises urbanas e/ou territoriais, mas também como ferramenta para o planejamento.
Patrimônio Cultural
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“Constituem o patrimônio cultural brasileiro, os bens, de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” (Presidência da República, 1988, pág. art. 216)
O Patrimônio cultural tem sua origem no sentimento de pertencimento, na lembrança comum ou coletiva, de que algo faz parte de nossa memória, da nossa cultura, e que por tanto tem que ser preservado. Quando se fala em Patrimônio, logo nos vem à mente a ideia de Patrimônio Arquitetônico, de construído. Mas o patrimônio cultural hoje vai bem além, englobando três categorias de elementos: naturais e culturais, materiais e imateriais, ou elementos simbólicos da memória.
Por tanto a paisagem está formada pelos elementos que pertencem à natureza, como, rios, mares, montanhas, pelas lembranças; as construções, os artefatos, objetos, obras, edificações, infraestruturas ou criações advindas das mãos humanas; e por último, as tradições e as técnicas e os elementos referentes às experiencias vividas pelo homem para poder viver em seu meio ambiente. Também devemos incorporar, desde uma visão mais ampla, os elementos documentais, artísticos, científicos e históricos, que descrevem esses bens, e seus entorno, recuperando assim as narrativas com as quais se relacionam.
O Patrimônio Federal.
Já passamos um periodo importante de inventario, identificação e inicio das primeiras ações de planejamento, chamados de periodos de preservação, conservação e restauração (Castriota, 2007; Hoyuela Jayo, 2014 c). Hoje, estamos entrando num periodo que denominamos de modelo Paisagístico, onde continuamos preservando e protegendo, mas onde precisamos incorporar propostas e medidas para o desenvolvimento do nosso patrimônio e sua integracao em modelos de desenvolvimento sustentável (Hoyuela Jayo, 2016).
Hoje devemos pensar a preservação dos bens de interesse cultural integrada no paradigma do desenvolvimento sustentável. Um planejamento integrado deve cumprir o requisito constitucional de “defender e valorizar” o patrimônio através de instrumentos de proteção específicos e de uma programação de ações que promovam de forma coesa a sustentabilidade económica, ambiental e social desde uma perspectiva
territorial, pensando o patrimônio cultural como recurso do desenvolvimento sustentável.
Gerir esse patrimônio nacional exige novos olhares que incluem repensar os mecanismos de tombamento. Também exige revisar as Portarias/IPHAN nas áreas de entorno, assim como sua condição de elementos componentes de sistemas territoriais de interesse patrimonial mais amplos que exigem uma gestão compartilhada dos diferentes atores das políticas setoriais envolvidas. Mas exige sobretudo colocar a paisagem como protagonista, de nossas análises e de nossas propostas.
O Decreto-Lei nº 25 de 1937, do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, definiu o tombamento como um instrumento jurídico destinado à proteção do patrimônio da nação com classificação e inscrição em quatro livros.
Figura 2 . - O patrimônio federal tombado, os limites das paisagens cariocas (UNESCO), e do Parque Nacional da Tijuca e Florestas de Proteção acima das cotas 80 e 100 (IPHAN), no Rio de Janeiro. Fonte: dados do IPHAN, do Comitê Gestor, IRPH e o IPP, e elaboração própria.
Eles vão desde a pequena escala, dos bens móveis como o sabre do General Osório, até o Parque Nacional da Tijuca e suas florestas de proteção (90 milhões de m2). A maioria dos bens estão inscritos na categoria histórica (122), ou de belas artes (108), assim como 26 na categoria de arqueológico, etnográfico e/ou paisagístico, nenhum na categoria de artes aplicadas. O desenvolvimento científico e tecnológico, não obstante, caracteriza alguns desses bens. Seria o caso do aeroporto Santos Dumont, e o nascimento da aeronáutica, ou o caso do próprio jardim botânico e do horto e a ciência botânica, assim como a gestão das águas na floresta da Tijuca. Mas essa perspectiva não foi suficientemente abordada, porque no Brasil só cinco processos foram lançados com esse propósito. Nesse sentido a Chancela parece querer cobrir essa ausência.
O projeto PRODOC envolve um conjunto de professionais coordenados a través da equipe do DEPAM em Brasiliai, e uma equipe do IPHAN RJii, entre outros importantes professionais colaboradores. Os objetivos do projeto são identificar, organizar e articular os instrumentos normativos incidentes sobre os bens tombados localizados em vários cenários diferentes tais como Rio de Janeiro, Cachoeira e São Felix, Recife, Florianópolis, Porto Seguro, Belém do Pará, Petrópolis, Serra do Navio, Salvador de Bahia, e outros núcleos e contextos que vão se agregando durante o desenvolvimento do projeto.
O propósito é elaborar leituras, em termos territoriais, focadas na gestão compartilhada entre os diversos entes federativos que têm atribuição concorrente na área de estudo. Em termos específicos, objetiva a produção de metodologias de abordagem para identificação e análise de condicionantes que subsidiem a formulação de diretrizes e critérios de preservação, bem como de parâmetros de intervenção. No processo, devese garantir a apropriação, por parte das entidades e órgãos federais, estaduais e municipais, de conceitos e princípios urbanísticos, tradicionais ou mais inovadores, voltados para a preservação do patrimônio cultural, assimilando-os nos respectivos instrumentos de planejamento e nos processos e instrumentos de gestão.
O Patrimônio Cultural deve ser considerado como paisagem, e também na paisagem. A paisagem deve ser considerada como o conjunto de elementos culturais em sua relação com o lugar que podem alterar ou dar suporte aos valores reconhecidos do bem. A paisagem sempre será uma leitura coletiva e dependerá da forma que é percebido. A aproximação deve considerar a perspectiva cultural, científica, artística, histórica, etnográfica, simbólica, ecológica... Desde uma perspectiva mais ampla deve considerarse como instrumento que envolve e integra os aspectos sociais, econômicos e ambientais sob o paradigma da sustentabilidade. É aqui que entram os valores ecológicos, naturais, biológicos, mas também os relativos à percepção, a economia e a biodiversidade e ao patrimônio natural. Uma abordagem adequada exige entender os elementos junto aos processos, de forma dinâmica, são os chamados os ecossistemas culturais e naturais. Nessas áreas de entorno ou amortecimento é onde devemos desenvolver as chamadas portarias.
Hoje devemos olhar para diversas áreas do conhecimento para conseguir discutir as contribuições para a formação do conceito de paisagem cultural contemporâneo, e seus desdobramentos teóricos e práticos. Essas são sem dúvida a geografia, a arte, a arqueologia, a engenharia (e especialmente a engenharia da paisagem), a ecologia, a biologia, as técnicas florestais, o patrimônio cultural e a gestão cultural, bem como, a comunicação, a sociologia e a antropologia (como forma de integrar a etnografia e a percepção). Por isso ele requer de equipes e perspectivas transdisciplinares que envolvam diversos atores, diferentes áreas de conhecimento, e sistemas de participação mais abrangentes, não procurando o domínio sobre várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas as quais perpassa e ultrapassa. A paisagem que queremos é polissêmica e poliédrica e, por isso, tem múltiplos significados e múltiplas perspectivas.
Essa construção da paisagem cultural exige novas tipologias e instrumentos, como o da paisagem histórica urbana (Cury, A construção do conceito de Paisagem Histórica Urbana, 2012), revendo: contexto e entorno, as rotas e itinerários culturais, o papel do
patrimonio natural, dos jardins históricos e do paisagismo, e também dos espaços públicos, das paisagens rurais, arqueológicas, sistémicas, sensoriais, das paisagens das águas e das industriais, assim como os novos métodos de leitura e de monitoramento (tecnologias da informação). A paisagem como método de aproximação a gestão dos bens federais, precisa, também, de uma necessária percepção artística e cultural:
"O certo é que as emoções e belezas que sentimos diante das paisagens emanam da arte e não da própria natureza. São os artistas que nos ensinam a ver o mundo e perceber as suas belezas" (De Moura Delphim, Estudo sobre a Paisagem Cultural Brasileira, 2006)
Podemos concluir, sem dúvida, que a paisagem no Brasil já teve um longo percurso, e que as condições do país fazem dele um importante protagonista no contexto nao só nacional, mas também internacional, para a definição de novos paradigmas no contexto de sua gestão e desenvolvimento. Também devemos lembrar que Rio de Janeiro, nesse contexto, representa um caso muito especial, excepcional e de referencia e escala mundial por ter a primeira declaração da UNESCO baseada no conceito da paisagem cultural em área urbana de escala metropolitana (Cury, A construção do Sistema de Paisagens Nacionais no Rio de Janeiro e o sítio da paisagem cultural carioca patrimônio mundial, 2015). Mas agora também Pampulha (2016) e Paraty (2019) vieram a nos lembrar as importantes relacoes entre o lugar e a cultura, entre o vernáculo e o erudito, entre a natureza e a cultura do jeito que é percebida.
As novas estratégias de preservação e intervenção incluem planejar o entorno como projeto de desenvolvimento sustentável, a restauração de jardins, parques e espaços públicos de interesse histórico, artístico, cultural ou ambiental, integrar arquitetura, urbanismo e paisagem, pensar na restauração, reabilitação e reciclagem da paisagem, pensar além da proteção, integrar e programar propostas de intervenção na paisagem, e também ligar a paisagem cultural com a cidade e com o planejamento regional.
Optamos, na nossa abordagem, por um enfoque contemporâneo, ecológico e integrado, de forte influência dos paisagistas americanos (desde Olmsted) e franceses (Giles Clement), e outros (Battle em Espanha, p.e.), sob a influência pós-moderna, com visão ecológica, elementos arquitetônicos mais integrados, até bio-arquitetônicos, com elementos de infraestrutura verde, sem esquecer o papel das cores, das texturas e da arte, sempre presentes na paisagem. O objetivo é, no futuro, inserir as propostas dentro de um marco de políticas mais amplo: urbanísticas, ambientais, turísticas, do transporte, de controle de riscos ambientais, etc... que entendam e integrem as múltiplas dimensões da paisagem. Pactuar no território será o nosso grande desafio.
Analisar e reconhecer os ecossistemas, culturais e naturais, ajuda-nos a procurar a essência da paisagem como sínteses entre a arte e o homem. A narrativa dessas histórias marca o tempo, seja geológico, solar, ou acelerado de nossos dias. A encíclica do Papa Francisco confirma, de forma contundente, falando da “2. Ecologia cultural”, essa união entre ecologia e patrimônio cultural, artístico e/ou histórico (Franciscus, 2015). Por isso nossa proposta para integrar a paisagem na gestão do patrimônio cultural se estrutura em dois grandes grupos, natureza e cultura. Também estamos propondo quatro níveis de aproximação ao território, baseados na própria metodologia específica de análise e
de planejamento: unidades da paisagem, sistemas territoriais, morfotipos e áreas de interesse paisagistico.
Mas, quando falamos de ambiencia e do tratamento dos entornos sempre é um discurso baseado na ideia da sua percepção cultural. Os tombamentos de bens naturais, no marco do IPHAN, devem ter como finalidade a conservação paisagística, histórica, artística, etnográfica, etc... (Rabello, 2009 b). Igualmente a preservação do seu entorno não deve se limitar exclusivamente aos bens de natureza construída, mas também aqueles naturais, que influem na dita ambiência, mas sempre vinculados aos atributos, percepção e compreensão do bem protegido.
Para eles são preferenciais as ações de preservação de seus valores culturais, mas também a preservação dos ecossistemas como estratégia fundamental a serem pactuada com outros órgãos. Essa visão territorial e paisagística deve ser aplicada a través de instrumentos específicos (Planos de Manejo, Planos Urbanísticos, Planos Estratégicos ou outros), desde que tenham como finalidade a manutenção dos sistemas vitais e interdependentes ligados com a conservação do bem ou do conjunto (ecológicos, hidrológicos, urbanísticos...), e, por tanto, da paisagem.
As dimensões do patrimônio cultural.
Todo bem cultural deve ser avaliado segundo os conceitos de integridade e autenticidade. A integridade diz respeito à relação entre diferentes elementos de um mesmo sistema. Diz-se que um bem é íntegro se houver equilíbrio entre esses elementos, se houver uma relação equilibrada e harmoniosa.
Quanto à autenticidade, tem a ver com o grau de originalidade dos elementos. Sobretudo em um jardim, onde sucessivas alterações vão se processando ao longo de sua história, é necessário primeiro verificar quão íntegro ele se encontra e, em seguida, quão autêntico. Se no sistema constituído por esses elementos a relação entre os componentes é equilibrada, pode-se dizer que o bem é íntegro. Se os elementos têm um grau de originalidade bastante preservado, pode-se dizer que o bem é autêntico.
Essas são condições importantes para justificar a tomada de medidas para preservação de todo bem cultural inclusive os jardins históricos e constituem a premissa de qualquer trabalho, inclusive de tombamento e de outras formas de acautelamento legal (De Moura Delphim, Manual de intervenção em Jardins Históricos, 1999, pág. Cap. 5)
Os valores gerais identificados no Artigo 1o se configuram a partir de valores específicos, que, partindo dos valores materiais, básicos, de todo bem, são enriquecidos por quatro outras dimensões. A primeira delas seria a dimensão material.
Bem cultural – (1) Entendimento aplicável ao patrimônio cultural. (2) Contempla as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações cientificas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços des5nados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sí5os de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(IPHAN, 2018)
Os bens culturais compreendem diversas dimensões entre as quais a material, que reflexa as obras construídas a partir da aplicação das formas de criação, vivência e do fazer dos povos brasileiros, mas também a dimensão imaterial:
Entende-se por cultura todas as ações por meio das quais os povos expressam suas “formas de criar, fazer e viver” (Constituição Federal de 1988, art. 216). A cultura engloba tanto a linguagem com que as pessoas se comunicam, contam suas histórias, fazem seus poemas, quanto a forma como constroem suas casas, preparam seus alimentos, rezam, fazem festas. Enfim, suas crenças, suas visões de mundo, seus saberes e fazeres. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico de transmissão, de geração a geração, de práticas, sentidos e valores, que se criam e recriam (ou são criados e recriados) no presente, na busca de soluções para os pequenos e grandes problemas que cada sociedade ou indivíduo enfrentam ao longo da existência.
Os âmbitos analisados, os bens e seus entornos, constituem parte da memória coletiva do bairro, do lugar, da cidade ou do território, e são símbolos de uma utopia, um ideal, arquitetônico, urbano, rural ou paisagístico, e como tal representante de diversos momentos históricos relevantes, de tradições ou de formas de ocupação do território do Brasil.
Os bens estão constituídos por lugares, sítios ou espaços onde ocorreram personagens, construções, edificações e paisagens, além de ações, tradições ou crenças de interesse histórico, cultural, ambiental e/ou antropológico. Essa mistura, essa miscelânea, ou palimpsesto, sobreposição, de restos materiais e imateriais, de construções, lugares, e conjuntos, de referências, lendas, e tradições, compõem o complexo do patrimônio cultural.
Os bens, individualmente, como conjuntos, lugares, o simplesmente construções ou edificações, mas também como partes dos sistemas territoriais patrimoniais, constituem o patrimônio cultural, em que são guardados vestígios da cultura, da natureza, da paisagem e suas transformações ao longo dos tempos da cidade, criando verdadeiros palimpsestos.
O valor derivado da dimensão de centralidade cultural e natural, de escala local, urbana, regional ou até nacional, nos entornos dos bens analisados, se expressaría como:
a) Os bens analisados e seus entornos são peças fundamentais do sistema de espaços públicos e corredores culturais e verdes da cidade, símbolos da cultura carioca, espaços sacralizados pelo uso e pela sua condição de bens tombados, e pontos para uma acupuntura urbana.
b) Os bens e seus entornos são espaços centrais de referência e identidade urbanas, para o conjunto metropolitano da baixada fluminense como um todo, tanto em termos de recreação, como de encontro social e manifestação cultural, nas várias escalas temporais e espaciais do cotidiano, do bairro, da cidade, e da região.
c) Os bens e seus entornos permitem, e até que recomendam e exigem, enquanto espaços públicos de referência, o uso da ordenação e da gestão urbanística como instrumento para favorecer intervenções estruturantes de preservação e desenvolvimento urbano.
d) As urbanizações espontâneas de encostas, planícies e várzeas devem ser reabilitadas e requalificadas, procurando seu controle e frear sua expansão assim como sua integração social, econômica e ambiental, respeitando e valorando a paisagem, e garantindo os direitos básicos da sociedade.
Parágrafo único – A centralidade dos bens analisados é constituída tanto pelos bens declarados como pelos elementos urbanos de maior interesse situados em seu entorno e indicados em cada uma das fichas específicas que necessariamente devem ser considerados como formando conjuntos ou sistemas orientadores do Plano, no sentido de garantir a eficácia das ações propostas e potencializar a dimensão histórica, cultural, social, económica e ambiental dos mesmos.
Já o vazio... como o silêncio, também tem seus valores derivados da ausência dos elementos que poderiam conformar sua existência, sua forma, seu espírito, seu ser:
“O espaço vazio é talvez o elemento mais importante dos jardins e dos parques. É uma expressão do invisível, um centro em torno do qual tudo se ordena. É o equivalente do silêncio, que constitui, não se deve esquecer, um dos componentes da eloquência.
O vazio tem um valor espiritual: nossas catedrais são um invólucro de um espaço de dimensões perfeitas que suscitam a prece” (Duc d'Harcourt, 1993 (1º ed 1969))
Sem os grandes espaços abertos e desocupados, condições indispensáveis à percepção dos elementos naturais ou culturais, construídos pelo homem, se perdem, perde-se a noção de espaço. Para as culturas Orientais não há apenas quatro elementos: água, ar, terra e fogo; também á um quinto, o vazio, como diz Lao Tsé no livro Tao Te Ching, um dos livros que servem de pilar à antiga sabedoria chinesa:
“Trinta raios convergem no centro de uma roda, mas é o vazio central que permite a utilização de um carro. Modelando o barro, fazemos um jarro. No maciço das paredes recortamos portas e janelas: o vazio permite o uso de um quarto. É assim que se produz o ser útil, mas o não ser é que o torna eficaz”. (Tsé, 2008 (1ª ed. 500 a. C.), pág. 8)
O texto continua
“É melhor não tentar carregar um vaso que tentar carregá-lo cheio demais. Se a sala está cheia de ouro e jaspe, quem poderá cuida-la?... Não será o espaço entre o céu e a terra semelhante a um gigantesco fole ou flauta? Esvazia-se sem se exaurir. Inesgotável” (Tsé, 2008 (1ª ed. 500 a. C.), pág. 7)
Aferrando-nos ao vazio, protegemos nosso ser interior mantendo-o livre, e entendemos o equilíbrio das coisas, e que a paisagem é culta, porque não é só natural, que o vazio está rodeado de objetos, que o rural, do urbano, e a floresta, da cidade:
"Cuando las personas llegan a saber lo que es bello, aparece también la noción de lo feo. Cuando llegan a saber lo que es bueno, aparece también la noción de lo malo. De esta manera existencia e inexistencia, lo difícil y lo fácil, lo largo y lo corto, lo alto y lo bajo permiten conocer mutuamente lo uno y lo otro. Los diferentes sonidos, uniéndose, crean la armonía. De la misma manera, lo anterior y lo siguiente van uno tras otro armoniosamente." (Tsé, 2008 (1ª ed. 500 a. C.), pág. 7)
A perda de contexto que vem acontecendo no Rio de Janeiro, mas também em outras cidades de interesse histórico e paisagístico como Ouro Preto, Salvador de Bahia, ou Recife, parte da falta de reconhecimento do vazio como um valor a serem preservado. O controle de gabaritos e ocupações do solo também deve pensar e contribuir para o controle das áreas não construídas que em muitos casos configuram o verdadeiro espírito do lugar.
O patrimônio natural no IPHAN
§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (Presidência da República (Gustavo Capanema, Getulio Vargas), 1937).
Para Mario de Andrade a paisagem cultural representa as “obras conjuntas do homem e a natureza” e ilustra a evolução da sociedade humana e seus assentamentos ao longo do tempo, condicionados pelas limitações e/ou pelas oportunidades físicas que seu
entorno natural apresenta e pelas sucessivas forças sociais, econômicas e culturais, tanto externas como internas.
Mas já em 1937, como descreve Rafael Winter (Ribeiro, 2007), no debate da Lei de Patrimônio, surgindo entre os posicionamentos de Mario de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade, apareceu, na legislação cultural brasileira, o conceito de patrimônio natural. O projeto reconhece o patrimônio cultural como produto humanoiii, vinculado a arteiv, mas a lei que o reconhece também como indústria humana, ou “feiçãov notável” dotada pela naturezavi . Por tanto, a legislação federal permite o tombamento de áreas naturais por seu valor excepcional, ou também de uma paisagem de excepcional valor dotada pela natureza. Para Mario de Andrade
“Paisagens: determinados lugares da natureza, cuja expansão florística, hidrográfica ou qualquer outra, foi determinada definitivamente pela indústria humana dos Brasis, como cidades lacustres, canais, aldeamentos, caminhos, grutas trabalhadas etc.” (Andrade, 1980)
Os valores que a o patrimônio natural representa para sua conservação como recurso de interesse público, pode por tanto ser derivado por seu papel em fatos memoráveis da história do Brasil (desde a própria descoberta até o grito de Ipiranga), quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico (donde podemos falar da arqueologia da paisagem), ou bibliográfico (herbários, classificação de tipos de águas) ou artístico (vistas das cachoeiras, das baias, dos rios, dos pintores paisagistas, ou dos fotógrafos), mas também, como bens que representam uma “feição notável”, produzida pela natureza ou pela “indústria humana”.
Como tal bem natural de interesse cultural manifesta-se na aparência exterior; na sua forma, caráter, aspecto ou comportamento ou feitio1 de um rio, uma cachoeira, um espelho d’água, uma lagoa, de suas bordas, ou elementos, infraestruturas ou construções de apoio, ou como a maneira de fazer algo, de agir, como configuração, uma espécie de jeito de se comportar e influenciar no entorno, na paisagem. Por tanto, além das caraterísticas ambientais, naturais, ou paisagísticas (as vezes ocultas nos processos ecológicos), também pelas caraterísticas perceptivas, pela vista, o por outros sentidos tais como o ouvido (sons), o tacto (texturas), o cheiro (aromas) ou sabor (das próprias águas e de seus produtos derivados) que nascem do desejo do homem pela beleza, pela supervivência, ou pela convivência com outras espécies, como reflete Carlos Fernando de Moura Delphim no seu fantástico texto donde convergem a cidade e o desejo, na ideia sintética da paisagem (De Moura Delphim, 1996).
Um patrimônio natural “construído pela indústria humana” como nos faz lembrar Carlos Fernando de Moura Delphim:
“Todas as paisagens, desde que transformadas, representadas ou simplesmente pela forma como são percebidas pelo homem, tem significado cultural” (De Moura Delphim, Estudo sobre a Paisagem Cultural Brasileira, 2006)
1 Forma, configuração. Disposição de espírito. Execução de um trabalho por um artista ou artífice, neste caso a natureza. Caráter; jeito, comportamento.
Depois serão elaboradas umas Diretrizes para a análise e a classificação do patrimônio natural (XAVIER; DELPHIM, 1988) e um relatório – proposta para a definição, análise de impactos, classificação, e recomendações para a gestão da paisagem cultural brasileira, por Carlos Fernando de Moura Delphim. Nestes documentos, é proposta uma classificação do patrimônio natural. O primeiro documento propõe a diferenciação entre sítios naturais e sítios alterados pelo homem. O documento apresenta uma caracterização do patrimônio natural, propondo uma divisão, dos sítios naturais, nas seguintes categorias: 1. 2. 3.
4.
5. Sítios que representem feições típicas da natureza brasileira Sítios naturais de grandes singularidades Paisagens excepcionais pela beleza cênica e os pontos de vista de onde se pode fruir o espetáculo desse panorama Sítios importantes como habitat de espécies de flora e fauna ameaçadas ou dos quais eles dependam indiretamente Sítios de interesse científicos
Sítios alterados pelo homem, nestas outras: 1. 2. 3. 4. Interesse arqueológico Patrimônio natural urbano Espaços naturais circundantes ou arredores de assentamentos urbanos Sítios de interesse histórico, social, literário, artístico, religioso, legendário ou afetivo
Ainda sobre o patrimônio natural na constituição de 1988, há o estudo realizado por Carlos Fernando de Moura DELPHIM (2004). Nele, é apontado como a preocupação com o patrimônio natural e cultural do país está expressa em dois capítulos distintos da constituição. Desse modo, a conservação da natureza sob o ponto de vista biológico está impressa no capítulo sobre Meio Ambiente, diferente do capítulo sobre a preservação cultural. Nesse sentido, aos órgãos ambientais é dada
[...] a responsabilidade legal e administrativa pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela preservação e restauração de processos ecológicos essenciais, pela biodiversidade e pela integridade do patrimônio genético, bem como por unidades de conservação como parques nacionais e reservas biológicas. (De Moura Delphim, Estudo sobre o Patrimônio Natural Brasileiro dentro do IPHAN, 2004)
Por tanto Rafael Winter responde:
Considerando a categoria de paisagem cultural da forma como tem sido trabalhada junto às instituições internacionais deveríamos ressaltar características interativas entre o cultural e o natural e/ou entre o material e o imaterial, abordando o sítio inteiro de uma maneira holística, até hoje não há bens inscritos no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico que tenham tido seu valor atribuído por representarem aspectos mais amplos dessa integração. De um modo geral, historicamente, a paisagem tem sido tratada muito mais a partir da ideia de panorama e vinculada a outros bens culturais, a partir dos quais é atribuído valor a ela (Ribeiro, 2007).
Já em 2006 o relatório de Carlos Fernando vai ser orientar para a Paisagem Cultural Brasileira, no marco da produção da Chancela da Paisagem Cultural. Nesse momento, trata a paisagem cultural como um elemento, ou, mas bem, categoria, que depende da experiencia artística e do processo cultural de apropriação da paisagem, por tanto a construção da paisagem cultural exige uma criação cultural mediada pelos artistas.
Na realidade podemos perceber, no discurso e nas reflexões destes autores que temos duas conceições da paisagem. A primeira, seletiva, escolhe aqueles de interesse histórico, cultural, artístico, etnográfico ou estético, são as paisagens culturais. Por outro lado temos o patrimônio cultural, que constroem paisagens genéricas, porque tudo o que nos envolve é paisagem (Hoyuela Jayo, A paisagem como instrumento para um planejamento sustentável: uma visão dialética entre Europa e o Brasil, 2016). Diferenciamos assim a paisagem como categoria cultural, da paisagem como método de análise, ordenamento e gestão de qualquer espaço, rural ou urbano, cultural ou natural, ou combinações de ambas, que nos possam acontecer no decorrer da ordenação de um território.
Esses elementos do patrimônio natural atraem a dimensão natural e/ou ecológica para o olhar do responsável da avaliação do patrimônio cultural, mesmo sendo que:
“... o patrimônio natural sempre esteve na pauta de debates e de ação do Iphan. O tema vinha à tona quando se discutia a proteção dos monumentos naturais e paisagísticos; a ambiência do patrimônio arquitetônico; o entorno dos bens tombados; os que deveriam ser inscritos individualmente no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; ou ainda como pano de fundo ao se tratar dos conjuntos arquitetônicos, urbanísticos e rurais inscritos também nos outros Livros, como o Histórico ou das Belas Artes; na regulamentação da publicidade em sítios protegidos; na inserção de novas obras de arquitetura nos conjuntos acautelados; na reconstituição ou na recomposição de edifícios e obras integrantes das cidades históricas; na elaboração de normas e procedimentos para regulamentação de intervenções etc.” (De Medeiros Mongelli, 2011, pág. 19)
A lei 25, no Art. 1º, em seu parágrafo segundo, equipara os bens de natureza material aos monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importam conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana. Estabelece que esses bens devam ser inscritos no Livro do Tombo (categoria) Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. As outras categorias por Livros de Tombo são: o Histórico, das Belas Artes e das Artes Aplicadas. Nessa última nenhum bem foi tombado no Rio de Janeiro.
Os bens e seus entornos são peças fundamentais no conjunto dos espaços e corredores ecológicos e verdes, mas também são espaços de conservação dentro do ambiente urbano, suporte de recursos naturais e hábitats variados, fundamentais para a biodiversidade e para a conservação das paisagens e dos ecossistemas. Também apresentam um grande potencial para a pesquisa biológica, botânica, ecológica, paisagística, e para a formação e educação, cultural e ambiental, dos cidadãos. Adequadamente preservados devem e podem promover uma melhor qualidade de vida
para os visitantes e para os moradores, relacionando natureza e cultura, rural ou urbana, tanto em termos práticos quanto simbólicos e representativos.
Patrimônio Cultural desde uma perspectiva territorial e de desenvolvimento sustentável.
Atualmente novas dificuldades surgem quanto a preservação dos bens culturais no Brasil, oriundas das complexas ameaças ao meio ambiente e desafiando a SPHAN / Promemoria, ao exigir-lhe visão muito mais abrangente que a tradicionalmente adotada para a tutela do patrimônio ... tendo de proceder a novas pesquisas ou consultar a outros especialistas da área multidisciplinar que envolve o problema ecológico, já que a degradação do meio ambiente, da mesma forma que ameaça a vida ou a qualidade de vida, também dificulta ou coloca em perigo a conservação ou preservação dos bens culturais... Nossa forma de atuação tornou-se defasada e insuficiente (De Moura Delphim, Estudo sobre o Patrimônio Natural Brasileiro dentro do IPHAN, 2004)
As premissas da Política de Patrimônio Cultural Material (IPHAN, 2018), aplicáveis no caso carioca, e na nossa proposta, independentemente do tipo de ação, devem inspirar nossa ação. Por isso deveremos destacar uma atitude proativa e propositiva que envolve no futuro atores e ações associadas mediante mecanismos proativo de pactuacão e coordenação das políticas públicas. Também devemos destacar a indissociabilidade entre as dimensões materiais e imateriais, assim como dos documentos que reconhecem e explicam o dito patrimônio. Para esse fim devermos partir da leitura do território e da paisagem, desde uma compreensão das dinâmicas e das políticas econômicas, ambientais, sociais e culturais que convergem nesses espaços e que interatuam, ou interatuarão com os bens.
A gestão do patrimônio cultural deve promover a articulação institucional com diferentes níveis de governo e sociedade civil, mediante os instrumentos setoriais (turísticos, de transporte, energia...), ambientais (águas, lixo...), urbanísticos (zoneamento e gestão), estratégicos (metropolitanos, inovadores...), ou de outra índole existentes ou futuros. Na área de participação devemos estimular o fortalecimento de grupos sociais para preservação do seu próprio patrimônio cultural material, criando foros de consulta e apoio a decisão junto a sociedade civil, moradores ou estudiosos.
As ações e atividades devem buscar articular com os entes federados e demais órgãos e entidades componentes do Estado Brasileiro, na construção de instrumentos de compartilhamento e de delimitação de atribuições relativas à preservação dos bens protegidos.
Espanha tenta manter uma certa coerência na definição das políticas nacionais de urbanismo, ordenamento do território, da paisagem, do patrimônio cultural, apesar de ser mais federal que muitos estados federais (e não tão autonômico como falamos). Nesse contexto, são elaborados pelo Instituto do Patrimônio Cultural, Ministério de Educação, Cultura e Esporte, os Plano Nacionais do Patrimônio Cultural.
Entre eles destaca o de Paisagem Cultural, que envolve as paisagens de especial interesse cultural, a maioria deles envolvendo patrimônio cultural e/ou patrimônio mundial já declarado sob a figura de conjunto histórico, com exemplos relevantes como Cuenca, os moinhos de Castela La Mancha, ou Navapalos em Soria, El Paular em Madrid,
o vinhedo, a Serra de Cartagena – A União (Murcia). Outros importantes planos seriam os relativos as catedrais, conventos e abadias, arquitetura defensiva, e outros sistemas territoriais relevantes.