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Crónicas de um comboio escalfado XI - Jorge Serafim

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Parabéns

Parabéns

Crónica de um comboio escalfado XI

Luisinha Perfumada apaixonou-se por um rapaz de Lagos. O pai ferroviário, com a distinta especialidade de agulheiro, não vaticinava um futuro promissor para as orientações amorosas de sua filha.

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Dizia regularmente a sua esposa: É perfumada, mas carece de essências fundamentalmente essenciais para ter um rumo na vida.

A mãe devolvia: Embeiçou-se pelo fim da linha! Lagos tão longe que era… E eles que viviam na estação de Santa Vitória, a uma dúzia de quilómetros da capital do Alentejo de Baixo.

E logo por um Algarvio com um sotaque tão estranho. Foi coisa de farda. Pois, o ladrão de donzelas estava a cumprir serviço militar no Regimento de Infantaria em Beja.

Talvez fossem os seis meses de recruta, rodeado de mato, sobreiros, oliveiras e de toda a qualidade de bichos rastejantes que lhe amaciaram a rebeldia impregnada no espírito e na razão.

Seis meses comendo quase nada e outras porcarias, ensinaram-lhe a valorizar de uma vez por todas as razões que o coração frequenta.

Seis meses, sofrendo na mente, na pele e nos ossos toda a variedade de exercícios aplicados pela doutrina militar, levaram-no a concluir que, ou endurecia a alma para o resto da vida, ou então entregaria de uma vez por todas as suas emoções à arte de amar a vida.

E foi naquele dia que a viu, na estação de Santa Vitória, numa das vezes que teve licença para ir a casa de fim de semana. Mudaria de composição na estação da Funcheira, e posteriormente em Tunes, para finalmente chegar à estação terminal, Lagos! Para os pais, uma desgraça nunca vem só. Estava o homem a manejar as agulhas, a modos de encarrilar o comboio no rumo certo, quando, derivado ao excesso de calor, estas dilataram, não permitindo assim que o mecanismo que proporciona o desvio do comboio para a via certa funcionasse no tempo previsto.

A paragem do comboio foi demorada, o que fez com que os passageiros viessem arejar os sovacos, as virilhas e outros confins do corpo. Olharam-se!

A mãe olhou-os! O pai suspendeu as suas funções profissionais, quando se apercebeu que o olhar dela já estava fechado a cadeado no olhar dele.

Ele com seis meses de recruta, acrescidos de mais dois anos de serviço militar regular, já há muito tempo que não via qualquer exemplar de espécie feminina.

A carência já era tão demasiada que nem reparou que a rapariga, Luisinha Perfumada, por cima do beiço superior possuía um buço maior que o dele.

Ele apenas pensava: Não beija, faz faísca! Não reparou que a moça era vesga no olhar.

Um olho olhava para direita, o outro disparava para a esquerda.

Acreditou que, assim, sempre que o beijasse no meio de uma rua, como era zarolha acentuada, poderia controlar o trânsito nos dois sentidos. Logo, atropelados nunca seriam os seus corações pelas agruras desta vida.

O amor é cego e não vê, concluía o pai. O amor é parvo e não se faz esperto, meditava a mãe. S

ei do que falo! Ele disse-lhe: Se vieres comigo, de Portimão até Lagos dou-te uma coisa que nunca viste! Ela enrubesceu, com a voz trémula ainda arranjou forças para lhe perguntar: O quê? O mar! Se vieres comigo nadaremos lado a lado com os peixes.

E quando formos à praia, sentados na areia, sonharemos ao final da tarde com o horizonte infinito, enquanto o vento sopra de mansinho na nossa alma.

Ouviremos as gaivotas e partiremos com os barcos para todos os destinos dos amantes.

Ela, que nunca até então soubera o que seria a poesia nem para que servia, ficou conquistada por tanta competência linguística.

Ele jurou que a poesia lhe alinhou a vesguice, dado que a moça, coberta em tantas palavras perfumadas, sem dar por isso, endireitou a sua visão para o olhar avassalador do poeta soldado.

Ele deu-lhe a mão, ela cedeu.

Sentiu as suas mãos, rigorosas de recruta.

Ele sentiu as mãos ásperas de moça do campo.

Uma na outra faziam atrito e acendiam labaredas de desejo um no outro.

Quando a coisa se desencravou e o comboio partiu, o pai e a mãe, contemplavam-se, sem dizer uma única palavra.

Ouvia-se o ruído do comboio a afastar-se e o silêncio a chegar como uma despedida.

O pai apenas comentou: Ele mora no fim da linha! A progenitora suspirou longamente e retorquiu: Mas vive no início do mar!

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