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Crónicas de um comboio escalfado VIII - Jorge Serafim

Crónica de um comboio escalfado VIII

Aqui estamos, sem saber o que fazer… A olhar uns para os outros com acenos de reprovação, meneando a cabeça de um lado para o outro. O futuro é uma expectativa adiada, lê-se nos olhos da cada um dos passageiros. Mais uma vez…. É sempre isto... Uma resignação perturbadora atravessa o espírito de cada um, como se a palavra esperança não fizesse parte do vocabulário e das pretensões de quem não vê nem sente a mudança a acontecer. A estação de CasaBranca é uma incógnita. Um apeadeiro irresolúvel. Era sexta-feira, o comboio vinha cheio de gente. Estudantes que vinham de fim-de-semana a casa, gente que trabalha em Lisboa, outros que aproveitavam para matar saudades…. Enfim, era o princípio do fim-de-semana, mas em Casa Branca já deveríamos estar habituados que transbordar do Intercidades para a automotora não é uma possibilidade, é uma sorte do caraças! E como há muitos anos o bar da estação se encontra encerrado, não há forma de enganar o tempo. Verdade seja dita que um copinho ou dois de tinto, num bar de uma estação, acompanhado de um rissol de pescada ou de um pastel de bacalhau é um aperitivo que descongestiona o azedume criado por qualquer contratempo. Desta vez, chegados à dita estação de CasaBranca, até havia automotora à nossa espera, mas maquinista nem vê-lo. Ao que parece, o comboio de marcha que viria de Beja e que serviria de boleia ao dito condutor avariou, o que impossibilitou o zeloso cumprimento dos horários estipulados. Informaram-nos que o dito viria de táxi até à estação de “coisa nenhuma” para que todos os passageiros conseguissem chegar aos seus destinos. E, claro, mais uma vez, lamentamos o incómodo causado! E agora resta-nos inventar ou aldrabar conversa, desejando que o taxista venha depressa, mas sem que lhe aconteça algum percalço. A primeira pergunta que fazemos uns aos outros é: “Quanto tempo é que a pôrra de um táxi leva de Beja até aqui?” Depende da velocidade, dizem uns. Mas outros contrapõem, acima de tudo depende da qualidade das estradas. E a conversa que começou impávida e serena, começa a subir de tom quando os argumentos rodoviários de uns e de outros não conseguem determinar um consenso. - Estou-lhe a dizer que uma estrada por mais ruim que seja, se a velocidade for maior, mais depressa se chegará ao destino. - Não senhora, vê-se mesmo que sua excelência não percebe nada do assunto e deve ter tirado a carta de condução nos brindes da papa Maizena! Se as estradas estiverem em condições, chega-se mais depressa ao destino. Pois assim permitem circular a velocidades médias mais constantes! Física, meu caro! Isto é a mais elementar Física! - Olhe, você e a Física se fossem apanhar azeitonas galegas para um sítio que eu cá sei…. Estou-lhe a dizer, a velocidade depende do conhecimento que o condutor tem do terreno. Se assim fosse não havia Rallies! Fiz-me entender? - Pois sua excelência é tão carente de inteligência como estas automotoras são carentes de modernidade. Estamos a falar de um taxista, não de uma prova de autocross. Para arrematar tão calorosa discussão, alguém acrescentou com sapiência: - Pois é disso mesmo que se trata. Se tudo estivesse em condições já não estaríamos a falar de Rallies e de velocidades médias. Afinal, estamos a falar de comboios que amuam constantemente por continuar a esforçarem-se em viver num tempo que já não lhes pertence. Faço-me entender? Está frio, a estação não tem abrigo. Para parar de bater o dente, andam todos de um lado para o outro. Telefona-se para casa informando da situação. Jantares adiados, encontros que se tornaram desencontros, ansiedades e aborrecimentos, cansaço e desânimo. Mas esta coisa dos automóveis e respetivos automobilistas é uma ciência inexata porque assenta mais em pressupostos pessoais do que em análises cientificamente lúcidas. Depois de um silêncio demorado, voltou-se à carga: - E, além do mais, oiça o que lhe digo, depende também do conhecimento que o condutor tem da sua própria viatura. Porque a relação do homem com a sua máquina constrói-se diariamente, até que a viatura se torne a extensão do corpo do homem. - Fie-se na virgem e não corra! Repito-lhe, se a rede viária não estiver em condições, vai encontrar a extensão do corpo enfiada num chaparro. Entretanto, uma hora e depois do previsto, chegou, de táxi, o maquinista. Trazia estampado no rosto o constrangimento de quem há muito lhe escassearam os argumentos e as explicações plausíveis para mais um contratempo surreal. Entrou na composição, pelos altifalantes anunciaram a partida, os passageiros entraram, ocuparam os seus lugares, até à estação terminal seriam mais cinquenta minutos. Ainda se ouviu alguém perguntar: - Mas onde raio fica CasaBranca? - Pergunte a um taxista, foi a resposta possível.

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Jorge Serafim Humorista

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