Testes genéticos: fazer ou não? A mastectomia preventiva de Angelina Jolie veio levantar a polémica e suscitar dúvidas. O que são os testes genéticos, que doenças podem prever e quando é mesmo indicado fazê-los? Os resultados da nossa análise já a seguir. Bárbara Bettencourt 06 Setembro 2013, 18:48
Desde que os cientistas concluíram a sequenciação do genoma humano, em 2003, a ciência não tem parado de descobrir novas formas de usar a nossa informação genética. Os testes pessoais de genoma para prever e diagnosticar doenças são uma das aplicações que mais interesse suscita, por razões óbvias. Em 2008, a ‘Time’ considerou-os a invenção do ano e em maio deste ano a atriz Angelina Jolie fez as capas de jornais e revistas ao anunciar a drástica decisão de optar por uma dupla mastectomia preventiva depois de saber, por um teste genético, que tinha uma mutação num gene que lhe dava elevada probabilidade de vir a ter cancro da mama. UMA HERANÇA PESSOAL Herdamos dos nossos pais um código genético, o genoma, com toda a nossa informação genética. É esta informação que, juntamente com a influência de fatores ambientais, como o estilo de vida, explica as diferenças entre uma pessoa e outra, tanto na aparência como na suscetibilidade a certas doenças. Mais precisamente, o genoma é composto por 23 pares de cromossomas e cada um de nós herda um conjunto do pai e outro da mãe. Os cromossomas contêm cada um uma molécula de ADN que armazena a informação genética em genes. Cada gene tem uma ou mais funções no organismo e se estiverem danificados já não conseguem realizar bem essa função.
Quando isto acontece, falamos em doenças que estão ‘escritas’ no genoma, as chamadas doenças hereditárias. “A maioria das doenças, contudo, não é causada diretamente pela mutação de um gene, resulta antes de uma suscetibilidade genética – características genéticas específicas – conjugada com fatores ambientais”, esclarece Jorge Sequeiros, médico geneticista e diretor do Centro de Genética Preditiva e Preventiva da Universidade do Porto (www.testegenetico.com). QUE TIPOS EXISTEM? • Testes de diagnóstico. São os que se fazem para confirmar ou excluir uma doença de base genética numa pessoa doente. Os resultados podem ajudar a perceber a variante da doença, para melhor tratar ou lidar com ela no caso de não ter cura. • Testes preditivos. São feitos em pessoas saudáveis. Por exemplo, no caso em que a um familiar foi diagnosticada uma doença genética hereditária e queremos saber se o irmão, o pai ou o filho têm a mesma mutação. Não se fazem estes testes para qualquer doença, apenas no caso das chamadas monogénicas ou hereditárias, que são causadas diretamente pela mutação de um gene, e em que a probabilidade de se vir a contrair a doença, se houver mutação, é muito elevada. “Enquadram-se aqui alguns tipos de cancro, como o cancro da mama e ovários causados pela mutação do gene BRCA 1 e 2, e outras doenças, como a de Huntington, uma doença degenerativa do cérebro, ou a doença de Machado-Joseph, que afeta a coordenação muscular”, explica Jorge Sequeiros. “Também se podem fazer testes preditivos para aferir a suscetibilidade a outras doenças, só que nesses casos o valor dos testes é muito baixo porque não há causalidade direta entre os genes e a doença: para a maioria delas há dezenas de variantes genéticas associadas e de fatores ambientais envolvidos.” • Testes de portador. Algumas doenças só se manifestam quando herdamos uma cópia do mesmo gene defeituoso do pai e da mãe. Acontece na doença de Wilson, no albinismo e na fibrose quística. Se dois portadores tiverem um filho, este tem 25% de probabilidade de vir a ter a doença. Se isto acontecer, os outros filhos e os irmãos do pai e da mãe também devem ser testados. Se tiverem, e se quiserem ter filhos, os seus maridos e mulheres terão de fazer o teste. As
doenças que precisam de duas cópias de um gene mutado chamam-se recessivas. Aquelas em que basta um chamam-se dominantes. • Testes farmacogenéticos. São testes de sensibilidade de resposta a um medicamento. Fazem-se em caso de cancro, por exemplo, já que a metabolização dos medicamentos pode ser diferente de pessoa para pessoa. • Testes de rastreio. São feitos a uma camada da população, como o teste do pezinho que se faz aos recém-nascidos. • Testes de diagnóstico pré-implantação. Fazem-se aos embriões nas fertilizações in vitro. Em 2009, médicos britânicos anunciaram o nascimento de uma menina nascida desta forma a quem foi feito o teste de despiste da mutação do gene BRCA 1 na fase de embrião, uma vez que a mutação estava presente na família da mãe. QUE DOENÇAS PODEM DIAGNOSTICAR OU PREVER? É possível pesquisar alterações genéticas associadas a mais de 1200 patologias. • Doenças cromossómicas. A síndrome de Down, que ocorre quando existe uma cópia a mais do cromossoma 21, é o exemplo mais conhecido. Costuma despistar-se através de um teste genético feito durante a gravidez. • Doenças monogénicas ou hereditárias. Resultam da alteração num único gene. Exemplos são a síndrome de Li-Fraumeni, que dá origem a vários tumores na mesma pessoa, a síndrome de Lynch, um tipo de cancro colo-retal hereditário, a doença neurodegenerativa de Huntington, a fibrose quística, que afeta os pulmões e o aparelho digestivo, e alguns cancros, como o da mama e ovários, que a atriz Angelina Jolie quis prever, causado pela mutação do gene BRCA 1 ou 2. Muitas doenças comuns têm algumas variantes monogénicas, como é o caso do Parkinson e do Alzheimer. “De forma genérica, desconfiamos de variante hereditária se há muitos casos na família, sobretudo se forem na forma mais grave e tiverem aparecido em idades mais jovens do que o habitual”, explica Jorge Sequeiros.
• Doenças genéticas complexas. São doenças multifatoriais, causadas por vários fatores genéticos e ambientais. Incluem-se aqui o grosso das doenças humanas. Diabetes tipo 2, a maioria dos cancros, doença de Parkinson, Alzheimer, esquizofrenia, artrite reumatoide, asma e doenças cardíacas são exemplos. É provável termos familiares com estas doenças sem que isso implique indicação para fazer um teste genético. “Têm tantas variantes genéticas e fatores de risco que o facto de podermos ter uma suscetibilidade genética diz muito pouco sobre a probabilidade de podermos ter a doença.” QUANDO SE DEVE FAZER UM TESTE GENÉTICO? • Quando se tem sintomas de uma doença que pode ter uma causa genética e se pretende um diagnóstico que o confirme. • Quando há uma doença genética na família próxima ou um historial que faça suspeitar disso e se pretende saber se existe risco de a vir desenvolver ou de a passar aos filhos. Haver cancro em dois ou mais familiares sobretudo de uma geração à seguinte – pais para filhos, por exemplo – é um possível indício, assim como os familiares terem tido uma idade de diagnóstico prematura, o cancro ocorrer em órgãos bilaterais, como a mama, ou haver vários cancros. QUAL É O PROCEDIMENTO? Segundo a lei em vigor, de 2005, os testes genéticos só podem ser feitos com prescrição médica. Os testes de diagnóstico – feitos a pessoas doentes – são geralmente pedidos por médicos da especialidade nos hospitais. Se forem pedidos num hospital público, são comparticipados pelo Sistema Nacional de Saúde. Nos testes feitos em pessoas saudáveis recomenda-se, além da prescrição médica por um especialista em genética, o aconselhamento genético antes e depois. Existem, nos hospitais públicos e privados, consultas de avaliação de risco e prevenção de doenças genéticas às quais se pode ir diretamente ou por referência do médico de família. Jorge Sequeiros participou na comissão que elaborou a proposta de regulamentação da lei, que continua por aprovar. Apertar os critérios de prescrição médica é um dos objetivos da regulamentação em apreciação no Governo; tornar obrigatório o aconselhamento genético
(agora é recomendado) é outro. “Nem sempre é fácil lidar com informações destas, sobretudo se houver problemas psicológicos ou risco suicida”, alerta. “É importante haver uma avaliação psicológica e acompanhamento de uma equipa multidisciplinar, com psicólogos.” Outro problema sensível é o da proteção de dados, que são confidenciais, para evitar que as informações possam vir a ser usadas por empresas, como seguradoras, para fazer discriminação genética. OS TESTES GENÉTICOS TÊM LIMITAÇÕES • Na grande maioria das doenças os genes influenciam apenas uma pequena parte o risco de as desenvolver, e mesmo que um teste revele predisposição alta para uma doença hereditária, é impossível saber se uma pessoa a vai desenvolver em concreto e com que gravidade. • Por outro lado, ter um resultado negativo num teste para uma doença monogénica não é garantia de que não se possa vir a desenvolver a mesma doença por outra via. • Mesmo com um diagnóstico confirmado por um teste genético, pode não haver tratamento para a doença. Doenças como a Huntington e a Machado-Joseph não têm cura nem forma de prevenção possível. • Nem sempre é possível encontrar a explicação genética para uma doença, seja porque o teste ainda não foi desenvolvido ou por não estar ainda disponível para aplicação clínica. CUIDADO COM OS TESTES À VENDA NA NET! Em Março, o Infarmed alertou para o perigo dos testes genéticos comprados pela internet, recomendando que sejam feitos apenas sob prescrição médica. Há dezenas de empresas na web a oferecer testes em pacote por preços que vão dos 400 aos cinco mil euros. “Misturam testes a doenças monogénicas com testes de suscetibilidade com valor preditivo quase nulo. As pessoas não sabem interpretar e corremos o risco de acontecer como no Reino Unido, em que os serviços de saúde se viram entupidos com os pedidos de interpretação destes testes”, diz Jorge Sequeiros, esclarecendo que com a lei atual estes testes já são proibidos, embora a fiscalização seja virtualmente impossível. Também são condenados por instituições como o Conselho Nacional de Ética e o Conselho da Europa.