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Normalidade - João Paulo Feijoo
from Edição 135
by Apat
Normalidade
Nos Estados Unidos, a “Great Resignation” não mostra sinais de abrandar, com um novo recorde de 4.5 milhões de demissões em março deste ano, e uma sondagem da Gallup a revelar que 55% da força de trabalho está ativamente à procura de novas oportunidades.
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Esta tendência começa a propagar-se a outras economias desenvolvidas: na Alemanha, 27% dos trabalhadores admitem claramente que não estarão com o mesmo empregador daqui a 3 anos, contra 14% em 2018.
A utilização dos metros de Nova Iorque e de Londres fica-se por uns meros 60 a 70 por cento dos seus níveis pré-pandémicos.
A quebra mais acentuada ocorre nos dias úteis às horas de ponta, e a mais ligeira durante o fim de semana. Embora com menores amplitudes, o mesmo fenómeno é observável nos metros de outras grandes cidades, como Paris e Hong Kong.
Em muitas outras cidades, os subúrbios transformam-se rapidamente à medida que a oferta cultural e os equipamentos de lazer migram dos centros urbanos para a periferia.
Os tradicionais dormitórios povoam-se de restaurantes, de comércio de proximidade, de parques e jardins, de espaços de coworking.
O que têm estes três fenómenos em comum? Todos eles são consequência das transformações na natureza do trabalho e nas modalidades da sua prestação, em curso há mais de uma década e que a Covid-19 veio acentuar e consolidar.
A sua face mais visível é a preferência crescente dos trabalhadores pelo teletrabalho – ou mais precisamente pelo trabalho “híbrido” – sistematicamente confirmada por uma miríade de estudos conduzidos nos últimos dois anos.
Mas não a única: outras preferências emergentes incluem a importância atribuída à flexibilidade de horários, ao equilíbrio entre trabalho e vida familiar, ao bem-estar mental e ao interesse da própria atividade profissional como instrumento de valorização e de realização pessoal.
Estas transformações têm como causa profunda o crescente envolvimento do intelecto na atividade profissional – a “migração do trabalho das mãos para o cérebro”, na expressão que costumo usar.
Longe vai o tempo em que o “barão do aço” Andrew Carnegie gracejava que os trabalhadores podiam vir sem cabeça, porque só lhes queria os braços. Os “trabalhadores do conhecimento” representam um desafio sem precedentes: uma vez incentivados a pensar, não há forma de lhes cortar o pensamento.
Mais qualificados, aspiram naturalmente a um maior controlo sobre a sua própria atividade. Mais cultos, mais sofisticados, mais hedonistas, os seus horizontes não se esgotam no horário das 9 às 5 e querem ter tempo para viver para além da profissão.
Esta classe de trabalhadores, hoje maioritária no contexto da terciarização da economia e sobretudo do crescimento dos chamados “setores criativos”, tem uma maior predisposição para um regime de trabalho híbrido que lhe permite conjugar o melhor de dois mundos: a autonomia e a flexibilidade proporcionadas pelo trabalho remoto e a socialização experimentada nas passagens pelo escritório.
Ora, foi a terciarização da economia que esteve na origem do transporte massificado e radial entre os dormitórios na periferia e os escritórios concentrados nos centros urbanos (o setor secundário tinha sido entretanto remetido para “cinturas industriais” com os seus próprios bairros operários).
É este colossal movimento pendular que hoje vemos em declínio, iniciado há mais de duas décadas pela migração de muitas empresas para parques de escritórios periféricos, à qual se junta hoje a redução da mobilidade provocada pelo teletrabalho.
Pelas mesmas razões, as deslocações assumem um padrão em rede, em vez de predominantemente radial; encurtam-se, tornam-se mais locais, e com isso transferem-se para meios alternativos como a bicicleta.
Por sua vez, a presença mais duradoura nos locais de habitação atrai atividades económicas e de lazer.
Quando os empregadores não compreendem estas mudanças, quando encaram os dois últimos anos como uma anomalia temporária e querem regressar rapidamente a uma pretensa “normalidade”, quando já antes estavam cegos às tendências que entretanto vinham a desenhar-se, os “trabalhadores do conhecimento” revoltam-se.
O mercado está do lado deles: pela primeira vez em muitas décadas, a necessidade de qualificações cada vez mais exigentes e o declínio demográfico fizeram a procura superar a oferta, com milhões de postos de trabalho por preencher à escala global (12 milhões só nos Estados Unidos).
Perante isto, a revolta assume a expressão mais simples e eficiente: a demissão.
Aquela ilusão do “regresso à normalidade” está patente em dois estudos recentes.
O primeiro revela que a percentagem de trabalhadores americanos convictos de que a sua empresa se preocupa com o seu bem-estar (wellbeing) saltou de 29% em 2019 para um máximo de 49% (maio de 2020); a partir daí começou a declinar e está agora (março de 2022) em 24% – menos do que antes da pandemia! O outro indica que 52% das trabalhadoras britânicas já pensaram em demitir-se, ou demitiram-se mesmo, devido à falta de flexibilidade (horários de entrada e saída, possibilidade de mais licenças, semana de 4 dias…).
Surpresa: 78% das empresas consideram ter políticas de flexibilidade que permitem conciliar o trabalho com os compromissos pessoais, e 73% acreditam que os trabalhadores estão satisfeitos com essas políticas.
Por cá, gostamos de pensar que estes fenómenos nos passam ao lado. Passarão mesmo? Qual é a nossa normalidade?
João Paulo Feijoo Professor, consultor, investigador e conferencista nas áreas de Capital Humano, Liderança e Qualidade