REAPCBH V5 2018

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ISSN 2357-8513

N. 5 | DEZEMBRO DE 2O18

DOSSIÊ Gênero e Resistência em Belo Horizonte


REAPCBH [recurso eletrônico] /Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, R464

Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte / v. 5, n. 5 (2018). – Belo Horizonte, MG: PBH, Fundação Municipal de Cultura, 2018. 196 p. Anual Modo de acesso: https://prefeitura.pbh.gov.br/fundacao-municipalde-cultura/arquivo-publico ISSN: 2357‐8513

1. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 2. Periódicos 3. Patrimônio Cultura I. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. II. Fundação Municipal de Cultura. CDD 025.171

Endereço: REAPCBH - Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Rua Itambé, 227 - Floresta Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 30150-150 – Belo Horizonte/MG e-mail: reapcbh.fmc@pbh.gov.br Telefone: (31) 3277-4665 homepage: https://prefeitura.pbh.gov.br/fundacao-municipal-de-cultura/arquivo-publico http://www.bhfazcultura.pbh.gov.br REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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EXPEDIENTE

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte Fundação Municipal de Cultura Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Conselho Editorial Gabriella Diniz Mansur Joanna Guimarães Fernandes Lays Silva de Souza Michelle Márcia Cobra Torre Normalização Bibliográfica Rafaela de Araújo Patente Revisão Michelle Márcia Cobra Torre Design Assessoria de Comunicação – FMC Fotos da capa: Acervo APCBH Diagramação Michelle Márcia Cobra Torre

Conselho Consultivo Drª. Andrea Casa Nova Maia (UFRJ) Drª. Beatriz Kushnir (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Dr. Caio César Boschi (PUC Minas) Drª. Cláudia Suely Rodrigues de Carvalho (Fundação Casa de Rui Barbosa/UFRJ) Drª. Ivana Denise Parrela (Escola de Ciência da Informação – UFMG) Drª. Janice Gonçalves (UDESC) Drª. Júnia Sales (Faculdade de Educação – UFMG) Dr. Luiz Henrique Assis Garcia (UFMG) Drª. Maria do Carmo Alvarenga Andrade Gomes (Fundação João Pinheiro) Drª. Regina Horta Duarte (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG) Dr. Renato Pinto Venâncio (Escola de Ciência da Informação – UFMG) Drª. Silvana Bojanoski (UFPel) Dr. Tiago dos Reis Miranda (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora CIDEHUS-UÉ)

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AGRADECIMENTOS A REAPCBH é uma publicação eletrônica que tem por objetivo divulgar trabalhos científicos que contribuam para o desenvolvimento dos debates sobre a história de Belo Horizonte, assim como o campo de estudos arquivísticos. Graças à valiosa colaboração de diversas pessoas que aceitaram dispensar seu tempo e seus conhecimentos em avaliações criteriosas, a Revista chega a sua quinta edição. Agradecemos a atenção dispensada e os trabalhos realizados com empenho e dedicação. Agradecemos também ao Conselho Consultivo pela disposição em sempre nos orientar no necessário.

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SUMÁRIO

Editorial ....................................................................................................................... 06

ARTIGOS

Violência contra as mulheres em Belo Horizonte: a Comissão Parlamentar de Inquérito no Legislativo Municipal (1992) ................................................................. 10 Maria Cruz Ferraz Belo Horizonte e as neovanguardas: a inauguração do Palácio das Artes e as obras de Artur Barrio e Cildo Meireles ................................................................................ 35 Rúbia Carla dos Santos Dias Thayná Miclos A gentrificação do discurso higienista: a formação urbana de Belo Horizonte e a construção da desigualdade ......................................................................................... 53 Gabriel Esteves Campos Costa Patrimônio urbano entre políticas de revitalização e gentrificação: o Museu de Artes e Ofícios (BH-MG) ....................................................................................................... 79 Aline Damasceno Santana Luiz Henrique Assis Garcia “Perdi o bonde e a esperança”: mobilidade urbana, trabalho e sociabilidade na Belle Époque belorizontina .................................................................................................. 104 Bheatriz Alexsandra Rocha de Souza Tamires Celi da Silva Wemerson Felipe Gomes

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O desaparecimento da arquitetura civil de influência italiana em Belo Horizonte, Brasil ............................................................................................................................ 132 Marcel de Almeida Freitas SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta pedagógica 1 ............................................................................................... 150 Gabrielle Thuanny Proposta pedagógica 2 ............................................................................................... 158 Luis Otávio Silva Botelho Proposta pedagógica 3 ............................................................................................... 166 Luiz Fernando Cristiano Ferreira da Silva Proposta pedagógica 4 ............................................................................................... 172 Joel Júnio Ferreira Santos

ENTREVISTA Diva Moreira – comunicadora social e cientista política ............................................ 187

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EDITORIAL

Nesta edição, a REAPCBH traz o Dossiê temático “Gênero e Resistência em Belo Horizonte”, com o objetivo de refletir sobre questões de gênero, a luta por direitos e pela emancipação feminina. A revista também se propôs a discutir o marco dos 50 anos dos acontecimentos de 1968, no contexto da ditadura civil-militar brasileira. O tema da resistência tem notável importância na contemporaneidade de nosso país, sendo imprescindível que se lance luz em suas variadas formas, provocando discussões e reflexões. Diversas pesquisas vêm abrindo espaço para diálogos produtivos sobre a questão de gênero, a resistência e a emancipação feminina, assim como surgem novas reflexões e novos depoimentos que se inserem no contexto da ditadura civil-militar. Nesse sentido, esperamos contribuir para a ampliação do debate e apresentar algumas formas de compreensão dessa temática, como também instigar novas possibilidades de pesquisa, pois, nunca na história de nosso país foi tão necessário e urgente discutirmos esses temas para avançarmos como está sendo neste momento. O artigo da historiadora Maria Cruz Ferraz trata da instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pela Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH), na década de 1990, para apurar casos de feminicídios e de violência de gênero. A pesquisa foi realizada com base na documentação da CMBH e, além de divulgar esse rico acervo da instituição, contribui para ampliar as discussões sobre as questões de gênero e de violência contra as mulheres na cidade de Belo Horizonte, pois a bibliografia sobre a temática é muito escassa. O trabalho da historiadora apresenta ainda relatos de experiências reais, traz à luz o protagonismo feminino, na atuação de vereadoras militantes que lutaram para fazer com que a temática se tornasse pauta das discussões da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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CMBH, e discute sobre políticas públicas voltadas para as mulheres, possibilitando constatar como os debates feministas levaram à percepção de que era importante compreender as causas da violência de gênero. As historiadoras Rúbia Carla dos Santos Dias e Thayná Miclos apresentam em seu artigo a chamada arte de guerrilha, conceito do âmbito das artes plásticas no período da ditadura civil-militar brasileira. No artigo, são analisadas as obras Trouxas ensanguentadas, de Artur Barrio, e Tiradentes: totem-monumento ao preso político, de Cildo Meireles, e os diálogos que essas estabelecem com o contexto vigente na época. O dossiê desta edição é presenteado com a corajosa entrevista de Diva Moreira, comunicadora social e cientista política, que possui uma bela trajetória de luta em movimentos sociais pela defesa das mulheres negras. Nesta entrevista, Diva Moreira fala dos caminhos percorridos como militante e de suas vivências e atuação no contexto da ditadura civil-militar na cidade. A pesquisadora e militante traz à tona a questão dos movimentos de mulheres negras, que se iniciaram com a constatação de que o feminismo branco não incluía todas as mulheres. Convidamos os leitores a refletirem sobre esse depoimento de Diva Moreira para a REAPCBH, de forma a ampliarem sua compreensão sobre os movimentos feministas e, principalmente, sobre as lutas diárias das mulheres negras no Brasil contemporâneo. Para além do dossiê temático, esta edição da revista também traz artigos que discutem outros temas referentes à cidade de Belo Horizonte. Gabriel Esteves Campos Costa, em seu artigo sobre os primeiros anos da nova capital mineira, traz à luz a questão da gentrificação e do discurso higienista, a partir da análise de uma rica documentação sob a guarda do APCBH, como Relatórios de Prefeitos, Revistas Gerais dos Trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital, assim como Decretos e Leis Municipais. O pesquisador deteve-se na análise da Diretoria de Higiene, que atuou na cidade de 1900 a 1919, sendo responsável por diversas ações que afetaram a população mais pobre da capital. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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O artigo de Aline Damasceno Santana e Luiz Henrique Assis Garcia também debate sobre a questão da gentrificação no espaço urbano belo-horizontino, analisando a relação entre o patrimônio e as políticas de revitalização implementadas na Praça da Estação, quando ocorreu a reforma do edifício da Estação Central para abrigar o Museu de Artes e Ofícios. Os pesquisadores discutem a presença de diferentes discursos e conflitos que se deram em torno da instalação do museu, assim como sua relação com o entorno, o que, na visão dos autores, acabou por permear os usos e as apropriações dos espaços públicos no centro da cidade, indicando o apagamento de outras memórias. Na esteira de outras memórias da cidade, o artigo “Perdi o bonde e a esperança: mobilidade urbana, trabalho e sociabilidade na Belle Époque belorizontina” traz à tona a imagem do bonde, presente na literatura que se inspirou na cidade, pensando na dimensão social do trabalho. Inspirados nos versos de Carlos Drummond de Andrade, os autores do artigo analisam o transporte urbano como elemento central na dinâmica da cidade e sua articulação com o mundo do trabalho, apresentando, por meio da poesia, uma cidade com tensões e conflitos inevitáveis. O artigo de Marcel de Almeida Freitas discorre sobre a perda de referências e da memória edificada de origem italiana na capital mineira. Por meio de um levantamento da arquitetura de Belo Horizonte, o pesquisador mostra como as edificações construídas por arquitetos italianos no início do século XX estão desaparecendo da paisagem da cidade e denuncia o desinteresse, por parte dos poderes públicos, em preservar a arquitetura de edificações privadas, de autoria de Luiz Olivieri, importante e reconhecido artista italiano. Para encerrar esta edição, apresentamos quatro propostas pedagógicas, que podem ser realizadas em sala de aula por professores e educadores, que usam documentos de diferentes gêneros. Em consonância com o dossiê da revista, temos duas propostas que propiciam a discussão, em sala de aula, de temas referentes à questão de gênero. Trazemos ainda uma proposta sobre os usos dos espaços públicos e a memória negra em disputa na REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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cidade, e, por fim, temos uma proposta de trabalho que visa identificar, em Belo Horizonte, as áreas de favelas, propiciando uma reflexão sobre o surgimento das favelas e suas relações com a cidade. Por fim, desejamos que nossa revista proporcione aos nossos leitores um percurso de leitura permeado de reflexões e de indagações, mas também de encorajamento para criarem sempre novas formas de resistência.

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VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES EM BELO HORIZONTE: A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NO LEGISLATIVO MUNICIPAL (1992)

VIOLENCIA CONTRA LAS MUJERES EN BELO HORIZONTE: LA COMISIÓN PARLAMENTARIA DE INVESTIGACIÓN EN EL LEGISLATIVO MUNICIPAL (1992)

Maria Cruz Ferraz*

Resumo O mês de fevereiro de 1992 foi marcado por uma série de assassinatos de mulheres em Belo Horizonte e, em decorrência desses fatos, a Câmara Municipal da cidade decidiu instaurar Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os casos de feminicídios e de violência de gênero. Este artigo tem como objetivo traçar o contexto histórico e social de criação da CPI e apresentar a documentação resultante dos trabalhos desenvolvidos por ela. É importante também compreender o papel dos movimentos feministas nesse processo e o desenvolvimento de novas políticas públicas de combate à violência contra as mulheres.

Palavras-chave: Violência. Gênero. Legislativo.

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Graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trabalha como historiadora no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). Endereço eletrônico: maria.cferraz@yahoo.com.br. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Resumen El mes de febrero de 1992 fue marcado por una serie de asesinatos de mujeres en Belo Horizonte y, como consecuencia de estos hechos, el Ayuntamiento de la ciudad decidió instaurar Comisión Parlamentaria de Investigación (CPI) para apurar los casos de feminicidios y de violencia de género. Este artículo tiene como objetivo trazar el contexto histórico y social de creación de la CPI y presentar la documentación resultante de los trabajos desarrollados por ella. Es importante también comprender el papel de los movimientos feministas en ese proceso y el desarrollo de nuevas políticas públicas de combate a la violencia contra las mujeres.

Palabras clave: Violencia. Género. Legislativo.

Introdução A violência contra a mulher é tema recorrente dos debates atuais e passou a ser discutida amplamente a partir da luta dos movimentos feministas nos anos 1970. No Brasil, políticas públicas de combate ao problema se intensificaram com a criação das Delegacias Especializadas de Crime Contra a Mulher e, posteriormente, com a formação de comissões parlamentares de inquérito (CPI) nas esferas federal, estadual e municipal. O objetivo deste artigo é trabalhar especificamente as violências de gênero na capital mineira a partir dos documentos produzidos pela Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) por meio da CPI da Violência contra a Mulher. Os documentos foram criados em 1992 e retratam casos de violências de gênero acontecidos na cidade entre os anos de 1970 e início de 1990. Dessa forma, o recorte temporal deste artigo está inserido neste período e, dentre os seus objetivos, interessa pensar o contexto histórico da criação da comissão. O acervo que será analisado ao longo deste texto é o dossiê da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar assassinatos e violência contra mulheres em Belo Horizonte. A documentação completa é composta por 523 páginas divididas em 2 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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volumes e, além da parte textual, foram gravadas fitas cassete com o áudio das reuniões convocadas pela CPI. Dentro do dossiê, é possível encontrar os mais diversos tipos de documentos: desde os atos administrativos (como o requerimento que solicita a abertura da CPI) até recortes de jornais mostrando a repercussão da comissão na cidade. Foram transcritas partes de processos judiciais de crimes contra mulheres; enviadas cartas convidando e convocando a participação de instituições; anexados textos encaminhados por associações femininas; e incluídas estatísticas de violência da época. Essas informações foram obtidas a partir do acervo e demonstram o esforço da CPI em trabalhar de forma abrangente. A documentação está sob guarda do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e faz parte do fundo destinado ao legislativo municipal.1 Em 28 de fevereiro de 1992, a vereadora Helena Greco enviou requerimento ao Presidente da CMBH solicitando a criação da CPI em regime de urgência. Segundo a vereadora: A constituição desta Comissão de Inquérito se justifica nos sucessivos casos de assassinatos de mulheres nas últimas semanas em Belo Horizonte e principalmente porque a violência exercida sobre a mulher, como compreendemos, é específica, e vai além dos casos extremos de uso da força (assassinatos, espancamentos, estupros), inclui formas disfarçadas, ocorre cotidianamente, através da discriminação, passividade, submissão, que impede a liberdade e autonomia das mulheres. (GRECO, 1992, p. 5)2

A partir da justificativa escrita pela vereadora é possível perceber a presença do pensamento feminista na argumentação apresentada por ela. Ao evidenciar a violência de gênero como obstáculo à liberdade e à autonomia, Helena Greco estava pensando para além das consequências físicas e psicológicas. O que é possível ler nas entrelinhas é o 1

A documentação de guarda permanente produzida pela Câmara Municipal de Belo Horizonte está inserida no Fundo CMBH pertencente ao Arquivo Público da Cidade (APCBH). 2

Requerimento 599/92 enviado pela Vereadora Helena Greco ao Presidente da CMBH, Vereador Sérgio Coutinho (APCBH/CMBH). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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caráter universal da violência contra as mulheres na medida em que ela está presente em atitudes cotidianas e que, de forma disfarçada, tentam subjugar o sexo feminino. O contexto social e histórico no qual está inserida a criação da CPI ajuda a compreender os argumentos utilizados pela vereadora e pensar o combate à violência contra as mulheres como parte de projeto nacional pela superação da desigualdade de gênero. Analisar os documentos de forma isolada poderia significar o não entendimento do papel social exercido pelos movimentos feministas e ignorar as conquistas progressistas do período pós redemocratização. Dessa forma, é importante traçar, primeiramente, os fatores que levaram à compreensão da violência contra as mulheres como algo específico e o caminho, no campo das políticas públicas, para que fosse possível a instauração da CPI.

Os movimentos feministas e o estudo da violência de gênero

Em meados da década de 1970 e, principalmente, nos anos de 1980 os movimentos feministas começaram a se consolidar no Brasil e a conquistar espaços de discussão criticando o papel social secundário relegado às mulheres. Dentre as questões colocadas naquele momento estavam o direito à liberdade sexual, a inserção no mercado de trabalho3, a igualdade salarial e o rompimento com a visão dos afazeres domésticos como obrigações exclusivamente femininas. Na medida em que os movimentos cresciam e ocupavam espaços em discussões sociais e políticas, a percepção da violência contra as mulheres como algo diretamente relacionado aos problemas da desigualdade de gênero 3

A inserção no mercado de trabalho era pauta de parte do movimento feminista. Outra parcela considerável das mulheres, principalmente as mais pobres, já estava inserida no mercado de trabalho por ser indispensável para seu sustento. Nesse caso, não era necessário lutar pelo direito de trabalhar, mas por situações mais dignas de emprego e igualdade de oportunidades em relação aos homens. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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passou a ser parte do pensamento feminista. As estatísticas que apontavam o número alto de agressões, estupros e assassinatos, principalmente no ambiente doméstico, saltaram aos olhos da militância e corroboraram para a visão de que alguns homens não compreendiam as mulheres como sujeitos autônomos e livres. A partir da segunda onda do movimento feminista4, ocorrida entre os anos 1970 e 1980, a compreensão da violência contra as mulheres como algo cultural passou a ser pautada dentro das discussões sobre o tema. Percebeu-se a tendência em discriminar o feminino perante o masculino e adotou-se a categoria “gênero” para pensar as relações entre feminilidades e masculinidades. Joana Maria Pedro, historiadora e professora da UFSC, traça a mudança de uso dos termos ao longo da segunda metade do século XX e aponta a importância de estudar a História a partir das relações de gênero.5 O uso do termo permite ampliar os debates e ultrapassar as barreiras do sexo biológico. Ao tentar entender o papel das mulheres dentro da sociedade, usamos a análise das relações de gênero para pensar de forma transversal e, com isso, compreender que esses sujeitos históricos estão inseridos em contextos socioeconômicos, culturais e étnicos que influenciam no seu modo de ser. A socióloga Heleieth Saffioti, embora tenha críticas ao uso indiscriminado do termo, compreende a agressividade resultante das relações de poder entre homens e mulheres como “violência de gênero”. Dessa forma, a expressão faz referência às atitudes violentas que acontecem entre indivíduos masculinos e femininos, inclusive quando elas

Segundo Joana Maria Pedro, “o feminismo de “primeira onda” teria se desenvolvido no final do século XIX e centrado na reivindicação dos direitos políticos – como o de votar e ser eleita –, nos direitos sociais e econômicos – como o de trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança. O feminismo chamado de “segunda onda” surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, e deu prioridade às lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado – entendido como o poder dos homens na subordinação das mulheres”. (PEDRO, 2005, p.79) 4

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PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. HISTÓRIA, SÃO PAULO, v.24, N.1, P.77-98, 2005. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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são praticadas por mulheres. Saffioti explica, entretanto, que ao analisar as estatísticas de crimes domésticos é perceptível a discrepância entre os atos praticados por homens em relação aos que são praticados por mulheres. De forma geral, indivíduos do sexo masculino são os maiores responsáveis por casos de violência doméstica. Segundo a pesquisadora, as agressões representam a inquietação masculina diante da busca pela autonomia feminina: Rigorosamente, trata-se de uma contestação feminina do poder masculino, capaz, portanto, de detonar um processo de violência de conseqüências imprevisíveis. Como o desenvolvimento da consciência crítica da mulher tem sido, nos últimos anos, mais rápido do que o do homem, estas duas personagens deixaram de caminhar pari passu. Embora este processo não seja uniforme em todas as camadas sociais, o conceito de cidadania feminina amplia-se mais velozmente que o de cidadania masculina. O exercício efetivo de uma cidadania alargada, entretanto, provoca sérios choques entre homens e mulheres, uma vez que introduz cunhas na assimetria das relações de gênero. (SAFFIOTI, 1994, p.443)

Saffioti argumenta, portanto, que a tomada de consciência por parte das mulheres e a busca por autonomia feminina dentro das relações acabaram transformando, involuntariamente, a agressividade masculina em agressão física e verbal. Dessa forma, a tentativa de romper relacionamentos, de negar relações sexuais ou de conquistar a liberdade financeira contrariam o controle masculino sobre as mulheres e a reação imediata da parcela dominante é a violência. Os dados apresentados pela socióloga e os que serão analisados posteriormente nos documentos da CPI apontam que, na maioria dos casos, os agressores são parentes próximos e, principalmente, companheiros ou ex companheiros. Da mesma forma, os casos de abuso sexual de crianças e adolescentes, geralmente, têm como responsável direto o pai ou o padrasto. Nessa situação, é possível pensar o papel do patriarcado na origem das violências domésticas. Na medida em que o marido, o namorado, o pai, o padrasto ou o irmão desejam manter o controle sobre os

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corpos das mulheres e das crianças, eles acabam usando a ameaça e a força para conquistar o objetivo. Para além das violências físicas e verbais, que são expressas explicitamente pelos agressores, há também a violência simbólica ou ideacional.6 Rachel Soihet, historiadora e professora da UFF, argumenta que, ao longo da história, as mulheres tiveram pouca legitimidade em questões intelectuais e científicas. Mesmo os filósofos iluministas, famosos pela defesa dos direitos humanos e da igualdade, tentaram justificar a dominação sobre as mulheres a partir de argumentos que tratavam como universal e natural a superioridade masculina.

As mulheres são tratadas não como sujeito mas como uma coisa, buscando-se impedir a sua fala e a sua atividade. Nesta perspectiva, a violência não se resume a atos de agressão física, decorrendo igualmente de uma normatização na cultura, da discriminação e submissão feminina. (SOIHET, 1997, p.10)

Ao compararmos o trecho escrito por Rachel Soihet com a justificativa apresentada pela vereadora Helena Greco, percebemos a proximidade dos argumentos e a importância de inserir a violência simbólica como parte do objeto que foi trabalhado pela CPI. Se a violência física mantém o controle através do medo, a violência simbólica legitima esse controle. Por meio dela, a sociedade decide por onde as mulheres podem andar, como se vestir, como se portar, quando engravidar, quais relações sexuais podem manter e os deveres sociais que precisam cumprir. Em muitas situações, o controle social do corpo e da forma de agir aparece disfarçado de método de proteção ou de preocupação

Rachel Soihet trabalha com o conceito de “violência simbólica” enquanto Heleieth Saffioti utiliza o termo “violência ideacional”. Ambos são equivalentes e estão relacionados às ideias e pensamentos que legitimam a dominação masculina sobre as mulheres. 6

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diante da ameaça do desconhecido. Entretanto, as estatísticas demonstram que grande parte do perigo está dentro da própria casa das mulheres: Não obstante o enorme perigo representado por familiares e conhecidos, continua-se a socializar a mulher para temer os desconhecidos. As estatísticas revelam que os conhecidos são mais perigosos que os estranhos, valendo isto também, segundo dados internacionais, para a violência sexual. Em termos relativos, a mulher é a vítima preferida dos agressores familiares. (SAFFIOTI, 1994, p.448)

A compreensão da violência contra as mulheres como algo específico, diferente de crimes comuns como homicídios ou assaltos, vem do entendimento que muitas são violentadas simplesmente por serem mulheres. Existem, obviamente, casos de agressões ou assassinatos que não são motivados por questões de gênero, como é o caso de roubos que terminam em crimes violentos. Entretanto, quando analisamos dados de violência intrafamiliar, a justificativa atribuída pelo agressor é quase sempre o fato da mulher não ter seguido as normas pré-determinadas por ele. Os casos mais comuns são de companheiros que violentam suas esposas ou namoradas por causa de ciúmes. Em várias situações, homens cometem agressões mesmo quando os relacionamentos já estão terminados, motivados pela suspeita de que a ex-companheira está em uma nova relação. Situações em que os homens ameaçam ou agridem mulheres que não mantêm mais relacionamentos com eles, tornam evidentes a certeza sobre o domínio do corpo feminino. Mesmo após o término do namoro/casamento, os homens se veem no direito de decidir sobre a liberdade que a mulher pode ter ou não para se relacionar com outras pessoas. Por outro lado, é impressionante como os adultérios cometidos pelos indivíduos de sexo masculino são socialmente aceitos7, enquanto, no passado, entendia-se como “defesa da honra” os homens que matavam as mulheres por motivos de traição.

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Rachel Soihet descreve como, na virada do século XIX para o XX, intelectuais do direito justificavam as leis do adultério recaírem somente sobre as mulheres com o argumento de que os homens eram REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Comissão Parlamentar de Inquérito: assassinatos e violência contra mulheres em Belo Horizonte

As discussões apresentadas até aqui, e que são parte das demandas levadas à população pelos movimentos feministas, se tornaram mais fortes a partir do final dos anos 1980. No período de 1964 a 1985, o Brasil viveu a Ditadura Civil Militar e os movimentos sociais foram, em grande parte, silenciados. Com o processo de redemocratização, militantes dos movimentos de mulheres puderam fazer parte da política institucional e levaram as demandas feministas para o governo. Dessa forma, a Constituição Federal, criada em 1988, passou a prever a igualdade entre homens e mulheres e definiu como obrigação do Estado criar mecanismo para coibir a violência doméstica.8 Com a redemocratização, mulheres que participaram da resistência ao período ditatorial puderam ser eleitas. A vereadora Helena Greco, fundadora do Movimento Feminino pela Anistia e do Partido dos Trabalhadores (PT) em Minas Gerais, se elegeu em 1982 e permaneceu na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) até 1992. A sua atuação dentro dos movimentos sociais desde a década de 1970 possibilitaram maior engajamento na luta pelos direitos humanos e, especialmente, na defesa dos direitos das mulheres. Dessa forma, ao longo dos seus dois mandatos na CMBH, ela fundou a Comissão Permanente de Direitos Humanos e incentivou projetos que buscassem superar as desigualdades sociais. Entre as suas ações, está a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito que será objeto de análise deste artigo.

naturalmente predispostos ao erotismo, enquanto as mulheres não. Acreditava-se que “(...) o homem conjugava a sua força física, uma natureza autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios”. (SOIHET, 1997, p.10) 8

§8º do art. 226 da Constituição Federal.

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A instalação da CPI em 1992 foi motivada, segundo a Vereadora Helena Greco, pela onda de assassinatos de mulheres que ocorreram em fevereiro, foram 12 homicídios em 13 dias na região metropolitana de Belo Horizonte. A vereadora Neusa Santos, Presidente da CPI, classificou como “esquadrão da morte”9 essa situação. Além da CMBH, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o Congresso Nacional solicitaram, entre 1991 e 1992, a abertura da comissão de inquérito nas respectivas casas legislativas. A comissão instaurada em Belo Horizonte teve como objetivo apurar casos de violência doméstica ocorridos entre 1980 e 1992; investigar violências de gênero no âmbito do trabalho e denúncias de esterilização em consultório médico no bairro Taquaril. Em cada momento das investigações, foram feitas reuniões com a participação de testemunhas dos casos de violência e, posteriormente, convocadas as pessoas ou instituições responsáveis pelo caso. Em algumas situações, foram realizadas visitas técnicas a locais denunciados e, no caso dos assassinatos de mulheres, foi disponibilizada uma estagiária do curso de Direito para ir ao Poder Judiciário consultar e transcrever os processos envolvendo violência doméstica. O primeiro documento do dossiê é o Requerimento 599/92 em que a vereadora Helena Greco solicita a abertura da CPI e justifica a importância da sua instalação. Em seguida, o Presidente da CMBH designou os membros da comissão e foi marcada reunião para votar os cargos de presidente(a) e relator(a). Foram eleitos para as funções, respectivamente, a vereadora Neusa Santos e o vereador João Pinheiro. A partir de então, começaram os trabalhos com a reunião entre instituições de defesa das mulheres e movimentos feministas para definir o objeto de investigação da comissão. Ao encaminhar ofício informando sobre a realização da CPI e convidando para participar das reuniões, a CMBH recebeu textos, livretos e folhetos sobre os diversos tipos

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Em reportagem que saiu no jornal Diário da Tarde em 27 de fevereiro de 1992 a vereadora Neusa Santos se referiu à onda de assassinatos de mulheres que aconteceu naquele mês como “esquadrão da morte”. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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de violência contra as mulheres. O interessante desses documentos anexados ao dossiê é o fato de trazer dados da época e compartilhar interpretações que os movimentos faziam sobre a situação das mulheres em meados dos anos 1980. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher ligado à Coordenadoria de Conflitos Agrários encaminhou, por exemplo, livreto intitulado “Violência contra mulheres e menores em conflitos de terras”.

Imagem 1: À esquerda está a capa e à direita os subtítulos do livreto “Violência contra mulheres e menores em conflitos de terras”, produzido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher da Coordenadoria de Conflitos Agrários (MIRAD) em 1987. O documento faz parte do dossiê da CPI e está aparece nas páginas 61 a 84.

O documento representado pela Imagem 1 aborda diversos casos de violência como, por exemplo, situações em que mulheres sofreram agressões enquanto estavam REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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grávidas ou casos de abusos sexuais de menores. O lado direito da imagem revela as circunstâncias as quais as mulheres do campo foram expostas e a participação política das mesmas frente aos movimentos agrários. Os subtítulos presentes na imagem precedem uma série de relatos das mais variadas humilhações, torturas e agressões sofridas pelas mulheres trabalhadoras rurais. Nesse caso, o foco do livreto não são situações de violência doméstica, mas os abusos cometidos por grileiros e pistoleiros durante atos de invasão de propriedades. Embora os relatos sejam das áreas rurais espalhadas pelo Brasil, algumas muito distantes de Belo Horizonte, é importante o intercâmbio de informações entre a CPI e as instituições federais. Ao anexar o livreto enviado pela coordenadoria em questão, a comissão trouxe outras perspectivas sobre a violência de gênero. Dentre os documentos que fazem parte do dossiê, estão recortes de jornais que informam sobre a realização da CPI e abordam os temas que foram discutidos pela comissão. A maioria das notícias anexadas falam do número alto de casos de violência doméstica no início de 1992. O Jornal do Brasil distribuído em 15 de junho do mesmo ano traz dados das violências coletados pela Delegacia Especializada de Crime Contra a Mulher10. A estatística mais alarmante é a do número de assassinatos nas duas primeiras semanas de fevereiro. Enquanto em todo o ano de 1991 houve 26 casos de homicídios em que as vítimas eram mulheres, o segundo mês de 1992 registrou 12 assassinatos em duas semanas. A notícia aponta também que à maioria dos casos foi atribuída motivação passional e, principalmente, relacionada à questão de ciúmes. Ao trazer o resumo de alguns dos assassinatos, é possível perceber que muitos deles foram cometidos por ex companheiros. Essa situação reforça o que foi discutido anteriormente sobre a não aceitação, por parte dos homens, dos términos que são decididos pelas mulheres e, por

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A Delegacia Especializada de Crime Contra a Mulher foi criada em 1987 pela Secretaria de Estado da Segurança Pública de Minas Gerais. O órgão foi resultado de uma transformação da Delegacia Especializada de Crimes contra o Costume. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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consequência, da postura violenta que eles adquirem ao perceber a perda de controle sobre os corpos femininos.

Imagem 2: Parte da reportagem escrita por Evaldo Magalhães e veiculada pelo Jornal do Brasil em 15/06/1992 intitulada “Crime contra a mulher vem aumentando em Minas Gerais”. O documento faz parte do dossiê da CPI e aparece na página 96.

A Imagem 2 traz o relato do caso em que Meire de Jesus Silva foi assassinada aos 29 anos pelo ex-marido na frente do filho. Embora a situação seja extrema e absurda, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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outros casos similares foram descritos nos documentos da CPI. Dessa forma, os(as) filhos(as) se tornam vítimas da violência ainda que ela não seja aplicada diretamente contra eles(as). As crianças e adolescentes crescem inseridas no ambiente hostil criado pelo patriarca e dificilmente saem psicologicamente saudáveis desse tipo de formação. Por isso, a importância de pensar as ações promovidas nesse contexto como “violência de gênero” que, nesse caso, vai além das agressões sofridas pelas mulheres. Saffioti explica o significado do termo: Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. (SAFFIOTI, 2001, p. 115)

Além de coletar estatísticas sobre os crimes cometidos contra as mulheres, a CPI realizou a transcrição dos processos judiciais envolvendo feminicídios entre as décadas de 80 e início de 90. O trabalho realizado por Cristina Andrade de Carvalho11 envolvia, além da transcrição, a incorporação de cópias de fotografias e demais dados presentes nos processos. No total, são 90 páginas transcritas de documentos do Judiciário e inúmeros casos de violência que resultaram em morte para as mulheres. Mais uma vez, os dados demonstram que grande parte dos homicídios eram cometidos por (ex) companheiros. Outro fato que chama a atenção é que muitos processos não resultaram em condenação ou prisão dos responsáveis pelos crimes. Nesse caso, a argumentação desenvolvida por Saffioti, na qual ela afirma a existência de certa tolerância da sociedade em relação à violência de gênero, também é válida no que se refere às instituições. A falta de interesse em dar andamento rápido aos processos ou o sucateamento dos órgãos responsáveis por 11

Cristina Andrade de Carvalho era estagiária do curso de Direito da CMBH e foi cedida pela Diretoria de Recursos Humanos para realizar os trabalhos de pesquisa e coleta de dados no Judiciário. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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apurar crimes contra as mulheres revelam a conivência do Estado com a violência em questão. No relatório final da CPI apresentado pelo vereador Antônio Pinheiro, o depoimento concedido pela delegada titular Elaine Matozinhos indica que a maior dificuldade da delegacia de mulheres era a escassez de pessoas trabalhando. Faltavam policiais, detetives, assistentes sociais, psicólogos(as) e delegados(as). Na época, também não tinham plantões noturnos e nos finais de semana para garantir o atendimento e o registro das denúncias das vítimas. E, por fim, não havia abrigos suficientes para acolher as mulheres que denunciavam seus companheiros. Essas questões que apareceram nos depoimentos, e que foram enumeradas no relatório da CPI, dificultavam a diminuição da violência doméstica na medida em que muitas mulheres não se sentiam confiantes em denunciar e, muitas vezes, quando o faziam acabavam sofrendo em casa.

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Imagem 3: Transcrição do processo judicial referente ao assassinato de Vicentina Paula Gomes em 04/06/1989. O documento faz parte do dossiê da CPI e aparece na página 141.

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A Imagem 3 relata a situação de violência constante sofrida por Vicentina até culminar, em 04 de junho de 1989, com a sua morte a facadas. Esse processo revela as diversas faces em que a violência aparece e aponta a omissão da sociedade diante do que era sofrido pela industriária. As testemunhas citadas no documento demonstram amplo conhecimento sobre as violências físicas e psicológicas que Antônio submetia sua esposa. Entretanto, afirmam também que Vicentina não conseguiu sair do casamento devido às ameaças sofridas. Dessa forma, é preciso levantar o questionamento sobre o porquê de nenhuma das testemunhas ter denunciado os fatos às autoridades policiais e, caso tenham sido denunciados, o porquê do Estado não agir na proteção da mulher. A partir da leitura de Heleieth Saffioti, podemos elaborar a primeira hipótese em relação à omissão das testemunhas. O trabalho de superação da violência de gênero perpassa pela conscientização da sociedade sobre o que é este tipo de violência e as medidas que devem ser tomadas quando identificadas. Em meados dos anos 1980, quando Vicentina era agredida pelo marido, as ações de conscientização ainda estavam no começo. De forma geral, vigorava a falácia que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Logo, as pessoas não se viam obrigadas a interferir em atritos domésticos, ainda que estes atritos envolvessem espancamentos de mulheres por parte dos homens. Outra hipótese possível e que coexiste com a anterior, é que algumas testemunhas entendiam como crime o que estava sendo cometido por Antônio e sabiam a importância de realizar algo que colocasse fim àquela situação, mas não confiavam que realizar a denúncia resolveria o problema. De fato, ao analisar os depoimentos prestados durante a CPI em relação a Delegacia das Mulheres, encontramos críticas constantes à falta de estrutura da instituição. Nesse sentido, ainda que algumas testemunhas tenham realizado a denúncia, é possível que ela não tenha sido apurada corretamente ou que a delegacia não tivesse como garantir proteção à Vicentina afastando o marido do seu convívio. Portanto, em qualquer das situações houve omissão: da sociedade, do Estado ou de ambos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Quando pensamos a não interferência social e estatal nos casos de violência doméstica percebemos a presença da violência simbólica legitimando as agressões sofridas pelas mulheres. Os governos optaram por ignorar os dados relativos ao feminicídio e investiram pouco nas instituições que poderiam conter essa situação. Para além da estruturação necessária que faltava às Delegacias Especializadas, nos anos 1980 e 1990 quase nada foi feito na área da Educação para prevenir casos de violência de gênero. Nesse sentido, a sociedade permanecia conivente com as agressões e perpetuava pensamentos sexistas que legitimavam os crimes domésticos. A violência simbólica fica mais evidente nos casos de não cumprimento dos direitos trabalhistas. Os relatos ouvidos pela comissão vão desde a situação em que mulheres são demitidas por engravidar até assédio sexual sofrido por policial feminina dentro da corporação militar. Diversas instituições foram denunciadas por cometer violência contra as mulheres no âmbito do trabalho. O Banco Mercantil, por exemplo, foi acusado de pressionar suas funcionárias para não se casarem, de não deixar que elas ocupassem cargos de chefia, de não dar oportunidades iguais de emprego para homens e mulheres e de demitir arbitrariamente quando funcionárias decidiam formar uma família.

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Imagem 4: Trecho do Relatório Final da CPI escrito pelo vereador Antônio Pinheiro no qual ele reproduz as informações colhidas em depoimentos. O documento faz parte do dossiê da CPI e aparece na página 465.

A Imagem 4 revela como o não reconhecimento do direito à maternidade era uma das formas de violência praticadas pelo Banco Mercantil. Nesse caso, é impressionante como a sociedade atribuiu à mulher a responsabilidade total pela gravidez, considerou que é sua função exclusiva cuidar da criança, reclamou do direito à licença maternidade e a excluiu do mercado de trabalho por não considerar que ela tinha competência para exercer as duas funções. Quanto aos homens, não foram levantados questionamentos sobre o seu direito de ter família, principalmente, por acreditar que não era função masculina cuidar dos(as) filhos(as) e da casa. Dessa forma, as mulheres que dependiam financeiramente do emprego para se manter tiveram as suas liberdades limitadas quanto a decisões sobre sua vida privada. A partir dessa situação, é possível compreender a violência simbólica trabalhada por Rachel Soihet e descrita por Helena Greco no Requerimento 599/92. O fato de algumas mulheres terem se casado escondido, como foi relatado no depoimento que aparece na Imagem 4, ou precisarem comprovar ligadura de trompas para conseguir REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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emprego12 demonstra que a violência de gênero vai além das agressões físicas sofridas no ambiente doméstico. A diferenciação entre homens e mulheres está presente desde situações sutis até o controle extremo do corpo feminino. Em 17 de junho de 1992 o Lava a Jato Colírio’s foi aberto no bairro Dona Clara em Belo Horizonte. O proprietário decidiu inovar no conceito de lavagem de carros e colocar mulheres de shorts e túnica transparente sem sutiã para realizar o trabalho. Os motoristas entravam com o veículo no box fechado e as funcionárias faziam a limpeza do automóvel. Além do serviço de lava a jato, o Colírio’s contava também com um scoth bar em que mulheres serviam bebidas e comidas vestidas de maiô. O estabelecimento causou polêmica logo no primeiro dia de funcionamento e a CPI denunciou a situação de insalubridade das funcionárias para o Ministério do Trabalho. Os membros da comissão também acusaram a empresa de usar o corpo das mulheres para vender a lavagem de carros.

A reportagem “Empresas acusadas por discriminarem mulheres”, veiculada pelo jornal Hoje em Dia em 20 de maio de 1992, relata o fato em que empresas que contratam faxineiras exigem atestado de ligadura de trompas para realizar o preenchimento das vagas de emprego. 12

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Imagem 5: Folheto de divulgação do Lava a Jato Colírio’s aberto no bairro Dona Clara em 1992. O documento faz parte do dossiê da CPI e aparece na página 264.

Além do folheto de divulgação do Lava a Jato representado pela Imagem 5, o dossiê trouxe diversas reportagens de jornais com a repercussão do estabelecimento e da atuação da CPI na denúncia da empresa. O argumento usado pelo proprietário é que se tratava apenas de forma inovadora de prestar o serviço, que não havia exploração econômica do corpo das mulheres e que o movimento feminista exagerava ao comparar o trabalho com situações de prostituição. Da mesma forma, as funcionárias se mostraram

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indignadas quando foram impedidas de trabalhar e disseram se tratar de trabalho honesto como outro qualquer. A dificuldade de diálogo entre os movimentos feministas e as trabalhadoras do Colírio’s fica evidente em algumas reportagens. As primeiras alegam ingenuidade por parte das funcionárias e dizem que o trabalho delas causa prejuízo à sociedade e às mulheres.13 As trabalhadoras, por outro lado, acusam as feministas de não compreenderem que o serviço é digno e da necessidade dele para o sustento próprio e da família. Nessa situação, quem lucra é o proprietário do estabelecimento que explora economicamente o corpo das mulheres e usa argumentos em defesa da dignidade das funcionárias jogando para as feministas a responsabilidade pela polêmica causada. A análise desses documentos pertencentes ao dossiê da CPI permite discutir o impasse que acontecia, em alguns momentos, entre a militância feminista e as mulheres. Embora os movimentos estejam em defesa dos direitos femininos, às vezes o diálogo não funciona, causando distanciamento entre as organizações e a sociedade civil. Ao afirmar que as funcionárias do Colírio’s estavam causando prejuízo às mulheres, o movimento ignora a necessidade econômica das trabalhadoras, esquece que muitas empresas evitavam empregar mão de obra feminina e desconsidera que o valor de três salários mínimos pagos pelo lava a jato está acima da remuneração recebida pela maioria das mulheres. Nessa situação, as funcionárias acabaram sendo responsabilizadas pela exploração que partiu do proprietário e a qual elas se submeteram com o objetivo de se manter financeiramente. Por outro lado, foi importante a ação de denúncia promovida, pois a forma de trabalho a qual as funcionárias estavam expostas se demonstrava insalubre; não respeitava Em reportagem intitulada “Pressionado, proprietário decide fechar lavajato” veiculada pelo jornal Hoje em Dia em 20/06/1992, a presidente do Movimento Popular da Mulher (MPM), Maria do Socorro Jô Morais, afirma que “[as funcionárias do Colírio’s] não sabem o prejuízo que estão causando à sociedade e, principalmente, às mulheres”. 13

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a recomendação do sindicato da categoria quanto à vestimenta adequada para o trabalho, além de utilizar o corpo das mulheres para atrair clientes em situação que dificilmente aconteceria com frentistas homens. Dessa forma, é possível perceber as diferentes maneiras em que a violência de gênero no trabalho se expressa. O dossiê apresenta outros variados casos de abusos de poder, assédio, controle dos corpos e acusação falsa de prostituição que foram denunciados à CPI. Foi necessário optar, entretanto, por alguns recortes documentais para que fosse possível condensar no artigo os diversos tipos de violência que foram investigados pela comissão.

Conclusão

A leitura do dossiê da Comissão Parlamentar de Inquérito de 1992 permite traçar panoramas de transformações e continuidades em relação à forma como a violência de gênero é abordada pela sociedade e pelo Estado atualmente. Certamente houve avanços das políticas públicas de proteção à mulher e a aprovação da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, representou mudança significativa no combate à violência doméstica. É importante compreender o papel que iniciativas como a da comissão de inquérito tiveram na ampliação das discussões sobre o tema e em evidenciar a necessidade de criar mecanismos de proteção às mulheres. Ao longo do artigo, foi destacado que a criação da CPI em Belo Horizonte não se tratou de projeto isolado. Ao contrário, foi precedida pela comissão de inquérito no Congresso Nacional e funcionou concomitantemente com a que foi criada na Assembleia de Minas Gerais. Dessa forma, é possível constatar como as discussões feministas levaram à percepção de que era importante compreender as causas da violência de gênero. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Tanto a vereadora Helena Greco quanto a presidente da CPI, Neusa Santos, estavam inseridas na militância e buscaram incorporar a temática dentro dos debates da Câmara Municipal de Belo Horizonte. O dossiê produzido pela CPI se apresenta como documentação extensa e complexa, trazendo diversos possíveis recortes de análise e permitindo a realização de pesquisas maiores do que a que foi desenvolvida ao longo deste artigo. O objetivo era trazer alguns tipos documentais presentes no dossiê e divulgar a existência do acervo para que trabalhos futuros possam ser desenvolvidos sobre o tema. No campo historiográfico, muito pouco se estuda sobre questões de gênero em Belo Horizonte e quase não há trabalhos em relação à violência contra as mulheres. Dessa forma, é importante trazer relatos de experiências reais e levantamentos feitos na época em que políticas públicas começavam a ser desenvolvidas em busca da superação da desigualdade de gênero. É preciso traçar paralelo entre as pesquisas acadêmicas desenvolvidas no período e as pautas levantadas pelos movimentos sociais. E, por fim, pensar a inter-relação entre a militância, o Estado e a sociedade civil. Todas essas questões foram abordadas, ainda que superficialmente, durante este trabalho. É interessante, entretanto, que novas pesquisas sejam desenvolvidas com este acervo e que possam aprofundar os estudos sobre a violência de gênero na capital mineira.

Referências

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BELO HORIZONTE E AS NEOVANGUARDAS: A INAUGURAÇÃO DO PALÁCIO DAS ARTES E AS OBRAS DE ARTUR BARRIO E CILDO MEIRELES

BELO HORIZONTE Y LAS NEOVANGUARDIAS: LA INAUGURACIÓN DEL PALACIO DE LAS ARTES Y LAS OBRAS DE ARTUR BARRIO Y CILDO MEIRELES

Rúbia Carla dos Santos Dias* Thayná Miclos**

Resumo Este artigo pretende tratar do evento “Do Corpo à Terra” realizado em Belo Horizonte, entre os dias 17 e 21 de abril de 1970, como parte das atividades em comemoração à inauguração do Palácio das Artes que contava com a mostra Objeto e Participação. Foram escolhidas duas obras que perpassam pelo conceito criado pelo curador da exposição Frederico Morais, a chamada arte de guerrilha, conceito fundamental para o entendimento das artes plásticas no período da ditadura civil-militar brasileira. As obras Trouxas ensanguentadas de Artur Barrio e Tiradentes: totem-monumento ao preso político de Cildo Meireles, serão analisadas e para tanto um breve histórico sobre os caminhos das artes plásticas em Belo Horizonte será construído.

Palavras-chave: Belo Horizonte. Arte de guerrilha. Ditadura.

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Graduada em História pela UFMG, rubia.carlasd@gmail.com. Graduada em História pela UFMG, thaynamiclos@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513 **

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Resumen Este artículo pretende tratar del evento "Do corpo à Terra" que tuvo lugar en Belo Horizonte, entre los días 17 y 21 de abril de 1970, como parte de las actividades en conmemoración a la inauguración del Palácio das Artes que contaba con la muestra Objeto e participação. Se eligieron dos obras que pasan por el concepto creado por el curador de la exposición Frederico Morais, el llamado arte de guerrilla, concepto fundamental para el entendimiento de las artes plásticas en el período de la dictadura civil-militar brasileña. Las obras Trouxas ensanguentadas, de Artur Barrio y Tiradentes: totem-monumento al preso político de Cildo Meireles, serán analizadas y para tanto un breve histórico sobre los caminos de las artes plásticas en Belo Horizonte será construído.

Palabras claves: Belo Horizonte. Arte de guerrilla. Dictadura.

“É verdade, foram tempos difíceis - de liberdade truncada, de censura e de repressão. Mas nem por isso os artistas brasileiros deixaram de criar, opinar e questionar, defendendo, contra tudo e contra todos, sua liberdade criativa.”14 Frederico Morais

A postura de um artista diante da realidade social e da cena artística que o cercam estão relacionadas, em parte, a questões subjetivas, a sua própria trajetória, em parte ao seu posicionamento político ou ideológico, seja pelo engajamento ou pela neutralidade. 14

Texto originalmente publicado no catálogo da mostra “Do Corpo à Terra - Um Marco Radical na Arte Brasileira ”, Itaú Cultural Belo Horizonte, 2001. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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O seguinte trabalho analisa duas obras explicitamente engajadas e as formas com que a exposição Do Corpo à Terra, ocorrida em 1970, em Belo Horizonte, está relacionada ao contexto político brasileiro, à cidade e às propostas vanguardistas. O evento Do Corpo à Terra aconteceu em Belo Horizonte, entre os dias 17 e 21 de abril de 1970, como parte das atividades em comemoração à inauguração do Palácio das Artes e contava com a mostra Objeto e Participação. Para compreender melhor como esse evento se desdobrou e quais repercussões foram alcançadas, convém fazer uma breve digressão sobre como as artes plásticas se desenvolveram na cidade. Desde a década de 1920, Belo Horizonte mantinha um diálogo artístico com os intelectuais paulistas fomentadores do movimento modernista brasileiro. Foi a partir de uma caravana por Mina Gerais, iniciada em 1924, que os laços entre o grupo paulista e os mineiros começou a estreitar-se. Nos anos 30 ocorreu a primeira exposição coletiva da vanguarda modernista em Belo Horizonte, denominada Salão do Bar Brasil. Composta de obras com temáticas populares e ecléticas, a exposição se destacava pelo caráter contestatório da hegemonia cultural e acadêmica do artista Aníbal Mattos (RIBEIRO, 2007) criador da Sociedade Mineira de Belas Artes. Além disso, foi o primeiro evento coletivo dos modernistas em Belo Horizonte, que atuavam de forma desarticulada até então. Na próxima década, durante a gestão de Juscelino Kubitschek, a construção do complexo arquitetônico da Pampulha se torna o grande marco da integração da cidade ao projeto modernista. Tal projeto visava inserir Belo Horizonte entre as grandes metrópoles brasileiras, mudando seu caráter interiorano e conservador. Em 1944 acontece a Exposição de Arte Moderna, a Semana de 44, contando com a participação de grandes artistas que atuavam no eixo Rio-São Paulo. Com desfechos muito polêmicos, a exposição cumpre o papel de apresentar a Pampulha à intelectualidade brasileira e inserir a capital mineira no circuito artístico nacional. Vinte anos depois, o projeto modernista em que embarcou Belo Horizonte culminará na construção de Brasília. Assim, a vanguarda modernista esvazia-se de seu caráter revolucionário e militante para tornar-se REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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parte do projeto político de construção nacional pautado no programa tecnológico da sociedade industrial capitalista. Durante a década de 50, o foco artístico belo horizontino é transposto para os Salões Municipais de Belas Artes da Prefeitura (SMBA-BH), grandes eventos ligados às comemorações do aniversário da cidade e promovidos desde 1937. A partir de 1957, sedia esses salões o Museu de Arte de Belo Horizonte, prédio elaborado por Niemeyer, no qual anteriormente funcionava um cassino. A partir de então, os Salões e o Museu de Arte se tornam os principais pólos de promoção, intercâmbio e formação para os artistas. Em 1958, devido a articulação de Assis Chateaubriand e um grupo de doadores, várias obras são incorporadas ao acervo, ampliando o repertório de produções artísticas apresentado pelo Museu, o qual ia do moderno ao popular (NEVES. VIVAS, 2014). Na década de 60, com grande notoriedade, os Salões começam a contar com presença de críticos e artistas reconhecidos nacionalmente, O período que abrange os Salões de 1964 ao de 1968 demarca a transição da arte moderna para a arte contemporânea, assistindo a emergência de novas referências visuais e de variadas proposições artísticas que influenciaram a formação de um ideário de arte nacional. Neste período o SMBA-BH passou por reestruturações que refletem as mudanças nas artes e no cenário político social da cidade (SANTOS. VIVAS, 2014).

As novas características e demandas da arte contemporânea vão exigir um novo espaço de realização artística rompendo com a noção de museu como lugar privilegiado. Os eventos de inauguração do Palácio das Artes refletem essa necessidade de novos espaços de expressão artística. É nesse contexto que a exposição inaugural se torna um marco histórico: Reunindo quinze jovens artistas de vanguarda, que trarão trabalhos de arte paticipacional, povera, cinética, conceitual, ecológica, ‘happinings’,

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apropriações. Todos eles na linha do que há de mais avançado na arte atual, em todo o mundo.15

As palavras estampadas nas manchetes dos jornais expressavam grande expectativa em relação à inauguração do mais novo espaço dedicado às artes em Belo Horizonte. Expressões ligadas a vanguardas e novidade eram comuns.

Neovanguardas: a (re)construção de um lugar de embate da arte na segunda metade do século XX A ideia de vanguarda, tão destacada nesse momento, é objeto de trabalho e pesquisa histórica, composto de vários desdobramentos e aplicações, entender um pouco das especificidades do conceito pode nos ajudar a situar a atuação desses artistas na capital mineira. Para começar, Peter Bürguer, um dos principais estudiosos da ideia de vanguarda e autor de “Teoria da vanguarda”, problematiza o assunto partindo de sua organização em três momentos distintos: O primeiro refere-se à instauração de projeto utópico moderno, representado pelo romantismo e realismo. A segunda fase é caracterizada por uma linguagem artística inovadora e marcada pela intensificação da experiência estética individual, momento da formulação do esteticismo, sendo o Impressionismo, o Simbolismo e a Art Nouveau seus maiores representantes. A última fase relevante para Bürger é também conhecida como vanguardas históricas, sendo um conjunto de movimentos do começo do século XX marcados pelo caráter contestatório da concepção e lugar social da arte. Entre eles destacamos o Futurismo, Construtivismo, Dadaísmo e Surrealismo.

15

Jornal Estado de Minas, 17 de abril de 1970.

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A análise de Bürguer, entretanto, desconsidera as manifestações que surgem a partir da década de 1950 como genuinamente inovadoras. Autores como Andreas Huyssen, Hal Foster e Dietrich Scheunemann estão entre alguns dos estudiosos que se posicionaram criticamente em relação a Bürguer, no que se refere à originalidade das ditas neovanguardas. Eles analisam os movimentos artísticos norte-americanos das décadas de 1950 e 1960 como herdeiros das vanguardas europeias do começo do século XX, na medida em que reinventam e inserem em seu contexto as inquietações das primeiras. A Pot art, o minimalismo, os happenings e as assemblages, entre outros, emergem como novas vanguardas, mas não como simples repetições e sim como manifestações dotadas de originalidade e identidade próprias. No Brasil, os estudos evidenciam as especificidades nacionais dos movimentos, destacando a importância da produção desenvolvida por Hélio Oiticica e Lygia Clark. Movimentos

como

o

Neoconcretismo,

Situacionismo,

Nova

Objetividade,

Conceitualismo, Novo Realismo, Nova Figuração e Fluxus apresentavam em comum a "comunicabilidade da arte, utilizando-se da realidade social como instrumento de diálogo com o público” (SANTOS. VIVAS, 2014, p.392). As exposições coletivas Opinião 65 e Opinião 66, a exemplo do show opinião, iniciaram um circuito de eventos e de debates a favor da liberdade de expressão e criação. As particularidades do caso brasileiro estão relacionadas com a conjuntura de repressão política nas décadas de 1960 e 1970, tornando notável que as neovanguardas brasileiras construíssem uma relação entre política e arte. A promulgação do Ato Institucional nº 5, em 1968, institucionalizou a repressão organizada pelo Estado, de modo que a partir desse ponto de inflexão, o campo da produção cultural foi bastante impactado pela censura e pelo aparato do Estado (a II Bienal Nacional de Artes Plásticas chegou a ser fechada), o que estimulou certa radicalidade no meio artístico.

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É no contexto de censura e de maior controle social que a exposição Do corpo à terra está inserida. Realizada com a curadoria de Frederico Morais, a convite de Mari’Stella Tristão, então diretora de artes visuais no Palácio das Artes, o crítico instaura com seu artigo “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da ‘obra’” (MORAIS, 1970) o conceito de arte de guerrilha, criando uma comunicação direta com o crescimento das guerrilhas urbanas que se movimentavam em oposição ao Regime Militar e às ditaduras instauradas. A arte de guerrilha requereria um novo espaço para a arte, para o artista e para o crítico. O curador da exposição esteve envolvido com os principais eventos da vanguarda do país (Arte no Aterro, Salão da Bússola, Nova Objetividade) e produziu largamente sobre a arte e sua recepção. Foi definido pela historiadora Aracy Amaral, em 1973, como um crítico militante, conceito oriundo da tipologia de Michel Ragon, que estabelece ao menos quatro tipos de críticos de arte: o crítico passivo ou voyer, o crítico-juíz, o crítico teórico e o crítico militante. Enquadrado como um crítico militante, Frederico Morais escreve que: Na guerra convencional da arte, os participantes tinham posições bem definidas. Existiam artistas, críticos e espectadores. O crítico, por exemplo, julgava, ditava normas de bom comportamento, dizendo que isto era bom, aquilo ruim, isto é válido aquilo não, limitando áreas de atuação, defendendo categorias e gêneros artísticos, os chamados valores plásticos e os específicos. Para tanto estabelecia sanções e regras estéticas (éticas). Na guerrilha artística porém, todos são guerrilheiros e tomam iniciativas. O artista, o público e o crítico mudam continuamente suas posições no acontecimento e o próprio artista pode ser vítima da emboscada tramada pelo espectador. (RAGON, 1979, p.12).

Do corpo à Terra apresenta, pela primeira vez no país, um conjunto de obras que seriam produzidas no local de sua exibição, permitindo aos artistas convidados que explorassem o recém-construído Palácio das Artes, o Parque Municipal Américo Renné Giannetti e os arredores da cidade, ampliando os espaços para a arte. Para tanto, contava com o patrocínio da Hidrominas, órgão do governo de Minas Gerais, que forneceu uma REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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carta assinada pelo seu presidente autorizando a realização de trabalhos no Parque Municipal. Foram selecionados vinte cinco artistas: Alfredo José Fontes, Artur Barrio, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Décio Noviello, Dileny Campos, Dilton Araújo, Eduardo Ângelo, Franz Weissman, George Helt, Lee Jaff e Hélio Oiticica, Ione Saldanha, José Ronaldo Lima, Lotus Lobo, Luciano Gusmão, Luiz Alfhonsus, Manoel Serpa, Manfredo de Souzanetto, Orlando Castaño, Yvone Etrusco, Teresinha Soares, Thereza Simões, Umberto Costa Barros e Frederico Morais, que pela primeira vez executou a curadoria e atuou como artista e crítico de uma exposição simultaneamente. Segundo Luiz Alphonsus, um dos artistas selecionados, a carta escrita pelo diretor da Hidrominas permitiu que os artistas transgredissem as regras do Parque Municipal e dos demais espaços da cidade, assim, estando espalhadas pelo território os artistas impediam que as obras pudessem ser vistas e experenciadas em um único instante, uma vez que o espectador teria que deslocar-se. A arte de guerrilha, entendida como um tipo de vanguarda imprevisível e combativa, trazia, para além do vocabulário de guerra, estratégias e táticas que fossem capazes de combater uma arte passiva, em que o espectador é apenas um observador. A surpresa, a simultaneidade das ações e a força do ataque, eram estratégias amplamente utilizadas no fazer artístico, com o objetivo de gerar contestações às artes tradicionais. Assim: Tinha como objetivo colocar em evidência as contradições existentes, criar perturbações no sistema: organizar uma espécie de guerrilha cultural contra o estado atual das coisas, sublinhar as contradições e criar situações onde as pessoas reencontrem sua capacidade de produzir mudanças. Construir uma intervenção crítica sobre o real. (FREITAS apud LEPARC, 1968, pp.198-202)

A divulgação do evento se deu por meio de folhetos distribuídos pela cidade, sendo que, na inauguração, Frederico Morais lançou o “Manifesto do corpo à terra”, escrito em 18 de abril de 1970. Tratava-se de um texto de apresentação em defesa da arte como exercício da liberdade, catalizador do potencial criativo do espectador e dependente REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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desse para sua concretização. Nessas condições, o museu como instituição assume outra perspectiva: torna-se propositor de situações artísticas, integrando o ambiente urbano em seu cotidiano, atuando sem limites geográficos, despindo-se do “excesso de sua presença”, tornando-se, dessa forma, um laboratório de experiências. A obra de arte rompe as barreiras da contemplação estática e assume, majoritariamente, o caráter de situação, é preenchida com vida e dessa forma confronta o espectador e exige dele iniciativas: O que deixou de existir foi a estrutura da representação. [...] A arte vive seu próprio tempo. Não havendo mais muro a separar duas realidades antagônicas. O espaço da arte confunde-se com o espaço da vida, e é o espectador que preenche, agora, o quadrado branco. A moldura é o próprio espectador, que só tem diante de si, e nela caminha a ausência. Não há limites. (MORAIS, 1970, p.4) A arte perdeu a aura mística e aristocrática e não exige mais do espectador êxtase contemplativo, passividade. Propõe uma relação de dependência na qual o seu desenvolvimento, desabrochar ou crescimento, depende da escolha do espectador. (MORAIS, 1970, p.6)

Nesse texto as obras de Artur Barrio e Cildo Meireles, expostas no evento, estão associadas de forma direta ao conceito de Frederico de Moraes e serão analisadas para compreendermos a importância das artes plásticas no contexto da Ditadura civil-militar.

Artur Barrio: Trouxas Ensanguentadas Artur Barrio nasceu em Portugal, mas mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança. Em 1967 iniciou seus estudos na Escola Nacional de Belas Artes e já em 1969 começou a criar as situações: intervenções efêmeras e provocativas nos espaços públicos, utilizando materiais orgânicos. No mesmo ano, escreve um manifesto que expõe diretrizes básicas do trabalho que realizará a partir de então: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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contra as categorias de arte contra os salões contra as premiações contra os júris contra a crítica de arte (BARRIO, 2016, p.3)

Além contestação de cânones essenciais da arte, Barrio defende o uso de materiais perecíveis e baratos, assim como as situações momentâneas em que tais obras se realizam, registradas em fotografias, filme ou apenas experimentadas sensorialmente. Esses procedimentos não se restringem a uma questão meramente estilística, Barrio destaca o aspecto socioeconômico do uso de materiais convencionais: produtos industrializados de alto valor, controlados por uma elite que ele contesta. Para ele, a criação artística não deve ser condicionada a esses fatores, deve ser livre, assim como seus materiais devem escapar do que é imposto “por um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima para baixo” (BARRIO, 2016, p.3). A síntese de suas aspirações se realiza na Situação T/T, 1, componente do evento Do Corpo à Terra, mas anteriormente experimentada no Rio de Janeiro. Barrio confeccionou 14 trouxas com panos, ossos, espuma e carne, tudo amarrado com cordas. O aspecto era de um pacote fedido e manchado de sangue. Essas trouxas foram depositadas ao longo do Ribeirão Arrudas no início da manhã de 20 de Abril. Após a constatação das trouxas pela população, o clima de tensão foi instaurado e um grande tumulto gerado. Primeiramente, houve a intervenção da polícia e, em seguida, do corpo de bombeiros, que retiraram imediatamente as trouxas. Barrio estima a participação de aproximadamente 5.000 pessoas (BARRIO, 2016, p.16). As trouxas são uma referência direta aos assassinatos cometido pelo regime militar, fazendo menção à desova de corpos dos presos políticos após serem torturados e mortos. De acordo com Marília Ribeiro: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Propostas audaciosas reafirmavam o emblema da morte na cultura brasileira e simbolizavam o protesto dos artistas contra o sacrifício humano das vítimas do terror e o repúdio à ação paramilitar do Estado contra militantes políticos, torturados mortos em prisões brasileiras. (RIBEIRO, 2012)

Situação T/T , 1970 , Artur Barrio Registro fotográfico César Carneiro.16

A proposta de radicalização da arte é proporcional ao fechamento do regime, ao aumento da repressão e à intensificação das atividades das esquerdas armadas. As trouxas

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Trouxas ensanguentadas in ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra33692/tiradentes-totemmonumento-ao-preso-politico>.Acesso em: 23 de Out. 2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-857979-060-7. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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ensanguentadas modificaram a rotina da cidade e das pessoas, que foram chamadas à ação mediante uma situação que quebrava a inércia como atitude. As pessoas se viram atônitas e abismadas com circunstâncias que refletiam uma realidade de certo modo subentendida por todos. A Situação foi vivida e experimentada. Devido ao alvoroço consequente da Situação T/T, 1, Barrio deixa o local sem acompanhar o desfecho da obra, o desenrolar da Situação não estava sob o domínio do autor, permanecer nos arredores, além de não fazer sentido para o artista, podia ser perigoso. No dia posterior, Barrio volta para concretizar uma intervenção com 60 rolos de papel higiênico espalhado pelo mesmo ribeirão, logo após vai embora da cidade.

Cildo Meireles: Tiradentes: totem-monumento ao preso político Cildo Campos Meirelles (Rio de Janeiro, 1948), na década de 70, despontava como um dos principais artistas das vanguardas brasileiras. Utilizando em suas obras múltiplas linguagens levou a Do Corpo à terra o seu trabalho “Tiradentes: totemmonumento ao preso político”, em que utilizava um pano, uma estaca de madeira, dez galinhas, um cronômetro, gasolina e fogo. A ação consistia em atear fogo às galinhas que se encontravam, ainda vivas, presas às estacas de madeira. Controversa e agressiva, gerou no público e na crítica diferentes reações: desde da incapacidade de compreensão até ao apoio do presidente da associação de defesa dos animais de Belo Horizonte (FREITAS, 2007, p.236). As imagens abaixo mostram o processo e a execução do ato17:

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TIRADENTES: Totem - Monumento ao Preso Político. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em:http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra33692/tiradentes-totem-monumento-ao-preso-politico>. Acesso em: 23 de Out. 2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Cildo Meireles, Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970). Registro: Luiz Alphonsus.

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Cildo Meireles, Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970). Registro: Luiz Alphonsus.

A obra, caracterizada como uma ação, deve ser analisada partindo do contexto de sua produção, período de recrudescimento da ditadura militar brasileira. Inserida na semana da Inconfidência Mineira, feriado cívico em que se homenageia a figura de Tiradentes, propunha uma discussão que parte do seu título. Ao longo da história, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi apropriado como símbolo de diversas formas e passou por várias releituras, não sendo diferente no contexto da ditadura brasileira, em que sua figura era mobilizada tanto por setores conservadores, como a polícia militar, que o havia eleito seu patrono, bem como pela esquerda, que identificava no inconfidente um mártir contestador. Como exemplo, pode-se citar um grupo de dissidentes do PC do B que criaram o Movimento Revolucionário Tiradentes, grupo armado combatente da ditadura.

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A utilização de Tiradentes no título da obra é comentada por Cildo em uma entrevista, na qual ele diz:

Tiradentes tem, é claro, uma referência imediata ao entorno político e ao acontecimento histórico. Mas faz referência também à própria idéia de circulação, porque Tiradentes é um símbolo, portanto um objeto de circulação. Na época havia muito cinismo e tentativa de cooptação do simbolismo do personagem. Era, de fato, uma espécie de regra de três simples. Pegar galinhas e matá-las equivalia, na verdade, a pegar um símbolo nacional e torná-lo símbolo do golpe militar. Ao mesmo tempo em que eles estavam se aproveitando do símbolo Tiradentes, herói da independência brasileira, com todas as contradições que o personagem possa ter, eles estavam usando de procedimentos análogos aos do artista contra as próprias galinhas, e justamente para defender o contrário do que o próprio Tiradentes defendia. (FREITAS, 2007, p.228)

Cildo Meireles utiliza a menção a Tiradentes para criar um diálogo entre a criação artística e o contexto, de modo que Totem-monumento ao preso político, é a conexão do título com os acontecimentos da época. A agressividade, a violência e a própria efemeridade da obra propunham uma associação com o regime autoritário em que tantos presos políticos foram submetidos à tortura e mortos, como que sacrificados pelo Estado. Nessa obra, a concepção de arte guerrilha serve como chave interpretativa para gerar uma ação frente a um contexto de violência que é encoberto pela censura e pelos aparatos ditatoriais. A violência utilizada como recurso na criação e execução da obra deve ser interpretada a partir de uma frase de Hélio Oiticica; “A violência é justificada como o sentido de revolta, mas nunca como o de opressão” (OITICICA, 1996). Totem, em sua radicalidade, questionava os limites da arte, da composição de um trabalho, tendo sido realizado uma única vez.

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Conclusão

A década de 70 foi marcada por um clima de terror e medo, o Brasil vivia a Ditadura Civil-Militar. Naquele contexto, expressões artísticas, que criticavam e estimulavam o espectador a observar o cenário à sua volta, implicavam em consequências para os envolvidos. Nesse cenário, Cildo Meireles diz: Quem começou a fazer arte a partir de 1964 teve apenas duas opções: ou ia fazer um trabalho ligado à realidade e com uma visão crítica dela, correndo o risco de ser taxado de subversivo, ou então aceitava as regras impostas. O companheiro mais constante da gente tem sido o medo (...) este medo que se cristaliza no Esquadrão da Morte, por exemplo. (Cildo Meireles apud FONSECA, 1979)

O medo, sentimento presente em regimes autoritários, atuou no embate ao regime autoritário. Ele não paralisou a produção artística, já que o evento Do corpo à Terra teve em Artur Barrio e Cildo Meireles representações de uma arte de guerrilha, em que o questionamento sobre a arte e o contexto político social estiveram presentes e foram capazes de gerar repercussões em Belo Horizonte e no território nacional. As Trouxas Ensanguentadas e Tiradentes: totem-monumento ao preso político geraram uma comunicação com o público e com os moradores da cidade, de modo que o frenesi gerado pela realização das obras ocupou jornais e discursos de políticos. Alocando a obra ao contexto político e social da época, o curador Frederico Morais, que pela primeira vez atuava simultaneamente como artista, em uma mesma exposição, afirmou, com seu manifesto, que o artista é uma espécie de guerrilheiro e que a arte funciona como uma emboscada podendo ser montada em múltiplos espaços, (MORAIS, 1970) de tal maneira que a cidade se tornou palco para a realização das obras. Ele não restringia o espaço da arte aos centros, que tradicionalmente foram criados para abriga-la. As Trouxas Ensanguentadas percorreram a cidade através do Rio Arrudas, e trouxeram com esse movimento um público diferente se comparado com o público que REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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habitava os palácios das artes - instituições artísticas e espaços museais. Era uma transformação de público, de arte, uma espécie de grito contra o que ocorria nas cidades: a ditadura e a tortura. Frederico Morais e os artistas da exposição deram corpo a um evento que se transformou em acontecimento crucial para o entendimento do desenvolvimento das artes plásticas brasileiras e de sua articulação com as formas de resistência ao autoritarismo. Não se tornando institucional, a efemeridade das obras, a utilização de materiais considerados não nobres, que foram apenas alocados em lugares distintos, representaram ação frente a um sistema cruel e violento. Nascia o palácio das artes.

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A GENTRIFICAÇÃO DO DISCURSO HIGIENISTA A FORMAÇÃO URBANA DE BELO HORIZONTE E A CONSTRUÇÃO DA DESIGUALDADE THE GENTRIFICATION OF THE HYGIENIST DISCOURSE THE URBAN FORMATION OF BELO HORIZONTE AND THE CONSTRUCTION OF INEQUALITY Gabriel Esteves Campos Costa*

Resumo Este artigo pretende exercitar reflexões acerca do uso do espaço urbano por meio do reconhecimento de práticas higienistas e gentrificantes. Em questão, Belo Horizonte, a capital de Minas Gerais, que aos 121 anos ainda apresenta feridas abertas das ações que promovem a desigualdade social. A partir da análise de Relatórios Anuais de Gestão da Prefeitura ao Conselho Deliberativo, Revistas Gerais dos Trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital, Decretos e Leis Municipais e fontes secundárias, foi possível identificar uma Diretoria de Higiene que atuou na cidade de 1900 até 1919. A diretoria mencionada foi responsável por uma série de ações que afetaram diretamente as camadas mais vulneráveis da sociedade. Palavras Chave: Espaço Urbano. Gentrificação. Belo Horizonte.

Abstract This article intends to exercise reflections about the use of urban space through recognition of hygienists and gentrifying practices. Concerned, Belo Horizonte, the capital of Minas Gerais that at the age of 120 still has the open wounds of actions that promote social inequality. From the analysis of Annual Reports of the Management of City Hall to the Deliberative Council, General Magazines of the Work of the Construction Committee, Municipal Laws and Decrees and secondary sources, it was to identify a

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Graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Hygiene Board that operated in the city since 1900 until 1919. The Board was responsible for a series of actions that directly affected the most vulnerable sections of society. Keywords: Urban Space. Gentrifying. Belo Horizonte. Considerações gerais A “gentrificação” é o fenômeno social promovido por grupos que provocam a transformação de um determinado espaço. Não arbitrariamente, a gentrificação é interpretada como uma questão contemporânea. Vista as transformações do espaço urbano das últimas décadas, compreende-se que a gentrificação se aplica à existência de uma crescente e intensa higienização do espaço público que visa à recuperação do valor imobiliário e a “revitalização” do aspecto das áreas. Ao procurar compreender o conceito de gentrificação é preciso assumir que as relações de poder estão intrínsecas às ações que elas produzem. Diversos autores contemporâneos pesquisam as sociabilidades dos espaços públicos como praças, ruas ou qualquer área de aglomeração, além dos semi-públicos como shoppings. As perspectivas dessas discussões estão intimamente ligadas às relações de poder da contemporaneidade e deixam claro que o único propósito dessas políticas gentrificantes é a coerção das classes mais pobres e marginalizadas. A proposta desse artigo é problematizar essas relações de poder dentro da estrutura urbana contemporânea. Porém, para isso é necessário compreender a matriz das novas formações urbanas que surgem a partir do século XIX devido às grandes reformas do urbanismo higienista. Outro conceito chave que merece atenção desde já é o da “higienização”. Ainda que pesquisadores de todas as áreas das Ciências Humanas encontrem-se familiarizados com o termo, faz-se importante uma breve contextualização. Em suma, a higienização trata da adequação à vida urbana pública e privada segundo preceitos de higiene e

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salubridade pública. A discussão surge a partir do século XIX em reação às epidemias associadas à superpopulação e miséria da Europa. O Urbanismo higienista surge na Europa, em meados do século XIX, fundamentado no tratado redigido pelo médico Jules Rochard, intitulado Encyclopédie D’Hygiene et de Medicine Publique, em 1891, inspirado, sem dúvida, na ação de Georges-Eugène Haussmann. Conhecido como Barão Haussmann, o urbanista e Prefeito do Sena, entre 1853 e 1870, Georges-Eugène foi responsável pela primeira reforma higienista de Paris, que se consolidaria como modelo utópico de urbanismo. Os médicos higienistas, profissionais da medicina, que surgem a partir desse período, reconhecem uma “explicação social” para o espectro das doenças que assolavam a Europa (LÉCUYER, 1986, s.p.). Os higienistas, como afirma a geógrafa Maria Clélia Lustosa Costa, formaram uma “estrutura de poder que autorizava o discurso médico”. (COSTA, 2016, p. 198). Segundo a pesquisadora, os médicos “concluíram que a casa, principalmente a casa do pobre, era um dos focos de disseminação de doenças, de epidemias” (COSTA, 2016, p. 198). O Dr. Gabriel Alcides Raposo Câmara, médico higienista, formado na Bahia, em 1860, criticava que no Brasil a edificação pública e particular corria “livre sem lei, sem regra e sem direção” (CÂMARA, 1860, p.2). Segundo o médico, a cabana, a palhoça e as formas de moradia simples das cidades brasileiras simbolizavam a “barbarez e ausência de civilização” (CÂMARA, 1860, p. 2). A reflexão que se propõe neste texto é a de compreender a relação entre as transformações higienistas observadas no espaço urbano por meio das décadas com o pensamento mobilizado de limpeza e elitização do espaço urbano presentes no final do século XIX e início do século XX, que muito indicam um processo de gentrificação. O objetivo deste artigo é sinalizar as ações higienistas localizadas nos registros oficiais de Belo Horizonte durante as primeiras décadas da cidade que indicam, em certo ponto, um processo de gentrificação intrínseco à formação da nova capital. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A Comissão Construtora

Inaugurada em 1897, a Cidade de Minas surgia como a pretensiosa nova capital que, além de rejeitar o antigo nome do modesto Arraial Belo Horizonte, ainda tinha a intenção de ser pioneira no processo de formação urbana planejada no Brasil. Uma cidade construída para o futuro e pela modernidade, porém, após a inauguração, a Cidade de Minas encarava uma realidade bem diferente do pretendido pela Comissão Construtora da Nova Capital. Em 1897, a capital se resumia a bem menos do que a área urbana planejada dentro dos limites da Avenida do Contorno, a maioria das ruas sequer existia e as que existiam ainda permaneciam sendo vias de terra. A iluminação pública e privada era um privilégio para menos da metade da população. As ocupações operárias se mantinham no perímetro urbano, bem próximas aos casarões destinados à elite “ouropretana” que se instalaria na nova capital. As circunstâncias da realidade do período, como será observado nas próximas seções, levaram a medidas inesperadas para que a capital se afirmasse. A Comissão Construtora da Nova Capital, responsável pelo planejamento e execução das obras da cidade, conviveu com a tensão e a insegurança sobre a funcionalidade da nova capital antes, durante e após sua construção. Ainda assim, a Comissão estaria dinamizada pelo desejo de concretizar o feito dentro dos moldes urbanos mais modernos da época. O engenheiro-chefe Aarão Reis assume o cargo em fevereiro de 1894. Ele é responsável pelo formato ortogonal desenhado para a cidade. A Comissão Construtora era um órgão autônomo, a ela era atribuída a função de tomar todas as decisões e executálas para a construção da nova capital do Estado. Segundo os registros da Revista Geral dos Trabalhos da Comissão Construtora, ao se prestar ao serviço, Aarão Reis, em 6 meses, teria impressionado os chefes de Estado REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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que vinham visitar as obras pela celeridade das obras. Isso é relativo se considerarmos que até esse ponto a Comissão sequer imaginava as adversidades que viriam. O Engenheiro-Chefe da Comissão priorizou a abertura de vias essenciais, como a Avenida Afonso Pena, a construção das estações ferroviárias da cidade, Estação Central e Estação General Carneiro, uma ponte sobre o Ribeirão Arrudas e a ponte David Campista. Além disso, Aarão Reis foi responsável pelo planejamento de edifícios essenciais para o funcionamento da capital, como o Palácio Presidencial, o Palácio da Administração, o Congresso, Palácio da Justiça, a Câmara Municipal, a Escola Normal, Escola Primária e Repartição Policial, além do suntuoso Parque Municipal. Entretanto, alguns desses projetos foram abortados antes mesmo de saírem dos papéis, outros só viriam a ser executados após a inauguração da Capital. Em agosto de 1895, acontece, então, a saída prematura de Aarão Reis de seu cargo na Comissão, por questões de saúde, como descrevem os relatórios oficiais ou por conflito com forças políticas adversas, como a historiografia concorda. A data coincide com a mudança da presidência do Estado. Jacques Bias Fortes nomeia Francisco de Paula Bicalho, que permanece como Engenheiro-Chefe da Comissão Construtora até a inauguração da Capital. Aarão Reis é, sem dúvida, quem inspirou a forma da capital, mas seu curto período de atuação, consequentemente, transformaria todo o projeto da cidade. Bicalho não só alterou o desenho original, ele imprimiu uma série de transformações nos projetos que impactariam diretamente a relação do cidadão com o espaço urbano. Sob a administração do novo Engenheiro-Chefe, é ressaltada a crise de habitação que acontece entre 1896 e 1897. A 3ª divisão da nova formação da Comissão, sob a administração do Dr. Adalberto Ferraz, era responsável pelos serviços municipais. No que diz respeito especificamente aos seus trabalhos, ficaria a seu encargo a responsabilidade da aquisição de terrenos, apresentação das plantas dos prédios a serem construídos, aluguel das casas velhas, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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licenças para a construção de cafuas, barracões e comércio e a contratação de operários entre outros. Em um determinado momento, a Comissão considerou que as casas velhas, cafuas e barracões, aprovados pela 3ª divisão como habitações provisórias, eram os maiores empecilhos para a transformação do Arraial em um Município. Abílio Barreto explica a situação destas moradias em sua obra descritiva:

Havia no Arraial e circunjacências nada menos de 430 daquelas casas que, depois das desapropriações, foram alugadas aos funcionários da Comissão e a outras pessoas que iam chegando. Mas aquele número de habitações era relativamente pequeno, insuficiente para acomodar a população que em levas consideráveis afluía para o novo centro de atividade; e houve uma séria crise de habitação, o que determinou transigir a Comissão com o ponto de vista em que estava a princípio, de não permitir a construção de moradias provisórias. (BARRETO, 1995, p. 585)

A crise de habitação se agravaria devido ao hostil relacionamento entre a população local e a 3ª divisão no ofício de desapropriação e demolição dessas edificações não planejadas. Como expresso no segundo jornal da cidade, A Capital: Sabemos que se organizam posturas e que, breve, se tornarão efetivas, legislando sobre industrias e profissões, sobre construção de prédios particulares e sobre viação na zona marcada para a nova capital. As correrias de burros soltos e bois terão, daqui por diante, o seu recinto determinado e poderemos ir assim habituando o nosso bom povo à disciplina municipal. (A CAPITAL, 1896, p. 1)

Vale atentar que A Capital foi um jornal lançado, principalmente, com o intuito de corroborar com as ações da Comissão Construtora. Sendo assim, suas matérias se espalhavam por temáticas essencialmente ligadas às ações de serviços sociais impostos pela Comissão e amenização de transtornos. Fica expresso o ensejo à disciplina municipal que se propagava. Faz-se aqui um breve retorno para antes da inauguração da cidade. Em 28 de maio de 1896, A Capital publica: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Sabemos que, em Ouro Preto, se diz e se propala aos quatro ventos que reina o tifo nesta localidade, fazendo muitas vítimas. Podemos garantir que é mais uma perversidade de que se lança mão contra a capital, mais um carapetão que ajunta aos muitos em que têm sido férteis os boateiros. O livro de registro de óbitos menciona 19 falecimentos no mês de abril findo e 14 no corrente mês, sem que dentre eles se encontre um só caso de tifo assinalado pelos três facultativos que aqui exercem sua profissão. (A CAPITAL, 1896, p. 1)

Fica claro que o discurso higienista divide espaço com a propaganda de êxito dos esforços da Comissão para com a saúde pública. Contudo, o dínamo das forças públicas para a desocupação de moradias irregulares em prol do movimento higienista se mantém forte, mesmo após os esforços da imprensa local para afirmar a capital como paraíso isolado das moléstias que “assolavam” o Brasil. Após a inauguração da capital, a Comissão foi extinta, dado o reconhecimento de que foram concluídos os trabalhos básicos de construção e instalação da cidade. A partir disso, as construções passam a ser administradas exclusivamente pela Prefeitura. Neste momento, a 3ª divisão da Comissão, responsável pelos serviços municipais, já não atuava mais. A Prefeitura sequer tinha uma repartição que cuidasse de serviços destinados à sociedade. Estas, então, eram executadas pela Diretoria de Obras, dentro do que coubesse seu exercício. Mesmo assim, em 1898:

A Prefeitura recebia a primeira proposta para compra de lotes no lugar denominado “Colete”, na zona suburbana, de acordo com o edital e planta, como alegavam os proponentes. (Não logramos localizar esse bairro de “cafuínos”, como os próprios requerentes se chamavam). (PENNA, 1997, p. 49)

Nota-se o caráter segregacionista do discurso higienista que ditava as normas de viver do cidadão marginalizado, independentemente da existência de um órgão municipal direcionado a tal exercício como a 3ª Divisão.

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Os relatórios apresentados ao Conselho Deliberativo pela Prefeitura são uma coleção extensa de livros que descrevem os trabalhos da Prefeitura ano após ano. O primeiro relatório que se tem conhecimento é respectivo ao exercício do ano de 1900, atribuído ao 5º (quinto) prefeito da capital, Dr. Bernardo Pinto Monteiro (BELLO HORIZONTE, 1900 p. 6). No respectivo ano, o prefeito confirma todas as dificuldades que a capital enfrenta em todos os sentidos para oferecer uma cidade habitável aos seus já então 13.472 habitantes. Entre os feitos, o então prefeito comemora a fundação de estruturas essenciais para o funcionamento da capital, como visto a seguir em uma lista que consta ao início do relatório de 1900 com os decretos aprovados regulamentando alguns serviços:

Por esta Prefeitura foram elaborados e submetidos à aprovação do Sr. Dr. Presidente do Estado os regulamentos seguintes, aprovados pelos decretos: (...) N. 1.260, de 14 de fevereiro de 1900- Estabelecendo o regulamento dos theatros N. 1.366, da mesma data – Approvando o regulamento para instalações sanitarias N. 1.367, de 2 de março de 1900 – Approvando o regulamento da policia sanitaria N. 1.368, de 5 de março de 1900 – Approvando o regulamento do cemiterio N. 1.369, da mesma data – Approvando o regulamento do matadouro (...) N.1.377, de 3 de abril de 1900 – Estabelecendo o regulamento dos vehiculos (...) N. 1.383, de 26 de abril de 1900 – Approvando o regulamento de eletricidade e telefonia. (BELLO HORIZONTE, 1900, p.6)

Os decretos aprovados durante esse período dos primeiros anos na capital são uma primorosa fonte, não apenas para tomar conhecimento dos processos administrativos da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Prefeitura durante a formação da cidade, mas, também, para compreender em que o poder público concentra suas ações. Permitiu ao estudo compreender que, em 1900, a cidade ainda estruturava suas fundamentais características que atribuíam a ela o título de município. Longe do esperado para a capital do Estado, Bernardo Monteiro descreve: O desanimo empolgara a população. Era doloroso assistir o exodo de operarios, que abandonavam a cidade por falta de trabalho. As proprias construcções particulares razeavam; altingiamos o periodo da liquidação das hypothecas, ao extremo da desvalorização das propriedades. Nessa emergencia, coube-me ao encargo da administração da cidade. Si o Estado, desprovido de recurso não tinha onde buscar em consequencia da crise bancaria, que mais tarde explodio na praça do Rio, o que restava á Prefeitura? Procurando por innumeros operarios e empreiteiros que solicitavam serviços de qualquer forma, ousei affrontar a situação, atacando obras, levando animo não só aos que trabalhavam, como aos que, confiantes no futuro, aqui haviam empregado seus capitaes. (BELLO HORIZONTE, 1902, p. 6)

É interessante observar como, segundo as palavras de Monteiro, a cidade enfrentava uma grave crise que colocava em risco o sucesso da nova capital. O intenso êxodo das classes populares somado à falta de investimento do Estado poderia desencadear o seu fracasso. Bernardo Monteiro teria que se ocupar de vitalizar a capital. Vitalizar, pois a cidade poderia, nem tão metaforicamente, morrer. Caberia ao prefeito oferecer serviços, empreender obras que atraíssem cidadãos para trabalho, moradia e permanência na capital. Sendo assim, Monteiro se apressa para regulamentar serviços básicos e construções essenciais para o funcionamento da cidade, como descrito na lista de decretos de regulamentações acima. Entretanto, é essencial que se atente à regulamentação de um serviço específico discriminado na lista de decretos do prefeito. Em fevereiro de 1900, Bernardo Monteiro cria a Diretoria de Hygiene da Prefeitura. A seguir, algumas competências dessa Diretoria: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Regulamento a que se refere o decreto n. 1.358 de 6 de fevereiro de 1900 CAPITULO I Art. 1.º Fica creada na Prefeitura desta cidade uma secção de hygiene e assistencia publica, sob a direcção de um medico e dependencia imediata do Prefeito. Art. 2.º O serviço a cargo desta secção comprehende: I A fiscalização sanitaria de todos os grandes trabalhos de utilidade publica e de todas as construcções e obras susceptiveis de comprometter os interesses da saude publica. II A inspecção sanitaria das escolas, fabricas, officinas e quaesquer habitações collectivas, publicas e particulares. III A fiscalização da alimentação publica, do consumo das bebidas naturaes e artificiaes, o fabrico destas, bem como o commercio de aguas mineraes, precedendo o competente exame. IV Os matadouros, mercados, casas de comestiveis, banheiros e lavanderias publicas, theatros e logares de divertimentos, cocheiras, estábulos, hortas, capinzaes, terrenos não edificados, valas e esgotos. V As villas operarias e habitações collectivas para classes pobres. VI As instalações sanitárias domiciliares. VII A limpeza publica e particular. VIII A policia sanitária em tudo que directa ou indirectamente interessar a saúde publica. IX A adopção de meios tendentes a prevenir, combater ou atenuar as moléstias endêmicas, e transmissiveis ao homem e aos animaes. X A vaccinação e revacinação contra variola e outras moléstias. XI A remoção de doentes, desinfectorios, necroterios, cemiterios e serviços funerarios. XII A estatistica demographica da Capital. (...) (BELO HORIZONTE, 1900, p.216-217)

A Diretoria de Hygiene, vale atentar desde já, cumpria a função que hoje seria ocupada pelos serviços públicos de vigilância sanitária, mas ainda assim, no caso da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Diretoria, essa possuiria um espectro muito mais coercitivo. Sem dúvida, seus serviços seriam importantes para garantir a salubridade da capital, considerado a quantidade de doenças contagiosas, e até fatais, que “assolavam” as populações urbanas no período. Como afirma o próprio médico que assume a Diretoria de Hygiene, o Dr. Cicero Ferreira, em um Relatório de 1902, apresentando a Diretoria: A synthese dos trabalhos que se acham affectos a esta secção consiste em empregar todos os esforços a esta e salvaguardar a saude publica de todas as circunstancias pathogenicas que sejam inherentes ás más condições naturaes do meio em que foi collocada a aggremiação urbana e das que forem creadas artificialmente pela densidade da população. (BELLO HORIZONTE, 1902, p. 141)

A Diretoria de Higiene e a Polícia Sanitária

Existe um problema-chave dentro da Diretoria que fica claro em relação à forma de ação que este serviço toma, constantemente, por uma razão muito além do bem-estar da população. Nota-se então uma pauta voltada essencialmente ao controle da moradia privada, além do controle do espaço público e uma determinante fixação pelo pobre, tomado como objeto de controle. A historiadora francesa Françoise Choay, ao tentar compreender o advento das cidades planejadas no século XIX, na Europa, explica que, apesar de voltadas para o conforto, saúde e bem-estar das populações, frequentemente criam soluções impostas aos indivíduos que não levam em conta seus hábitos e tradições, podendo facilmente assumir uma feição autoritária e repressiva (CHOAY, 1956, p. 19). Em setembro de 1900, a Prefeitura publica o decreto regulamentando um órgão submisso à Diretoria de Hygiene, a Policia Sanitaria:

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Regulamento a que se refere o decreto n. 1.367, desta data POLICIA SANITARIA Titulo I Art. 1. A policia sanitaria da Cidade de Minas terá por fim a observancia do disposto neste regulamento, relativamente á prevenção e repressão dos abusos que possam comprometer a saude publica. (BELO HORIZONTE, 1900, p.243)

O decreto que regulamenta a criação da Polícia Sanitária é extenso e detalhado. Em suas 29 páginas discorre sobre as funções policiais atribuídas à diretoria em seu exercício de vigilância. O documento é claro em relação ao processo de vigilância de hotéis, fábricas, oficinas, escolas, internatos, padarias, botequins, restaurantes, lavanderias, casas de banho, barbeiros, cabelereiros, alimentação, moléstias, vacinação, lixo, latrinas, cocheiras e estábulos. O Titulo IV do decreto diz respeito à regulação de habitações para operários. Atenta-se aos seguintes pontos do decreto: Titulo IV Habitações para operarios Art. 99. As habitações para operários não podem ser construídas sem apresentação de planos e sua respectiva approvação, de accordo com o que se exige para as habitações particulares. Art. 100. Essas habitações serão situadas fora da zona urbana. Art. 101. Serão preferidas pequenas casas isoladas para cada familia ou em grupo de duas até quatro, tendo cada uma um vestíbulo especial com um pequeno jardim. (...) Art. 103. As grandes casas, constituindo domicilio comum a um grande numero de individuos, são terminantemente prohibidas. Art. 104. São tambem prohibidas as construções de cortiços e as cosinhas ao ar livres Art. 105. A lotação das casas será determinada de modo que a cada habitante não possa caber menos de 14 metros cúbicos livres. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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(...) Art. 112. O medico da Prefeitura fará visitas frequentes ás villas operarias, exigindo que a limpeza e o asseio sejam mantidos cuidadosamente nas habitações e suas dependencias. (...) (BELO HORIZONTE, 1900, p. 256)

A historiografia atual compreende que no início do século XX, diversas cidades brasileiras passaram por intensas reformas que, sobretudo, pregou a perseguição a moradias populares irregulares como cortiços. Esse esforço é mobilizado pelo discurso higienista que ataca reformas em todas as grandes cidades, não somente no Brasil, mas em todo o Ocidente. O fenômeno em questão foi a principal causa do surgimento das favelas no Brasil. Em Belo Horizonte, o pensamento higienista esteve em voga antes mesmo de a capital ter seu formato, que na verdade, foi pensado estritamente dentro dos moldes higienistas urbanos da Europa. Pode-se observar que havia um incômodo por parte da nova elite belo-horizontina com a existência de moradias populares dentro da zona urbana. Os higienistas paulistas, Candido Espinheira e Paulo Bourrol18, ao escreverem para o relatório sobre a situação sanitária de São Paulo no mesmo período, explicitam o caráter autoritário desse serviço sanitário:

A hygiene não pode congir-se às leis geraes que regem a sociedade, muitas vezes precisa a bem da salubridade publica, intervir ditatorialmente, praticando mesmo violências, segundo a gravidade da situação. A interdição de uma casa, o desalojamento de uma família, a penetração no lar domestico a titulo de visita sanitária, a designação da forma de enterramento e do cemitério, são actos reclamados pela hygiene publica e que não parecem obedecer a uma lei geral, mas sim a um regulamento sanitário especial. (ESPINHEIRA; BOURROL, 1894, s.p.)

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Relatório do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo sobre a organização sanitária do Estado, cap. III - Do Isolamento – Remoção de contagiados, 1894. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A partir disso, pode-se notar o caráter segregacionista atribuído a uma função policial ostensiva, mesmo que submetido a um órgão da prefeitura direcionado à higiene pública. Essa relação é muito tênue neste período. No relatório de 1900, sob a administração de Bernardo Monteiro, ele descreve o processo de desocupação destas moradias: “Tenho tomado serias providencias mandando demolir os barracões, provisoriamente permitidos e foram construídos nos pateos de diversos predios, por terem os mesmos se convertido em verdadeiros cortiços (...)” (BELLO HORIZONTE, 1900, p. 40). A regulamentação da Diretoria de Higiene e, posteriormente, de Polícia Sanitária, em 1900, dinamizaria a ação higienista para a administração pública da capital. O relatório de 1902, ainda sob a autoria de Bernardo Monteiro, apresenta de forma mais tocante os trabalhos atribuídos à Diretoria. Nesse relatório, Monteiro é categórico ao afirmar logo nos primeiros parágrafos do trecho sobre a “polícia sanitária” que sua função, além das fiscalizações rotineiras ao comércio e à indústria, se estendia, também, à esfera particular. Observada a forma que a administração pública tratou a situação, a partir do surgimento das vacinas e a forma violenta como as populações urbanas encararam sua chegada incisiva, podemos notar como a relação da força pública com a esfera privada se dá de forma hostil. Como descreve Monteiro “O serviço de vaccinação foi feito com regularidade, apesar da rebeldia que o povo em geral mostra por esta medida de prophylaxia” (BELLO HORIZONTE, 1902, p. 159). A invasão do espaço privado pela polícia nos mutirões de vacinação obrigatória desencadeou no Brasil revoltas civis memoráveis, como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904. No mesmo parágrafo, Monteiro comemora: “Os cortiços estão hoje felizmente abolidos e a classe operaria regularmente abrigada” (BELLO HORIZONTE, 1902, p. 159). Como será observado a seguir, ele estava enganado, pois a prefeitura viria a atacar mais desocupações no futuro. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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O ano de 1902 foi emblemático para a Diretoria de Higiene. Ela começaria, então, outros serviços que imprimiriam a velada necessidade de gentrificação do espaço urbano. Naquele ano, a Prefeitura inicia o extermínio de cães vadios das ruas da capital. Embasado pelo discurso higienista das doenças transmissíveis, o temor à hidrofobia dos cães estimulou a campanha da Prefeitura pela extinção dos cães de rua. Naquele ano, 492 animais foram apreendidos. Ainda em 1902, a polícia sanitária se encarregou de matricular mendigos, como descreve Bernardo Monteiro: “Foram matriculados 43 mendigos, tendo sido negada matricula a grande numero, que não apresentava os requisitos legaes para esmolar na Cidade” (BELLO HORIZONTE, 1902, p. 160). Estes requisitos que a Prefeitura cobrava dos mendigos tinham, entre suas atribuições, a situação de moradia deles. Por mais absurdo que possa parecer, para conseguir autorização para mendigar na cidade, era necessário ter moradia. Otávio Penna, em suas notas cronológicas, traz uma curiosa menção em 1902. No dia 20 de fevereiro de 1902, a polícia sanitária se encarregou de deportar um grupo de vadios e jogadores para fora da cidade (PENNA, 1997, p. 75). A nota em questão é de fato peculiar visto o esforço das forças policiais para literalmente banir os indivíduos indesejados. Mesmo sendo desconhecido o destino dessa deportação, existem incontáveis documentos e estudos sobre sanatórios e prisões que receberam “vadios” em diversos períodos. Nesse ponto, podemos observar com clareza o quanto o discurso higienista da época flerta com as ações de coerção da gentrificação da cidade contemporânea. O relatório de 1903, de Francisco Bressane de Azevedo, confirma:

A difficuldade de vida que se observa com a falta de prosperidade das classes productoras, a falta de trabalho que permitta occupar um certo numero de actividades, e que dia a dia se torna mais seria, fazendo com que se os mais aptos supplantem os mais fracos e o desanimo que se apodera destes, principalmente se já tem attingido uma certa edade. Todas estas circumstancias agem accordes e harmonicas para augmentar a mendicidade no paiz. Deve-se REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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notar que entre as causas apontadas não fallamos nas molestias que tornam effectivamente inválidos certos operarios; e que, por consequencia, não ha verdadeira invalidez: que, ao contrario muitas actividades, convenientemente exploradas, poderiam ser aproveitadas. (BELLO HORIZONTE, 1903. p. 70.)

A saída de Bernardo Monteiro da Prefeitura não inviabilizou em nada a ação da Diretoria de Higiene, neste momento já considerada essencial para o sucesso da nova capital. Porém, é inadmissível considerar que a população da capital aceitasse todas as medidas da Diretoria sem exaltação. Apesar da disseminação do discurso higienista, as ações da polícia sanitária implicavam diretamente na vida da recém-nascida sociedade belo-horizontina. Em 1903, segundo as Notas Cronológicas de Belo Horizonte, de Otavio Penna, o prefeito Francisco Bressane de Azevedo, junto à Diretoria e à polícia sanitária, enfrentaria a exaltação de populares contra o serviço de apreensão de animais, pois animais domesticados, que viessem a estar na rua durante alguma apreensão, eram capturados e, certas vezes, exterminados.

A transformação do discurso médico higienista

Desde o surgimento da diretoria fica claro como a postura ostensiva do poder público se desdobrava de diferentes maneiras dentro da prática do urbanismo higienista em que o pobre se transforma em objeto passivo de manobra política. Logo durante as primeiras décadas da cidade, concomitantemente às também primeiras décadas do uso massivo das políticas higienistas no Brasil, pode-se perceber o íntimo relacionamento entre a vigilância ostensiva e o discurso do urbanismo higienista. O prefeito Olyntho Meirelles declara no relatório referente ao exercício dos anos 1911-1912:

Já não temos pelas nossas ruas a triste e desagradável romaria de mendigos. Aos sabbados o commercio em famílias empregavam grande parte do dia em REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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atender aos que pediam esmolas. Urgia uma providencia administrativa que assegurasse por um lado o sentimento de caridade e solidariedade humana que todos nós devemos aos inválidos para a lucia da vida e aos infelizes portadores de molestias incuraveis e por outro, coibisse os provados abusos dos que esmolavam, podendo, pelo trabalho, prover a sua subsistência. (BELLO HORIZONTE, 1911-1912, p. 27)

No dia 22 de março de 1912, a Prefeitura publica a Portaria que proíbe a mendicância nas ruas da cidade e manda arquivar os livros, bilhetes e placas referentes a mendigos (PENNA, 1997, p. 128). Isso não resultaria no fim deles como descreve Meirelles, mas sim sua invisibilização. A relação do poder público para com os marginalizados era, não só de descaso, mas, substancialmente, hostil, ainda que travestida de ação social, corroborada pelo discurso higienista, autorizando o processo de gentrificação. A perseguição a grupos marginalizados não se limitava aos moradores de rua. A obsessão pela eliminação do pobre, da miséria e da casa do pobre era incendiada pelo discurso higienista. No dia 10 de setembro de 1913, segundo Penna: A Prefeitura, de acordo com instruções anteriores, abre “matricula aos creados de servir, aos quais fornecerá as necessárias carteiras profissionais”. Posteriormente, em 26 de setembro, o prefeito, aproveitando a presença do médico de Higiene Municipal nas suas visitas de inspeção domiciliar, determinou que fossem igualmente examinados e inscritos os criados de cada casa, desde que a tal não se opusessem os respectivos patrões. (PENNA, 1997, p. 142)

Longe de uma medida que pretendesse assegurar direitos aos empregados, tal acordo expressa a coercitiva postura ostensiva do poder público com as camadas mais pobres da sociedade. Retira-se dele sua autonomia e se torna apenas objeto subjugado à saúde pública. No dia 6 de outubro de 1919, a Prefeitura publica a lei nº180, autorizando a extinção da Diretoria de Higiene, como é comprovado no artigo a seguir: “Art. 1. “Fica o Prefeito autorizado a extinguir a Diretoria de Higiene da Prefeitura, depois de entrar em acôrdo com o Governo do Estado para ser feito por este o serviço de higiene municipal” (BELO HORIZONTE, 1919, p. 20). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Nos oito artigos que se estende a lei, nada se fala sobre os exercícios de matrícula, desocupação de moradias irregulares ou proibição da mendicância, apenas os ofícios de fiscalização ao comércio e indústria e coleta de lixo são discriminados na publicação. Porém, para nada valeria essa discussão senão desanuviar o discurso higienista e sua intrínseca relação com o serviço social. A extinção da Diretoria de Higiene já não seria suficiente para conter o discurso higienista que já havia se transmutado como políticas de serviço social. Seria impensável que o fim da Diretoria poderia acarretar o fim das práticas higienistas. Em 1926, a Prefeitura, juntamente com a Associação São Vicente de Paula, “providencia sobre a supressão da mendicância na rua da Capital, propondo tomar a si o encargo da distribuição de esmolas e alimentos nas próprias habitações dos mendigos” (PENNA, 1997, p. 208).

Considerações finais

A partir do desenvolvimento do presente artigo, é possível notar que, com o passar das décadas, o discurso higienista não se perdeu, mas se transformou. Conforme a sociedade se posiciona contra determinada prática que passa a ser vista como desumana, esta teria que ser suprimida ou travestida de serviço social. O discurso higienista passou por um longo processo de permanências e rupturas. Hoje, o discurso estritamente médico higienista é insuficiente para embasar os processos de gentrificação. Sem dúvida, pode-se considerar que com o fim da Diretoria de Higiene, institucionalmente, o discurso higienista se dissociou das políticas urbanas de coerção das classes marginalizadas e a partir daí fica mais fácil classificar esse autoritarismo das forças policiais como prática de gentrificação, mas, sem dúvida, como conclusão dessa discussão, se pode admitir que o discurso higienista possuía um viés gentrificante, dentro das políticas de salubridade pública REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A gentrificação se conceitua a partir das últimas décadas como discurso voltado para a perseguição, afastamento e extermínio do pobre e do espaço que ele ocupa, mas não mais embasado por um discurso médico sanitarista. O próprio conceito do marginal é transmutado e diretamente associado às questões de segurança. Este artigo jamais seria capaz de determinar os caminhos da gentrificação desde o período higienista até os reflexos das situações mais atuais, mas sem dúvida, se propôs a discutir essa matriz durante as primeiras décadas do século XX. As diversidades de documentos disponíveis em arquivos públicos como o APCBH possibilitam traçar uma linha contínua sobre todo o século XX problematizando as relações de poder que atacam classes marginalizadas, porém, não é possível fazê-lo neste artigo. Mesmo assim, toma-se as últimas linhas deste artigo para apresentar algumas informações sobre as ações ostensivas que através do discurso higienista pregam a perseguição às populações marginais de Belo Horizonte atualmente. Como uma visível herança das políticas públicas higienistas. Atualmente, Belo Horizonte é a única capital do país que possui uma delegacia especializada no combate à pichação. O Viaduto Santa Tereza, por exemplo, como espaço legítimo de expressão da arte Hip-Hop, por meio do Rap, do grafite, do “pixo”19, do street dance expressa, em suma, a territorialidade marginal. A reação do poder público é de culpar determinados grupos sociais marginalizados pela criminalização da região que se encontra o viaduto. As ações impactam na perseguição aos grafiteiros e “pixadores” com alegação na pauta pelo fim da “pixação”, dispersão e coerção dos moradores de rua, o isolamento do viaduto com o argumento de obras em prol do esporte e lazer, fazendo com que os movimentos que ocupam o local eventualmente fiquem desabrigados ou excluídos. A territorialidade atribuída a certos locais, como o Viaduto Santa Tereza, devido às ocupações dos espaços públicos por grupos marginais da sociedade, não é bem vista

O movimento Hip-Hop no Brasil reconhece a palavra “pixo” como grafia correta. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513 19

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pela comunidade local e, concomitantemente, torna-se um problema para o poder público. Os processos de gentrificação que pretendem “higienizar” esses locais, privando determinadas territorialidades, podem ser observadas no caso do Viaduto. A produção acadêmica que trata das recentes mudanças nos espaços públicos das grandes cidades aponta para várias transformações, que incluem desde os casos extremos de privatização de ruas e praças, como ocorre nos condomínios fechados e nas favelas e bairros dominados pelo tráfico de drogas, bem como o uso de grades no perímetro de praça como estratégia para a vedação e possibilidade de cerceamento desses espaços até uma retração do convívio nos principais espaços públicos da cidade em troca da convivência em espaços semi-públicos, como os shopping centers. Essa questão também é tratada pelas autoras Luciana Teixeira de Andrade, Juliana Gonzaga Jayme e Rachel de Costa Almeida, no primeiro capítulo da obra, publicada em 2009, “Espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles”, que trabalham questões como memória, identidade, marginalização e privatização de espaços públicos e semi-públicos.

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Imagens

Imagem 1: Festa de Inauguração da Cidade de Minas (1897) Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte/ C13/n-001

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Imagem 2: Mulher e Crianças em frente a Cafua Típica das Imediações da Região Central (1920) Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte/ C13/q-010

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Imagem 3: Vista do Bairro Lagoinha em Belo Horizonte (MG). Vê-se ao fundo o Centro da Cidade (1920) Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte/ C13/q-008

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Imagem 4: (Sem Título) Vista de Bairro Operário Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte/ C13/q-024

Referências

Acervos Documentais ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE BELO HORIZONTE. Decreto nº 1.358, de 6 de fevereiro de 1900. Regulamenta a criação da Diretoria de Higiene. Leis Mineiras, 1900, Belo Horizonte, 6 fev. 1900. BELO HORIZONTE. Decreto nº 1.367, de 2 de março de 1900, que aprova o regulamento da Polícia Sanitária. Leis Mineiras, 1900, Belo Horizonte, 2 mar. 1900. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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BELO HORIZONTE. Lei nº 180, de 6 de outubro de 1919. Dispõe sobre a extinção da Diretoria de Higiene. Legislação Municipal, 1919-1920, Belo Horizonte, 6 out. 1919. p. 20. BELLO HORIZONTE. Mensagem ao Conselho Deliberativo da Cidade de Minas pelo prefeito Dr. Bernardo Pinto Monteiro. Cidade de Minas, 1900. 69 p. BELLO HORIZONTE. Relatorio apresentado ao Conselho Deliberativo pelo prefeito Dr. Bernardo Pinto Monteiro. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1902. 273 p. BELLO HORIZONTE. Relatório apresentado ao Conselho Deliberativo pelo prefeito Francisco Bressane de Azevedo. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1903. 191 p. BELLO HORIZONTE. Relatório apresentado aos Membros do Conselho Deliberativo da Capital pelo prefeito Olyntho dos Reis Meirelles. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1912. 101 p. REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, v. 1. Commissão Construtora da Nova Capital. 1895. REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, v. 2. Commissão Construtora da Nova Capital. 1895. Livros, teses, fontes impressas BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva – história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995. CÂMARA, G. A. R. As condições necessárias às habitações das cidades para que sejam salubres. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina da Bahia. Salvador, 1860. CHOAY, Françoise. L’urbanisme, utopies et réalités: une anthologie. Paris: Éditions du Seuil,1965. COSTA, Maria Clélia Lustosa. A CASA E A RUA: OBJETOS A MEDICALIZAR. Boletim Goiano de Geografia, [S.l.], v. 36, n. 2, p. 219, ago. 2016. ISSN 1984-8501. Disponível em: <https://revistas.ufg.br/bgg/article/view/42792>. Acesso em: 14 out. 2018.

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LÉCUYER, Bernard. L’hygiène en France avant Pasteur (1750-1850) in: SALOMONBAYET, Claire (org.). Pasteur et la révolution pastorienne. Paris: Payot, 1986. NÃO é verdade. A Capital. Belo Horizonte, 28 maio, p. 1, 1896. PENNA, Octavio. Notas Cronológicas de Belo Horizonte: 1711-1930. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1997. 276 p. POLITICA Municipal. A Capital. Belo Horizonte, 4 fev, p. 1, 1896. ROCHARD, Jules. Encyclopédie d'hygiène et de Médecine Publique. Paris: Ed. Arthur Rousseau et Vigot Frères, 1897.

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PATRIMÔNIO URBANO ENTRE POLÍTICAS DE REVITALIZAÇÃO E GENTRIFICAÇÃO: O MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS (BH-MG)

URBAN HERITAGE BETWEEN REFURBISHING POLICIES AND GENTRIFICATION: THE ARTS AND CRAFTS MUSEUM (BHMG)

Aline Damasceno Santana* Luiz Henrique Assis Garcia**

Resumo O presente artigo busca discutir a relação entre o patrimônio urbano e as políticas de revitalização e gentrificação implementadas na Praça da Estação, focalizando na reforma do edifício da Estação Central que abrigaria o Museu de Artes e Ofícios. A partir da análise da documentação oficial e de jornais impressos, em sua maioria levantados no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e no arquivo do Museu Histórico Abílio Barreto, pôde-se perceber os diferentes discursos e conflitos que se deram em torno da instalação e funcionamento do Museu de Artes e Ofícios e de sua relação com o entorno, o que acabou por permear os usos e as apropriações dos espaços públicos no centro da cidade, indicando o apagamento de memórias socialmente relevantes e diferentes formas de exclusão. Por meio dos resultados obtidos em uma pesquisa de campo, propõe-se ações *

Mestranda na linha de Ciência e Cultura na História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Museologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017). Endereço eletrônico: likabarbie@hotmail.com. **

Graduado, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado do curso de Museologia e do PPGCI na ECI-UFMG. Endereço eletrônico: lhag@ufmg.br. A pesquisa recebeu auxílio financeiro do CNPq e bolsa IC PROBIC/FAPEMIG. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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que promovam a interlocução entre as instituições culturais e os citadinos que usufruem cotidianamente da Praça, tornando-as mais democráticas.

Palavras-chaves: Museu de Artes e Ofícios. Gentrificação. Revitalização.

Abstract This article intends to discuss the refurbishing policies and gentrification implemented at Station Square [Praça da Estação], focuzing on the refurbishment of Central Building, aiming to house the Arts and Crafts Museum. Based on the analysis of official documentation and printed newspapers mostly surveyed at the City Public Archive of Belo Horizonte and at the archive of the Museum Historical Abílio Barreto, it was possible to perceive the different discourses and conflicts on the Arts and Crafts Museum’s creation and functioning, and its relation to surroundings, which eventually permeated the uses and appropriations of downtown public spaces, indicating the deletion of socially relevant memories and different forms of exclusion. By means of the results obtained in a field research, we propose actions that could promote the interlocution between the cultural institutions and the citizens that daily enjoy the square, making the institutions more democratic.

Key-words: Arts and Crafts Museum. Gentrification. Revitalization.

Introdução

Este artigo tem como foco o exame das transformações do uso do edifício da Estação Central da antiga Ferrovia Central do Brasil, construção emblemática e monumental, que, sob a égide das políticas de patrimônio em diferentes esferas (municipal e estadual), concorreram para promover novos usos culturais aos edifícios desocupados no Conjunto Urbano da Praça Rui Barbosa e Adjacências, no hipercentro da REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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cidade de Belo Horizonte. O edifício passou a abrigar em 2005 o Museu de Artes e Ofícios (MAO), fruto de uma parceria entre o poder público (envolvendo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Companhia Brasileira de Trens Urbanos) e o privado (Instituto Cultural Flávio Gutierrez), na qual posteriormente suas coleções foram doadas à União e tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Buscando compreender as transformações, os conflitos e os discursos que permearam o processo de requalificação do espaço físico da praça e de instalação do museu, nos debruçamos na análise da documentação oficial referente à Praça da Estação consultada junto aos órgãos responsáveis20, e de jornais impressos levantados no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH) e no Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB) durante os meses de abril a agosto de 201521. A partir da sistematização e organização dos recortes de jornais, pudemos perceber as diferentes operações e enunciados em torno do “enobrecimento”22 e higienização23 da Praça da Estação, falas e

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No ano de 2014, por meio de recursos provenientes do CNPQ, foi realizado um levantamento dos dossiês de tombamento e de pareceres técnicos na Diretoria de Patrimônio Cultural da Prefeitura de Belo Horizonte (DIPC) e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico - MG (IEPHA/MG). 21

Foram reunidos recortes de jornais selecionados pelo Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB) e o Arquivo Público da Cidade (APCBH), que circularam na década de noventa até o ano de 2015. A documentação jornalística coletada versa sobre a Praça da Estação, Movimentos Sociais que se deram no entorno da praça e sobre o Museu de Artes e Ofícios. As principais fontes foram o Jornal Estado de Minas, Jornal O Tempo e Jornal Hoje em Dia. 22

Reconhecendo as controvérsias em torno da tradução da expressão gentrification, adotaremos as formas gentrificação e enobrecimento como sinônimas. Rogério Proença Leite (2004) conceitua gentrificação como um termo “utilizado para designar a transformação dos significados de uma localidade histórica em um segmento do mercado, considerando a apropriação cultural do espaço a partir dos fluxos de capitais” (LEITE, 2004, p. 19 e 20), adequando-o às práticas de consumo das classes média e alta, e supostamente resgatando a sua antiga “glória”, “beleza”, e, como no caso do Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências, à sua posição de centralidade na cidade de Belo Horizonte. 23

Leite (2004) argumenta que o processo de higienização urbana envolve a retirada de pessoas consideradas degradadoras do espaço, como por exemplo moradores em situação de rua e vendedores ambulantes, em prol de uma homogeneização dos usos e das pessoas que frequentarão o espaço a ser revitalizado. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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ações que se contrapõem com aquelas que podemos perceber no cotidiano da praça, obtidas por meio dos registros das entrevistas e também em observações que realizamos na pesquisa de campo entre setembro e dezembro do mesmo ano. Podemos perceber, portanto, diferentes visões antagônicas em torno da construção a partir da década de oitenta da Praça da Estação enquanto um patrimônio urbano tombado. Antônio Arantes (2006) entende que patrimônio, em sua acepção geral, é uma “construção social e, assim sendo, torna-se necessário considerá-lo no contexto das práticas sociais que o geram e lhe conferem sentido” (ARANTES, 2006, p. 426). Assim, trata-se de uma construção marcada por tensões, disputas e negociações entre diferentes grupos sociais, pela comunidade de técnicos e pelo poder público em torno dos significados e sentidos da preservação de um determinado bem e de seus usos. Antônio Arantes (2006) retoma discussões que Ulpiano B. de Menezes vem fazendo desde os anos 1980 para caracterizar o que ele denomina como patrimônio ambiental urbano: sua condição de artefato; campo de forças sociais e agregado de representações simbólicas. Desse modo, ao associar a noção de ambiente à de patrimônio urbano, ela induz a reflexão e a prática patrimonial a se abrirem para os valores pelos quais os habitantes das cidades reconhecem nelas, mais do que um simples pano de fundo, um cenário morto em relação ao qual suas vidas seriam indiferentes (ARANTES, 2006, p. 430).

O conceito de patrimônio urbano está portanto, entrelaçada aos sentidos que são conferidos pelos habitantes da cidade, pois um bem patrimonial se constitui por meio da tessitura de vozes, valores e significados que estão em disputa dentro das políticas de patrimônio, que elegem os significados simbólicos e aquilo que constitui um bem a ser salvaguardado. Tal argumentação sobre o patrimônio urbano é fértil para pensarmos as diferentes visões e valores em disputa no que diz respeito ao processo de transformação do edifício da Estação Central no Museu de Artes e Ofícios, uma vez que o discurso REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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pautado pelas políticas de gentrificação acabou por sobrepor determinados usos anteriores do edifício, como será analisado posteriormente. Segundo informações disponibilizadas no dossiê do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA/MG), o “Conjunto Paisagístico e Arquitetônico da Praça Rui Barbosa” é compreendido pela própria Praça Rui Barbosa, pela Praça da Estação, pelos seus jardins (paisagismo) e esculturas, pelo seu perímetro urbano (abarcando os Viadutos Santa Tereza e Floresta, e os antigos Dormitórios e Armazéns da Estação) e também os seguintes edifícios: prédio da Estação Central, antiga Estação Ferroviária Oeste de Minas; Casa do Conde de Santa Marinha; edifício Chagas Dória, atual Serraria Souza Pinto; Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); o antigo Instituto de Química; e o Pavilhão Mário Werneck (IEPHA, 2014, p. 255). Tal “conjunto paisagístico e arquitetônico” foi tombado em nível estadual pelo IEPHA, por meio do decreto nº 27.927 de 15 de março de 1983 e em nível municipal pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte, sob o nome de “Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências” sob o número 010304569655, lei municipal de nº 4034 de 25 de março de 1985. Sob âmbito da lei municipal de tombamento, um total de 32 equipamentos urbanos situados no perímetro da Praça se encontram inseridos nesse processo, na qual, onze foram preservados integralmente, dois deles considerados de interesse cultural e o restante foi tombado parcialmente, ou seja, pela sua volumetria ou por sua fachada. Dentre os elementos paisagísticos e artísticos foram tombados o “Monumento à Terra Mineira”, as esculturas “As hermas do lago” e “As leoas”, bem como os postes de iluminação e balaustres. Adotou-se também uma legislação de ocupação do solo para as áreas internas do conjunto tombado, restringindo o uso dos dois quarteirões paralelos ao Viaduto Santa Tereza (PLAMBEL, 1981). Tendo sua importância atestada pelos mecanismos oficiais de preservação pelo seu valor histórico, artístico, arquitetônico e cultural, delineamos adiante um breve histórico da praça, perpassando as suas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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transformações, os projetos de revitalização e reutilização do local, tomando como foco o Edifício da Estação Central, prédio apresentado como um dos fios condutores das propostas de requalificação da Praça da Estação. Tais transfigurações na “Praça” atravessaram diferentes debates políticos, econômicos, sociais e culturais em torno das políticas de preservação do patrimônio que permearam desde a data de seu tombamento a nível estadual até o ano de 2016, quando se encerrou as pesquisas desenvolvidas sobre a localidade. Em seguida, examinamos a proposta de instalação do museu na Praça da Estação, que como mostraremos, não esteve isenta de disputas e críticas por parte de diferentes segmentos sociais. Ela esteve imbricada em ações e políticas de requalificação urbana, gentrificação e higienização, operações que acabam por reconfigurar e conferir novos sentidos ao espaço, não sem desencadear os conflitos que serão analisados aqui posteriormente. As propostas de revitalização da Praça embasaram-se, portanto, em argumentos de deterioração do ambiente urbano, invariavelmente apresentando os habitantes em condições sociais mais frágeis, como a população em situação de rua, os “pivetes” e os vendedores ambulantes como sujeitos ativos na degradação e destruição do patrimônio presente na Praça. O novo uso proposto para o prédio também era justificado pela urgência assumida pelos elaboradores de políticas do campo da cultura em se preservar e resgatar a memória sobre o local, tomada como ameaçada pelo esquecimento, diante das diferentes descaracterizações ocorridas ao longo do tempo, o que incluiu a demolição total ou parcial de edifícios e de elementos que compõem a arquitetura dos prédios. Buscamos evidenciar como as transformações, a preservação e a utilização dos edifícios e dos espaços pertencentes ao Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências, decorreram de uma visão antagônica de diferentes grupos, bem como assinalar o modo como as medidas de revitalização do local resultaram no apagamento de determinados usos dos edifícios que compõem o Conjunto Urbano e REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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também na segregação de determinados segmentos sociais que utilizam cotidianamente o local. Buscamos finalmente concluir conjecturando algumas proposições de interlocução do Museu de Artes e Ofícios com o seu entorno e com aqueles que habitam, vivenciam e se locomovem na Praça da Estação, estabelecendo um diálogo e uma apropriação mais democrática do museu, tendo-se em vista a função social das instituições museais.

Histórico de um Conjunto Urbano: projetos de revitalização e usos do espaço público

Popularmente conhecida pelos moradores da cidade de Belo Horizonte como Praça da Estação, a área que a circunscreve teve sua denominação alterada em 1914 para o nome Praça Cristiano Otoni, em homenagem às contribuições do político para a implementação do setor ferroviário em Minas Gerais, que interligava a recém-criada capital mineira a outras regiões do estado. Em 1923, a praça foi renomeada Praça Rui Barbosa, nome que perdura até os dias atuais. Tal conjunto urbano apresenta caráter exemplar e é considerado um dos locais remanescentes dos processos de consolidação da nova capital mineira (IEPHA, 2014), o que justificou a sua tutela, preservação e tombamento em nível municipal e estadual. O Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências teve como marco de fundação a implantação do ramal da linha férrea “Estrada de Ferro Central do Brasil”, que seria responsável pelo abastecimento da cidade e pelo escoamento de produtos nas Minas Gerais, interligando Belo Horizonte ao município de Sabará. Os primeiros edifícios que começaram a ser erguidos no perímetro foram os galpões em estilo REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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neoclássico localizados na Av. do Contorno nº 1165, idealizado por Antônio Teixeira Rodrigues, o Conde de Santa Marinha, funcionando inicialmente como sua oficina. E também o edifício localizado na Rua Januária nº 130, que abrigou a residência de dois pavimentos do Conde de Santa Marinha (PLAMBEL, 1981). Em maio de 1895, Aarão Reis começou a esboçar o projeto arquitetônico que deveria abrigar a Estação Central Minas próximo ao Ribeirão Arrudas, fornecendo suas principais características: Quanto a Estação Central (Minas) que terá de ser levantada como pórtico, na nova capital, procurei dar-lhe não a suntuosidade descabidas nem mesmo o luxo artístico dispensável, mas toda a elegância, todo o conforto e todas as comodidades, cujas faltas seriam imperdoáveis na Estação Central de uma cidade do século XX (REIS, 1895, apud PLAMBEL, 1981, p. 76).

Tal projeto começou a ser executado pelo arquiteto José Magalhães com a participação dos desenhistas e arquitetos Edgard Nascimento Coelho e Edgard Verdussen, na qual sua arquitetura apresentava elementos ecléticos. Posteriormente, o primeiro relógio público da cidade foi instalado no local (MIRANDA, 2007). Contudo, em 1920 o prédio que abrigava a Estação Central (Minas) foi demolido, pois o edifício primitivo não possuía as proporções, as arcadas e colunas que lhe confeririam a elegância e leveza arquitetônica. No mesmo ano da demolição do prédio da Estação Central, construiu-se a Estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas na Rua Sapucaí. A instalação da pedra fundamental de uma nova edificação para a Estação Central foi colocada no mesmo ano da demolição do edifício ali existente, e começou a ser planejada e arquitetada por Luiz Olivieri - arquiteto italiano que participou da Comissão Construtora da Nova Capital. Inaugurado em novembro de 1922, o novo edifício apresenta inspirações neoclássicas e proporções exatas, seguindo o esboço proposto por Aarão Reis (PLAMBEL, 1981), sendo denominada de Estação Central do Brasil. Em 1930, inaugurou-se o Monumento à Terra Mineira do escultor Giulio Starace REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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(IEPHA, 2014) - símbolo do desbravamento dos bandeirantes no território mineiro e da conquista dos mártires da liberdade em Minas Gerais, destacando-se os personagens envolvidos na Revolta de Vila Rica em 1720 (Felipe dos Santos) e na Inconfidência Mineira (Tiradentes). O primeiro projeto paisagístico e de arborização da Praça da Estação/Praça Rui Barbosa foi iniciado em 1904 e concluído dois anos depois, abrigando também um coreto (MIRANDA, 2007). Em 1924, realizou-se um novo projeto de reforma paisagística na Praça,

elaborado pelo arquiteto Magno de Carvalho; [com a] construção de canteiros ajardinados, dois lagos, dois caramanchões, escadas, sarjetas e arruamentos; instalação de quatro esculturas representativas das estações do ano, além de dois tigres e dois leões; calçamento dos passeios ao redor dos jardins em mosaico português (MIRANDA, 2007, p. 59).

O novo projeto paisagístico seguiu os moldes dos jardins franceses, inspirados em Versalhes, no qual se contemplou traçados geométricos e a construção de alamedas com cercas vivas. Segundo Suzy de Mello (1981), no ano de 1931, há notícias de que a Praça da Estação/Praça Rui Barbosa abrigava cerca de 250 espécies de roseiras, que já não se encontram mais presentes na atual configuração paisagística da Praça. No ano de 1936 foi inaugurada a “Fonte Luminosa da Independência” (PLAMBEL, 1981), que brotavam do piso sem a formação de lagos, tornando-se uma atração para os citadinos de Belo Horizonte. Ressaltamos que no ano de 1935 foi inaugurado o Viaduto Santa Tereza e em 1938 o Viaduto Floresta, elementos tombados pelos órgãos de patrimônio tanto na esfera municipal quanto estadual. Chama atenção durante o processo de desenvolvimento acelerado do transporte público rodoviário na década de 1960 e 1970, a transformação do edifício onde se situa atualmente a Serraria Souza Pinto em um estacionamento de automóveis, funcionando REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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como parqueamento até a década de noventa. Já o funcionamento de um grande estacionamento de automóveis em frente ao edifício da Estação Central perdurou até meados dos anos 2000, quando começou a ser implementado, por meio da parceria público-privada, o projeto de ampliação da Praça da Estação, “resgatando” a sua área original através da cobertura do córrego do ribeirão Arrudas - projeto denominado de Boulevard Arrudas. A execução das obras no espaço físico do Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências esteve respaldada pelas concepções formuladas pelas comunidades de técnicos dos diferentes órgãos públicos e de uma elite local que a entendiam enquanto uma região “degradada” e “abandonada”. Assoma-se a isso o entendimento por parte do poder público de que as populações que utilizavam cotidianamente a Praça eram os principais agentes degradantes do local, pelos usos e contra-usos (LEITE, 2004) que se davam nesse espaço, sendo necessário, portanto, adotar estratégias de higienização social na praça a ser revitalizada. Portanto, realizou-se a construção de uma nova esplanada localizada à frente do Edifício da Estação Central do Brasil, para a realização de eventos e manifestações, o que acabaria por eliminar de vez o estacionamento do local. Podemos aventar a hipótese de que esta obra também intentou deslocar o cenário dos movimentos reivindicativos que tendiam a acontecer na frente da sede da Prefeitura que se localiza na Av. Afonso Pena, pois como argumentou o então secretário de Política Urbana e Ambiental, Murilo Valadares “a cidade não tem onde concentrar esses eventos, por isso queremos incentivar a realização de encontros e protestos lá [...] lembrando que o Espaço da Praça Sete é restrito a pequenas concentrações de pessoas” (ODILLA, 1997, p. 24). O desejo de se criar um “Palco oficial de Protesto” na Praça da Estação - vontade que não é recente ao projeto de requalificação da região nos anos noventa - gerou críticas por parte dos movimentos sindicalistas, onde eles argumentaram que o local não promoveria a pressão necessária aos gestores públicos municipais (ODILLA, 1997). A REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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despeito disso podemos constatar que quando a pauta é eminentemente municipal os movimentos reivindicatórios ainda ocorrem em frente à sede da Prefeitura, como vimos recentemente na greve dos professores da rede infantil de Belo Horizonte. Uma análise bastante aguda de como as políticas de revitalização são usadas para criar espaços delimitados e controlados em que ocorram manifestações públicas e reuniões massivas é proposta por Leite (2004) para o Marco Zero em Recife, que não por acaso foi redesenhado com uma esplanada desprovida de sombra. Nesta reforma feita na Praça da Estação foram instalados novos pisos, com pavimentação em concreto vermelho, nova iluminação e fontes luminosas (IEPHA, 2014). O projeto de requalificação do espaço físico da Praça - dos anos 2000 a 2012 imprimiu alguns dos traços que configuram atualmente o conjunto urbano, apesar de que atualmente (2018) os jardins e fontes se encontram degradados por falta de manutenção por parte do poder público. Felipe Hoffman (2014) afirma que o projeto de requalificação urbana que se deu na Praça da Estação foi corroborado e fomentado pela execução do restauro do edifício da Estação Central que iria abrigar o Museu de Artes e Ofícios. A execução da revitalização da região perpassou o diálogo do poder público com o capital privado, envolvendo uma série de estratégias pautadas na tentativa de se retomar o papel hegemônico dessa região na cidade de Belo Horizonte. Parafraseando José Reginaldo Santos Gonçalves (1996), Elena Rivero (2015) aponta para uma “retórica da perda” nos discursos oficiais em torno do conjunto urbano da Praça e do edifício da Estação Central. Segundo a autora, a revitalização passa pelo desejo em se resgatar a Praça enquanto um cartão postal da cidade, adquirindo novamente uma posição de centralidade por meio do mercado turístico (RIVERO, 2015). Felipe Hoffman (2014) endossa que, juntamente com a revitalização da região, os discursos oficiais entendiam que o estabelecimento do Museu de Artes e Ofícios na praça permitiria potencializar o fluxo de pessoas (consumidores de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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cultura) no local, elevando o “prestígio” da Praça da Estação na cidade e no mercado do patrimônio (HOFFMAN, 2014). Ressaltamos que com o desenvolvimento do sistema de transporte público, com a instalação de pontos de ônibus no entorno do local e com a implantação da Estação de Metrô - fruto de uma parceria entre a Prefeitura e a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) -, a Praça da Estação ganhou novos significados que se constroem no cotidiano, tornando-se um espaço central de deslocamento para outras regiões de Belo Horizonte e para as cidades metropolitanas. Tendo em vista as ações de preservação do patrimônio pertencente ao Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências, principalmente voltadas à salvaguarda de exemplares arquitetônicos, as políticas patrimoniais adotadas pelos órgãos de preservação, para além de realizar a requalificação do espaço físico da Praça e a revitalização dos edifícios adjacentes, buscaram dar novos usos culturais para os prédios que se encontravam sem um uso oficial. Após o estabelecimento de algumas instituições culturais no perímetro da Praça da Estação, houve uma tentativa de se constituir um Corredor Cultural nos moldes do Circuito Cultural da Praça da Liberdade (DUMONT, 2014). O projeto de se consolidar um Corredor Cultural se deu a partir de um levantamento preliminar da fundação [Fundação Municipal de Cultura] identificou mais de 20 equipamentos e instituições ligadas à área [da cultura]. Inicialmente, o corredor vai abranger desde a Avenida dos Andradas, na altura da Rua Varginha, no Bairro Floresta, até as proximidades do Parque Municipal, além da Rua Sapucaí. [...] Ele adianta que haverá intervenções na Rua Aarão Reis e Rua Sapucaí, com vocação gastronômica. [...] O túnel que leva à Sapucaí situada atrás da estação ferroviária, será transformado numa galeria de arte, ligando a praça até a rua que será transformada em mirante (AYER, 2013).

Tal projeto idealizado pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte (FMC) juntamente com o Museu de Artes e Ofícios, que utilizaria para a sua realização REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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as verbas provenientes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ficou somente no papel, não se concretizando enquanto um “Corredor Cultural” oficial. Elena Rivero (2015) coloca que, apesar de buscar reforçar a praça enquanto um polo de práticas culturais - a partir do estabelecimento de instituições de cultura no seu entorno - a cultura que se produz cotidianamente no local não obtém, na maioria das vezes, reconhecimento oficial, principalmente as atividades consideradas como “marginais”. Na contramão dessa tentativa de estabelecer o crivo oficial, pode-se pontuar que outras práticas pulsam no seu entorno, seja por meio das instituições promotoras de ações culturais levantadas pela FMC, seja pelos usos e contra-usos cotidianos e populares que conferiram ao local novos significados. O Duelo de MCs, que acontece debaixo do Viaduto Santa Tereza, somente há pouco tempo vem sendo reconhecido no plano oficial como forma legítima de se usar o espaço, após muitos conflitos. Também podemos citar os vendedores de artesanato que comercializam e fabricam seus produtos no local, bem como os encontros de skatistas que utilizam a esplanada da Praça da Estação como sua “pista”. Este grupo acabou contemplado com uma pista de skate inaugurada em 2017 debaixo do Viaduto Santa Tereza, após críticas, manifestações e ocupações pela demora na execução do projeto, iniciado em 2014 e programado para ser executado em dez meses (COSTA, 2017). O Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências desde os seus primeiros projetos até a sua configuração atual, passou, portanto, por diferentes transformações no âmbito urbanístico, arquitetônico, paisagístico e funcional, o que impossibilita abordar toda a sua complexidade no nosso artigo. Feita essa contextualização, prosseguiremos com a análise detida sobre o Museu de Artes e Ofícios, tomando como base as discussões acerca das políticas de patrimônio, gentrificação e higienização do espaço urbano. Buscamos analisar algumas disputas em torno da apropriação do edifício e da instituição, e em seguida pensar em possibilidades de interlocução que podem ser estabelecidas entre o Museu de Artes e Ofícios, as pessoas que habitam a praça e as instituições culturais do REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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seu entorno, tendo em vista que o museu pouco dialoga com as práticas culturais que o cercam.

Museu de Artes e Ofícios: entre disputas, políticas de higienização e gentrificação

A criação do Museu de Artes e Ofícios no edifício da Estação Central, projeto idealizado pela então presidente do Instituto Flávio Gutierrez (IFG), em parceria com o poder público, inseriu-se dentro da lógica da política de patrimônio que visava a utilização dos edifícios tombados que se encontravam “desocupados” na cidade de Belo Horizonte, por meio da sua revitalização e sua destinação a usos de matrizes culturais e educativas, política essa que se estendeu a outros imóveis na cidade e no entorno da Praça. Entrelaçase ao discurso oficial que entendia a Praça da Estação enquanto um espaço degradado, marginalizado e em processo de esquecimento e apagamento, em que sua revitalização é apresentada como a única solução para se reverter tal processo. Segundo depoimento do arquiteto do Instituto Brasileiro de Arquitetura (IAB), Reinaldo Machado (apud RIVERO, 2015), a preservação de um bem patrimonial não se encerra somente no seu tombamento, mas também nos usos que lhe são conferidos. Propriedade da Central Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), o edifício da Estação Central passou por diferentes usos, principalmente a partir da desativação dos trens que levavam passageiros e cargas à capital mineira. As obras para instalação do Museu de Artes e Ofícios começaram no ano 2000 e no ano seguinte deu-se a assinatura do termo em que a CBTU cedeu, em regime de comodato, o edifício para a instalação do museu, inaugurado em 2005. A ideia de revitalização e requalificação de uma região está atrelada à proposta de se realizar um enobrecimento do espaço urbano, conferindo novos sentidos e significados ao patrimônio. As políticas de gentrificação operam, portanto, a partir das lógicas do capital privado, nas quais o patrimônio torna-se uma mercadoria a ser REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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consumida por um mercado de turismo (LEITE, 2004). Consideramos que o Museu de Artes e Ofícios é um exemplar e um cartão postal das propostas de gentrificação, como pode-se observar nos meios de comunicação. Felipe Hoffman (2014) coloca que a revitalização da Praça da Estação provocou ações de gentrificação no âmbito do consumo e da frequência, não intervindo no padrão residencial do local. Entrelaçada às políticas de gentrificação, se encontram as operações voltadas para a higienização do espaço urbano. Sabe-se que a Praça da Estação é frequentada cotidianamente por transeuntes em espera de transporte público ou outros compromissos, moradores em situação de rua e outros grupos sociais que usam e habitam a praça. Elena Rivero (2015) defende que apesar da pluralidade que se faz evidente no local, as políticas públicas adotaram uma série de medidas para expulsar os citadinos considerados indesejados, sendo a eles atribuídas as ações de vandalismo, depredação e sujeira do local. A visão de que é necessário retirar essas pessoas é reforçada na imprensa, como já demonstramos em estudo anterior envolvendo jornais (SANTANA, GARCIA, 2015), revelando o desejo das políticas urbanísticas e patrimoniais de se apagar os usos cotidianos que se dão na Praça, em prol de um passado saudosista. Apontamos anteriormente (GARCIA, RODRIGUES, 2016) como no próprio estudo encomendado pela então Diretoria de Patrimônio Cultural do município, ainda na década de 1990, indicava a vitalidade de usos coletivos, comerciais, de serviços e industriais na região da praça, incluindo grande número de manifestações culturais e até um bar localizado no prédio da Estação Central. Na mesma direção, Elena Rivero (2015), entrevistando um dos fundadores da Associação Mineira de Ferromodelismo (AFM) que funcionou no local desde 1982 até o início das obras para se implementar o Museu de Artes e Ofícios -, evidência uma contraposição ao discurso que colocava que não existia nenhum uso no local, demonstrando como o poder público, juntamente com o capital privado, promoveu um esvaziamento e apagamento da memória do local, celebrando somente a sua função enquanto Estação Ferroviária que teve seu auge nas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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primeiras décadas da capital (RIVERO, 2015). Apesar do privilégio dado à função inicial do edifício pelos discursos oficiais, percebe-se um apagamento dessa atividade dentro das exposições do museu, onde a instituição pouco dialoga com as funções anteriores do edifício e com o seu entorno. Como já salientamos:

Os ofícios lá retratados hoje não remetem ao ofício dos trabalhadores que ocupavam aquele espaço de trabalho, são ofícios que se reportam a uma forma de existência muito mais interiorana do que a da capital que se desejava moderna. Os funcionários da Central do Brasil e da Oeste de Minas, maquinistas, foguistas, vendedores de passagens, não tem lugar naquela coleção. Na realidade, o Museu não dialoga com a cidade de Belo Horizonte. Encontram-se aí profissões de tempos que a cidade civilizada e moderna não desejava, épocas e ofícios também importantes de serem retratados, talvez não neste espaço e não da forma como o são. (...) Se a instituição alega que ‘a proposta museológica adotada por Célia Corsino permite ao visitante uma ampla reflexão sobre a história e as relações sociais do trabalho no Brasil’, o que uma visita mostra em geral é um apagamento das mesmas, pois quase nada evidencia conflitos, desigualdades ou assimetrias sempre presentes nesse tipo de relação (GARCIA, RODRIGUES, 2016, p. 246).

Esse mesmo questionamento pode ser direcionado à expografia, de modo geral, pois o projeto de autoria do francês Pierre Catel, “(...) no limite, só integra essa história de forma espetacularizada ao promover uma integração visual através de painéis de vidro entre as plataformas do metrô e o interior do prédio (GARCIA, RODRIGUES, 2016, p. 247). Podemos pensar tal movimento enquanto uma disputa por qual memória a ser cultuada e valorizada, na qual a memória selecionada e reproduzida pelo Museu de Artes e Ofícios é compartilhada pelos meios de comunicação. Milene Migliano Gonzaga (2009), ao buscar construir um mapa de sentidos comunicativos na cidade de Belo Horizonte, nos permite compreender também outras disputas em torno dos usos do edifício da Estação Central. Analisando as formas de diálogo adotadas por determinados grupos - entendidas como práticas marginais por parte do poder público -, a autora pontua REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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que uma das primeiras situações comunicativas que pôde observar em torno da utilização do edifício como um museu, se deu por meio da frase “Quando fica pronto este museu?”, registrada nos tapumes que fechavam a escadaria que dava acesso à Rua Sapucaí. Um dos trabalhadores em resposta à crítica, apenas colocou que “não é da sua conta”, sendo criticado posteriormente com uma terceira e quarta inscrição: “é sim de nossa conta” e “o povo que sabe seus cu de cabra” (GONZAGA, 2009, p. 69). Sabe-se que a implementação do Museu de Artes e Ofícios se deu por meio de recursos públicos obtidos pelas leis de incentivo fiscal, embora a instituição seja gerida por ente privado. Diga-se de passagem, é sintomático e discutível que, nesse tipo de apoio, os agentes privados costumam tomar grande destaque e minimizar a relevância dos parceiros públicos, como observamos anteriormente justamente pelo exame da comunicação institucional do Museu de Artes e Ofícios (GARCIA, RODRIGUES, 2016, p. 246). Apesar do discurso institucional pontuar que a construção do museu se deu por vias democráticas, com a participação de diferentes segmentos sociais, as discussões se restringiram a uma comunidade de técnicos. Percebe-se por meio dessas frases uma disputa em torno do uso deste edifício onde, esta primeira situação comunicativa observada e registrada inicia o uso do tapume da escadaria da Praça da Estação como um espaço de comunicação de diálogos públicos, pois reivindica conhecimento sobre este espaço que era público e a partir do início da reforma teve seu status modificado, se conformando como um espaço restrito a poucas pessoas (GONZAGA, 2009, p. 69).

Outra comunicação significativa pontuada por Gonzaga se dá por meio do seguinte registro “Exigimos prestação de contas deste museu!”, que foi rapidamente apagada pelos operários que trabalhavam na revitalização do edifício e na instalação do museu. A pichação no tapume apresenta também uma crítica contundente aos gastos de verbas públicas utilizadas na obra, o que nos permite reforçar o questionamento se de fato REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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o museu é um espaço democrático e aberto a toda população (GONZAGA, 2009). Somado a isso, sabe-se que o desejo de se constituir um museu parte de uma vontade individual de uma grande empresária, que a partir do acervo que remete ao trabalho realizado nos séculos XVII, XVIII e XIX, com peças colecionadas pela própria e por seus familiares, decide criar uma instituição museológica que dê visibilidade e prestígio às suas coleções (RIVERO, 2015). Podemos nos questionar para quem de fato se criou o museu, tendo-se em vista os recursos públicos utilizados para sua implementação e na transformação de um espaço, antes considerado público, em privado. Ressaltando também que, na maioria das vezes, o museu só oferece gratuidade uma única vez na semana. Além dessa barreira material mais evidente, a desarticulação entre o Museu de Artes e Ofícios e seu entorno transparece, como pudemos constatar numa visita ocorrida justo num Primeiro de Maio, em que coincidentemente ocorria uma atividade do movimento Praia da Estação e o trânsito dos participantes entre o interior do museu e a praça praticamente não ocorreu:

enquanto o MAO é evitado por ser reconhecido de alguma forma pelos ocupantes da Praia, ou por frequentadores costumeiros da praça como espaço “enobrecido” e excludente, ocorrem no entorno do prédio outras formas de apropriação que se assentam em sua dimensão pública e percebem sua historicidade como espaço de sociabilidade e manifestação da diversidade (GARCIA, RODRIGUES, 2016, p. 247).

Percebemos, portanto, a existência de disputas em torno da utilização da Praça da Estação e do seu edifício da Estação Central, na qual de um lado se situa as comunidades de técnicos, os gestores públicos e o capital privado, que tinham como intuito implementar o museu buscando a revitalização da região - operações que tiveram como base as políticas de higienização e enobrecimento do espaço urbano -, e, de outro, os citadinos que habitam, utilizam e vivenciam cotidianamente a Praça da Estação,

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entendendo-a enquanto um espaço público a ser usufruído por diferentes grupos na cidade.

Considerações finais: uma proposta de ação

Em uma pesquisa de campo realizada em 2015, indagamos se quem frequenta a Praça da Estação, seja para descansar, encontrar alguém ou esperar o seu meio de transporte, de fato conhecia o museu. Por meio de algumas entrevistas realizadas com os transeuntes no local constatamos um certo desconhecimento sobre o Museu de Artes e Ofícios por parte da população entrevistada. Isso não se restringe somente ao Museu de Artes e Ofícios, mas também ao Centro Cultural da UFMG, Centro de Referência à Juventude e ao Cine Cento e Quatro, lugares oficiais de cultura. O desconhecimento por parte de diferentes entrevistados é um dado relevante, na medida em que o Museu de Artes e Ofícios apresenta uma certa presença na mídia local e é um dos cartões postais do discurso turístico mobilizado pela Prefeitura de Belo Horizonte e pelo Estado de Minas Gerais. Chama atenção uma entrevista em que um dos participantes alegou ter trabalhado na Ferrovia Central do Brasil e que por muitas vezes quando trabalhador sentiu vontade de entrar no edifício, que à época era restrito aos passageiros e a um determinado grupo de empregados. Desconhecendo a atual ocupação do edifício, o participante demonstrou surpresa em saber que ali funcionava um museu e que ele poderia adentrar ao edifício gratuitamente uma vez na semana. A fala desse participante, nos permite apontar para uma possível ausência de uma ressonância entre o investimento de recursos públicos e o acesso por parte da população.

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Pôde-se elencar, por meio das entrevistas, diferentes hipóteses para o não usufruto das instituições culturais situadas na Praça: a falta de tempo, a falta de interesse e a falta de informação por parte do público. Pontuamos ainda o caráter monumental do edifício que abriga o museu, elemento que pode causar intimidação à visita dos que não compõem seu público eventual, bem como a ausência de exposições e programações culturais que dialoguem com a profissão das pessoas que circulam cotidianamente pela praça, a despeito de ser um museu dedicado ao tema do trabalho. Visando estabelecer um maior diálogo com as pessoas que frequentam a Praça da Estação, propõe-se uma maior interlocução entre as instituições culturais oficiais situadas no conjunto urbano e os sujeitos praticantes do espaço, permitindo reconhecer várias experiências e fortalecendo a Praça da Estação enquanto um polo de múltiplas culturas e vivências. Para a realização dessa interlocução, faz-se necessário conhecer quem frequenta o local e quais usos e contra-usos fazem do espaço, bem como mobilizar a participação dos gestores dessas instituições mais efetivamente nesse diálogo. Os estudos de público, ao mobilizar um conhecimento interdisciplinar, podem fornecer diferentes contribuições para a construção de um espaço mais democrático. A aplicação desses estudos permitiria não só fortalecer a interlocução entre as instituições culturais e as pessoas que circulam e usufruem do espaço e do entorno da Praça, mas também subsidiar as políticas culturais e patrimoniais, permitindo-se compreender os sentidos e significados que a preservação desse conjunto urbano possuem para aqueles que transitam no centro de Belo Horizonte. Pensamos que os estudos voltados para os usuários da Praça e das instituições culturais do seu entorno auxiliariam também a pensar a ressonância entre a preservação e a utilização do bem patrimonial. A partir dos resultados obtidos é possível executar operações que promovam uma interlocução mais democrática entre as instituições culturais e os diferentes segmentos populacionais, detectando, por exemplo, bens que a população reconhece como relevantes e as políticas de patrimônio tradicionais não identificam. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Sugerimos como proposta de diálogo a realização de exposições e outras atividades culturais no perímetro tombado da praça, principalmente na sua esplanada, estabelecendo um diálogo inicial com os transeuntes do local. Tal ação poderá levantar discussões sobre o que é patrimônio, não a partir da lógica das políticas oficiais, mas da ótica de quem o vivencia no dia a dia e de quem também o ressignifica. Entendemos que a preservação e o uso do patrimônio arquitetônico e urbanístico, só faz sentido quando diferentes segmentos da sociedade o ressignificam e lhe conferem sentido, em contramão aos valores estabelecidos pelas políticas oficiais - valor histórico, artístico e arquitetônico. Uma outra possibilidade de aproximação entre as instituições e os usuários da Praça pode se dar por meio do mapeamento dos ofícios contemporâneos das pessoas que circulam pelo local, aqueles que trabalharam e ainda trabalham em edifícios do Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências, como por exemplo, os metroviários e os guardas municipais, e aqueles que fazem do espaço físico da praça o seu local de trabalho, podendo-se citar os ambulantes que fazem comércio de diferentes mercadorias no local. Propomos que após esse mapeamento, o Museu de Artes e Ofícios, o Centro Cultural da UFMG, o Cine Cento e Quatro e as outras instituições culturais, poderiam realizar uma mostra cultural que dialogue com esses ofícios por meio de diferentes linguagens artísticas e culturais, promovendo uma aproximação com os elementos pertencentes à vivência e o cotidiano desses sujeitos. Tendo como foco as questões que permeiam o Museu de Artes e Ofícios, buscamos inicialmente discutir os projetos de revitalização que se deram na Praça da Estação, empreendimento que teve como justificativa a degradação e o abandono da região, onde os “moradores em situação de rua”, ambulantes, “pivetes”, flanelinhas e pichadores eram considerados os principais agentes responsáveis pela deterioração, retirando por parte do poder público qualquer responsabilidade pela ausência de manutenção no local. Sendo a implementação do Museu de Artes e Ofícios o principal propulsor da revitalização da região considerada como “baixo centro”, as ações REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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desenvolvidas por parte do poder público em parceria com o capital privado buscaram promover a gentrificação do Conjunto Urbano Praça Rui Barbosa e Adjacências, inclusive por meio de várias tentativas de higienização do espaço público - diligências que foram confrontadas pelos usos e contra-usos cotidianos que ainda ocorrem no local. Tendo em vista a ausência de diálogo de boa parte das instituições culturais que se situam no entorno da Praça com outras atividades que se dão no local, bem como com aqueles que transitam cotidianamente por ela, propomos como ação dialógica a realização de estudos que visem o mapeamentos dos usos e contra usos que se dão na Praça e nos seus arredores, e do público e não público dessas instituições. Entendemos que esses estudos permitirão subsidiar ações mais democráticas e abrangentes, que dialoguem com o cotidiano dos citadinos, elencando reflexões e problemáticas atuais e que impactem diretamente na vida das pessoas que habitam a cidade e a região metropolitana.

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Artigos de Jornais

ARAGÃO, Guilherme. Região é estratégica para o futuro de BH. Jornal Estado de Minas. 23/08/2001, Seção: p. 27 (Caderno Gerais). AYER, Flávia. PBH vai rever proibição. Jornal Estado de Minas. 31/01/2010, Seção: p. 25 (Caderno Gerais). AYER, Flávia. Corredor Cultural na Praça. Jornal Estado de Minas. 14/03/2013, Seção: p. 37 (Caderno Gerais). CALES, Carlos. Artes e ofícios de Minas ganham museu em BH. Jornal Hoje em Dia. 04/08/2001. Seção: p. 05 (Caderno Minas). CARLOS, Helvécio. Museu em Movimento. Jornal Estado de Minas. 08/07/2002, Seção: p. 01 (Caderno Cultura). COSTA, Roberth. Pista de skate no Viaduto Santa Tereza será ‘inaugurada à força’ após descaso. Site BHAZ. 26/01/2017. In: <https://bhaz.com.br/2017/01/26/skatistas-obraviaduto-santa-tereza>. Acesso em: 25/11/2017. CRISTIE, Ellen. Praça dos Sonhos. Jornal Estado de Minas. 13/11/1997, Seção: p. 36 (Caderno Gerais). CRISTIE, Ellen. Tombamento Preserva Estação. Jornal Estado de Minas. 22/12/1998, Seção: p. 34 (Caderno Gerais/ Administração e Urbanismo). DUMONT, Patrícia Santos. Novo polo de cultura para BH. Jornal Hoje em Dia. 11/06/2014, Seção: p. 28 (Sem Referência). FONTANA, Mário. Tombamento. Jornal Estado de Minas. 16/12/2008, Seção: p.03 (Caderno Cultura) LOPES, Carlos Herculano. Cultura e Desenvolvimento. Jornal Estado de Minas. 17/05/2002, Seção: p.03 (Caderno Cultura). MELO, Luciana. Sambódromo na Praça da Estação. Jornal Estado de Minas. 24/07/2008, Seção: p. 22 (Caderno Gerais). ODILLA, Fernanda. Palco Oficial de Protestos. Jornal Estado de Minas. 10/09/1997, Seção: p. 24 (Caderno Gerais). ODILLA, Fernanda. Uma nova Estação em BH. Jornal Estado de Minas. 23/08/2001. Seção: p. 20 (Caderno Gerais). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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“PERDI O BONDE E A ESPERANÇA”: MOBILIDADE URBANA, TRABALHO E SOCIABILIDADE NA BELLE ÉPOQUE BELORIZONTINA24

“I LOST THE TRAM AND THE HOPE”: URBAN MOBILITY, WORK AND SOCIABILITY IN THE BELLE ÉPOQUE OF BELO HORIZONTE Bheatriz Alexsandra Rocha de Souza* Tamires Celi da Silva* Wemerson Felipe Gomes* Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para a casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno. (Soneto da Perdida Esperança Carlos Drummond de Andrade)

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O presente artigo é uma versão ampliada de um trabalho desenvolvido na disciplina Brasil Republicano I. Agradecemos aos pareceristas anônimos pela leitura atenta e pelas críticas pertinentes. * Bheatriz Alexsandra Rocha de Souza - Graduanda em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH – e-mail: bheatrizr@gmail.com. * Tamires Celi da Silva - Graduanda em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH – e-mail: tamiresceli@hotmail.com. * Wemerson Felipe Gomes - Graduando em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH – e-mail: wemersonfelipe10@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Resumo O objetivo deste artigo é pensar uma história de Belo Horizonte, em especial a história dos bondes nessa cidade, de modo amplo, deixando que as tensões (muitas vezes obliteradas) se explicitem ao mesmo tempo em que uma narrativa “oficial” é apresentada. Dessa forma, insistimos que para além de um simples artifício retórico ou de uso banal, a imagem do bonde – mobilizada por tantos escritores e elemento presente na memória dos belorizontinos – lança luz em uma dimensão social do trabalho e da cidade muitas vezes ignorada ou superficialmente analisada. Nesse sentido, além de fontes disponíveis no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH), mobilizamos alguns textos literários, em especial a poesia de Carlos Drummond de Andrade, para discutir temas que transitam entre mobilidade urbana, sociabilidade e trabalho.

Palavras-chave: Belo Horizonte. Bondes. História.

Abstract The purpose of this article is to think about Belo Horizonte history, especially the history of the trams in this city, in a broad way, letting the tensions (often obliterated) be explicit at the same time in a presented "official" narrative. Thus, we insist that in addition to a simple rhetorical device or banal use the image of the tram – mobilized by so many writers they are present in the memory of the Belo Horizonte citizens – elucidated the social dimension of the work and the city, often ignored or superficially analyzed. In this sense, besides sources available in the Public Archive of City of Belo Horizonte (APCBH), we mobilize some literary texts, especially the poetry of Carlos Drummond de Andrade, to discuss themes that move between urban mobility, sociability and work.

Keywords: Belo Horizonte. Trams. History.

Introdução Como indicam os versos do “Soneto da Perdida Esperança”, do livro Brejo das Almas (1934), de Carlos Drummond de Andrade, o bonde elétrico, junto a outras REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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invencionices, hoje tão necessárias, assumiu na vida ordinária dos citadinos, sobretudo os belorizontinos, uma importância sem par. Mensurar o impacto dessa gama de novos produtos e serviços no cotidiano das pessoas não é, como seria fácil demonstrar, tarefa simples. No entanto, insistimos que a literatura, expressão artística da sociedade dotada de uma historicidade que transcende a data e o contexto de escrita do texto, pode oferecer ao historiador atento um olhar privilegiado em relação à sensibilidade de um tempo, i.e., “a possibilidade de atingir aquela ‘sintonia fina’ que permita captar o passado de outra forma” (PESAVENTO, 1996, p. 108-118). Para Alfredo Bosi, em prefácio ao O Ser e o Tempo da Poesia, pensar a historicidade do texto poético (e de modo mais amplo, de qualquer objeto cultural) implica na percepção de que “contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo: é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional” (BOSI, 2000, p. 13). Assim, as marcas de tempos diversos, que constituem sujeitos e sociedades dialeticamente e que convergem na produção cultural, permitem ao historiador a possibilidade de pensar as dinâmicas sociais “com todas as suas nostalgias, angústias e expectativas” (BOSI, 2000, p. 14). Nesse sentido, visto que a literatura nos permite acessar, em alguma medida, a sensibilidade de uma dada época, esses (e outros) versos de Drummond – e de tantos outros literatos – nos inserem sub-repticiamente em uma dinâmica social marcada pela centralidade do bonde enquanto transporte de massa e sua articulação com o mundo do trabalho. Uma imersão densa nessa literatura (associada a fontes diversas) pode nos mostrar, então, uma Belo Horizonte distinta daquela que, por vezes, aparece nos manuais de História, ou seja, não uma Belo Horizonte presa num passado saudoso e a uma memória sem vida, mas sim uma cidade com todas as suas tensões constitutivas, seus conflitos inevitáveis e suas contínuas mediações. É nessa perspectiva, portanto, que a perda do bonde – provavelmente em uma região afastada do centro urbano – implica na perda da esperança e a consequente volta REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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para casa da personagem: “Vou subir a ladeira lenta/ em que os caminhos se fundem” (ANDRADE, 2002, p. 60). Essas ladeiras lentas que se imbricam lembram os cortiços ou regiões marginais que constituem em contraste com o mundo da ordem. Como o bonde é uma modalidade de transporte que implica num alto custo de implantação – exigindo, entre outras coisas, um grande número de passageiros, além de ruas largas, com alguma linearidade – muito raramente as linhas eram construídas em regiões periféricas como essa. Tem-se, então, uma primeira dificuldade no acesso ao transporte público (a descida da ladeira, da comunidade, do morro, da favela, da periferia, etc.) até um ponto em que se poderia tomar o bonde (como transporte para outra região, ou ainda, como foi sobretudo no início do seu uso, por simples lazer). A história dos bondes em Belo Horizonte pode ser, dessa forma, um ponto de partida interessante para explicitar uma série de discussões que transitam entre mobilidade urbana, sociabilidade e trabalho. Inaugurado em 1902, poucos anos depois da construção da capital mineira, as primeiras linhas de bonde atendiam ao quartel do 1° batalhão, ao Mercado e às ruas Ceará e Pernambuco (ver imagem 1).

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Imagem 1 - Linha do Bonde 1902-10 Fonte: Fundação João Pinheiro, 1996 (APUD COSTA, 2007, p. 214).

Os bondes foram recebidos com alegria pela população da capital, embora a inauguração tenha se dado por etapas, como indica esse trecho de uma reportagem recolhida no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH): Curiosíssima foi a inauguração do serviço. No dia 3 de setembro de 1902, pela madrugada, conduzido pelo concessionário Júlio Viveiros Brandão, um bonde percorreu parte dos onze quilômetros de linha, com pleno êxito. No dia seguinte, dois homens conduziram o vice-presidente do Estado, em exercício,

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e várias pessoas da administração, à tarde fizeram, sob aclamação do povo, o mesmo percurso. A noite, foi realizada grande manifestação ao prefeito.25

Pouco tempo depois, em 1907 e em 1912, as linhas são expandidas, atingindo 24 quilômetros de trilhos e recebendo sete linhas no primeiro momento, e chegando à extensão de 30 quilômetros e 39 veículos, no segundo. Em 1947, é inaugurado o ramal da Pampulha e o sistema passa a contar com 75 bondes. Foi de forma gradativa e a partir de muita cobrança por parte da população que as linhas foram se capilarizando.

Imagem 2 - Linha do Bonde 1910-20 Fonte: Fundação João Pinheiro, 1996 (APUD COSTA, 2007, p. 214).

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FONSECA, Geraldo. Sempre um bonde chamado saudade. Baú do Fonseca. Jornal não identificado. Não datado. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Imagem 3 - Linha do Bonde 1920-30 Fonte: Fundação João Pinheiro, 1996 (APUD COSTA, 2007, p. 214).

Se olharmos para as imagens 1, 2 e 3 veremos que esse processo de expansão para regiões marginais ao centro urbano – delimitado pela Av. do Contorno – foi acontecendo de forma paulatina e ainda hoje incompleta. Para além da precária infraestrutura urbana que impossibilitava a presença das linhas nesses espaços, havia também a falta de interesse político e econômico em viabilizar essa expansão, somando-se a isso, ainda, alguma resistência por parte da população em ser desabrigada de suas casas e de seu cotidiano para dar lugar a trilhos e outras construções. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Embora com o desenvolvimento da cidade outros meios de transportes fossem surgindo, como os “carros de praça”, ônibus, lotação, juntando-se aos já conhecidos cavalos e carroças, o bonde elétrico possibilitava – sobretudo a partir da década de 40, quando sua malha atingiu uma extensão considerável – um acesso direto a várias regiões da cidade. No entanto, as regiões cujo os acessos foram sendo viabilizados eram, quase sempre, aquelas regiões que interessavam a determinadas parcelas da sociedade – e não aquelas que de fato serviriam aos interesses da cidade como um todo. Essas, tiveram que esperar que outros fatores determinassem a necessidade de construção das linhas.

A chegada dos bondes elétricos à região do Prado (1906), por exemplo, foi concebida no intuito de facilitar o acesso, sobretudo das classes mais abastadas, ao lazer. Aquela área abrigava o antigo hipódromo, então denominado Prado Mineiro, no qual ocorriam, entre outras [atividades], exposições pecuárias. Outro bairro periférico beneficiado com os bondes foi a Serra, que, apesar de pouco adensado, era uma continuidade da área mais nobre da Capital, fato que o fez receber inúmeros sítios e chácaras destinadas ao descanso e ao lazer de uma reduzida parcela de cidadãos belo-horizontinos. (CARDOSO, 2007, p. 612)

Assim, para voltarmos ao poema de Drummond, o deslocamento da personagem (ou a descida da ladeira lenta) em direção ao local em que se poderia tomar o transporte público alegoriza, num certo sentido, o cotidiano de milhares de pessoas (ontem e hoje) cuja maior dificuldade não é o deslocamento geográfico pela cidade (saída do ponto A para o ponto B), mas toda a logística que envolve esse deslocamento mediada pela tensão política que cinge a malha urbana e os meios de transporte público. Conforme Lobo, Cardoso e Magalhães: (...) num contexto de pobreza, tônica dos países periféricos, a parca incidência de modos alternativos de transporte que independam de financiamento, como o próprio caminhar, além de problemas relacionados à limitada integração física e tarifária entre os diversos modos coletivos componentes dos sistemas de transporte – os quais são responsáveis pela maioria dos deslocamentos inter e intraurbanos –, resultam num processo de discriminação geográfica, uma vez que os indivíduos de menos posses têm dificuldades em suas oportunidades de trabalho, estudo, consumo e lazer, justamente por não conseguirem alcançar REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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pontos diversos da cidade pagando uma única passagem. (Cardoso, 2007; Silva et al., 1994 apud Lobo, Cardoso e Magalhães, 2013, p. 516)

Por outro lado, é possível inferir também que é todo um cotidiano de trabalho que circunda esses versos drummondianos – ditando, num certo sentido, o ritmo de uma sensibilidade característica da cidade moderna. Entre a presença e a necessidade dessa modernidade (metaforizada no bonde) e sua efetiva apropriação por parte da população o que há é, notavelmente, um hiato. Se é assim, a perda do bonde por parte da personagem resultará, provavelmente, em sua ausência em seu trabalho, razão da consequente perda da esperança (no sentido de que sua sobrevivência deriva do trabalho realizado) e da volta ao (eterno) “princípio do drama e da flora” (ANDRADE, 2002, p. 60), i.e., na reincidência de dilemas e conflitos que, embora sejam notados, florescem continuamente no cotidiano das pessoas. O binômio cidade-bonde, em suas múltiplas dimensões, aparece em vários outros poemas de Drummond. Para Aleilton Fonseca, em introdução ao livro Da cidade ao mundo, de Marcio Soares Dias, Drummond:

(...) capta a modernidade nas implicações históricas de progresso/ decadência, revigorando através de sua constante perscrutação as dimensões do belo e do feio, do invisível e do visível, do sagrado e do profano, em tempos de fátua grandeza. (DIAS, 2006, p.15)

Essa articulação entre opostos, característica da modernidade e, sobretudo, da vida moderna, é assimilada pelo poeta urbano que é Carlos Drummond de Andrade. Se focalizarmos a imagem dos bondes (tendo como pano de fundo a cidade moderna), como é nosso objetivo aqui, algumas dessas dimensões vem à tona. Em “Poema de sete faces”, de Alguma Poesia, por exemplo, “O bonde passa cheio de pernas/ pernas brancas pretas amarelas” (ANDRADE, 2002, p. 30). Aqui, o bonde é utilizado enquanto um espaço de uma (parcial) sociabilidade, de encontros e REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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desencontros: “Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração/ Porém meus olhos/ não perguntam nada”; embora o eu lírico seja um homem “sério, simples e forte”, o mundo (e consequentemente a cidade, microcosmo deste) é vasto: “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”. No entanto, esse sujeito de um vasto coração (mas vastidão não rima com solidão?) fica perdido em um mundo igualmente grande. Desse modo, ele é, a um só tempo, forte e fraco, sério e comovido, se sente abandonado, mas tem alguns “poucos, raros amigos”. O conhaque que, sob a luz da lua, fecha o poema, não poderia exprimir melhor o drama de um gauche na cidade moderna: Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. (ANDRADE, 2002, p. 30)

Em “Morte no Avião”, do livro A Rosa do Povo, também é todo um cotidiano do homem moderno que nos é apresentado a partir da iminência da morte do eu lírico: Acordo para a morte. Barbeio-me, visto-me, calço-me. É meu último dia: um dia cortado de nenhum pressentimento. (ANDRADE, 2002, p. 166)

Como na “Perda do halo”, do Spleen de Paris, de Charles Baudelaire, a relação entre modernidade e morte é constitutiva de uma tensão inevitável entre sujeito e cidade moderna: Meu amigo, você sabe como me aterrorizam os cavalos e os veículos? Bem, agora mesmo eu cruzava o bulevar, com muita pressa, chapinhando na lama, em meio ao caos, com a morte galopando na minha direção, de todos os lados, quando fiz um movimento brusco e o halo despencou de minha cabeça indo cair no lodaçal de macadame. (BAUDELAIRE, 2007, p. 18)

Mais à frente, na “Morte no Avião”, a relação cidade-bonde-trabalho também é explicitada (mediada ainda pela proximidade da morte): REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A boca distingue, escolhe, julga, absorve. Passa música no doce, um arrepio de violino ou vento, não sei. Não é a morte. É o sol. Os bondes cheios. O trabalho. Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer. (ANDRADE, 2002, p. 166)

Por um momento o “arrepio de violino ou vento” é associado à morte. Mas logo percebe-se que não se trata (ainda) dela. Se trata, antes, do próprio cotidiano da cidade, dos “bondes cheios”, do trabalho, em suma: da vida de um “homem na engrenagem”. Entretanto, esse cotidiano violento pode ser visto também como uma aventura: a aventura da vida moderna. Em Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, Marshall Berman focaliza justamente essa relação, seu objetivo é “explorar e mapear as aventuras e horrores, as ambiguidades e ironias da vida moderna” (BERMAN, 2007, p. 21). Guilherme Aragão resgata uma reportagem de 1935, do Estado de Minas, que diz muito sobre essa sensibilidade moderna e a experiência de andar de bonde: Viajar de bonde em Belo Horizonte é expor-se a uma série de aventuras. Começa pelos motorneiros que amam a velocidade e, generosamente, querem que os passageiros sintam o perigo constante, com os carros a correr sobre os trilhos velhos e gastos ...26

Em “O sobrevivente” (Alguma Poesia), depois de atestar que não existem mais elementos de inspiração, razão pela qual é “impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia” (ANDRADE, 2002, p. 44), a automatização e modernização do mundo é estendida também ao homem (àquele “homem na engrenagem”): Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. Se quer fumar um charuto aperte um botão. 26

ARAGÃO, Guilherme. Trabalhadores do bonde lideraram greves em BH. Estado de Minas, Minas Gerais, 14.12.1996. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Paletós abotoam-se por eletricidade. Amor se faz pelo sem-fio. Não precisa estômago para digestão. Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto. Os homens não melhoraram e matam-se como percevejos. Os percevejos heróicos renascem. Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio. (Desconfio que escrevi um poema). (ANDRADE, 2002, p. 44)

A relação entre sujeito e modernidade é ambígua na poesia de Drummond: se por um lado a modernidade traz elementos cada vez mais indispensáveis ao cotidiano das pessoas (como eletricidade, avião, sem fio etc.), ela também leva embora alguma coisa, geralmente um pouco da nossa humanidade: “Os homens não melhoraram/ e matam-se como percevejos” (ANDRADE, 2002, p. 44). Já em “Aurora”, do Brejo das Almas, é “O poeta que ia bêbado no bonde” (ANDRADE, 2002, p. 58). A relação cidade-bonde-bêbados é outro tripé interessante na poesia de Drummond. Parece que o entorpecimento causado pela bebida dialoga com um cotidiano em relação ao qual é preciso se desvencilhar: O poeta ia bêbado, mas escuta um apelo na aurora: Vamos todos dançar entre o bonde e a árvore? (ANDRADE, 2002, p. 58)

O bonde, enquanto síntese de uma modernidade que valoriza o progresso e a velocidade, se contrapõe à árvore, cuja associação com a beleza da natureza é óbvia, além da sua longa duração (no tempo) e sua imobilidade (espacial). O poeta que dança entre o “bonde e a árvore” busca, no final das contas – e já embriagado –, conciliar duas dimensões opostas, mas indissociáveis: modernidade e tradição, mudança e permanência, velocidade e imobilidade. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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No entanto, tendo em vista o “regulamento do serviço de bondes”, de cuja eficácia podemos duvidar, o personagem acima não teria vida fácil: O regulamento (...) aprovado pelo governo do Estado, era rígido, tanto na parte referente aos funcionários, quanto no que se refere aos passageiros. Pessoas loucas, bêbadas, descalças, ou maltrapilhas não podiam utilizar o serviço.27

Dessa forma, sobretudo nos primeiros anos da capital, como mostra outra reportagem, “andar de bonde era chique”: “Naqueles dias de 1902, não havia diversão melhor nem mais em moda do que uma voltinha de bonde”.28 Não só, como vimos acima, as primeiras linhas privilegiavam regiões mais elitizadas, como também os bondes, na medida em que se popularizaram, foram sendo apropriados a partir de um crivo social: “Outra novidade que constitui orgulho dos belorizontinos foi o bonde fechado, introduzindo (sic) em 1938, o qual só ia para os bairros mais nobres: No Rio [de Janeiro] não há disso, diziam (...)”.29 No poema “José”, do livro de mesmo nome (1942), lamenta-se que: a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou. (ANDRADE, 2002, p. 114)

Os exemplos apareceriam em muitos outros versos do poeta itabirano. No entanto, destacamos que é fácil verificar que o caráter melancólico que marca o tom desse poema deixa antever um sujeito que se falta a si mesmo: o bonde que não veio (ou veio e o

27

FONSECA, Geraldo. Sempre um bonde chamado saudade. Baú do Fonseca. Jornal não identificado. Não datado. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). 28 Idem. 29

Idem. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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perderam) é um impulso a mais em uma vida que não é, mas que continua sendo: “você marcha, José! José, para onde?” (ANDRADE, 2002, p. 114). A marcha incansável (e insensata?) de José para não se sabe onde, é a (eterna) subida e descida por caminhos que se fundem, do poema que trouxemos como epígrafe. Mas tanto nesse poema quanto naquele, tanto a esperança de um como a dureza do outro (somada a solidão do “Poema de sete faces”), são consequências de uma modernidade cuja potencialidade humana é simétrica ao desprezo pelo humano. A cidade moderna é isso, uma ambiguidade constante: encontro e desencontro, caminho e descaminho, invenção e destruição, romance e tragédia, amizade e traição, sobriedade e etilismo ... De todo modo, como veremos, a história dos bondes em Belo Horizonte (e da própria cidade) traduz, num certo sentido, essas mesmas dimensões: se o bonde elétrico marca uma forma de sociabilidade e define os contornos de uma cidade moderna, sua ausência (ou sua perda), sobretudo em regiões periféricas, pode resultar na intensificação de desigualdades e na constituição de privilégios que se materializam de várias formas, inclusive no acesso aos bens públicos. Como no poema “Anti-ode: Belo Horizonte”, de Ricardo Aleixo, a pergunta que fica é: “Belo Horizonte? Onde? Para quem? Quando? Pergunto. Melhor mudar de assunto, pois que ninguém me responde. (ALEIXO, 2003)

Que a resposta que esboçamos não é primeira é desnecessário dizê-lo; que não é última, também não é novidade. O que nos interessa no texto que segue é ver Belo Horizonte, em especial a história dos bondes nessa cidade, de modo amplo, deixando que as tensões (muitas vezes obliteradas) se explicitem ao mesmo tempo em que uma

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narrativa “oficial” é apresentada. De modo geral, são os poros dessas narrativas que nos interessam.

O bonde e a cidade A introdução do bonde elétrico no Brasil data de 1892. Em crônica de 16 de outubro deste mesmo ano, da série “A semana”, Machado de Assis nos dá notícia da chegada da invenção moderna: Não tendo assistido à inauguração dos bonds (sic) elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond (sic) comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar. (ASSIS, 1994, p. 63-67)

Assim, desde o final do século XIX, quando a Europa vive, nas palavras de David Fromkin, seu último verão, uma nova sensibilidade é introduzida e potencializada em função de uma série de avanços tecnológicos vinculados à Revolução Industrial (FROMKIN, 2005). É, portanto, impulsionada por essa aura de otimismo que caracterizou a Belle Époque (sobretudo na França, mas que reverberou de forma mais ou menos efetiva em várias partes do mundo) que uma porção dessas invenções modernas foram trazidas ao Brasil, transformando definitivamente as formas de se relacionar na (e com a) cidade. Nesse sentido, é a partir dessa nova sensibilidade, epígrafe de uma assim chamada “bela época”, absolutamente orgulhosa de sua modernidade, que uma dinâmica social específica se organiza e se projeta. É o tempo de inovações como:

Os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os arranha-céus e seus REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas, as rodas gigantes (...). (SEVCENKO, 1998, p. 9-10)

Belo Horizonte é, de certo modo, corolário ou a materialização dessa sensibilidade. A cidade é inaugurada em 1897 depois de intensos debates e de trabalho duro por parte de milhares de operários. A cidade é construída onde ficava o então chamado “Arraial de Curral del Rei”, um distrito de Sabará, destruído para dar lugar a nossa urbe moderna. Foi assim, a partir desse ímpeto de modernidade e de progresso, vinculado tanto a aura de otimismo da Belle Époque como a influência positivista que marcou nossa República, que Belo Horizonte nasceu. Essa cidade dos sonhos de Aarão Reis (1853-1936) – engenheiro responsável pela construção da capital –, esboçada nos projetos da cidade, contudo, não corresponde absolutamente à realidade. Entre a Ordem e o Progresso – síntese do pensamento positivista – as lacunas foram sendo (e ainda são) preenchidas por um processo de experienciação da cidade que cria novas possibilidades de (re)apropriação dos espaços urbanos. O modelo de cidade, claro, sempre foi Paris. A reforma urbana promovida por Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), entre 1852 e 1870, redesenhou por cima de uma Paris medieval novos traçados: parques, jardins e imensos boulevards foram construídos, transformando a forma de se viver na velha cidade. Para Marshall Berman, em Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: “Os bulevares de Napoleão e Haussmann criaram novas bases – econômicas, sociais, estéticas – para reunir um enorme contingente de pessoas” (BERMAN, 2007, p. 181). Charles Baudelaire, como aponta Berman, é um espectador-protagonista privilegiado desse tempo:

Enquanto trabalhava em Paris, a tarefa de modernização da cidade seguia seu curso, lado a lado com ele, sobre sua cabeça e sob seus pés. Ele pode ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa nova tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. (BERMAN, 2007, p. 177) REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Se a modernização materializa um potencial transformador humano, ela traz consigo seus próprios traumas e dramas (como vimos em algumas poesias de Drummond). Em “Os olhos dos pobres”, também do Spleen de Paris, essa dimensão é acentuada. A cena primordial, caracterizada pela presença de pessoas pobres que contemplam a grandiosidade de um café de boulevard no instante mesmo em que um casal tem seu “momento romântico”, “revela algumas das mais profundas ironias e contradições na vida da cidade moderna. O empreendimento que torna toda essa humanidade urbana uma grande ‘família de olhos’, em expansão, também põe à mostra às crianças enjeitadas dessa família” (BERMAN, 2007, p. 183). Plantado diante de nós, na calçada, estava um bravo homem com seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazendo pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para caminhar. Ele desempenhava o ofício de babá e levava as crianças para tomarem o ar do fim de tarde. Todos em farrapos. (BAUDELAIRE, 1937, p. 33)

O que acontece é que “A família em farrapos (...) sai de trás dos detritos, para se colocar no centro da cena. O problema não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é que eles simplesmente não irão embora” (BERMAN, 2007, p. 183). Em outras palavras: a grandiosidade da cidade moderna também deixa antever as cicatrizes sem as quais ela mesma não seria possível. Ainda na década de 80 do século XIX, como vimos, “os padrões de Haussmann foram universalmente aclamados como o verdadeiro modelo do urbanismo moderno” (BERMAN, 2007, p. 181). Em Belo Horizonte (a de dentro da Avenida Contorno, pelo menos) é fácil verificar a incidência dos mesmos traços, dessa mesma sensibilidade e de dramas razoavelmente parecidos. Como aponta Siqueira,

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A Capital já nasce com uma missão: promover o progresso econômico e intelectual de Minas, projetando-a como a maior força política do cenário nacional. Construindo-se sobre os escombros do mundo rural arcaico, ela deve introduzir o Estado no moderno universo urbano e industrial. (SIQUEIRA, 1997, 81, apud ROCHA, 2013, p. 30)

Em “Jardim da Praça da Liberdade” (Alguma Poesia), Drummond comenta sobre esse belo símbolo da capital mineira, situado no ponto mais alto dentro da Avenida do Contorno. Segundo ele, o jardim é “Bonito demais. Sem humanidade./Literário demais”, “Jardim tão pouco brasileiro… mas tão lindo”(ANDRADE, 2001, p. 49). Bela e feia ao mesmo tempo; literária, mas sem humanidade, a cidade (e seus espaços definidores) comungam de um mesmo ímpeto dramático. A esse jardim, Drummond contrasta, ainda, outros: os “Pobres jardins do meu sertão/ atrás da Serra do Curral” (ANDRADE, 2001, p. 49). A centralização das reformas em um espaço diminuto (“no cu das terras”, dirá um poeta) obliterava, assim, os outros jardins. De qualquer forma, como outros espaços construídos em Belo Horizonte, a Praça da Liberdade se tornou um importante local de sociabilidade e de encontros diversos: o famoso footing era realizado também ali. A contadora de histórias Marilene Guzella M. Lemos, no livro Belo Horizonte nos anos dourados, resultado de uma série de palestras realizadas no Museu Histórico Abílio Barreto sobre a Belo Horizonte dos anos 50, comenta sobre algumas de suas experiências nessa BH: Ah! Se as palmeiras da Praça da Liberdade tivessem voz. Falariam do prestigiado footing cheio de romantismo e ingenuidade. Aconteciam nos domingos à noite. O movimento começava na alameda central das palmeiras em um dos lados, esquerda para quem está de frente para o palácio. Quando se tornava intransitável, as pessoas iam passando para o outro lado, até que o primeiro se tornava vazio. Parecia haver uma combinação prévia. Após o footing, Minas Tênis Clube e DCE (Diretório Central Estudantil) eram o destino de muitas moças e rapazes para as hora-dançantes. (LEMOS, 2017, p.146)

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É também esse tom romântico, nostálgico, que marca vários discursos sobre os bondes. Em reportagem de jornal da década de 90, lemos: Muito romance começou no banco de bonde, ou no olhar que o pingente, pendurado ao estribo, lançava disfarçadamente para a garota que ia sentada. Muitos tinham razão para sentiram saudade ao verem que os bondes, então, iam desaparecendo da paisagem urbana, já repleta de arranha-céus, tão diferente da cidadezinha de estudantes e burocratas que Belo Horizonte fora durante aqueles tempos.30

Todavia, como não poderia deixar de ser, ao mesmo tempo em que se desenvolvia e se modernizava, possibilitando esses encontros românticos e novas formas de sociabilidade, a “grande família” de Belo Horizonte também expunha seus membros enjeitados. Se passarmos pela Praça de Liberdade, ainda hoje, veremos que, tal como a “família em farrapos” do poeta francês, a nossa (composta por dezenas de moradores em situação de rua31) também simplesmente não irá embora. Não irá porque não pode: o esplendor do empreendimento moderno cria essas ambiguidades essenciais, ou seja, por detrás da beleza da modernidade e da vida moderna existem os detritos, as tensões e os despejos que a tornam possível. Em outra reportagem, comenta-se sobre a greve de motorneiros de 1934, duramente reprimida pela polícia;32 em 1930, uma violenta reação

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FONSECA, Geraldo. Sempre um bonde chamado saudade. Baú do Fonseca. Jornal não identificado. Não datado. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). 31 Segundo dados do Fórum Técnico População em Situação de Rua da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), Belo Horizonte tem mais de 5 mil pessoas vivendo em situação de rua. Disponível em https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2018/04/18_forum_tecnico_populacao_rua.html. Acesso 09/12/2018. 32 ARAGÃO, Guilherme. Trabalhadores do bonde lideraram greves em BH. Estado de Minas, Minas Gerais, 14.12.1996. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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popular, com “manifestantes que queimaram o bonde do “Bonfim”, estourou em função do aumento da passagem do bonde.33 Olavo Bilac, em crônica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 19/12/1897, diz: “Como por milagre, uma cidade moderna, de largas avenidas e palácios soberbos, rompeu do lugar em que havia a pequena povoação de Belo Horizonte: o Curral d’El Rei nunca poderia esperar tamanha honra ...”.34 Se por detrás da superficialidade da fala de Bilac é possível ler, a contrapelo, uma outra história, caracterizada pelo inusitado de uma cidade de “palácios soberbos” num centro urbano, o anarquismo de Avelino Fóscolo não lhe permitia tais sutilezas: “O evoluir do século não para jamais, não retrocede nunca: o Curral jaz para sempre morto, sepultado na onda de insânia que aí vai” (FÓSCOLO, 1979, p. 111). Aqui, a dimensão fáustica do empreendimento humano35 é naturalizada ao mesmo tempo em que o tom insano da modernidade realiza o sonho da cidade moderna. Nesse sentido, para atualizarmos uma metáfora notável, a morte do

33

Descobrindo a cidade: Antigamente, os bondes faziam “reclames”. Estado de Minas, Minas Gerais, Não datado. Arquivo Público de Belo Horizonte. Coleção Transporte Coletivo/ Bondes (19.02.00), Clipe 12 (p7). 34 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_03&pasta=ano%20189&pesq=. Acesso em 04/08/2018. Todavia, devemos a identificação dessa passagem a exposição “CARTOGRAFIA IMAGINÁRIA: a cidade e suas escritas” (Exposição integra o Eixo da Língua Portuguesa). Curadoria e Concepção: Marconi Drummond e Maurício Meirelles. A exposição esteve disponível ao público no Sesc Palladium (BH/MG) de 12 de maio a 8 de julho de 2018. 35 Em Tudo o que é sólido se desmancha no ar, Berman analisa o poema do Goethe em um capítulo intitulado “O Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento”. O poema de Goethe, que é na verdade uma reelaboração de uma história que existe desde pelo menos o século XVI, “ultrapassa todos os outros, em riqueza e profundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteligência política, em sensibilidade e percepção psicológica” (BERMAN, 2007, p. 51). Para Berman, portanto, “o que o distingue dos antecessores e gera muito de sua riqueza e dinamismo é um impulso (...) [que ele designa] como desejo de desenvolvimento” (BERMAN, 2007, p. 51). Esse desenvolvimento, no entanto, tem não só sua dimensão heróica (do progresso) como também uma dimensão trágica (da destruição). E é nesse processo dialético que a modernidade, enquanto um empreendimento humano, se constitui. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Curral iguala a morte do casal de anciãos Filemon e Baucis, do Fausto do Goethe:36 criação e destruição são como irmãs gêmeas. Fóscolo publicou em 1903 o romance A Capital. A obra sintetiza, de forma inédita naquele momento, o processo de construção da capital e algumas de suas consequências e contradições. A diversidade de personagens e a miríade de perspectivas sobre o futuro da nova capital são alguns dos elementos que se destacam no romance. Sobre o traçado urbano d’A Capital, Fóscolo acrescenta, por meio do Major Silva, “grande proprietário e influência política do antigo curral”: “Para mim, bradava ele, esses polígonos, triangulações, geodésicas, teodolitos é tudo uma ladroeira para comer o cobre do povo” (FÓSCOLO, 1979, p. 91). A imagem ganha contornos mais claros quando lembramos que boa parte dos construtores (digo, dos operários) da cidade não morava nela. Espaços como o Lagoinha e a Pedreira Prado Lopes se constituíram a partir da demanda de trabalho na construção da capital, sendo que não havia nos planos da cidade, nem planejamento, nem interesse de incorporar esses trabalhadores. A solução foi ocupar os morros ou se distanciar do centro. “Comer o cobre do povo” é, em todos os sentidos, relativizar a vida das pessoas em nome de (um) progresso, sendo que muitas vezes, como no poema do Fausto, a tarefa é atribuída a terceiros (agentes da lei, por exemplo) que incorporam e executam ações sem tomar (ou mesmo tomando) real dimensão das consequências desses atos. Mais recentemente, o poeta mineiro Ricardo Aleixo, em Anti-ode: Belo Horizonte (2004), também comentou sobre a fundação da cidade: Mote: A república acabou Com canudos (Bello Monte) E, para não dar na vista, Inventou Belo Horizonte,

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Numa das cenas mais dramáticas do poema, o casal Filemon e Baucis, empecilhos no projeto de desenvolvimento de Fausto, já que se recusaram a sair de seu idílico lar, é queimado por Mefisto, a mando de Fausto, junto com sua propriedade. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A urbe positivista Do sonho de Augusto Comte. (ALEIXO, 2003)

Entre progresso, modernidade e a necessidade de imprimi-la para uns, e a tradição e a necessidade de preservá-la para outros, é que Belo Horizonte foi (e ainda vai) se (re)construindo. No romance de Avelino Fóscolo, numa passagem que lembra novamente o poema de Goethe, Lená diz: “[Essa] é a lei fatal e imprescindível: destruir para reconstruir, melhorando, que bela empresa!” (FÓSCOLO, 1979, p. 96). O Arraial deu lugar a urbe, como o casal de anciãos ao projeto fáustico, mas, a contragosto dos articuladores, a cidade não se conteve em si mesma – da mesma forma que a memória dos anciãos na consciência de Fausto. Belo Horizonte, como toda cidade moderna, incorpora, lida e/ou oblitera suas contradições. Drummond também traduz em ficção essa aura de progresso materializada na cidade. Em “A rua diferente” (Alguma Poesia), por exemplo, duas percepções sobre o progresso nos são apresentadas sem, contudo, parecem (absolutamente) contraditórias: Na minha rua estão cortando árvores botando trilhos construindo casas. Minha rua acordou mudada. Os vizinhos não se conformam. Eles não sabem que a vida tem dessas exigências brutas Só minha filha goza o espetáculo e se diverte com os andaimes, a luz da solda autógena e o cimento escorrendo nas fôrmas. (ANDRADE, 2002, p. 28)

A transformação da cidade permite o encontro de sensibilidades diferentes: se alguns não se conformam, outros “gozam o espetáculo”. Nesse sentido, se a ficção “é um princípio fundador cuja regra básica é duvidar de si mesmo” (LIMA, 2006, p. 21), a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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literatura, enquanto fonte de pesquisa que permite ao historiador acessar as múltiplas sensibilidades de um tempo, expõe de forma razoavelmente clara a porosidade desses discursos. Uma experiência com a cidade de Belo Horizonte pode, assim, tanto ser mediada por uma relação de opressão, resultado das dinâmicas políticas, econômicas e sociais que definem as formas de sociabilidade, marcando (simbólica e fisicamente) os espaços dos privilegiados e dos excluídos; como também pode ser vivenciada de forma positiva, sobretudo por aqueles que usufruem (e/ou usufruíram) de determinados serviços. Marilene Guzella M. Lemos, por exemplo, é explícita ao comentar na introdução de seu livro a narrativa construída por ela: (...) falamos de Belo Horizonte através de uma ótica feminina e de certa forma elitista, pois demos destaque aos colégios, clubes e locais frequentados por uma classe mais favorecida: moças que se casavam na Igreja de Lourdes, eram sócias do Minas Tênis Clube, assistiam às matinês do Cine Metrópole e tomavam sorvete na Confeitaria Elite … Apresentamos uma Belo Horizonte romântica e até idealizada. E se alguém disser que houve alienação, não é para se discordar. Falamos sobre Belo Horizonte que, em 1947, me viu chegar, aos dez anos, para estudar em colégio interno (...). (LEMOS, 2017, p. 10)

Essa Belo Horizonte elitista, romântica e idealizada, conforme a lúcida caraterização da autora, de fato existiu. Os aspectos vinculados a uma sociabilidade que caracteriza o que Lemos chama de Belle Époque ou “anos dourados”, cujo apogeu vai de 1947 a 1964 (interrompida pela ditadura civil-militar), dão o tom de uma dinâmica social que se estabelecia em paralelo com o desenvolvimento econômico e industrial, com desdobramentos no cotidiano de uma parcela diminuta da população. Espaços como a Praça da Liberdade, o Minas Tênis Clube, a Pampulha, entre outros, se constituíram, portanto, como importantes espaços de sociabilidade. Mas, do mesmo modo que em “Os olhos dos pobres”, a narrativa de Lemos também revela seus poros: ela deixa antever uma realidade parcial (talvez alienada, como assume a autora). Nesse sentido, e de alguma REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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forma, ela afasta de si a violência da imagem daqueles que falam com olhos, suplicando, talvez, um pouco de atenção. Alienado ou não, o relato de Lemos traz em si as marcas de toda e qualquer memória. A memória, conforme Pierre Nora, é uma dinâmica entre lembrar e esquecer: A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. (NORA, 1993, p. 9)

Entre o que lembra Lemos e o que dizem outros, o que existirá sempre é uma distância intransponível. É entre o que queremos (ou precisamos) lembrar e o que precisamos (ou queremos) esquecer que as narrativas são construídas. Que o diga Ireneo Funes. Ao historiador atento talvez interesse menos a veracidade dos vários discursos e mais a multiplicidade e as tensões resultantes desses encontros. Se voltarmos uma vez mais a “Anti-ode: Belo Horizonte”, de Ricardo Aleixo, talvez seja possível perceber algumas dessas tensões: Se terra tem cu, Belo Horizonte é o cu das terras Averno oculto entre as serras, onde o próprio Belzebu, por certo, não escaparia ao riso dissimulado, ao insulto disfarçado de elogio, à vilania. (ALEIXO, 2003)

A imagem forte do “cu das terras” alegoriza uma Belo Horizonte de dentro da Contorno. Dentro deste espaço (“averno oculto”), o que existe é uma forma de experienciar a cidade marcada pela dissimulação, pelo “insulto disfarçado de elogio, à vilania”, em que o próprio Diabo não escaparia. Aqui, a relação com a história de Fausto REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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muda um pouco: a nossa sensibilidade moderna agora prescinde de um impulso externo: Mefisto somos nós próprios. Considerações Finais Na apresentação do plano geral da cidade de Belo Horizonte, projetado por Aarão Reis, este diz: “Essa zona urbana é delimitada e separada da suburbana por uma avenida de contorno, que facilitará a conveniente distribuição dos impostos locaes (sic), e que, de futuro, será uma das mais apreciadas bellezas (sic) da cidade”.37 Embora o conceito de urbano e suburbano que orienta o enunciado e o projeto de capital de Aarão Reis não esteja diretamente vinculado à ideia de cidadania, no sentido de noções de direitos, deveres, participação social etc., talvez seja interessante pensar essa relação (entre urbano e suburbano) para além de um simples uso do espaço do ponto de vista do planejamento urbanístico. A separação desses dois espaços pela Avenida do Contorno cumpre, hoje em dia, não só uma função urbanística, mas também simbólica. Nesse sentido, não é forçoso reconhecer que o suburbano (pelo menos do ponto de vista de um imaginário sóciohistoricamente constituído) é aquele que ocupa uma sub-cidade, que é, portanto, o portador de uma sub-cidadania. A restrição da cidadania dos “suburbanos” se materializa de várias formas, constituindo verdadeiros marcadores sociais da diferença: ela se materializa no estigma da cor, da vestimenta, dos hábitos e, ainda, no acesso aos bens públicos, como o direito à cidade. Que a Avenida do Contorno é uma das “belezas mais apreciadas da cidade” é fato controverso. A verdade é que ainda hoje essa avenida cerca a “sua” Belo Horizonte, de tal forma que as pessoas que vêm de regiões periféricas ou metropolitanas, como Betim, 37

Revista geral dos trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital. Rio de Janeiro, H. Lombaerts, Abril/1895. In. Concurso Nacional de Arquitetura. Centro Administrativo de Belo Horizonte. Anexo IV – Síntese da História de BH. Belo Horizonte: A cidade planejada. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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por exemplo, precisam “descer”, muitas vezes, na própria Avenida Contorno para, só então, terem acesso ao centro da cidade. Como insinuamos acima, essa “descida da ladeira lenta” alegoriza, num certo sentido, o cotidiano de milhares de pessoas (ontem e hoje) cuja maior dificuldade não é deslocamento geográfico pela cidade, mas toda uma logística que define urbanisticamente e simbolicamente os espaços dos privilegiados e dos excluídos. Urbanisticamente: por que o deslocamento em direção ao centro é prejudicado pela ausência de meios de transporte efetivos e viáveis economicamente, sobretudo em finais de semana; e simbolicamente: por que os marcadores sociais da diferença atuam como inibidores da presença de determinadas pessoas em determinados lugares. Mas a cidade é plural. É preciso que seja. Conceição Evaristo, por exemplo, insiste sempre na necessidade de que a periferia ocupe os centros, não por que estes são convidativos e democráticos, mas simplesmente porque estes espaços pertencem a todos nós. Viver na cidade e viver a cidade é um exercício absolutamente profícuo de cidadania. A cidade moderna, com seus lugares e mecanismos definidores, potencializa, assim, as múltiplas dimensões e contradições da vida do homem moderno. A cidade que cria alternativas é a mesma que nos tolhe de seu usufruto. Mas de qualquer forma sempre nos caberá a possibilidade de (re)significar a cidade. Os bondes contam, num certo sentido, essa mesma história. Inaugurado em 1902 eles foram, a um só tempo, espaço dos privilegiados e dos excluídos. Espaço de definição de origem social e cabedal econômico – como no caso dos bondes cobertos –, mas também espaço em que se desenrolava um cotidiano de trabalho. Espaço de sociabilidade, de aventura, de romances. Enfim, não é por qualquer motivo que os bondes ainda permanecem tão vivos na memória de muitos belorizontinos, pelo menos desde que foi desativado na década de 60. Mas cidade moderna funciona assim mesmo: “destruir para reconstruir, melhorando, que bela empresa”!? REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Referências

Livros, teses, fontes digitais e impressas

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O DESAPARECIMENTO DA ARQUITETURA CIVIL DE INFLUÊNCIA ITALIANA EM BELO HORIZONTE, BRASIL

THE DISAPPEARANCE OF THE CIVIL ARCHITECTURE WITH ITALIAN INFLUENCE IN BELO HORIZONTE, BRAZIL

Marcel de Almeida Freitas*

Resumo

Recentemente a especulação imobiliária em Belo Horizonte vem descaracterizando diversas regiões da área central, bem como alterando a paisagem tradicional dos bairros mais antigos. Com a verticalização da cidade, além da perda de qualidade de vida, há um empobrecimento estético e perda de referências edificadas importantes, como é o caso dos casarões construídos por mestres de obras anônimos, muitos deles imigrantes que vieram para esta capital no começo do século XX. Logo, o intuito deste artigo é apontar, a partir de um renomado artista dos primeiros anos de Belo Horizonte, Luiz Olivieri (arquiteto, escultor, pintor etc.), como os vestígios da arquitetura civil de origem italiana estão rapidamente desaparecendo da história, da paisagem e da memória desta cidade. Palavras-Chave: Imigração Italiana. História de Belo Horizonte. Arquitetura Civil.

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Antropólogo, doutor em Educação. Professor de História da Arte, Faculdade FEAD, e de Sociologia e Filosofia, CEFET-MG. marcel.fae.ufmg@gmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Abstract

Recently the boom constructive in Belo Horizonte is disfiguring several regions on central area, as well as changing the typical landscape of the older neighborhoods. Therefore, with the vertical character of the new constructions in the city, in addition to the loss of life quality, there is an aesthetic impoverishment and loss of significant constructive references, as the old houses built by anonymous master-builders, many of them immigrants that come to this capital in the early of 20th Century. Therefore, this article aims to point, from an renowned artist of early years of Belo Horizonte, Luiz Olivieri (architect, sculptor, painter etc.), how elements of civil architecture of Italian origin is speedily disappearing of the history, landscape and memory of this city. Keywords: Italian Immigration. History of Belo Horizonte. Civil Architecture.

Introdução

Minas Gerais foi um dos estados brasileiros que mais recebeu imigrantes italianos no Brasil a partir do começo do século XIX, sendo que, numericamente, fica atrás apenas do Rio Grande do Sul e de São Paulo (GUEDES, 2016). Apesar disso, a mídia, as campanhas publicitárias turísticas e os órgãos ligados à cultura em geral não enxergam a importância dessa etnia na formação do povo mineiro, restringindo-se às contribuições de portugueses e negros; vez ou outra o elemento indígena também é mencionado; assim, nas mídias oficiais/institucionais, em geral o que se mostra é especialmente o século XVIII, a Minas Colonial (CASTRIOTA, 2009). Diante disso, o intento desse artigo é mostrar, a partir de um estudo de caso, como a memória construída de origem italiana em Belo Horizonte vem sendo apagada continuamente, ainda que não conscientemente como aconteceu com a memória africana em Buenos Aires, por exemplo, ou a judaica na Alemanha Nazista, posto que a mídia, o

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turismo e os órgãos de gestão e preservação cultural geralmente nos apresentam a Minas Colonial-Barroca e, secundariamente, a Minas Modernista de JK. Tal argumento poderia ser confirmado fazendo-se um levantamento nos livros, cadernos e revistas de culinária mineira, por exemplo, nos folders turísticos, nas tradições, danças e folguedos que são transmitidos pela grande mídia. Portanto, a partir de um levantamento da arquitetura considerada “importante” pelos órgãos de proteção e gestão do patrimônio construído em Belo Horizonte (FREITAS, 2010), o que se verifica é que a arquitetura feita por italianos em Belo Horizonte vem desaparecendo paulatinamente pela conjunção de alguns fatores, arrolados a seguir neste texto. Em geral, os construtores, capomastri38, arquitetos, muratori39 e decoradores italianos construíram, nesta capital, obras ecléticas, o que, até bem pouco tempo atrás, era visto com “desdém” (ainda que fosse dissimulado ou inconsciente) pelo campo artístico e arquitetônico brasileiro. É inegável que o colonial, o barroco e o modernismo sempre foram “as filhas diletas” das escolas de arquitetura do Brasil (BESSA, 2004). Muitos italianos aqui chegados edificavam suas próprias casas ou de outros indivíduos “comuns” como eles, ou seja, não eram ricos, poderosos, enfim, não eram da elite. Assim, grande parte dessas edificações faz parte de uma arquitetura menos valorizada pelo fato de ter sido feita por um “leigo” e para um anônimo. Esse preconceito se manifesta inconscientemente e as demolições em massa de vilas e sobrados que a cidade de São Paulo vive em bairros como Tatuapé ou Lapa para a construção de arranhacéus, para citar um exemplo fora de Minas Gerais, mostram esse descaso para com a arquitetura civil “dos pobres” e desconhecidos (SALMONI e DeBENEDETTI, 2007). Isso se deu, em parte, porque muitos desses “pedreiros” talentosos não tinham formação acadêmica, como diria Michel Foucault, nenhuma instituição credenciada em

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Mestres-de-obras Pedreiros REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513 39

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seu país de origem os “instituiu” como arquitetos, escultores, artesãos, portanto, não eram reconhecidos na área (LOPES, 2005). Assim, muitas edificações, ainda que tombadas, não apresentam registro do elaborador/construtor da obra, já que o criador não era arrolado, pois não se permitia que um capomaestro ou muratore pudesse construir. Isso se deu até em capitais do norte/nordeste do Brasil: Belém, Recife etc. Em síntese, é comum que quando se busca informação sobre quem concebeu o projeto nada se sabe, pois, no passado, alguém que não fosse arquiteto não poderia “assinar” por um projeto arquitetônico (WERNECK, 2012). Assim, o propósito desse texto é apontar, a partir de uma proeminente figura dos primeiros anos de Belo Horizonte, o artista (arquiteto, escultor, pintor etc.) Luiz Olivieri, como os feitos da arquitetura civil de origem italiana estão, progressivamente, desaparecendo da história, da paisagem e da memória da capital mineira.

Breve histórico da imigração em Minas Gerais

A imigração estrangeira para o Estado de Minas Gerais fez parte do contexto geral de imigração para o Brasil que aconteceu entre o final do século XIX e início do século XX (NICOLI, 2016). Nesse processo, milhares de indivíduos, de diferentes etnias, “raças” e culturas integraram o já complexo caldeirão cultural brasileiro, até então formado majoritariamente por negros, europeus (de origem lusitana sobretudo), indígenas e seus descendentes. Como todo reducionismo é equivocado, não se pode dizer que italianos, alemães, espanhóis – só para citar as maiores correntes imigratórias a partir de 1880 – não viviam no Brasil antes dessa época. Todavia, só começaram a chegar em massa e a imprimir novas feições ao país a partir desse período.

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Com efeito, indivíduos isolados, “aventureiros”, mulheres de “reputação duvidosa”, profissionais liberais – dentistas, professores, artistas – vieram para essas terras desde 1550, para não dizer de 1500, posto que já na Caravana de Pedro Álvares Cabral havia alguns europeus não portugueses e mesmo árabes do norte da África. Entretanto, não foram números significativos e, sistematicamente, eram “etiquetados”, quer pelos negros escravos ou pelos nativos quer pelos colonizadores em geral (AZEVEDO, 1982). Sendo assim, a imigração que realmente imprimiu transformações na sociedade brasileira e que se distinguiu das massas de portugueses e descendentes até então chegados, se concentrou nas regiões Sul e Sudeste e, em escala menor, nas capitais do Norte e Nordeste, visto que não se deve esquecer que nesse período as cidades de Manaus e Belém viviam o fervor da borracha, atraindo diversos estrangeiros para tais paragens. Por exemplo, estudos evidenciam a grande influência que italianos exerceram na arquitetura de Belém introduzindo (LUCCARELLI, 2007), além de novos materiais, o palladiano, variação particular do Maneirismo Italiano, que exige grande habilidade técnica e conhecimento artístico por parte da mão-de-obra especializada. Os principais fenômenos socioeconômicos e políticos que criaram a demanda pela mão-de-obra estrangeira foram a abolição da escravatura em plena efervescência da lavoura de café e os primórdios da industrialização do país, a princípio no Rio de Janeiro e, posteriormente e mais intensamente, em São Paulo. Nesse ponto outro estereótipo acerca da formação da complexa cultura nacional merece ser desconstruído: quando se fala em imigração italiana para grandes metrópoles o que se exibe, especialmente na mídia, é a cidade de São Paulo, obliterando-se o fato de que a imigração italiana no Rio de Janeiro foi significativa, sendo que tal cidade possuiu também uma Hospedaria de Imigrantes e uma Società Operaia Italiana de Beneficenza e Mutuo Soccorso, de pé até hoje, na Praça da República, tombada pelo patrimônio histórico municipal. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Além dos aspectos econômicos, havia um motivo menos nobre a incentivar a imigração para o Brasil, uma questão simbólica importada das ideias evolucionistas em voga nas correntes intelectuais europeias: o racismo. Temia-se que a população brasileira “escurecesse” como se passou com o Haiti, considerando-se que o número de negros e mulatos era muito maior que o de brancos (AZEVEDO, 1982). Para “maquiar” tais discriminações, alegava-se que o negro e o “pardo” eram indolentes ou, na melhor das hipóteses, que não estavam preparados tecnicamente para certos ofícios e/ou para manusear o maquinário industrial recém-chegado. Já a Europa e, principalmente, a Itália, também tinha interesses em “exportar” mão-de-obra excedente para as Américas – Argentina, Estados Unidos, Brasil – pois o país vivia profundos problemas sociais e econômicos: miséria, desemprego, organizações mafiosas, concentração de terras, mecanização na indústria, o que levou milhares de pessoas a perder empregos e à concentração fundiária no campo, fazendo com que grandes levas fossem viver nos cortiços de Nápoles, Roma, Milão. Para isso também concorreram a superpopulação e problemas naturais: secas no Sul, enchentes no Norte, erupções vulcânicas etc. (AZEVEDO, 1982). Assim que terminou a Unificação Italiana, em 1871, o país entrou em um intenso processo emigratório. De modo geral, pode-se dizer que os italianos do Norte e das zonas rurais foram encaminhados às colônias agrícolas do Sul do Brasil implantadas pelo Império Brasileiro, enquanto que os do Centro, Sul e das cidades italianas incrementaram as massas operárias de centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife etc. Secundariamente, eram encaminhados também para as lavouras de café, substituindo a mão-de-obra escrava. Outra modalidade de utilização dos trabalhadores italianos foi a que veio ajudar na construção da cidade de Belo Horizonte, isto é, majoritariamente não estavam vinculados nem à agricultura nem à indústria, mas à construção civil: pedreiros, carpinteiros, arquitetos, mestres de obras, construtores, pintores, escultores, entre outros profissionais. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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O Espírito Santo foi um caso híbrido, já que experimentou imigração dos três tipos: para as lavouras de café (e também de cacau), para pequenas colônias agrícolas e para a capital Vitória, como mão-de-obra assalariada. A província de Minas Gerais era a mais populosa do Brasil, logo, teria população suficiente para ser alocada nas novas atividades que surgiam, contudo, o preconceito racial aliado às novas técnicas de trabalho fez com que os governantes decidissem por importar mão-de-obra. Além disso, muitos ex-escravos foram sumariamente expulsos das propriedades rurais pelos antigos donos, sendo esse fenômeno uma das origens das primeiras favelas de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A partir de 1894, pouco depois da Proclamação da República, o Estado estabelece grandes contratos para a vinda de imigrantes. Não obstante os imigrantes aqui chegados fossem direcionados principalmente à lavoura de café ou às indústrias de Juiz de Fora, alguns núcleos agrícolas familiares, nos moldes sulistas, foram criados: Rodrigo Silva, próximo a Barbacena, Maria Custódia, nas cercanias de Sabará, Barreiros, em região que viria a ser subúrbio da nova capital, e uma colônia perto de São João Del Rey. O que aconteceu com a colônia do Barreiro é sintomático do que aqui se denuncia: nenhum resquício, além dos descendentes, dos sobrenomes (a família Gatti, por exemplo) e alguns registros nos arquivos oficiais, restou. À medida que o Barreiro foi se tornando bairro de Belo Horizonte os antigos casebres e vilas foram demolidos, a fazenda sede desapareceu – virou loteamento – não restando hoje vestígios de que a cidade de Belo Horizonte também possuíra uma colônia agrícola. É esse mesmo risco que a arquitetura civil comum, dos “pobres e anônimos”, corre na área central e nos bairros adjacentes: Floresta, Carlos Prates, Santa Tereza, Santa Efigênia, Padre Eustáquio etc.

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Segundo estatísticas oficiais, é importante frisar esse aspecto porque certamente os números reais foram maiores40 (NICOLI, 2016), entraram em Minas Gerais 61.260 imigrantes entre 1894 e 1897, sendo que 50 mil eram italianos. Em geral as famílias possuíam de 3 a 7 membros. Houve pequeno predomínio de homens e de solteiros e, diferentemente do Sul do país onde havia grande quantidade de analfabetos e miseráveis, em Minas foi comum a vinda de membros da classe média e de profissionais liberais, como é o caso dos arquitetos, engenheiros, artesãos e artistas plásticos que auxiliaram no surgimento de Belo Horizonte. Assim, além da contribuição nos esportes – a criação do Palestra Itália, atual Cruzeiro – na linguagem cotidiana (ciao, cantina), na alimentação – pizzas e massas em geral – os italianos legaram importantes elementos na construção civil de Belo Horizonte que, visivelmente, estão rapidamente desaparecendo por razões de mercado – a atroz especulação imobiliária dentro e nas adjacências da Avenida do Contorno e também por outro motivo, em geral não aludido: o descaso da municipalidade e dos órgãos estaduais para com a arquitetura eclética e “trivial”, isto é, as casas simples, não os palacetes onde residiram pessoas consideradas importantes (FREITAS, 2007).

Estudo de caso: as obras de Luiz Olivieri A fim de sustentar a argumentação explanada acima, o artigo detalha quais edificações projetadas e/ou construídas por Luiz Olivieri ainda existem em Belo Horizonte. Então, seja porque o poder municipal não tem interesse em conceder isenção

40

Pensando nos imigrantes ilegais nigerianos e bolivianos em São Paulo, por exemplo, que entram sem que as autoridades “os vejam”, com os recursos de informática, internet, polícia internacional, controles alfandegários e, ademais, são discriminados por serem negros e de origem indígena e de países pobres, presume-se quantos europeus ilegais entraram no país, considerando a visão preconceituosa das autoridades brasileiras daquele período – que iriam “branquear” e “melhorar” o país – e o fato de que o controle era feito exclusivamente usando-se uma caneta-tinteiro e um livro de registro nos portos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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de impostos prediais em demasia, seja porque muitos cursos de Engenharia, Arquitetura e Belas Artes, em geral, não capacitam seus profissionais a fruir a beleza do comum, do simples, do singelo, muitas vezes em busca do monumental e do purismo estilístico (BRANDI, 2004), sem perceber que isso é praticamente impossível no Brasil, a arquitetura particular vem sendo rapidamente arrasada na capital mineira.

Figura 1: arranha-céu onde existiu casarão projetado por Olivieri, bairro Funcionários, Belo Horizonte

Luiz Olivieri nasceu em 1869, em Florença, Itália. Ao chegar a Minas Gerais, integrou a Comissão Construtora da Nova Capital. Em 1897 abriu o primeiro escritório particular de arquitetura e de desenho da capital e o “erro” que cometeu para que grande parte de suas obras hoje não mais exista foi ter criado diversos projetos para particulares, muitos deles imigrantes, alguns abastados, mas que não pertenciam à elite política nem às famílias tradicionais, portanto, a partir da década de 1970 a maioria de seus palacetes REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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foi considerada sem importância e deu lugar a estacionamentos ou a edifícios residenciais sem nenhum atrativo estético. Ademais, seus trabalhos já não eram mais barrocos/coloniais, e o “furor” modernista ainda não havia surgido, portanto, esse foi outro fator de desvalorização de seus trabalhos – eram ecléticos. Conforme o Dicionário Biográfico de Construtores e Artistas de Belo Horizonte e o Guia de Bens Tombados em Belo Horizonte, essas foram as criações mais significativas desse imigrante italiano (IEPHA, 2006):

Tabela 1: Edificações Institucionais/Oficiais Denominação

Localização

1-

Indústria de Bebidas Antártica (1910)

Av. Oiapoque, 76

2-

Banco Hipotecário e Agrícola – atual PSIU Pça Sete de Setembro, s/n

Situação Íntegro Íntegro

(1922) 3-

Palacete Dantas, Secretaria de Estado de Pça. da Liberdade, s/n

Íntegro

Cultura (1915) 4-

Escadaria da Igreja Santa Efigênia (1903)

R. Álvares Maciel esq. Av. Brasil Íntegro

5-

Estação Central de Belo Horizonte (1922)

Pça. Rui Barbosa, s/n

Íntegro

6-

Comércio e Sobrado (1896)

R. Caetés, 580

Íntegro

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Tabela 2: Edificações particulares Denominação 1-

Residência (1898)

2-

Residência

Eugênio

Localização

Situação

R. Timbiras, 1228

Demolido

Thibau/Palacete Av. Afonso Pena esq. R. Espírito Demolido

Guanabara (1911)

Santo

3-

Residência Francisco Pimentel (1911)

Av. Afonso Pena, 1050

Demolido

4-

Residência João Alves do Vale (1911)

Av. Brasil, 64

Demolido

5-

Residência Gonçalves das Neves (1897)

Av.

João

Pinheiro

esq.

R. Demolido

Timbiras 6-

Residência José Tricoli (1897)

Av. João Pinheiro, 214

Demolido

7-

Residência João Gonçalves da Costa (1921)

Av. Oiapoque, 242

Demolido

8-

Residência (1912)

Av. Paraná, 207

Demolido

9-

Residência (1925)

Av. Paraná, 214

Demolido

10-

Residência João Gualberto de Souza (1928)

R. Alagoas, 730

Demolido

11-

Residência Inácio Burlamaqui (1902)

R. Bahia, 1491

Demolido

12-

Residência José Benjamin (1901)

R. Caetés, 604

Demolido

13-

Residência João Batista Viana (1928)

R. Carijós esq. R. Espírito Santo

Demolido

14-

Residência (1923)

R. Espírito Santo, 980

Demolido

15-

Residência (1916)

R. Goiás, 36

Demolido

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16-

Residência José Januário da Silveira (1907)

R. Guaicurus esq. R. Espírito Demolido Santo

17-

Residência Pelicano Frade (1902)

R. Paraíba, 976

Demolido

18-

Residência José Oliveira Costa (1907)

R. Pernambuco, 1078

Demolido

19-

Residência (1914)

R. Rio Grande do Norte, 587

Íntegro

20-

Residência (1920)

Av. Getúlio Vargas, 1238

Íntegro

21-

Residência Leandro da Silva Perdigão (1915) R. Davi Campista, 160

Íntegro

22-

Residência Domingos Rigotto (1898)

R. Aimorés, 647

Íntegro

23-

Residência (1909)

R. Espírito Santo, 1507

Íntegro

24-

Residência (1905)

R. Aimorés, 1123

Íntegro

25-

Residência (1906)

R. Aimorés, 1155

Íntegro

26-

Residência Lafaiete Brandão (1923)

R. Sapucaí, 127

Íntegro

27-

Residência assobradada, atual NET (1904)

R. Timbiras, 1605

Íntegro

28-

Residência (1896)

R. Ceará, 1323

Íntegro

29-

Residência (1912)

R. Padre Rolim, 435

Íntegro

30-

Residência (1922)

Av. do Contorno, 3479

Íntegro

31-

Residência Augusto da Silva (1897)

Av. João Pinheiro, 164

Íntegro

32-

Residência (1918)

R. Varginha, 210

Ruínas

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Uma apreensão quantitativa mostra o descaso em relação ao patrimônio edificado concebido/construído por este arquiteto. A porcentagem do que ainda existe da arquitetura civil: 40,7%; existência parcial (em ruína): 3,12%; demolida: 56,25%. Em relação aos imóveis institucionais/monumentais, 100% existe e está bem conservado, o que corrobora o argumento central do artigo e também foi verificado em outros estudos (CUNHA, 1997).

Figura 2: Estação Ferroviária Central, Centro – Belo Horizonte

Existe uma desatenção – proposital ou involuntária – para com a arquitetura civil “comum” de Belo Horizonte e uma atroz especulação imobiliária que podem conduzir essa capital a ter, em pouco tempo, somente “vestígios” monumentais espalhados e sem diálogo com o entorno; tal conjunção de fenômenos está fazendo desaparecer a memória REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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social construída dessa cidade sob os auspícios de grande parte dos órgãos públicos e das autoridades de gestão cultural (IEPHA, 1997). Em síntese, é sintomático do descaso em relação à influência italiana em Belo Horizonte, por exemplo, que poucos saibam que a atual Escola de Saúde São Rafael tenha sido a Hospedaria de Imigrantes (bairro Barro Preto, Av. Augusto de Lima esq. Av. Barbacena), segundo Freitas (2007), e que Belo Horizonte, dentre as grandes cidades brasileiras, incluindo-se Recife, onde a imigração italiana foi modesta, não tenha uma Casa d” Itália nem uma Beneficenza di Mutuo Soccorso instalada em edificação com arquitetura característica feita por imigrantes, como acontece com o já citado Rio de Janeiro e com Salvador, por exemplos. A beneficência italiana da capital mineira ficava à R. Tamoios quase esquina com R. São Paulo, em estilo art-decó. Atualmente no local encontra-se um dos muitos “galpões” que proliferam na área central, usado por uma loja de cosméticos.

Considerações finais

Em síntese, alguns dos principais motivos para que a arquitetura civil eclética trazida pelos italianos para Belo Horizonte esteja desaparecendo, seriam: 

Certa “resistência” da gestão municipal em conceder muitas isenções tributárias justamente na região onde os terrenos são mais valorizados, a área circundada pela Avenida do Contorno. Posto que tal arquitetura pertence a particulares, há oposição velada por parte de outros setores municipais em relação às demandas de tombamento postas pela Diretoria de Patrimônio, logo, o que vem permanecendo no tempo são colégios, hospitais, igrejas e órgãos públicos, edificações que a priori já são isentas de impostos – a arquitetura grandiosa, monumental e institucional.

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A desvalorização, inconsciente, para com edificações situadas às margens do Centro, na “cidade baixa” de Belo Horizonte41. Para quem não conhece a cidade, o eixo da Av. Afonso Pena é, do ponto de vista topográfico, a parte alta da capital, e a bacia do Ribeirão Arrudas, que limita boa parte da área central, foi uma “várzea”. Porém, curiosamente essa diferenciação tem consonância com o âmbito simbólico, pois a Av. Afonso Pena segue para o “alto”, para a Serra do Curral, enquanto que a zona do baixo meretrício e do comércio popular e/ou atacadista “desce” para as imediações da Estação Rodoviária e do Ribeirão Arrudas, áreas “marginais” em relação à área central em termos simbólicos (culturais inconscientes) e espaciais.

A força econômica e, consequentemente, política, das grandes construtoras que são resistentes a adotar com maior profusão modalidades construtivas já usuais em países como Espanha, por exemplo, ou seja, preservar a fachada ou o corpo da casa como saguão do edifício e erguer o prédio nos fundos ou mesmo dentro da estrutura da edificação antiga. Em conversas informais com arquitetos de duas das maiores construtoras mineiras (FREITAS, 2010), pode-se inferir que existem dois motivos para isso: 1- é mais fácil demolir tudo e construir o edifício a partir do zero do que ficar elaborando “complexos” projetos de restauro, revitalização, reutilização da, por eles nomeada, “casa velha”. 2- A maioria dos compradores acha que “estão morando em casa velha”, confundem o antigo com o arcaico se algo remanescente permanecer na nova construção. Assim, segundo explicaram arquitetos dessas construtoras, a própria cultura de Belo Horizonte rejeita o antigo. Psicologicamente, conforme já mencionado em trabalho anterior, o belo horizontino é avesso ao antigo (FREITAS,

41

Exemplos desse imaginário: a Igreja Ortodoxa São Jorge, erguida pela comunidade libanesa na Av. Olegário Maciel nas imediações da Estação Rodoviária, isto é, na “cidade baixa”, assim como o Hotel Brilhante, atualmente zona de prostituição, construído em estilo art decó por Romeo Di Paoli (possui, desativado, um elevador com porta trançada, típico dos anos 1930), eram desconhecidos desse órgão pelo simples fato de estarem na periferia, em duplo sentido, do Centro. O referido órgão só tomou conhecimento da existência deles quando foi solicitado tombamento desses imóveis pelo autor do texto. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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2007); tal mentalidade começou a ser elaborada nos tempos de execução da capital, quando a Comissão Construtora se esforçou sistematicamente em apagar qualquer resquício do Brasil Colonial e/ou Imperial que houvesse na região onde ela iria ser construída; procurava-se, ao máximo possível, que Belo Horizonte não tivesse nada a ver com Ouro Preto e, doravante, sua identidade veio sendo talhada dentro desse imaginário. 

A resistência em reconstruir um imóvel particular que foi, por exemplo, criminosamente demolido, posto que muitos órgãos de proteção no Brasil, não só em Belo Horizonte, ainda entendem a teoria do Falso Histórico de modo ortodoxo. Essa visão privilegia o aspecto temporal e encara a edificação primordialmente como uma obra de arte, não tanto como um elemento carregado de significados culturais, funções urbanas e valores estéticos. Quiçá isso aconteça porque as equipes dessas instituições sejam quase sempre bi-disciplinares – Arquitetura e História, eventualmente multidisciplinares, com antropólogos, por exemplo. Assim, pouco se abrem a outros enfoques, como é o caso da teoria antropológica da identidade urbana. Um exemplo interessante de reconstrução de conjunto que resgatou os aspectos identitários e estéticos sem violentar a herança histórica e artística original foi a minuciosa reconstrução do bairro do Chiado, em Lisboa, após o incêndio que consumiu quase 80% das edificações originais da área em 1988 (BESSA, 2004). Em suma, o desinteresse e desrespeito para com a arquitetura privada de Luiz

Olivieri, um dos mais conhecidos e importantes artistas italianos que atuaram nos primórdios de Belo Horizonte, sinaliza para uma situação grave: se seu repertório não institucional – que existiu dentro da Avenida do Contorno – vem sendo derruído dessa maneira, o que dizer então daquela arquitetura também não institucional fora da Av. do Contorno feita por capomastri, muratori e artistas desconhecidos, analfabetos, pobres e comuns. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Referências

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<http://oriundi.net/site/oriundi.php?menu=noticiasdet&id=6260>. 22/10/2014.

Acessado

em

NICOLI, Sandra. Imigração italiana em Minas Gerais/Brasil: cotidiano, costumes e tradições. VII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Población. Foz do Iguaçu/PR, Brasil, 17 a 22 de outubro de 2016. SALMONI, Anita; DeBENEDETTI, Emma. Arquitetura Italiana em São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 2007. WERNECK, Gustavo. Conheça as obras projetadas por Raffaello Berti em Belo Horizonte. Estado de Minas. 03/11/2012. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/11/03/interna_gerais,327200/conhecaas-obras-projetadas-por-berti-em-belo-horizonte.shtml>. Acesso em: 07/07/2014.

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SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica 1

Autor: Gabrielle Thuanny Estudante de graduação em licenciatura de História na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), FAFICH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas). Nível de ensino: Ensino Médio - 1° ano Tema: Ocupação do mercado de trabalho e a violência contra mulheres Disciplina: História/Sociologia Interdisciplinaridade: História, Sociologia e Filosofia. Transversalidade: Direito Jurídico, História do Direito, Ética e moral, Direitos individuais, Relações de Gênero, Feminismo. Documento 1 Título: Dossiê da comissão parlamentar de inquérito para apurar casos de violência contra mulher (CPI violência contra as mulheres de Belo Horizonte) Gênero: Textual: Folha avulsa, jornal Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação dos documentos: APCBH - DR.00.00.00

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Documento 1: DR.01.02.04-0226, Jornal Hoje em Dia 12/05/1992, p. 340

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Documento 2: DR.01.02.04-0225, Folha de Nova Lima, março de 1992, p. 94

Documento 3: DR.01.02.04-0226, Jornal Hoje em Dia, 20/05/1992, p. 247

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Documento 4: DR.01.02.04-0226, Carta enviada à comissão da CPI por policial anônimo, p. 279

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Objetivos

Refletir sobre a questão de igualdade de gênero na sociedade, tendo em vista o papel da mulher e o protagonismo feminino, além de formas para reduzir essas desigualdades, para além de conscientizar os alunos sobre tais questões e como elas nos afetam diretamente e diariamente. O objetivo da atividade consiste em propiciar que o aluno gere uma reflexão autônoma sobre como a ocupação de certos espaços, cargos e funções por mulheres gera incômodo, podendo ocasionar violências contra elas. Assim, será propiciado ao aluno discussões e materiais que lhe darão condições de construir, pesquisar, conhecer e criticar as formas de representação das mulheres perante o mercado de trabalho, a posição desigual das mulheres na sociedade e na cidade em que residem, levando-os a refletirem sobre o espaço que ocupam e como se dá essa configuração na cidade de Belo Horizonte. Além disso, estimular o senso crítico dos alunos de forma que estes questionem a percepção imposta do papel da mulher na sociedade e na cidade de Belo Horizonte, trazendo isso para a realidade destes. Desta forma, abordar também o conceito de violência, que pode ser compreendido de diversas formas, como retratado por Bourdieu, em seus aspectos simbólicos, físicos e psicológicos (BOURDIEU,19XX). Pretende-se que, após esse trabalho de reflexão, seja possível pensar e propor formas de resistência e combate ao machismo e à desigualdade de gênero nos ambientes que os alunos ocupam, como a escola, o lar e a cidade em que vivem. É importante que a atividade propicie ao aluno uma noção de pertencimento àquela sociedade de forma que ele se sinta no direito e na obrigação de interferir efetivamente neste contexto, reforçando a ideia de dever de cidadão nos adolescentes.

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Procedimentos de ensino

Para o desenvolvimento da nossa atividade, será necessária a organização da sala de aula em formato de roda de conversa antes que se inicie o debate. É importante que os alunos consigam ver e serem vistos pelos seus colegas, o que ajuda na horizontalidade do processo. Assim, iniciar a atividade com a seguinte pergunta:

• Qual profissão você deseja seguir? E quais os perigos que essa profissão pode lhe proporcionar?

Essa pergunta introdutória servirá para gerar a reflexão do que eles esperam do trabalho, e como enxergam as possíveis violências nos cargos que pretendem ocupar e nos possíveis ofícios a serem realizados. Provavelmente, não irão apontar situações que o machismo pode proporcionar. Dado isso, seguimos dando continuidade à linha de raciocínio para a reflexão de como o machismo interfere no ambiente de trabalho. Refletiremos sobre o que esse aluno do ensino médio entende e compreende como “violência” e deixamos em aberto para que esses discutam o tema a partir da indagação:

• O que é violência?

O próximo passo é explicar os conceitos das diferentes formas de violência, exemplificar a violência simbólica como sendo não somente física, mas também psicológica e verbal, atentando para o fato de que a imposição de poder nas relações de trabalho também se configura como uma forma de violência. Destarte apresentar as manchetes de jornais REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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sobre abuso no ambiente de trabalho (Documentos 01 e 04). A partir da ideia colocada de violência, refletir com os alunos e fomentar a discussão sobre gênero, e sobre o protagonismo feminino propriamente dito. Perguntar o que entendem por gênero, como enxergam o papel da mulher no mercado de trabalho e na sociedade, ao levantar questões como: • O que é gênero? • Mulheres e homens têm funções iguais na sociedade? • Mulheres e homens têm oportunidades iguais na sociedade? • E no mercado de trabalho? • Você sabe o que é jornada dupla? Você percebe isso na sua vivência? Conclua algo sobre esse ponto.

Dadas as devidas noções e concepções de gênero, papel e protagonismo da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, devemos iniciar uma reflexão e propiciar indagações mais pessoais sobre como os alunos percebem a relação que as mulheres de seu convívio estabelecem com o mercado de trabalho, assim como quais são as expectativas desses mediante todas as informações apresentadas. Após a discussão, apresentamos demais documentos exemplificando as formas de discriminação das mulheres nos ambientes de trabalho, dadas as questões de desigualdade de gênero explicitadas, correlacionando com o papel e o protagonismo da mulher nos cargos, na sociedade e afins (Documentos 02 e 03). Seguindo a aula, perguntaremos aos alunos: • Na sua família todas as mulheres trabalham e contribuem com a renda familiar? • Você acredita que suas colegas de classe devem ter empregos dignos e serem respeitadas no ambiente de trabalho e na sala de aula? / Você acredita que seus colegas de classe REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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devem ter empregos dignos e que você seja respeitado no ambiente de trabalho e na sala de aula?

Para finalizar a aula, vamos falar sobre personalidades femininas que tiveram forte protagonismo histórico, e que, por vezes, são silenciadas ou ocultadas da história, mesmo tendo relevante papel na ciência, na cultura, na política e na sociedade, de forma geral. Vamos iniciar com a pergunta: • Quais personalidades femininas vocês têm conhecimento? E o que elas fizeram?

Vamos concluir a aula propondo um trabalho livre em que o aluno escreva sobre a percepção que ele tinha antes da aula e a percepção após a aula, e fechar com a seguinte reflexão: • Depois dessa aula, qual sua posição sobre as mulheres no ambiente de trabalho? E seu entendimento sobre igualdade de gênero?

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SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica – 2

Autor: Luis Otávio Silva Botelho Graduando em História pela UFMG, com foco em pesquisas em gênero, relações políticas na América Latina e educação. Estagiário no APCBH.

Nível de ensino:

__ Fundamental – Séries Iniciais ___ série/ciclo __ Fundamental – Séries Finais __ série/ciclo X Médio X EJA __ ciclo

Tema: LGBTs em Belo Horizonte: repressão a travestis no início da Ditadura Militar (1964-1985) Disciplina: História Interdisciplinaridade: Filosofia, Sociologia, Artes. Transversalidade: Gênero, sexualidade, regimes autoritários, cidadania, direitos humanos.

Descrição sumária do(s) documento(s):

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Documento 1 Título: Notícia do Jornal DIÁRIO DO PARANÁ, de 15/08/1968

15/08/1968, 5ª-feira Diário do Paraná, ano XIV, n. 3.927, p. 16 Mineiros vetam o concurso de Miss Travesti

BELO HORIZONTE (Meridional - via Telex) – O serviço de censura da Polícia Federal vetou ontem o concurso Miss Brasil-68 dos Travestis que estava programado para as 23 horas no Dancing Montanhês. Concorrentes de várias partes do país começaram a chegar a Belo Horizonte desde o último fim de semana e o concurso era promovido pelo travesti Sophia de Carlo que prometia muita animação e “participação jamais vista no Brasil”. Às 15 horas Sophia de Carlo subiu às pressas as escadarias do Departamento de Polícia Federal, dirigindo-se para o serviço de censura onde esperava receber autorização “porque tudo já está pronto para a grande noite”. Vestia blusa amarela com franjas na frente, óculos escuros redondos, bolsa grande marrom na mão e a cabeleira loura caindo sobre os ombros. Os federais espantaram-se com a aparição súbita, que se fazia acompanhar de quatro rapazes e todo mundo passou a comentar as vestes e os gestos do “travesti”. Quando soube que o concurso estava vetado, “atendendo ordens de Brasília”, segundo a Polícia – Sophia não gostou e saiu irritado dizendo: “Tá certo! Não deixaram e a noitada não vai ser realizada mesmo. Absurdo, mas não vamos recorrer a nada. Simplesmente não vai haver a eleição de “Miss Travesti”. É só.”

Gênero: X textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) __ iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) __ cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) __ micrográfico (formato: microfilme) Instituição de guarda: ___ Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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___ Museu Histórico Abílio Barreto – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu de Arte da Pampulha – Fundação Municipal de Cultura ___ Centro de Referência Audiovisual – Fundação Municipal de Cultura X Outros: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Documento 2 Título: Notícia do jornal ESTADO DE MINAS, de 15/08/1968

Estado de Minas, ano XLI, n. 11.521, 1º Caderno, p. 16 Fato, lei e polícia – Helton Brant Aleixo Travesti e desfile

Não se realizou, ontem, o concurso “Miss Brasil de Bonecas Travesti 1968”. O local seria o Montanhês Dança, tradicional reduto de boemia de Belo Horizonte. Achavam-se inscritos “candidatos” de vários Estados. Seria promovido por “Sophia de Carlo”, expoente dos travestis mineiros. Coube à Polícia Federal, em defesa dos bons costumes, proibir o espetáculo. “Sophia de Carlo” foi cientificada da proibição quando compareceu ontem, ao serviço de censura daquele departamento. O jovem não se achava vestido inteiramente de mulher, mas o seu traje era o seguinte: calças compridas listradas, bem justas; blusa amarela com franjas; óculos escuros redondos; grande bolsa marrom, último tipo. Trazia ainda longa cabeleira loura caindo sobre os ombros (peruca).

Gênero: X textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) __ iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) __ cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) __ micrográfico (formato: microfilme) REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Instituição de guarda: ___ Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu Histórico Abílio Barreto – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu de Arte da Pampulha – Fundação Municipal de Cultura ___ Centro de Referência Audiovisual – Fundação Municipal de Cultura X Outros: Hemeroteca da Biblioteca Estadual Luiz de Bessa

Documento 3 Título: Notícia do jornal ÚLTIMA HORA, de 15/08/1968

Última Hora, ano XVIII, n. 2.255, p. 1 Minuto final Travestis sem miss

Gritinhos, muito choro, desmaios foi a forma encontrada pelas “bonecas”, que usavam os seus vestidos importados, para protestar contra o Departamento de Polícia Federal que proibia o concurso de beleza poucos minutos antes dele começar, ontem à noite, no Montanhês. Sophia di Carlo foi a que mais gritou e chorou, chamando os investigadores de “brutos, malvados e sem sensibilidades”. A Polícia Federal disse que a ordem de proibição veio diretamente de Brasília.

Gênero: X textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) __ iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) __ cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) __ micrográfico (formato: microfilme) Instituição de guarda: REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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___ Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu Histórico Abílio Barreto – Fundação Municipal de Cultura ___ Museu de Arte da Pampulha – Fundação Municipal de Cultura ___ Centro de Referência Audiovisual – Fundação Municipal de Cultura X Outros: Hemeroteca da Biblioteca Estadual Luiz de Bessa

Objetivos da atividade:

A importância de discutir sobre as formas de repressão durante o período do regime militar no Brasil se justifica pelo aprofundamento da noção de democracia advindo deste debate, deixando claro como o nosso sistema político democrático atual não é uma garantia em si próprio e precisa ser um valor preservado e aprofundado. Recortando especificamente para Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), é pública e notória a exclusão histórica que estes grupos vêm sendo submetidos em todos os âmbitos da sociedade - inclusive na educação formal. Desta forma, com vistas a contribuir para uma sociedade inclusiva e respeitosamente diversa, a atividade objetiva discutir (dentro do ambiente escolar e respeitando as orientações pedagógicas do que é pertinente para cada faixa etária) as seguintes temáticas: noções de sexo, gênero e sexualidade; origens do preconceito social e aprofundamento teórico sobre as diversas realidades experimentadas no período da Ditadura Militar (19641985), com enfoque nas políticas públicas de repressão às travestis em Belo Horizonte. Partindo dessas premissas, o problema histórico que deverá nortear a aula é: QUAL A FORMA COMO O PODER PÚBLICO TRATOU AS TRAVESTIS AO LONGO DA DITADURA? Para isso, usaremos os documentos disponíveis e também os conhecimentos dos alunos, advindos do convívio e da socialização. Para fins didáticos, pode ser interessante fazer uma espécie de levantamento prévio dos conhecimentos dos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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alunos acerca dos conceitos de: DITADURA, REPRESSÃO, RESISTÊNCIA, CONSERVADORISMO, etc… Isto pode servir para estabelecer um rumo norteador para o professor obter uma noção de qual é o nível geral de compreensão sobre os assuntos e a partir daí estruturar sua prática didática. A ideia é suscitar, a partir dos documentos sugeridos, uma discussão com os alunos partindo das seguintes questões: -

Quais as possíveis motivações de se proibir o concurso?

-

Vocês consideram uma medida justa? Por quê?

-

Analisando o vocabulário usado na redação das matérias, vocês diriam que os

jornalistas concordam com a proibição? Por quê? A discussão inicial deve se desenrolar a partir dessas questões, priorizando o conceito do LUGAR SOCIAL onde as travestis foram colocadas, questionando os alunos se a noção de dignidade da pessoa humana foi respeitada nesse caso. É importante frisar que este é apenas um dos modos como a repressão atuava, possível de se analisar a partir dos documentos, mas que havia outras mais violentas e repressivas (como rondas noturnas com prisões arbitrárias). Feitos os primeiros questionamentos, o professor deverá conduzir para uma análise textual das notícias sugeridas, enfocando alguns aspectos semânticos do texto que são reveladores de um preconceito embutido socialmente. Por exemplo, circular ou destacar as palavras: “O TRAVESTI”, “OS FEDERAIS ESPANTARAM-SE COM A APARIÇÃO SÚBITA”, “GRITINHOS, MUITO CHORO, DESMAIOS FOI A FORMA ENCONTRADA PELAS ‘BONECAS’”.

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A partir destes exemplos, discutir com os alunos a forma como, através do discurso (no caso, o texto jornalístico), é possível revelarem-se visões de mundo e preconceitos sociais aparentemente velados num primeiro momento. Por fim, sugere-se que esta aula temática seja ministrada quando o conteúdo programático da Ditadura Militar já tenha sido visto pelos alunos, de modo a garantir uma compreensão mais ampla e complexa dos diversos tipos de realidades experimentados durante o regime, e como ele incidia de forma diferente sob os diversos grupos sociais. Seria interessante frisar que, quando do golpe em 1964, o “inimigo comum da nação” era tido como o comunista e subversivo, que estava à espreita para tomar o poder. Ao longo dos anos, no entanto, houve uma ampliação na categoria dos inimigos, sendo incluídos nela os “invertidos” (homossexuais, lésbicas e travestis); em alguns casos negros, indígenas e ciganos;

pessoas

que

discordassem

do

regime

(mesmo

que

sem

filiação

político/partidária/ideológica), etc. Puxando este gancho, é possível discutir em sala como as ditaduras e os regimes autoritários precisam constantemente mobilizar a população em torno de figuras ou grupos que são identificados como nocivos e perigosos, contrários ao interesse nacional, portanto passíveis de violência, exclusão e, em casos extremos, eliminação. A discussão sobre direitos humanos se encaixa neste momento. OBS: Talvez seja preciso, inicialmente, trabalhar alguns conceitos básicos relacionados a gênero e a sexualidade, a fim de criar uma compreensão coletiva sobre o tema antes de aprofundar na questão específica da repressão aos LGBT em Belo Horizonte ao longo da ditadura. Para isso, recomendamos material disponível no Portal do Professor, no link <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=58485> Acesso em 21/11/2018.

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Referências bibliográficas:

GREEN, James N & QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2014. 332 p. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Ed. revista e ampliada. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica - 3

Autor: Luiz Fernando Cristiano Ferreira da Silva Graduando de Licenciatura em História – Unibh Estagiário na Divisão de Arquivos Permanentes – DVARP Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – APCBH Fundação Municipal de Cultura - FMC

Nível de ensino: Ensino Médio – 3° Ano Tema: A memória negra em disputa em Belo Horizonte: Praça 13 de maio ou Praça do Preto Velho? Disciplina: História Interdisciplinaridade: Português, Sociologia e Geografia Transversalidade: Diversidade Cultural

Descrição sumária do documento: Cartaz de divulgação da 29ª Festa dos Pretos-Velhos, promovida pela Federação Umbandista do Estado de Minas Gerais e apoiada pela Prefeitura de Belo Horizonte. No cartaz é possível ver uma pintura com a identificação do artista indecifrável.

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Documento Título: 29ª Festa dos Pretos-Velhos. Noite da Libertação. Praça 13 de maio. Data: 2010 Gênero: iconográfico (cartaz)

Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: APCBH//AX.05.00.00

Objetivos da atividade: 

Registrar em Belo Horizonte espaços de manifestações da cultura afro-brasileira;

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Identificar as sociabilidades e manifestações culturais presentes na região da Praça 13 de maio/Praça do Preto-Velho;

Analisar as diferentes memórias presentes sobre a praça;

Analisar iconograficamente a peça publicitária da Festa dos Pretos-Velhos;

Compreender a relação entre História e Memória.

Procedimentos/estratégia de ensino: No texto História Regional e Nacional42, Circe Bittencourt nos alerta para algo que é bastante recorrente quando se trata de ensino de história na educação básica. Bem, o que ocorre é que em certos casos cai-se no erro de projetar aspectos regionais como nacionais. A exemplo, a retórica de uma economia brasileira no século XIX ligada à exportação de café, só se justifica com relação ao sudeste, o que não é empírico quanto à região norte, nordeste e sul.

Nesse sentido, heróis e movimentos ligados a uma história nacional, acabam perdendo força quando nos debruçamos a analisar suas motivações, ideias, projetos, inspirações e alcances de seus planos de revolta. A Inconfidência Mineira e seu mártir Tiradentes, emergem na história nacional dentro de um plano de construção de signos para uma identidade nacional emergente com a Proclamação da República, mas quando nos aprofundamos no movimento, percebemos que tal movimento ligava-se particularmente a tensões internas que se acumulavam no interior da capitania de Minas Gerais.

42

Tal texto está presente no livro Ensino de História: Fundamentos e Métodos na sua 2ª parte, referente a Métodos e Conteúdos escolares: uma relação necessária. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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A mesma coisa ocorre com a Praça 13 de maio ou Praça do Preto-Velho. Entre uma data apropriada enquanto propaganda da recém-instaurada República Brasileira e uma referência a uma manifestação sociocultural de matriz africana, percebe-se um campo de disputa política de uma memória social. Enquanto que a data 13 de maio de 1888 corresponde à libertação dos escravos como uma vitória republicana, as manifestações culturais das populações negras, tais como as festas, eram marginalizadas e suprimidas. Assim, é importante pensar em como que a existência de dois nomes para delegar o mesmo espaço confere ao local status de disputa política.

Partindo da própria legislação que estabelece o ensino obrigatório da história e da cultura afro-brasileira e indígena43, essa proposta de atividade visa demonstrar as possibilidades de se trabalhar numa perspectiva de história regional tais aspectos e, ao mesmo tempo, contribuir para o reconhecimento dos “territórios negros” em Belo Horizonte. Sabe-se das diversas problemáticas com relação à aplicação da lei, que acaba sendo lembrada apenas no contexto da semana da Consciência Negra. A ideia aqui é apresentar uma possibilidade de se pensar tais temas de forma transversal aos conteúdos programáticos do ensino básico. Assim, pode-se pensar as representações negras na 1ª República por exemplo.

Em um primeiro momento, o professor deverá trabalhar os conteúdos referentes à transição do Império para a República, destacando o papel da imagem como ferramenta didática e demonstrando como o historiador trabalha com materiais iconográficos. Após isso, o professor deve discutir o papel da memória e como ela pode ser modificada, usando como exemplo a personagem histórica de Tiradentes, que para o Império foi um traidor e para a República um Herói.

43

Lei 10.645, de 10 de março de 2008. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Após essa contextualização, o professor poderá começar a trabalhar aspectos regionais, introduzindo a problemática da Praça 13 de maio ou Praça do Preto-Velho. Discutindo a construção de símbolos republicanos e como esses símbolos, muita das vezes, iam em direção contrária ao imaginário popular. Nesse caso, a praça faz menção a um projeto republicano e não a uma manifestação cultural de matriz africana.

Para a realização dessa atividade, o professor deve, junto à coordenação da escola, organizar uma visita à Praça 13 de maio, com a presença de algum dos organizadores da Festa dos Pretos-Velhos para mediar a visita. Nessa visita, deverão ser expostas questões sobre o que é a Festa dos Pretos-Velhos, quais outras manifestações culturais de matriz africana ocorrem na praça, e como que essas manifestações são vistas pela comunidade do entorno.

Em seguida, divididos em grupos, os alunos devem solicitar a um presente na praça uma entrevista em que se colete informações sobre a praça e a relação do entrevistado com ela (o professor poderá fornecer uma ficha de entrevista nos moldes metodológicos da história oral).

Por fim, será feito um seminário em que as entrevistas realizadas pelos grupos serão discutidas, problematizando como que a existência de dois nomes para designar o mesmo espaço confere ao local status de disputa política e disputa de memórias. Como e por que existem espaços próprios para manifestações culturais negras? Através do cartaz, pensar como que é feita a divulgação de eventos como a Festa dos Pretos-Velhos e qual o espaço na mídia tradicional para tal divulgação.

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Referências bibliográficas:

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: Fundamentos e Métodos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MAIA, Anderson Marinho. O espaço sagrado na praça 13 de maio: umbanda comemora o dia do(s) preto(s)-velho(s). Revista TEO&CR, Recife. V.6, n° 2, 2016. PINSK, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 2ª ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008.

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SEÇÃO - ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica – 4

Autor: Joel Júnio Ferreira Santos Graduando em História – Licenciatura Estagiário de Pesquisa e Educação Patrimonial no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Nível de ensino: Médio Tema: Espaços urbanos e o crescimento das favelas de Belo Horizonte no século XX: o Aglomerado da Serra e áreas próximas Disciplina: História Interdisciplinaridade: Geografia Transversalidade: Descrição sumária do(s) documento(s): Documento 1 Título: Levantamento Aerofotogramétrico de Belo Horizonte – Aglomerado da Serra e Mangabeiras. Ano 1953 Gênero: iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AC.01.00.00 Documento 2 Título: Levantamento Aerofotogramétrico do Município de Belo Horizonte – Aglomerado da Serra e Mangabeiras. Ano 1967 Gênero: iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AH.06.00.00 Documento 3 Título: Vila Pindura Saia. Local de expansão da Avenida Afonso Pena após a Praça Milton Campos.Ano 1965 Gênero: iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AB.00.00.00 Documento 4 Título: Praça Milton Campos. À direita: Clube Ginástico, Favela Pindura Saia. Placa com os dizeres "Obras de prosseguimento da Av. Afonso Pena". S/D Gênero: iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AB.00.00.00 Documento 5 Título: Planta Geral da Cidade de Minas Gênero: cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AI. 01.00.00 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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Documento 6 Título: Mapa Município de Belo Horizonte Gênero: cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: AJ. 08.01.01 Documento 7 Título: Mapa Município de Belo Horizonte - Favelas Gênero: cartográfico (formatos: projeto arquitetônico, planta, mapa) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Notação do documento: BN. 00.00.00 / GR 208 Objetivo da atividade: A atividade a seguir tem como objetivo trazer para a discussão a composição do espaço suburbano de Belo Horizonte e o crescimento das favelas na cidade. Tem por intenção fazer com que os alunos conheçam a cidade que moram, como e em qual contexto histórico a mesma surge. Também tem por objetivo mostrar como a cidade se amplia de forma exacerbada e desenfreada, colocando em cheque para ser discutido o crescimento das regiões de periferia – favelas. Outro ponto a ser desenvolvido na atividade é entender como essas localidades conseguiam perdurar nos territórios ocupados e como o poder público via essas localidades e também qual ação a prefeitura esteve tomando a fim de acabar com algo que por um tempo foi tido como ‘problema’.

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Procedimentos/estratégia de ensino: Serão realizadas duas aulas para o desenvolvimento da proposta. Iniciaremos com um debate com os alunos a fim de problematizar com os mesmos a composição do espaço denominado favela. Haverá uma contextualização de como a cidade de Belo Horizonte e de todo o seu processo de expansão ao longo do século XX, para podermos observar o crescimento das favelas e, em especial, do Aglomerado da Serra. Após todo o debate de contextualização, será feita uma dinâmica simples onde os alunos deverão analisar as fotografias e tentar descobrir qual é o local que a imagem mostra e o que está presente nos dias de hoje nessa localidade a fim de fazermos um comparativo entre a exclusão social e o crescimento urbanístico da cidade. Aula 1 – duração 50min Documentos a serem utilizados na 1ª aula:

Fotografias antigas da cidade de Belo Horizonte: Para podermos entender como eram as regiões e toda a sua evolução urbanística e industrial ao longo dos anos. Serão utilizadas fotografias antigas e atuais para esse comparativo e também para a realização da dinâmica.

Gênero: Iconográfico Instituição de Guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Referência bibliográfica para discussão:

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História de Bairros Regional Centro – sul: A fim de se conhecer a composição do centro de Belo Horizonte, a coleção História de Bairros nos dará uma base para discutirmos como a cidade surge e como é a composição dos bairros próximos a Avenida do Contorno.

Conteúdo da aula Buscando uma maior interação entre os alunos, a aula visa trazer a memória da periferia e também fazer com que os alunos possam conhecer como se deu a composição do espaço urbano e suburbano da capital mineira. Utilizando-se de fotografias e documentos textuais, a aula se dará em forma de debate para que todos possam opinar e expressar suas impressões acerca do tema proposto. O objetivo maior da aula será fazer com que os alunos possam entender qual é o espaço que os mesmos ocupam dentro da cidade e como se deu essa expansão. O professor contextualizará a criação de Belo Horizonte no final do século XIX relacionando a expansão da cidade com os ideais da Comissão Construtora da Nova Capital para urbanização. Ao final da aula, realizaremos uma dinâmica de reconhecimento de localidade através de fotografias que possam trazer à tona a questão da exclusão e da desigualdade social presente na cidade.

Aula 2 – duração 50min

Documentos a serem utilizados na 2ª aula 

Mapas da cidade de Belo Horizonte: serão utilizados três (3) mapas que mostram a evolução da cidade. O primeiro será da Comissão Construtora para mostrar

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como era a composição territorial da cidade ao início do séc. XX; o segundo mapa será um da década de 1940 para relacionar com o primeiro com o intuito de se observar a rápida expansão da cidade em poucas décadas; o terceiro mapa será da década de 1970 onde serão analisadas as localidades das favelas belo-horizontinas e a exclusão social do centro urbano. A utilização desses documentos vem para auxiliar na compreensão e na discussão da expansão territorial do espaço e como a cidade é composta por uma ampla área ditada como suburbana. Gênero: Cartográfico

Instituição de Guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Referência bibliográfica para discussão:

Profavela – o morro já tem vez: Livro que conta sobre a composição das favelas. O principal ponto a ser tratado pelo livro e que será de utilidade na aula é a parte em que se trata sobre a regulamentação, ou legalização, das favelas. Discussão sobre ocupação dos espaços e o direito à moradia.

Conteúdo da aula Após a contextualização do tema e compreensão através das fotos e do livro História de Bairros a segunda aula terá enfoque maior na problematização de como o espaço REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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suburbano cresce. A utilização de mapas e do livro Profavela – o morro tem vez visa ampliar o entendimento de como esses espaços passam a ser ocupados pela população. A discussão também passará pelo viés de como o poder público se portou diante desse crescimento e as políticas que eram utilizadas para remover e alocar a população favelada em outras regiões.

Atividade a ser realizada em sala de aula A atividade proposta visa trazer para mais próximo dos alunos o entendimento de qual espaço ocupam e como esse espaço foi constituído ao longo dos anos. Para isso, partiremos de uma análise de duas fotografias aéreas do Aglomerado da Serra e regiões próximas. Contaremos também com uma fotografia recente da região para que possamos analisar em conjunto a mudança ocorrida no espaço. A intenção é mostrar como em um espaço curto de tempo a região foi sendo ocupada com construções de ruas/avenidas, residências e comércios. A saber, como será realizada a atividade:

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Foto 1 – Foto aerofotogramétrica do ano de 1953: será analisada a composição do espaço geográfico que se conhece hoje como Aglomerado da Serra.

Que local famoso da cidade pode-se observar na foto? Espera-se que os estudantes identifiquem localidades como a Serra do Curral e a vegetação do Parque das Mangabeiras.

Que tipo de vegetação é predominante? Espera-se que os estudantes identifiquem, com base em seus conhecimentos adquiridos nas aulas de Geografia, a vegetação Cerrado.

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Foto 2 - Foto aerofotogramétrica do ano de 1967: análise sobre o desenvolvimento do espaço e o crescimento urbano.

Qual o tipo de moradia que podemos observar com mais presença na região? Espera-se que os alunos identifiquem a disposição das moradias no terreno ocupando áreas onde antes havia vegetação. Há como perceber que moradias mais precárias ocuparam a região.

Por que há esse crescimento tão rápido na ocupação desse espaço? Com base nas referências bibliográficas disponíveis para os alunos e nas discussões realizadas em sala, espera-se que os estudantes debatam como ocorreu a dinâmica do crescimento da cidade. Assim, como muitas pessoas foram expulsam do centro do capital, essas começaram a ocupar outras da cidade.

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Foto 3 – Fotografia da década de 1960: foto da antiga Favela do Pindura Saia onde será observado qual a composição urbana e o tipo de moradia que compunha a favela que posteriormente cede lugar ao bairro Cruzeiro.

Há alguma diferença social que pode ser notada na foto? Espera-se que os alunos identifiquem as moradias precárias da população, a falta de saneamento básico e demais condições sociais, em contraposição à imagem de edifícios luxuosos que fazem contraponto na fotografia.

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Foto 4 – Foto de obra municipal: será observada a expansão do território e também um reconhecimento de local.

Você sabe qual lugar é esse mostrado na foto? Na foto observamos a favela do Pindura Saia à direita, ao fundo a Serra do Curral e a abertura da Avenida Afonso Pena. É importante observar que o local onde está a placa da Prefeitura, posteriormente, foi construída a Praça Milton Campos.

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Mapa 1 – Planta Geral da Cidade de Minas: analisar a composição da cidade a partir da divisão entre o urbano e o suburbano proposto pela Comissão Construtora da Nova Capital.

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Mapa 2 – Mapa da década de 1940 – Será feito um comparativo com o MAPA 1 em relação ao crescimento da cidade, para além da zona urbana delimitada.

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Mapa 3 – Mapa do Município de Belo Horizonte 1970 – para entender o crescimento populacional através dos mapas, correlacionaremos esse terceiro mapa juntamente ao MAPA 2 para observamos aonde se situavam as favelas da cidade e também compreender a máxima da expansão que toma enormidades ao longo das décadas do século XX.

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Materiais a serem utilizados nas aulas  

Data-show e computador para slides; Documentos a serem utilizados (digitalizados)

Referências bibliográficas:

ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas RIBEIRO, Raphael Rajão (coordenadores). Histórias de bairros [de] Belo Horizonte. Centro-Sul. Belo Horizonte: APCBH; ACAPBH, 2008. (Versão digital disponível no site do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte: www.pbh.gov/cultura/arquivo). COSTA, Heloisa Soares de Moura. Natureza, mercado e cultura: caminhos da expansão metropolitana de Belo Horizonte. In: GODINHO, Maria Helena de Lacerda MENDONÇA, Jupira Gomes de (org). População, espaço e gestão na metrópole: novas configurações, velhas desigualdades. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. LEFEBVRE, Henri, Espaço e Política, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008 LEFEBVRE, Henri, O direito a Cidade. São Paulo: Centauro, 2001. SOMARRIBA, Maria das Mercês, Lutas Urbanas em Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1984. OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O movimento de favelas de Belo Horizonte (1959 – 1964). Rio de Janeiro: E-papers, 2010. PROFAVELA, o morro já tem vez. Belo Horizonte, URBEL: 1988.

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Diva Moreira

Comunicadora social e cientista política.

Pesquisadora, tendo realizado estudos no campo racial e de gênero.

Participou da implementação de políticas públicas para o enfrentamento do racismo, da miséria e da violência urbana.

Foto: Acervo Pessoal

Apresentação

Esta edição da REAPCBH traz o Dossiê “Gênero e Resistência em Belo Horizonte”, com o intuito de provocar uma reflexão sobre a luta política das mulheres brasileiras, ao longo dos anos, assim como fazer um balanço dos acontecimentos de 1968 no contexto da ditadura civil-militar. Para a entrevista desta edição, a REAPCBH convidou a pesquisadora Diva Moreira, que possui uma rica experiência em movimentos sociais e políticos, sendo defensora dos direitos das mulheres.

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REAPCBH pergunta: Conte para os nossos leitores sobre a sua trajetória como ativista e pesquisadora, sobre como surgiu o interesse pelo tema e como você iniciou suas atividades no campo dos movimentos sociais.

Diva Moreira responde: Duas instituições foram basilares em minha vida de ativista social e política: o Colégio Estadual de Minas Gerais, que depois passou a ser denominado Escola Estadual Milton Campos (ou Estadual Central), onde estudei de 1959 a 1964. A outra foi o Convento dos Dominicanos no Bairro da Serra, onde morei desde que cheguei a Belo Horizonte em 1950 até 1969. O Estadual, como chamávamos, era um colégio de referência no estado. Com rigorosa seleção de professores e professoras, que educavam e prestavam um ensino de alta qualidade, reunia filhos e filhas de uma sólida classe média. As campanhas eleitorais, os debates sobre nacionalismo/entreguismo, a liberdade cultural que se refletia no uso da maconha e da calça comprida, repercutiam na escola. Não me lembro exatamente se já falávamos do binômio direita/esquerda, mas sabíamos que havia a professora entreguista de inglês e professores progressistas. A crítica e a irreverência com professores, bem como as maneiras de driblar os inspetores de ensino, também faziam parte de nosso quotidiano. Isso contribuía para dar uma atmosfera mais leve a uma instituição voltada para um ensino exigente e de cobrança de desempenho por parte dos professores. A outra instituição fundante de minha vida de ativista foi o Convento dos Dominicanos. Situado numa ampla área verde no que era antes o final da Rua do Ouro, o Convento reunia majoritariamente padres progressistas. Em torno deles estavam mobilizadas e organizadas as várias juventudes da Ação Católica: JEC, JUC, JOC e JIC. Ou seja, estudantes secundaristas, universitários, trabalhadores operários e independentes, assim

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chamados quem trabalhava no serviço público e em outras áreas que não se enquadrassem nas demais. Foi no Convento em que, pela primeira vez na vida, fui ouvir o nome de Karl Marx em uma palestra proferida por um padre que mostrava que o pensamento daquele autor não era incompatível com os ensinamentos de Jesus. Poucos anos depois, Marx passou a se tornar a maior referência teórica e de práxis política da minha vida, quando me ingressei no Partido Comunista Brasileiro. Participava da CJC - Comunidade dos Jovens Cristãos que fora criada em São Paulo por Frei André e com outros jovens passamos a ir em peregrinação a pé à Serra da Piedade, em Caeté. A oração do Rosário era acompanhada de cânticos, em geral em francês por causa da influência e vinculação dos dominicanos do Brasil com a Ordem dos Pregadores da França. O eixo básico da pregação dos dominicanos era a articulação do Evangelho com o engajamento político. Era o Crer indissociado do Ser e do Agir, da ação transformadora e libertária dos cristãos para transformar as estruturas opressoras da sociedade. Essa experiência foi interrompida abruptamente na manhã de 1º de abril de 1964, quando os caminhões do Exército subiram a Rua do Ouro para invadir o Convento e prender vários padres. A Luta Continua! E realmente continuou! Mas, então, com restrições, diante do aparato repressivo e do desmantelamento da Ordem não apenas em Minas, mas no país. Sem perder de vista a temática de gênero, vale dizer que ela ainda não tinha emergido na história das lutas sociais no Brasil e no mundo. Apesar das lutas sufragistas e operárias, a desigualdade e a opressão da mulher eram um fenômeno planetário, mas ainda não tinham feito emergir identidades, subjetividades e protagonismos que vão surgir apenas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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quando a temática de gênero emerge como força política mobilizadora. Pela minha memória, não existiam organizações específicas em Belo Horizonte. Inicialmente, participei de movimentos de mulheres (não falávamos em gênero) contra o assassinato de mulheres brancas e ricas, vítimas de seus maridos, que alegavam “legítima defesa da honra” diante de juízes machistas que os absolviam. Organizamos o movimento “Quem ama não mata” que, infelizmente, retomou suas atividades nesse último trimestre de 2018. Fizemos atos de protesto nas escadarias da Igreja de São José e os julgamentos contavam com nossa ruidosa presença em frente ao Forum Lafayete. Fui uma das fundadoras do Movimento Feminino pela Anistia, mas, que pelo próprio nome indica, não era feminista. Depois, estive presente desde início do MOM – Movimento pela Organização da Mulher, que já iniciava uma embrionária pauta de identidade e reconhecimento. Como pesquisadora, meu primeiro trabalho foi o vídeo Dandara Mulher Negra que foi realizado quando trabalhava na Fundação João Pinheiro. Mas foi a partir da minha preparação para a Conferência Internacional da Mulher realizada pelas Nações Unidas em Nairobi, Kênia, que passei a dedicar mais tempo na pesquisa, na organização das mulheres negras e na busca de convencimento junto aos governos (municipal e estadual) para a inclusão da temática racial e de gênero nas políticas públicas. O resultado mais positivo que obtivemos foi a criação da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra, durante o governo do prefeito Célio de Castro.

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REAPCBH pergunta: Fale sobre a sua atuação no contexto da ditadura civil-militar, sua percepção sobre a resistência ao regime em Belo Horizonte, bem como as peculiaridades da cidade no âmbito do cenário brasileiro nesse período.

Diva Moreira responde: Quando o golpe contra o governo João Goulart aconteceu, eu tinha quase 18 anos e tinha deixado o curso científico no Colégio Estadual. Só trabalhava. Afora os estreitos vínculos com o Convento dos Dominicanos, que incluíam participação em eventos da JOC – Juventude Operária Católica, pela influência do meu irmão, que era integrante dela, eu ainda não me vinculara a nenhuma organização política. Mesmo assim, no primeiro aniversário do golpe, participei de passeata pelas ruas centrais e Praça da Liberdade para denunciar as perdas de direitos da classe trabalhadora e os abusos e violações de direitos humanos. Fui morar em São Paulo em 1966 e lá fiquei conhecendo pessoas envolvidas em organizações clandestinas de combate à ditadura. Pouco tempo depois de voltar para Belo Horizonte, “aparelhos” clandestinos caíram e várias pessoas foram presas e brutalmente torturadas. Exílios, assassinatos e suicídios integram o saldo de horror da ditadura em São Paulo e fora do país. Muitas dessas pessoas eram padres dominicanos e leigos que frequentavam o Convento de Perdizes. Na volta, continuei a me preparar para fazer o curso de madureza (antigo nome do EJA) e o vestibular, o que aconteceu em 1967. Durante o curso, participei de reuniões clandestinas, de várias passeatas (hoje é mais comum falar em atos e manifestações) contra a ditadura e de denúncia aos acordos que ela tinha feito com os Estados Unidos na área da educação, como o Acordo MEC-USAID, que englobava uma série de convênios com a agência norte-americana para mudar a educação e as universidades do país.

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Conseguimos realizar por todo o país uma resistência tão grande que o governo militar teve que fazer mudanças para “abrasileirar” o acordo. Levantávamos também palavras de ordem contra multinacionais norte-americanas. O exemplo de que mais me lembro foi a Coca Cola. O movimento estudantil desencadeou um boicote contra o refrigerante. Desde então, nunca mais eu tomei Coca Cola!! Meu nome estava incluído em lista dos adversários do regime, o que me tornava uma pessoa sem alguns direitos, dentre eles de poder falar em público. A primeira vez que falei foi na Faculdade de Medicina com a polícia do lado de fora ameaçando invadir o prédio. Correu na época a informação de bastidores de que eu não fora presa (certamente com mais colegas) porque o diretor Ernesto Barlstaed impediu a entrada da polícia política na faculdade. Ao escrever este registro me ocorre a necessidade de procurar colegas e pessoas amigas que possam me ajudar a recompor esses fragmentos de memória.44 As minhas lembranças sobre as lutas contra a ditadura militar e a cidade de Belo Horizonte registram uma baixa visibilidade dessas lutas e o quotidiano pacato da maioria da população. Afora os círculos da militância estudantil e operária, para além dos partidos de esquerda, das igrejas que mantinham seu alinhamento com o que ficou conhecido como Teologia da Libertação, tudo parecia estar na normalidade. De vez em quando as marchas de protesto nas ruas sinalizavam para o público que algo deveria estar acontecendo. Para essa comunicação eram importantes os cartazes de cartolina que levávamos e as palavras de ordem gritadas. A rigorosa censura à imprensa e à cultura contribuía para o desconhecimento meio geral da população sobre a ditadura e suas consequências sociais e políticas para a sociedade brasileira.

44

Esse parágrafo e os dois antecedentes integram depoimento prestado a estudantes de jornalismo que estão realizando um documentário sobre o curso de jornalismo. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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REAPCBH pergunta: Como você reflete sobre o papel político e social da mulher negra na sociedade brasileira, seu lugar profissional e de luta, tanto no contexto da ditadura civil-militar quanto nos dias atuais? Qual o balanço da trajetória da mulher negra na sociedade e quais as perspectivas futuras?

Diva Moreira responde: Só com esta pergunta dá para se escrever um livro. Esse é um tema com frequência abordado em minhas palestras. Assim, vou trazer aqui alguns extratos de textos meus. As mulheres negras são o escalão mais inferior da sociedade brasileira. Em todos os indicadores elas estão em desvantagem: emprego informal, desemprego, mortalidade materna, violência doméstica e encarceramento. Os movimentos de mulheres negras só começaram após a constatação de que o feminismo branco não nos dizia respeito, mesmo porque não nos incluía. Ele trabalhava com temas supostamente universais em torno da opressão da mulher, no singular, e não transversalizava a temática racial e de classe. As feministas brancas nos estranhavam quando começamos a falar de mulheres no plural e de pautas específicas. Esse processo teve início em encontros de mulheres negras no Rio de Janeiro e em São Paulo, depois da ditadura militar. Em Sabará, fui uma das fundadoras da Casa Dandara que, apesar de ser composta também por homens, adotava em sua agenda a prioridade na organização e nas lutas das mulheres. A Casa Dandara se expandiu para Belo Horizonte e outros municípios da região metropolitana e teve uma influência grande em várias lutas da cidade, como a que culminou com a aprovação do Estatuto dos Direitos da Criança e Adolescente, o ECA. Nosso trabalho se fundava na política, cultura, auto estima e estética negra. Até hoje, após 20 anos de sua extinção, a Casa Dandara é uma referência para a população negra REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 5, n. 5, dezembro de 2018- ISSN: 2357-8513

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organizada, e existem pessoas que desejam reestruturar a entidade para que ela volte a cumprir o seu papel na organização do povo negro. Um dos problemas mais graves que assola os afrodescendentes é a violência e os homicídios. Só para citar uma situação emblemática, enquanto nesses últimos dez anos as taxas de feminicídios entre mulheres brancas caíram 8%, entre as mulheres negras elas aumentaram 15%, como mostra o Atlas da Violência de 2018. Falar em violência contra as mulheres negras é falar também da violência contra os homens negros. Afinal, elas são avós, mães, tias, irmãs, companheiras dos homens negros dizimados. Segundo Débora Silva, do Movimento Mães de Maio de São Paulo, para cada jovem negro que é assassinado, uma pessoa da família morre de câncer. Acredito que nós, mulheres negras, vivemos em uma etapa que avalio como a mais ameaçadora da história do Brasil. Sobretudo a partir de 2019, quando serão impostas com todo rigor as necropolíticas que já vêm sendo implantadas desde 2016. As consequências devastadoras já estão sendo demonstradas pelas estatísticas oficiais: aumento da pobreza e fome, do desemprego, da mortalidade infantil e ... da violência. Diante de tanta tragédia, gosto de usar a metáfora da casa. Como estamos na base da sociedade brasileira, uma casa que se racha em seus fundamentos não tem conserto, não tem reforma, ela tem que vir abaixo para que uma nova casa seja construída. Não há conserto nos limites do feroz capitalismo ultra neoliberal que se avizinha. Daí porque a nossa luta é e deve ser a mais consequente e libertária de todas.

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REAPCBH pergunta: No que se refere à memória material, você tem conhecimento de registros ou arquivos pessoais que tratem da relação de movimentos sociais com a resistência à ditadura? Se sim, como estão preservados e podem ser consultados? Diva Moreira responde: Algumas amigas minhas têm arquivos que suponho serem mais referentes à pergunta. No meu caso, tenho muito material (sobretudo sobre a Casa Dandara e a SMACON – Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra) que precisa ser organizado e catalogado, para as consultas do público. Já falei com pessoas do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte sobre isso. Espero que possa realizar este desejo antes que se encerre a minha trajetória sobre este belo e sofrido Planeta. Sabará, 10 de dezembro de 2018.

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