7ª Edição da REAPCBH

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v.7, n. 7 2020


Expediente PREFEITURA DE BELO HORIZONTE Secretária Municipal de Cultura Fabíola Moulin Mendonça

Secretário Adjunto de Cultura Gabriel Portela

FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA Presidenta Interina Fabíola Moulin Mendonça

Diretora de Patrimônio Cultural e Arquivo Público Françoise Jean de Oliveira Souza

Conselho Consultivo Drª. Andrea Casa Nova Maia (UFRJ) Drª. Beatriz Kushnir (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Dr. Caio César Boschi (PUC Minas) Drª. Cláudia Suely Rodrigues de Carvalho (Fundação Casa de Rui Barbosa/UFRJ) Drª. Ivana Denise Parrela (Escola de Ciência da Informação – UFMG) Drª. Janice Gonçalves (UDESC) Dr. Leônidas José de Oliveira (PUC Minas) Drª. Maria do Carmo Alvarenga Andrade Gomes (Fundação João Pinheiro) Drª. Regina Horta Duarte (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG) Dr. Tiago dos Reis Miranda (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora - CIDEHUS-UÉ)

Conselho Editorial Gabriella Diniz Mansur Lays Silva de Souza Michelle Márcia Cobra Torre Rafaela de Araújo Patente

Revisão Michelle Márcia Cobra Torre

Normalização Bibliográfica e Diagramação Rafaela de Araújo Patente Design Assessoria de Comunicação – FMC Imagens da capa Estádio do Mineirão, 1980 (Acervo BELOTUR/APCBH). Quadrilha São Gererê, 1995 (Acervo BELOTUR/APCBH). Projeto Casas da Lagoinha, 2017 (Daniel Silva Queiroga) Projeto Arquitetônico do Floresta Cinema (Acervo SMARU/APCBH).

Endereço REAPCBH - Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte Rua Itambé, 227 - Floresta Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte 30150-150 – Belo Horizonte/MG E-mail: reapcbh.fmc@pbh.gov.br Telefone: (31) 3277-4665 Homepage: http://www.pbh.gov.br/cultura/arquivo http://www.bhfazcultura.pbh.gov.br


Sumário Agradecimentos 4 Editorial 5-7

DOSSIÊ A POLÍTICA DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL EM BELO HORIZONTE Françoise Jean de Oliveira Souza 8-14 CARTOGRAFIA CULTURAL DA REGIÃO DA LAGOINHA, BELO HORIZONTE - MG: um processo participativo de mapeamento de referências culturais Raul Amaro de Oliveira Lanari Débora Raiza Carolina Rocha Silva Guilherme Eugênio Moreira Hugo Mateus Gonçalves Rocha Úrsula Viana Mansur 15-39

A TOPONÍMIA COMO ELEMENTO DA PAISAGEM CULTURAL DO CONJUNTO URBANO BAIRROS LAGOINHA, BONFIM E CARLOS PRATES Daniel Silva Queiroga 40-61 SIMBOLOGIA REPUBLICANA NA ANTIGA SEDE GOVERNAMENTAL BELO-HORIZONTINA: em busca de uma Marianne à brasileira Pamela Emilse Naumann Gorga 62-94 REMINISCÊNCIAS DE UMA MODERNIDADE PROJETADA: a experiência do cinema como produtor de sentidos e sociabilidades no espaço urbano em Belo Horizonte (1909-1932) Luiz Fernando Cristiano Ferreira da Silva 95-117 A TRANSFORMAÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS DA AVENIDA AFONSO PENA NO SÉCULO XX: discussões sobre a relação entre metamorfose da paisagem e a permanência da sua identidade Tatiana Pimentel Barbosa 118-131 O LUGAR DO ESPORTE NA POLÍTICA DE PATRIMÔNIO DA PBH Flávia da Cruz Santos Wanessa Pires Lott 132-150

CAMPOS INVISÍVEIS: a Paraopeba como a avenida do futebol na Belo Horizonte dos anos 1920 Ives Teixeira Souza 151-170 MANZO NGUNZO KAIANGO E A FORÇA DO CHÃO: uma reflexão acerca das decorrências do processo de patrimonialização do quilombo na esfera estadual Laura Moura Martins 171-187 VIVA SÃO JOÃO: as quadrilhas juninas como patrimônio cultural de Belo Horizonte Jéssica Parreiras Marroques 188-208 PATRIMÔNIO E SUAS COMUNIDADES: a história da Basílica Santo Cura d’Ars no município de Belo Horizonte Ivana Morais Silva de Carvalho 209-235


PAISAGENS EM UM BAIRRO PATRIMONIAL: ambiente construído e mercado imobiliário no conjunto urbano bairro Floresta, em Belo Horizonte Clarissa dos Santos Veloso 236-254 PROCESSO DE PRODUÇÃO DA CARTILHA “PATRIMÔNIO CULTURAL DO BAIRRO FLORESTA - BELO HORIZONTE”: desafios e potencialidades Alda Maria Luiza Moura de Queiroz Sá dos Santos Sarah Dreger Oliveira 255-272

PATRIMÔNIO CULTURAL DE BELO HORIZONTE NA FORMAÇÃO DA ATITUDE HISTORIADORA Marco Antônio Silva 273-296 A COLEÇÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA Dalba Roberta Costa de Deus 297-307 Entrevista Débora Raíza Carolina Rocha Silva

308-316

ARTIGOS LIVRES PERCEPÇÕES ENTRE O LUGAR DO PÚBLICO E O ESPAÇO DO PRIVADO Natália Cristina Dias Mártir 317-339 EDUCAÇÃO E CULTURA POPULAR NA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE BELO HORIZONTE: um debate sobre educação de jovens e adultos Clarice Wilken de Pinho 340-357

RESENHA UMA ANÁLISE BOURDIANA SOBRE OS GRANDES PROJETOS URBANOS DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE Leonardo Gonçalves Ferreira 358-362

ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica 1 POLÍTICAS DE INCLUSÃO SOCIAL NO PÓS-ABOLIÇÃO E O RACISMO ESTRUTURAL: arquivo escolar e memória institucional Raphael Freitas Santos Rafaela Carvalho da Silva

363-377

Proposta Pedagógica 2 HISTÓRIA DE BELO HORIZONTE EM PROPAGANDA Ivana Morais Silva de Carvalho 378-391


Agradecimentos

A REAPCBH é uma publicação eletrônica que tem por objetivo divulgar

trabalhos

científicos

que

contribuam

para

o

desenvolvimento dos debates sobre a história de Belo Horizonte, assim como o campo de estudos arquivísticos. Graças à valiosa colaboração de diversas pessoas que aceitaram dispensar seu tempo e seus conhecimentos em avaliações criteriosas, a Revista chega a sua sétima edição. Agradecemos a atenção dispensada e os trabalhos realizados com empenho e dedicação.

Agradecemos também ao Conselho Consultivo pela disposição em

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sempre nos orientar no necessário.

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Editorial É com muita satisfação que entregamos ao público a 7ª edição da REAPCBH, produzida em tempos tão difíceis, em meio à pandemia de COVID-19, sendo nossa primeira edição realizada totalmente em teletrabalho, graças às possibilidades da tecnologia e da cautela de nossos gestores com medidas de proteção à vida. Nesta edição, a REAPCBH publica o Dossiê “O Patrimônio Cultural em Belo Horizonte”, com o objetivo de trazer reflexões sobre as diferentes formas de reconhecimento do patrimônio cultural do município em suas dimensões material e imaterial. Muitos são os esforços em pesquisas e as mobilizações para o reconhecimento e a salvaguarda dos bens culturais, caros à diversidade identitária de nossa sociedade. Acreditamos que, mais do que nunca, as políticas patrimoniais devem estar asseguradas e cada vez mais fortes, para a preservação da cultura, da memória e da história de todos. Abrimos o dossiê com um texto da Diretora do Patrimônio Cultural e Arquivo Público, Françoise Jean de Oliveira Souza, que trata da política de proteção ao patrimônio cultural de Belo Horizonte, abordando o surgimento de uma legislação municipal voltada ao patrimônio cultural e a estruturação de uma política. Em seguida, temos o artigo intitulado “Cartografia cultural da região da Lagoinha, Belo Horizonte/MG: um processo participativo de mapeamento de referências culturais”, no qual os autores relatam um importante trabalho de identificação de diversas referências culturais, bem como refletem como os mapas e as percepções dos pesquisadores contribuíram para os rumos da investigação. Partimos para o artigo de Daniel Silva Queiroga que se debruça sobre a toponímia do Conjunto Urbano bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates, mostrando como os nomes escolhidos para os logradouros podem ser considerados elementos que compõe a paisagem cultural. Pamela Emilse Naumann Gorga, em seu artigo, promove uma discussão sobre a simbologia republicana nos primórdios de Belo Horizonte, por meio de registros iconográficos nas edificações que abrigariam as secretarias do estado, na recém-fundada capital. Na esteira das representações almejadas pela nova capital, o artigo de Luiz

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imagem de cidade moderna. Já Tatiana Pimentel Barbosa discorre sobre a

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Fernando Cristiano Ferreira da Silva discute o papel do cinema na construção de uma


transformação dos ambientes urbanos e a substituição de ícones arquitetônicos, que constituem espaços de referência identitária, tendo como foco a Avenida Afonso Pena. As referências esportivas também encontram lugar no debate sobre patrimônio cultural em Belo Horizonte. O artigo de Flávia da Cruz Santos e de Wanessa Pires Lott discute o lugar ocupado pelo esporte na política de patrimônio da Prefeitura de Belo Horizonte, tendo como foco o estádio do Mineirão. Já Ives Teixeira Souza traz uma pesquisa sobre a memória da Avenida Paraopeba, hoje Avenida Augusto de Lima, como o principal endereço do futebol na cidade durante a década de 1920. Em uma reflexão necessária e lúcida, Laura Moura Martins discute o processo de registro do quilombo Manzo Ngunzo Kaiango e suas reverberações na atuação e nos trabalhos do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. O artigo de Jéssica Parreiras Marroques coloca em foco as quadrilhas juninas como patrimônio cultural da cidade, considerando a prática como um importante elemento de identidade e memória. O trabalho também traz uma expressiva entrevista com um importante personagem da história das quadrilhas em Belo Horizonte. Ivana Morais Silva de Carvalho apresenta em seu artigo o envolvimento da comunidade do bairro Prado com a Basílica Santo Cura d’Ars, desde a sua construção aos dias atuais, pontuando o sentimento de pertencimento, o reconhecimento e a valorização simbólica da igreja como patrimônio cultural. Partimos para o bairro Floresta, destaque em dois artigos deste dossiê. O primeiro, de Clarissa dos Santos Veloso, pontua as implicações da proteção patrimonial para a paisagem do Floresta, no que se refere ao ambiente construído e à dinâmica imobiliária. Já o artigo de Alda Maria Luiza Moura de Queiroz Sá dos Santos e Sarah Dreger Oliveira apresenta o processo de desenvolvimento da cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte”, refletindo sobre a importância da educação patrimonial e seus impactos na vivência e no registro da cidade. Do bairro Floresta, descemos até a Praça da Estação, com o artigo de Marco Antônio Silva, que discute o potencial pedagógico da praça como patrimônio cultural, a ser explorado na perspectiva de objeto gerador de conhecimento, de reflexões e de suma importância para a formação e o desenvolvimento de uma Atitude Historiadora. Também nesta edição, temos o interessante artigo de Dalba Roberta Costa de Deus que

da década de 1970. Encerramos o dossiê com uma elucidativa entrevista de Débora REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Museu de Arte da Pampulha, trazendo à luz discussões em torno das artes no contexto

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investiga a origem das obras que compõem a Coleção de Histórias em quadrinhos do


Raíza Carolina Rocha Silva concedida à REAPCBH. Nossa entrevistada é gerente de Patrimônio Cultural Imaterial do Iepha-MG e atua na proteção e salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial do estado de Minas Gerais. Para além do dossiê, a revista traz o artigo de Natália Cristina Dias Mártir sobre a discussão do lugar do público e do espaço do privado na construção da política mineira, quando da fundação de Belo Horizonte. Já Clarice Wilken de Pinho, partindo de uma pesquisa de campo, em uma escola da Rede Municipal de Belo Horizonte, que oferece a Educação de Jovens e Adultos, busca compreender o envolvimento desses estudantes em atividades artísticas de diversas naturezas, vinculadas aos seus saberes e às suas culturas. A REAPCBH traz também uma resenha de Leonardo Gonçalves Ferreira sobre o livro Campo de Poder dos Grandes Projetos Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte, de Daniel Freitas, publicado em 2017. Esta edição ainda conta com duas propostas pedagógicas na seção “O Arquivo na Sala de Aula”. A primeira lança luz nos arquivos escolares para refletir sobre a inclusão social no pós-abolição, enquanto a segunda atividade propõe se pensar a história de Belo Horizonte por meio das propagandas, em especial, as encontradas na coleção Revistas Alterosa, que estão sob a guarda do APCBH. Por fim, desejamos que os textos publicados na REAPCBH lancem

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luz no debate sobre a cidade, possibilitando reflexões sobre os seus vários aspectos.

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Dossiê

A POLÍTICA DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL EM BELO HORIZONTE Françoise Jean de Oliveira Souza Diretora de Patrimônio Cultural e Arquivo Público Fundação Municipal de Cultura

A palavra patrimônio vem do latim 'pater' que significa pai. Seu conceito associa-se historicamente à ideia de algo que é passado como herança entre as gerações. Por conseguinte, o significado de “patrimônio cultural” diz respeito a uma herança cultural compartilhada, não só de pai para filho, mas entre toda uma coletividade e que carrega em si elementos fundamentais para a constituição das identidades e sentimentos de pertencimento. A definição daquilo que será ou não “patrimonializado, no entanto, não é um ato neturo e objetivo”, mas fruto de escolhas e orientações políticas e das demandas específicas de uma época. Assim, tais escolhas tanto podem contribuir para a perpetuação de valores e visões de mundo de determinados grupos sociais, atuando como elemento de exclusão, dominação e discriminação, como podem colaborar para a valorização da diversidade cultural e da inclusão, transformando-se em instrumento de luta por direitos fundamentais. Por tudo isso, é imperioso revisitarmos nossas políticas públicas de proteção ao patrimônio, lançandolhe um olhar crítico capaz de reconhecer seus avanços e vitórias, bem como suas fragilidades e necessidades mais urgentes. O surgimento de uma legislação municipal voltada ao patrimônio cultural na cidade de Belo Horizonte e a estruturação de sua política encontram-se intimamente associados a histórias de perdas, mas também de lutas e de mobilização social. Isso porque a cidade, planejada para representar os valores republicanos e a modernidade, cedo passou a buscar obstinadamente se reconstruir e se “renovar” à custa de sua própria história. Em 1976, Belo Horizonte assistiu às primeiras manifestações contra a destruição indiscriminada na cidade, quando padres redentoristas derrubaram um conjunto de árvores da Igreja São José para dar lugar a um centro comercial. Nesta época, também foi desencadeada

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perfil da Serra do Curral pelas atividades mineradoras. Contudo, será a comoção causada pela

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a campanha “Olhe Bem as Montanhas”, que buscava denunciar o processo de desfiguração do

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Dossiê

demolição do antigo Cine Metrópole que levará à institucionalização de uma das mais avançadas políticas de proteção do patrimônio cultural existentes no Brasil. Construído em 1906, o edifício abrigou o “Theatro Municipal” até 1939. Posteriormente, seu estilo eclético original foi substituído pelo art déco, a pedido do então prefeito Juscelino Kubitschek, passsando a abrigar o Cine Metrópole. Com a ameaça da demolição, o edifício recebeu, em 1983, o tombamento provisório pelo órgão estadual de proteção ao patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG). O tombamento, no entanto, não foi homologado pelo então governador Tancredo Neves e o cinema foi demolido. O final trágico dado ao tradicional cinema da cidade evidenciou a necessidade de criação de instâncias locais e mais participativas de gestão do patrimônio. Em decorrência da mobilização de segmentos sociais ligados à cultura e ao patrimônio, foi aprovada a Lei 3.802, de 6 de julho de 1984, que “organiza a proteção do patrimônio cultural do município de Belo Horizonte”, tendo sido regulamentada pelo Decreto 5531/1986. A partir desse marco legal, foi criado o instrumento do Tombamento para a proteção dos bens móveis e imóveis, monumentos naturais, arqueológicos, sítios e paisagens que constituem o patrimônio cultural de Belo Horizonte. Essa legislação também criou o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte/CDPCMBH1. O CDPCM-BH é um órgão colegiado, com poder decisório, de composição paritária (poder público e sociedade civil), ao qual compete deliberar sobre diretrizes, políticas, atos protetivos e outras medidas correlatas à defesa e à preservação do patrimônio cultural do município. Em linhas gerais, ele possui um perfil “técnico” sendo formado por arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, antropólogos e historiadores. Embora tenha passado por algumas transformações na sua composição, o CDPCM-BH pode ser considerado um órgão importante no processo de ampliação da participação social na gestão da cidade e, em particular, no campo da cultura, seja pelo seu caráter deliberativo – que favorece a descentralização das decisões, contribuindo, ao mesmo tempo, para diminuir as pressões de

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Importante destacar que toda essa movimentação em prol do patrimônio também recebeu influência do contexto nacional. Após duas décadas de uma ditadura civil militar que implementou uma política centralizadora que não levava em conta as realidades locais, o Brasil buscou se reorganizar em bases mais democráticas e participativas. Esse desejo culminou com a Constituição Federal de 1988 que fortaleceu os poderes municipais. A nova constituição também consagrou o direito à memória e ampliou o conceito de patrimônio cultural. Passaram a ser objeto de proteção os bens de natureza material e imaterial, “portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216). Além dessa inovação conceitual, a carta constitucional traz alguns princípios que, atualmente, norteiam as ações preservacionistas no Brasil, a saber: a noção de construção de uma memória plural, a diversidade de instrumentos de preservação e a multiplicidade de sujeitos/atores na defesa do patrimônio cultural.

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lobbies privados junto ao poder executivo – seja por sua composição interna, caracterizada pela pluralidade de formação e de interesses. A atuação efetiva do CDPCM-BH se deu a partir de 19912 quando ocorreram os primeiros tombamentos municipais, concentrando-se, sobretudo, na região central da cidade. Diante da ampla gama de bens culturais existentes em Belo Horizonte e da urgência da proteção, à época, optou-se por priorizar as áreas localizadas no interior da Avenida do Contorno, região considerada marco histórico da fundação da cidade e referencial no projeto elaborado pela Comissão Construtora da Nova Capital. À exceção de alguns poucos tombamentos realizadas de modo “isolado”, a maior parte das medidas protetivas definidas pelo CDPCM-BH deram-se com base em estudos que seguiram uma metodologia específica, baseada na lógica dos “Conjuntos Urbanos”3. Os Conjuntos Urbanos são áreas polarizadoras onde são encontradas ambiências, edificações ou mesmo conjunto de edificações que, juntas, apresentam expressivo significado histórico e cultural. Esses espaços destacam-se por desempenharem uma função estratégica e simbólica na estruturação e compreensão do espaço urbano e de suas diferentes formas de ocupação e representação. Visando a proteção dessas áreas, são estabelecidos critérios e diretrizes de preservação, além de serem inventariados os imóveis que receberão proteção por tombamento ou registro documental4. Embora a região centro-sul de Belo Horizonte ainda concentre o maior número de bens protegidos, nos últimos anos, a política de proteção do patrimônio vem priorizando a ampliação das ações preservacionistas para além dos limites da Avenida do Contorno, decisão essa extremamente desafiadora. Afinal, a arquitetura dos bairros situados fora da Contorno apresenta composição mais singela, embora seja possível identificar exemplares arquitetônicos dotados dos elementos referenciais dos diversos estilos. São bairros ocupados por uma população que transita entre estratos baixos e médios da sociedade, onde inexistem edifícios públicos de grande porte e edificações de natureza monumental, ou ainda, conjuntos

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Nesse ano foi criado um departamento dentro da Secretaria Municipal de Cultura para subsidiar o trabalho do CDPCM-BH, secretariando suas reuniões e elaborando os estudos necessários à tomada das decisões relativas às proteções. Atualmente, essa atividade é desenvolvida pela Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público. 3 Atualmente, encontram-se protegidos os seguintes Conjuntos Urbanos: Av. Afonso Pena, Rua da Bahia, Rua dos Caetés, Praça da Liberdade, Av. Carandaí e Alfredo Balena, Praça Rui Barbosa, Praça Hugo Werneck, Praça Floriano Peixoto, Praça Raul Soares e Av. Olegário Maciel, Av. Álvares Cabral, Praça da Boa Viagem, Bairro Santo Antônio, Av. Barbacena e Grandes Equipamentos, Bairro Cidade Jardim, Bairro Santa Tereza, Bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates, Bairro Floresta, Lagoa da Pampulha, Bairros Prado e Calafate. Além desses Conjuntos Urbanos, são também protegidos: Conjunto Paisagístico da Serra do Curral, Conjunto de Edificações de Tipologia de Influência da Comissão Construtora, Conjunto das Obras do Arquiteto Sylvio de Vasconcellos, Conjuntos de Murais da artista Yara Tupynambá. 4 Essa proteção recai sobre edificações com relativo valor cultural, mas que em função de sua localização ou descaracterização não chegam ao tombamento. A proteção por Registro Documental constitui na elaboração de documentação sobre o imóvel, abordando seus elementos históricos, arquitetônicos e urbanísticos. Esse documento é recolhido ao APCBH.

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consistentes de estilos arquitetônicos, elementos que, por muito tempo, serviram como parâmetros predominantes para a elaboração de critérios de reconhecimento de bens culturais5. Nesse sentido, a ampliação das áreas a serem protegidas e, por conseguinte, uma maior diversificação das memórias e identidades a serem reconhecidas e valorizadas na cidade, implica na adoção de uma concepção de patrimônio que vai muito além da mera valorização arquitetônica, buscando identificar e sobressaltar o valor imaterial subjacente ao bem edificado. Nesses outros Conjuntos Urbanos, as medidas protetivas foram pensadas de modo a preservar as referências aos modos de vida marcados pelo caráter residencial e por relações de proximidade e vizinhança. São os chamados modos de vida “tradicionais”, aqui entendidos em oposição ao modo de vida moderno, no qual as relações caracterizam-se pela impessoalidade. A ambiência residencial é elemento participante desse modo de vida na medida em que seu componente físico – o quadro construído – constitui o lugar onde se efetivam esses laços de sociabilidade referenciais6. Importante ressaltar que, independente da localização do Conjunto Urbano, o órgão municipal de proteção ao patrimônio parte do entendimento de que, mais do que tombar edificações, é fundamental pensar em medidas protetivas que contribuam para a qualidade da paisagem urbana, pensando sempre como estando relacionados a infraestrutura, o lote, a edificação, a ambiência, a paisagem natural, os usos e os significados dados aos espaços. Portanto, entende-se que a cultura deve ser um elemento referencial para as políticas de planejamento urbano. Afinal, alterar o espaço público é muito mais que mudar o sentido do trânsito ou relocar mobiliários urbanos, inaugurar praças. É também alterar os sentidos e as formas de apropriação dos lugares. É fortalecer ou desconsiderar símbolos, memórias e identidades. Em Belo Horizonte, existe uma legislação que considera a íntima relação estabelecida entre planejamento urbano e patrimônio cultural. Ela baliza a ocupação e a ordenação do nosso território, contribuindo para a existência de uma política de patrimônio avançada. Por exemplo, a lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, aprovada em 1990, incorpora o conceito de Conjunto Urbano, bem como amplia a definição de patrimônio trazida pela

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ANDRADE, L. T.; Arroyo, Michele. Bairros pericentrais de Belo Horizonte: patrimônio, territórios e modos de vida. 1. ed. Belo Horizonte: PUCMinas, 2012. 6 O exemplo mais emblemático dessa relação entre o quadro construído e as relações sociais estabelecidas pode ser observado no Conjunto Urbano Bairro Santa Tereza. Nesse Conjunto, as características de seu espaço edificado e as relações de sociabilidade estabelecidas entre seus moradores e entre esses e o território que habitam acabaram por conferir ao bairro uma grande capacidade de evocar imagens e um conjunto de significados no imaginário coletivo.

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Constituição Federal, ao reconhecer a existência de bens imateriais, antecipando-se, inclusive, à própria lei que cria o instrumento do Registro Imaterial em Belo Horizonte. Do mesmo modo, o Plano Diretor de Belo Horizonte (tanto o anterior, vigente entre 1997 e 2019, como o atual), absorve a lógica de proteção dos Conjuntos Urbanos, reconhece o mapeamento cultural como um instrumento importante para nortear a política de ordenação do solo urbano, identifica Áreas de Diretrizes Especiais, nas quais se incluem as áreas de interesse cultural e oferece instrumentos de política urbana (como as Unidades de Transferência do Direito de Construir) que ajudam a harmonizar os interesses coletivos de proteção ao patrimônio com os interesses privados. Não obstante o inquestionável avanço dos marcos teóricos aqui citados, é forçoso admitir que a manutenção do diálogo próximo e constante entre a política de patrimônio cultural e a política de planejamento urbano é sempre desafiador. Afinal, isso exige do poder público interferir abertamente na lógica de mercado que reduz os espaços ao seu valor de troca, desconsiderando suas apropriações, simbologias e vocações históricas. Outro grande desafio que se coloca à política municipal de proteção ao patrimônio diz respeito à efetivação do direito fundamental à cultura por meio da valorização e preservação de memórias plurais e diversas, capazes de contemplar todos os grupos sociais formadores da sociedade belo-horizontina. Isso requer lançar nosso olhar não só para outras regiões da cidade, situadas fora da área planejada por Aarão Reis, mas também e, sobretudo, para outros sujeitos políticos. Requer reconstruir narrativas históricas, rompendo com uma tradição de silenciamento e invisibilidade de determinados grupos e comunidades formadoras da capital. Requer proteger e evidenciar práticas e manifestações culturais que, historicamente, ficaram à margem das políticas públicas de cultura e dos processos de criação de lugares de memória. Requer oferecer a todos os moradores de Belo Horizonte, independente de sua origem étnica, racial ou social, uma cidade com a qual possam se identificar e reconhecer seus marcos históricos. Requer forjar uma cidade para todos. Um primeiro esforço de ampliação e democratização do acesso às políticas de patrimônio deu-se em 1995, por ocasião das comemorações do tricentenário de Zumbi dos Palmares, quando a Secretaria Municipal de Cultura promoveu o primeiro Festival de Arte Negra/FAN. Seu objetivo foi conhecer e dar visibilidade às diversas vertentes culturais de

eleição de comunidades negras para se tornarem oficialmente Patrimônio Cultural do REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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forma sistemática nas políticas públicas municipais. Dentre as atividades, destacou-se a

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matriz africana presentes na cidade, buscando discutir a questão negra e sua integração de


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Município. Utilizando o instrumento do tombamento, a “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá”, manifestação banto-católica, e o terreiro de candomblé “Ilê Wopo Olojukan” foram preservados no cenário belo-horizontino, que até então abrigava apenas bens tombados referentes à cultura branca e à religiosidade católica. Essa conquista, vale lembrar, não se deu por graça dos gestores culturais, mas resultou da luta dos movimentos sociais pelo reconhecimento de direitos, e, mais particularmente, de “direitos culturais”. Com a aprovação da Lei municipal 9000 de 2004 que “Institui o Registro de Bens culturais de natureza imaterial” Belo Horizonte passa a contar com mais um importante instrumento de proteção ao patrimônio, o que traz novo fôlego aos intentos de ampliação das políticas protetivas. A partir de então, passam a ser objeto da política municipal de proteção ao patrimônio: “I- os processos de criação, manutenção e transmissão de conhecimentos; IIas práticas e as manifestações dos diversos grupos socioculturais que compõem a identidade e a memória do Município; III- as condições materiais necessárias ao desenvolvimento dos procedimentos de que tratam os incisos I e II e os produtos de natureza material derivados”. Através do instrumento do Registro Imaterial torna-se possível o reconhecimento municipal de bens culturais referenciados em ofícios tradicionais, celebrações, formas de expressão, fazeres, saberes e lugares onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas, alargando potencialmente o campo de atuação da política municipal de patrimônio, bem como os sujeitos por ela contemplados. Atualmente, encontram-se registrados o ofício de fotógrafo Lambe-Lambe, o Teatro de Rua, o Teatro de Bonecos, o Circuito de Teatros de Belo Horizonte, os Quilombos de Mangueiras, Luíses, Manzo N’gunzo Kaiango e Souza, além das Festas de Preto Velho e Iemanjá. Todavia, para que esses reconhecimentos tenham resultados efetivos é fundamental por em ação um conjunto de medidas de salvaguarda. Para tanto, a partir de 2019, iniciou-se o processo de criação dos Comitês de Salvaguarda, que consistem em espaços de diálogo direto e contínuo entre o órgão municipal de proteção ao patrimônio cultural e a sociedade civil. Sua constituição visa, de forma participativa, conceber e implementar planos de salvaguarda adequados às especificidades de cada bem cultural. Os comitês estão sendo formados por representantes das comunidades vinculadas aos bens culturais registrados; representantes da

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grupos ou entidades indicados pelas comunidades detentoras, de acordo com seus interesses.

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Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público, membros do poder público e pessoas,

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Para os próximos anos, espera-se amadurecer e consolidar os comitês como um espaço profícuo na elaboração, execução e monitoramento dos planos de salvaguarda. Observa-se que com a efetivação da política de salvaguarda do patrimônio imaterial, o órgão municipal de gestão do patrimônio põe-se diante da missão de conceber formas outras de lidar e gerir o patrimônio oficial. Afinal, quando se está tratando da imaterialidade, o principal suporte da memória é o próprio ser humano. Salvaguardar manifestações culturais implica, portanto, em trazer para o campo da gestão cultural questões como saúde, educação, moradia, saneamento e tudo o mais que diz respeito ao humano. Ademais, o processo de patrimonialização e salvaguarda de bens imateriais impõe a necessidade de trabalhar sob outros paradigmas, estabelecendo um diálogo franco e horizontal com outras epistemologias, com outras formas de leituras e organizações da vida em sociedade. Trata-se, sem dúvida, de um desafio gigantesco lançado aos gestores e técnicos do patrimônio cultural, formados no rigor da academia e mais familiarizados com o trato do patrimônio tangível. Em 2021, a política de proteção ao patrimônio cultural de Belo Horizonte completará 30 anos de sua implantação efetiva. Temos, por óbvio, muito que comemorar. Mas temos também que reconhecer a longa caminhada que ainda nos espera. Necessário se faz, por exemplo, trazer para o campo da já consolidada política de proteção ao patrimônio material e edificado as reflexões e questões que permeiam a salvaguarda do patrimônio imaterial, olhando para o nosso patrimônio cultural de maneira global. Afinal, edificações “de cal e pedra” nada mais são do que espaços onde a imaterialidade cultural se apresenta. São cenários onde a vivência cultural acontece e se manifesta, sendo, portanto, impossível desvincular o imaterial do material, posto que um significa e completa o outro. Do mesmo modo, tem-se pela frente o desafio de incorporar as demandas do patrimônio imaterial às discussões e premissas que norteiam as políticas de planejamento urbano, qualificando o espaço urbano e garantindo o direito à cidade. Por fim, no trabalho cotidiano de gestão das transformações da cidade, precisamos lembrar mais do conceito antropológico de cultura, que reconhece o seu caráter dinâmico e sua capacidade de ressignificação contínua. Se a cultura se transforma e ganha novos sentidos a todo o tempo, é imperativo que criemos o hábito de dialogar com a sociedade e junto com ela fazermos e respondermos contantemente as seguintes perguntas:

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patrimônio de quem? Patrimônio para quem? Patrimônio por quê?

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Dossiê

CARTOGRAFIA CULTURAL DA REGIÃO DA LAGOINHA, BELO HORIZONTE - MG: um processo participativo de mapeamento de referências culturais Cultural cartography of the Lagoinha region, Belo Horizonte - MG: a participatory process of mapping cultural references

Raul Amaro de Oliveira Lanari Débora Raiza Carolina Rocha Silva Guilherme Eugênio Moreira Hugo Mateus Gonçalves Rocha* Úrsula Viana Mansur  RESUMO: O artigo tem o objetivo de apresentar os resultados do projeto Cartografia Cultural da Região da Lagoinha, realizado sob supervisão da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 2019. Com a presença de agentes mobilizadores locais e oficinas participativas de elaboração de mapas de percepção, identificou-se diversas referências culturais associadas a nove áreas temáticas, como religiosidade, música, lugares, ofícios e expressões artísticas, principalmente nas regiões do bairro Lagoinha, das vilas Pedreira Prado Lopes e Senhor dos Passos e segmentos dos bairros São Cristóvão, Bonfim, Concórdia, Aparecida e Santo André. Discorre-se sobre a região do bairro Lagoinha, a configuração da pesquisa e as potencialidades da metodologia de mapas de percepção para a identificação de referências culturais. Ademais, analisa-se a diversidade dos resultados obtidos, que demandou a operacionalização de noções ampliadas de território e referências culturais. Apresenta-se finalmente medidas de salvaguarda voltadas para o apoio às demandas locais apresentadas por interlocutores/as da pesquisa. Palavras-chave: Cartografia cultural; Referências culturais; Lagoinha. ABSTRACT: The article aims to present the results of the project Cultural Cartography of the Lagoinha Region, carried out under the supervision of the sector of Cultural Heritage and Public Archive of the Municipality of Belo Horizonte in 2019. With the presence of local agents and participatory workshops for the elaboration of perception maps, several cultural references were identified and associated with nine thematic areas, such as religiosity, music, places, traditional craftsmanship and artistic expressions, mainly in the regions of Lagoinha, Pedreira Prado Lopes, Vila Senhor dos Passos and sections of Bonfim, Concórdia, Aparecida and Santo André neighborhoods. One discusses the history of Lagoinha region, the research process, and the potentials of perception maps as a methodology for the identification of cultural references. Furthermore, one analyzes the diversity of results, which demanded broader notions of territory and cultural references. Finally, one presents safeguarding measures, aimed at supporting local demands presented by research interlocutors. Keywords: Cultural cartography. Cultural references. Lagoinha.

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Doutor em História (UFMG). Professor do Departamento de História do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Email: ralanari@gmail.com  Mestre em História (UFMG). Gerente de Patrimônio Cultural Imaterial no IEPHA/MG. Coordenou a produção da Cartografia Cultural da região da Lagoinha. E-mail: deboraraizarocha@gmail.com  Mestre em Antropologia (UFF). Pesquisador do Na Rua/UFF. E-mail: guilherme.gem@gmail.com * Mestre em História (UFMG). Sócio-Diretor da Peixe Vivo Histórias – Memória e Patrimônio. E-mail: hugogrocha@hotmail.com  Mestre em Educação (UEMG). Professora do Ensino Fundamental. E-mail: ursula.vianam@gmail.com

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Introdução A região da Lagoinha, em Belo Horizonte, é um lugar privilegiado de manutenção da tradição e de resistência cultural. Na localidade, a formação do território e de territorialidades é perpassada por dimensões que mesclam público e privado, individual e coletivo, lugares e movimentos, marcos edificados e naturais, espaços simbólicos e utilitários. É, assim, uma região que congrega vivências de pessoas, processos históricos, sociais, econômicos, morfológicos e ambientais. Essas relações formam combinações particulares, configurando um território que se distingue no contexto geral do município. Na busca por ampliar o conhecimento sobre a região e construir políticas públicas que dialoguem com a realidade local, a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, por meio da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público (DPCA), contratou a produção de um mapeamento cultural da região. Seguindo a orientação da DPCA, a equipe técnica1 responsável pela execução do projeto, intitulado Cartografia Cultural da Região da Lagoinha, buscou mapear as referências culturais da região, descrevê-las em fichas e propor medidas para a continuidade dos modos de vida e práticas culturais locais. Além disso, buscou identificar políticas públicas e iniciativas privadas associadas à Assistência Social, Saúde e Educação, indicando ações a serem desenvolvidas na região de forma intersetorial e articulada às referências culturais locais. Durante as atividades, realizadas entre abril e agosto de 2019, dois pontos de atenção foram importantes: afastar-se da noção oficial dos limites do bairro da Lagoinha e compreender de maneira ampliada o conceito de cultura e, consequentemente, de referências culturais. Essas noções serão abordadas de forma mais aprofundada ao longo do artigo, que apresentará a metodologia aplicada, o histórico da região e os dados obtidos. Ademais, discutirá os conceitos de território, territorialidades e referências culturais, além de tecer apontamentos sobre as políticas públicas que atendem a região. Por fim, serão apresentadas proposições elaboradas a partir dos

A equipe técnica foi composta por dois antropólogos, três historiadores e uma geógrafa com experiência em mapeamentos e inventários culturais que atuam principalmente na área de Patrimônio Cultural. Também compõe a equipe uma pedagoga com experiência na área de educação, sobretudo em temáticas como violência na escola, adolescência, juventude e segurança pública.

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trabalhos realizados.


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Lagoinha: entre a memória e as lutas sociais do presente Belo Horizonte foi construída no final do século XIX, inspirada pelas doutrinas científicas que defendiam o planejamento das cidades como forma de saneamento das relações entre as pessoas. No projeto de Aarão Reis, a cidade foi dividida em três zonas: urbana (delimitada pela Avenida do Contorno), suburbana e de sítios. Com a consolidação da nova capital, o custo de vida nas áreas dentro da Av. do Contorno não permitia o estabelecimento das populações trabalhadoras, que tiveram de buscar abrigo nas “franjas” da cidade. Núcleos de ocupação não planejada surgiram em regiões que permitiam o deslocamento para o trabalho nos limites da cidade. A região da Lagoinha é um exemplo desse processo observado nos primeiros anos de Belo Horizonte. A ocupação da região deu-se em conjunto à execução do projeto da nova capital, nos entornos das fazendas do Pastinho e dos Menezes. Sabe-se ainda que havia uma área pantanosa na região marcada por grandes vales entre morros, nos quais ocorria o acúmulo de água dos diversos córregos que a atravessavam, entre eles o Córrego Lagoinha. Segundo Abílio Barreto (1997, p. 94), a denominação do bairro surgiu de suas características topográficas e hidrográficas, visto que a área era caracterizada por pequenos alagados, “lagoinhas” drenadas para a construção da nova cidade. Os relatórios de administração municipal identificaram em suas análises a condição de estabelecimento das populações na região da Lagoinha: “Grande parte da 6 secção suburbana (Lagoinha) está ocupada por habitações provisórias, construídas sem licença da prefeitura” (BELLO HORIZONTE, 1922, p. 51 apud FREIRE, 2011, p. 115). Devido à sua localização, entre o centro e a colônia agrícola Carlos Prates, a região da Lagoinha inicialmente participou do fornecimento de alimentos para a população da nova cidade. Entre 1899 e 1900, foi construído o primeiro Mercado Municipal da capital, situado próximo à Estação Ferroviária. Na primeira década do século XX, foram fornecidos aos moradores iluminação e, especialmente, transporte, com a criação da linha de bondes que passava pela Rua Itapecerica, uma das principais vias locais. Na década de 1920, foi inaugurada a Igreja de Nossa Senhora da Conceição,

chafarizes públicos existentes. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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de abastecimento de água, contudo, foi criado somente em 1930, em substituição aos

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na Rua Além Paraíba, e instalado um serviço de ônibus que atendia a região. O serviço


Dossiê Ainda no início do século XX, a ocupação da Lagoinha cresceu para as áreas conhecidas como “Pedreira Prado Lopes” e “Buraco Quente”, atual Vila Senhor dos Passos. A Pedreira Prado Lopes foi uma das primeiras vilas urbanas de Belo Horizonte e foi ocupada por pessoas que vinham de diferentes lugares do país. Segundo o Relatório de Prefeito dos anos de 1940 e 1941, a localidade era associada a pessoas de menor poder aquisitivo: “em vários anos sucessivos, a dois passos da cidade se vinham localizando classes de menos capacidade econômica, operários e até mendigos, na área conhecida pela designação de Pedreira Prado Lopes” (ARROYO, 2010). A ocupação do chamado “Buraco Quente” tem seu primeiro registro datado de 1914 (SANTOS, 2006). Próxima às colônias agrícolas Carlos Prates e Córrego da Mata (posteriormente Américo Werneck), a área fazia parte de uma fazenda da família Mata Machado que, segundo a literatura, teria sido doada à Igreja Católica e, mais tarde, incorporada à região suburbana de Belo Horizonte, passando ao domínio do poder público municipal (URBEL, 2000 apud MAIA, 2017; AGUIAR, 2006). Existem ao menos duas versões para a origem do nome. A mais difundida conta que o topônimo derivou dos conflitos com as mulheres da vila, que, segundo a narrativa oral, se envolviam em brigas frequentes. Algumas variações falam que as brigas eram motivadas por ciúmes, enquanto outras contam que aquelas mulheres saíam em defesa de seus maridos e filhos. Ricardo de Moura, sacerdote da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, contou, em entrevista realizada para o projeto, que nas primeiras décadas do século XX muitas famílias negras se instalaram na região em busca de trabalho nas áreas agrícolas e na pedreira da Lagoinha, onde hoje se encontra a Pedreira Prado Lopes. Segundo Pai Ricardo, “as mulheres da favela, elas eram aguerridas com o território delas” (DPCA, 2019). A segunda versão a respeito do nome “Buraco Quente”, menos difundida, relaciona o nome às investidas policiais que já aconteciam na época, pois criminosos usariam as áreas de vegetação densa como esconderijo (SANTOS, 2006). É importante dizer que, na década de 1920, a Pedreira Prado Lopes e o “Buraco Quente” formavam um território contínuo. Nos dias atuais, quando contam a história de crescimento da favela nesse período, muitos moradores relembram que “era tudo

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passagem da linha do bonde, que a região se dividiu.

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Pedreira”. Foi apenas na década de 1940, com a abertura da rua Pedro Lessa para a

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Dossiê Na década de 1930, a região da Pampulha recebeu investimentos para a construção do primeiro aeroporto da cidade, inaugurado em 1933, com acesso garantido pela “Estrada Velha da Pampulha”, que cortava a Lagoinha e recebeu calçamento em 1937 (FREIRE, 2011). Com isso, a vida social da região da Lagoinha ganhou vitalidade, aproveitando-se da proximidade do centro da cidade e de bairros como Floresta e Concórdia. Até a década de 1950, a Lagoinha foi um dos principais pontos de encontro de sambistas, seresteiros, dançarinos e amantes da noite de Belo Horizonte. Conviviam com o comércio, com botequins sempre abertos e cheios nas imediações da Praça Vaz de Melo, com pensões, o Ribeirão Arrudas, o mercado, o barulho do trem do subúrbio, os cinemas Paissandu, Mauá e São Geraldo. Os moradores encontravam-se no antigo campo do Pitangui para ver jogos entre os times locais, como Fluminense e Terrestre. Nos primeiros meses do ano, aconteciam os preparativos para o desfile de carnaval do bloco “O Leão da Lagoinha”, fundado em 1949 (PIROLI, 2003). A população na região cresceu entre as décadas de 1940 e 1950 e a atual Vila Senhor dos Passos, limitada a norte pela rua Pedro Lessa, cresceu rumo à Rua Além Paraíba. Esse período foi marcado também pela construção do Conjunto Habitacional do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), projetado em 1942 pelos engenheiros White Lírio da Silva, José Barreto de Andrade e Antônio Neves, durante a gestão do então prefeito Juscelino Kubitschek (COSTA, 2011). Parte dos moradores da Pedreira Prado Lopes, então a maior favela da capital, foi desalojada para dar lugar ao primeiro conjunto habitacional voltado para operários da cidade. De acordo com Juliana Nery (2016), a construção do IAPI insere-se em um contexto de agravamento dos problemas urbanísticos da capital mineira causado pela atração de indústrias para Belo Horizonte. Sua implantação foi apresentada pela administração pública como parte da solução para a crise habitacional, posto que a cidade teve um rápido crescimento populacional, passando de 13.472 habitantes em 1900 para 116.981 em 1930. A construção do IAPI demandou novas estruturas de apoio, como o ambulatório do Hospital Municipal Odilon Behrens, inaugurado em 1944, o Mercado da Lagoinha, cuja construção foi iniciada em 1949, e o Colégio Municipal que, devido à mobilização

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décadas seguintes continuaram sendo marcadas por novos empreendimentos públicos e

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de moradores da localidade, foi transferido para o Bairro São Cristóvão em 1954. As

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Dossiê privados. Houve a edificação, por exemplo, da Paróquia São Cristóvão e da Escola Municipal Honorina de Barros, ambas localizadas no entorno do IAPI. Alterações estruturais responsáveis por mudanças significativas no modo de vida dos moradores da região ocorreram desde muito cedo. A primeira deu-se no final dos anos de 1940, com a construção do túnel Lagoinha-Concórdia (Túnel Souza Lima), concluído apenas em 1971, que ligou o centro à região Noroeste (FREIRE, 2011). Também em 1971, foi inaugurado o Terminal Rodoviário de Belo Horizonte no local onde anteriormente se localizava a Feira de Amostras, próximo aos limites da Lagoinha. Tais modificações acabaram por transformar a paisagem da região de forma irreversível. A Praça Vaz de Melo, lugar privilegiado de encontros, foi demolida, dando lugar a viadutos, avenidas e ao metrô de superfície. Com o tempo, muitas das edificações da região se deterioraram e vieram a desabar. Após a demolição da Praça Vaz de Melo, a sociabilidade tradicional se dispersou e a intensidade comercial diminuiu, especialmente nas imediações da Avenida Antônio Carlos. A antiga Lagoinha recebeu diversas homenagens como a canção Adeus Lagoinha do músico e poeta Gervásio Horta, em parceria com Milton H. Horta, marcada pelos versos: “Adeus Lagoinha, adeus/estão levando o que resta de mim/dizem que é a força do progresso/um minuto eu peço, para ver seu fim”. Nos anos de 1980, a região do chamado “Buraco Quente” recebeu a Capela Senhor dos Passos, subordinada à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, que passou a dar nome à região. A partir dessa década, a Vila testemunhou uma sequência de intervenções urbanísticas que visavam promover a regularização fundiária e o ordenamento do uso do solo. Nesse contexto, foram realizadas as primeiras instalações das redes de água e esgoto, postes de eletricidade e pavimentação de ruas e becos. Em 1996 e 1997, ocorreram obras de infraestrutura e construção de vias para pedestres e automóveis, além da contenção de encostas. Tais intervenções implicaram nas primeiras desapropriações e na construção de 18 unidades habitacionais na rua Sargento João Beraldo para o reassentamento daquelas famílias. No ano de 1996, também se iniciou o processo de regularização fundiária da Vila junto à Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL (SANTOS, 2006). Novas intervenções para pavimentação e

1997 e 1999 no Programa Pró-Moradia, com a remoção de novas famílias, a derrubada

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de 46 domicílios e a construção de 16 unidades habitacionais na rua Prado Lopes. Pai

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alargamento de importantes vias de acesso e circulação na Vila foram realizadas entre

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Dossiê Ricardo de Moura, em entrevista, lembra desse período como a “entrada do concreto” na Vila, evidenciando as benesses vindas com a oferta de serviços, mas também chamando atenção para os conflitos que começaram a se desenrolar, advindos das intervenções planejadas e executadas sem a participação dos moradores (DPCA, 2019). No que se refere à Pedreira Prado Lopes, na década de 1990 foi aprovada a política de Orçamento Participativo relativa à região, com duas diretrizes base: abordagem integrada dos eixos físico, jurídico e socioeconômico; e participação dos moradores durante todo o seu desenvolvimento. A instalação dos prédios do Programa Vila Viva foi um resultado da política, mas com a interrupção das ações do Orçamento Participativo, as ações necessárias para a garantia de direitos não tiveram continuidade. No caso do antigo núcleo da Lagoinha, entre as ruas Itapecerica, Além Paraíba e Pedro Lessa, observou-se as primeiras medidas de preservação ao longo da década de 1990. Para a comemoração do centenário da cidade, foram criados a comissão “BH cem anos” e o “Projeto Lagoinha”, uma proposta de revitalização do bairro com atenção às suas práticas tradicionais e à qualidade de vida da população local. Contudo, das iniciativas previstas para o projeto, apenas a restauração do Mercado Popular da Lagoinha foi levada adiante, entregue à população em 1998 para a comemoração do Centenário. Após relativa paralisação, intervenções viárias atingiram novamente a região, com a duplicação da Avenida Antônio Carlos, projeto lançado na esteira da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014. Em 2010, a avenida começou a ser ampliada, passando de três para quatro faixas, algumas delas exclusivas para ônibus. Desta feita, também foram construídos viadutos ao longo da avenida, como na rua Formiga, próxima ao IAPI (DEER/MG, 2010). Com a duplicação da Avenida Antônio Carlos e a instalação do MOVE/BRT, a Lagoinha passou a ser dividida por viadutos, gerando desarticulação do núcleo de ocupação original e uma maior diferenciação entre os territórios nos lados opostos da avenida (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2011). Esse panorama é o que persiste até os dias atuais na região do bairro Lagoinha e suscita críticas dos moradores locais com relação à necessidade de diálogo com a

anos um maior esforço dos poderes públicos para a aproximação com a comunidade, de

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forma a reconhecer suas demandas e valorizar suas formas de associação e

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comunidade para transformações dessa magnitude. Assim, observou-se nos últimos

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Dossiê manifestações culturais. É importante ressaltar que, a despeito de todas essas mudanças e intervenções abruptas, a população da região da Lagoinha mantém, também em processo dinâmico, diversas tradições, tais como ofícios, práticas religiosas, bares e as matrizes do samba. Toda essa dinâmica vivenciada por moradores/as da região refletiu-se tanto nos mapas de percepção, como nas entrevistas e nas discussões feitas ao longo da cartografia. Assim, o levantamento das referências culturais existentes na região foi marcado por um olhar do presente, mas por uma insistente lente de um passado que não passa. Essas marcas da memória, por vezes traumáticas, por vezes envaidecidas, poderão ser mais bem compreendidas nos tópicos seguintes.

Metodologia de levantamento das referências culturais O projeto contratado pela prefeitura de Belo Horizonte teve como objeto a produção de uma cartografia. É preciso dizer que o vocábulo “cartografia” é polissêmico, sendo utilizado em distintas áreas do conhecimento. A cartografia possui uma conceituação técnica-científica que a define como um: (...) conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas, baseado nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com vistas à elaboração e preparação de cartas, projetos e outras formas de expressão, assim como à sua utilização. (IBGE, s.d.). 2

Conforme aponta Carvalho e Araújo (2011, p. 28), as operações cartográficas têm o objetivo de “(...) representar o espaço concreto ou abstrato em suas múltiplas feições”. A bibliografia que trata da elaboração de mapeamentos aponta que produzir mapas não é uma tarefa imparcial, muito menos inocente, pois mapear é, também, “colonizar” e “dominar”. Ao longo da história, a produção de mapeamentos foi utilizada para localizar, navegar, definir limites, compreender o mundo físico, difundir ideias sobre lugares, entre outras aplicações. Em muitos casos, esses mapas produziram apagamentos, exclusões e negações, apontando a incapacidade para o diálogo entre diferentes partes do mundo. Por outro lado, a operação de mapear, em outros momentos,

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Definição da Associação Cartográfica Internacional (ACI) em 1966, ratificada pela UNESCO no mesmo ano.

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gerou a possibilidade de tornar visíveis pessoas e grupos sociais excluídos, sobretudo


Dossiê porque aqueles que antes não apareciam passaram a ser considerados nas relações geopolíticas no mundo. Assim, no projeto, foi estabelecida como proposta metodológica a identificação dos atores sociais que estariam envolvidos e a realização dos primeiros contatos; a aplicação de oficinas de mapas de percepção com moradores/as da região; o trabalho de campo com elaboração de entrevistas com referências de diferentes temas e áreas; o acompanhamento de atividades; “andanças” mediadas e não mediadas pela região; a catalogação, análise e consolidação dos dados em planilhas e gráficos; e a validação e identificação de localizações e trajetos com mediadores locais. Na perspectiva de que a própria comunidade é detentora dos conhecimentos e, portanto, agente legitimado para falar de seu lugar, ao mesmo tempo que o conhecimento de um povo sobre seu território é partilhado e diverso, buscou-se ouvir moradores/as de distintos lugares sociais e culturais da localidade. Tendo como premissa legitimar os resultados obtidos, buscou-se a plena participação das lideranças tradicionais reconhecidas dentro do contexto comunitário, mas também da juventude e dos agentes culturais locais.3 Além disso, à equipe técnica que executou o estudo, foram incorporados dois mediadores locais, que contribuíram tanto na articulação com a população como na identificação da localização das referências culturais da região. Na seleção dos articuladores, buscou-se garantir que ambos fossem pessoas com envolvimento local, reconhecidas e legitimadas pela comunidade.4 Algumas instituições atuantes no território foram fundamentais para a mobilização e articulação na comunidade. Entre as entidades, destaca-se o Centro Cultural Liberalino Alves de Oliveira (CCLAO), que possui um importante trânsito com moradores/as da região, além de articular-se de forma muito próxima com os coletivos e lideranças locais. Alguns equipamentos da rede de atendimento público também foram importantes no mapeamento das atuais políticas públicas em execução no território, bem como na construção das proposições que compõem o relatório final do projeto.5

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Os mestres que colaboraram no processo de mapeamento estavam, em sua maioria, ligados à religiosidade, a associações comunitárias ou a movimentos sociais e culturais. 4 Uma das mediadoras é moradora da Vila Senhor dos Passos e atuante na área cultural na região, principalmente através da dança e da música e o outro, publicitário, produtor cultural e morador da Rua Itapecerica. 5 No campo das políticas de Assistência, destaca-se o CRAS Vila Senhor dos Passos, o CRAS Pedreira Prado Lopes e a Diretoria Regional de Assistência Social da Regional Noroeste. No campo das políticas de saúde, o Consultório de Rua. Já no campo das políticas de educação, a Escola Municipal Belo Horizonte e a Escola Estadual Silviano Brandão.

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Dossiê Identificados e contactados os agentes locais, foram realizadas as oficinas de mapas de percepção. Recorrente em distintas áreas do conhecimento, essa ferramenta permite que os sujeitos detentores possam espacializar e desenhar em um papel a realidade vivida no espaço ao qual pertencem. Possibilita, portanto, o aparecimento das diferenças, dos movimentos e da subversão das fronteiras e dos marcos fixos. As oficinas de mapas de percepção, nesse caso, consistiram em reunir coletividades específicas, dividir-lhes em grupos, entregar-lhes frações de papel em branco e pincéis atômicos, e estimular-lhes a inserir de forma escrita ou desenhada suas referências culturais. Ao longo da execução do projeto, foram elaboradas três oficinas com diferentes grupos focais: uma com as lideranças locais, outra com alunos de ensino médio da Escola Estadual Silviano Brandão e, por fim, com moradores em geral. A mobilização para a realização das oficinas deu-se de formas diferentes. Inicialmente, buscou-se identificar as referências locais junto ao CCLAO e realizar a oficina com esse grupo de pessoas. Essa estratégia de iniciar o diálogo com as lideranças reconhecidas pela comunidade funcionou tanto como forma de adentrar o território de forma respeitosa como para fazer ressoar a nossa presença na região, uma vez que as lideranças propagariam a informação e, assim, potencializariam a mobilização para as próximas oficinas. As oficinas seguintes foram feitas com pessoas de diversas faixas etárias, distintas localidades da região e de variadas classes sociais e vínculos culturais. Ao todo, participaram da realização dos mapas de percepção mais de cem pessoas. Concomitantemente ao período de realização das oficinas, foram realizadas entrevistas com cerca de 20 pessoas, por meio da metodologia de História Oral, com roteiros temáticos semiestruturados e preparados de acordo com as especificidades dos atores sociais entrevistados, em sessões que variaram entre 40 minutos e quatro horas.6 Os sujeitos e instituições que participaram e apoiaram a execução das oficinas de mapas de percepção possibilitaram, a partir de seus olhares, memórias e vivências como moradores/as desse território, a identificação de 394 referências culturais. Elas foram agrupadas por tipo: pessoas, lugares e práticas; por temporalidades: passado e presente; e em nove grandes áreas: Atividades produtivas e comerciais, Equipamentos e

6

As entrevistas foram todas gravadas em áudio e transcritas integralmente e compõem o acervo do projeto, disponível na DPCA.

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serviços públicos, Esporte e lazer, Expressões artísticas, Lugares, Música, Ofícios,


Dossiê Organizações sociais e Religiosidade. Na análise, foram consideradas todas as referências, algumas citadas por várias pessoas. Nos mapas, por sua vez, foram consideradas 317 referências.7 Por fim, após a validação das referências e das suas localizações, foram realizados o georreferenciamento dos itens e a produção dos mapas. O conjunto de informações foi espacializado em Sistemas de Informações Geográficas, utilizando-se de dados provenientes do Cadastro Territorial Multifinalitário gerido pela Empresa de Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte (Prodabel) e distribuídos por meio da plataforma BHMap. Também foi produzido um geocodificador para cada item, no software ArcGIS, a partir dos pontos de endereço.8 Foram elaborados um mapa geral das referências e nove mapas temáticos, considerando as áreas citadas acima. Em área, as referências foram agrupadas em categorias de acordo com suas especificidades.9 Além disso, foram representados os trajetos das festas, as ruas e as praças indicadas como referências culturais. Ainda tratando da metodologia, destaca-se as ações desenvolvidas no sentido de construir proposições de políticas públicas a partir de uma percepção intersetorial. Essa construção partiu sobretudo da demanda da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, uma vez que a contratação do projeto visava a identificação de espaços e iniciativas atuantes na região, bem como a proposição de políticas públicas que envolvessem diálogos com os setores que trabalhavam políticas de Assistência Social, Saúde e Educação na região. Assim, estabeleceu-se interlocução com os equipamentos e serviços que atendiam a população, sobretudo com aqueles identificados como referência nas oficinas de mapas de percepção e no trabalho de campo da equipe técnica. Para tanto, foram realizadas entrevistas com os gestores dos espaços identificados, a fim de compreender seu funcionamento, apresentar a Cartografia Cultural e pensar coletivamente em proposições de políticas públicas que funcionassem

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Os itens não espacializados relacionam-se a referências do passado que já não existem mais (67), pessoas importantes, mas que não moram mais na região (4), itens cuja localização não foi possível (2) e atividades consideradas ilegais pelo poder público (4). 8 Todo o mapeamento foi produzido em sistema de coordenadas UTM, fuso 23S, datum SIRGAS-2000, em atendimento à resolução IBGE n.º 1/2005. Nos casos em que a única referência informada era o nome do bairro ou da rua, foi inserido um ponto aleatório no centroide dos respectivos vetores – polígono ou linha. 9 Por exemplo, a grande área Música foi dividida nas categorias: artistas e grupos musicais; blocos carnavalescos e escolas de samba; canções; e eventos musicais. A geógrafa responsável pela produção dos mapas e do georreferenciamento foi Clarice Murta Dias.

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Dossiê como garantidoras de direitos, a partir do fortalecimento dos serviços já previstos e dos equipamentos em funcionamento.10

Trânsitos para além de fronteiras: territorialidades culturais da região da Lagoinha A percepção da heterogeneidade de territorialidades que conformam a região da Lagoinha, para além de suas fronteiras oficiais, e as relações estabelecidas com moradoras/es no decorrer da pesquisa trouxeram à equipe do projeto os desafios de operacionalizar uma noção mais abrangente de “cultura”. Essa noção precisaria considerar, mas também ultrapassar, as categorias previstas nas políticas de patrimônio cultural. Desde a reunião inicial com a coordenação do Centro Cultural Liberalino Alves de Oliveira e a condução da primeira oficina de mapas de percepção, percebeu-se a pluralidade de atividades, espaços e eventos que eram identificados pelos participantes como elementos que faziam parte da(s) cultura(s) da Lagoinha. A literatura hegemônica e as agências de patrimônio brasileiras convencionaram apresentar as inflexões advindas com a definição mais ampliada de patrimônio cultural na Constituição Federal de 1988 e, mais tarde, a regulamentação dos chamados patrimônios imateriais nos anos 2000 como se informadas por uma concepção antropológica de cultura. Pode-se dizer, entretanto, que essa imagem em si não diz muita coisa, pois a Antropologia acumulou nos últimos séculos noções concorrentes sobre

cultura,

que

dependem

de

posicionamentos

ético-políticos,

premissas

epistemológicas e escolhas analíticas (MOREIRA, 2020). O conceito de “referências culturais”, por sua vez, visa privilegiar o caráter relacional e referencial das práticas de uma coletividade, considerando como tal aquilo que interlocutores/as afirmam ser importante para a continuidade de suas vidas (FONSECA, 2001). Uma investigação do trabalho cotidiano de reconhecimento de patrimônios imateriais, porém, demonstra a tendência de se compreender cultura como um conjunto de traços diacríticos que configuram uma totalidade, através da catalogação de indumentárias, instrumentos musicais, canções, ritos, hábitos

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Entre os equipamentos públicos, foram feitos diálogos com o CRAS Vila Senhor dos Passos, o CRAS Pedreira Prado Lopes, a Diretoria Regional de Assistência Social Noroeste, a Escola Municipal Belo Horizonte e a Comissão de Gestão Territorial. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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alimentares, em detrimento da compreensão mais densa das relações cosmológicas,


Dossiê políticas e territoriais. Esse deslizamento aproxima-se da ideia de cultura de Edward Tylor, do início do século XX e julgada na academia há muito ultrapassada (MOREIRA, 2020). No processo de sistematização das informações das oficinas, a fim de evitar os riscos de simplificar a complexidade encontrada em campo, a equipe assumiu a postura de levar a sério o que moradores/as haviam inscrito nos mapas de percepção. Entendeuse cultura de uma maneira mais ampliada, como um processo discursivo de objetivar maneiras de ver e interpretar o mundo (WAGNER, 2014). Logo, cultura foi entendida como aquilo que as/os participantes das oficinas desenharam, escreveram e relataram e, assim, foi possível operacionalizar com maior densidade a ideia de referências culturais. Tal premissa revelou a insustentabilidade de operar a análise apenas com as quatro categorias previstas pelas políticas de patrimônios imateriais – Celebrações, Formas de Expressão, Lugares e Saberes. As informações reunidas atravessavam tais enquadramentos, mas terminavam por extrapolá-los. Esse olhar ampliado permitiu chegar às nove áreas temáticas que orientaram a produção da cartografia cultural, aqui apresentadas pela distribuição de referências associadas, em ordem decrescente: Religiosidade (80 itens; 23,81%); Música (54 itens; 16,07%); Lugares (48 itens; 14,29%); Ofícios (39 itens; 11,61%); Atividades produtivas e comerciais (28 itens; 8,33%); Organizações sociais (27 itens; 8,04%); Expressões artísticas (22 itens; 6,55%); Esporte e lazer; e Equipamentos e serviços públicos (ambas com 19 itens; 5,65%)11. Cabe destacar, por exemplo, a consideração de equipamentos públicos e organizações sociais como referências culturais, uma vez que se percebeu que tais instituições e iniciativas eram compreendidas por habitantes da Lagoinha como marcos de referência da região e de suas biografias, espaços de convívio e sociabilidade, além de promotoras de eventos culturais e oficinas artísticas. A partir da identificação e espacialização dessas referências culturais, o território da Lagoinha, para fins do projeto, foi se conformando. Embora a decisão técnica de delimitar o território da região a partir das referências dos moradores fosse uma certeza para a equipe, a produção da representação cartográfica do território foi um desafio.

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Optou-se pela utilização das palavras em maiúscula quando se referem às áreas temáticas da pesquisa.

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Encontrou-se diferentes interpretações sobre os limites do território, tanto por parte de


Dossiê moradores/as como do poder público, em diferentes esferas que, por vezes, não dialogam. Como define Milton Santos (1996), território é um espaço socialmente construído, possuidor de recursos naturais e detentor de uma história construída por aqueles que nele habitam, através de convenções de valores e regras, arranjos institucionais que lhes conferem expressão e formas sociais de organização da produção. Como espaço social, o território é espaço de conflito e tensões, sendo ao mesmo tempo lugar de produção cultural e econômica, configuração de sociabilidades e formas de ação. Em consideração a essa compreensão, do mesmo modo que se precisou ampliar o conceito de cultura para se apreender quais eram as referências culturais da Lagoinha, foi preciso congregar as diferentes delimitações oficiais das políticas urbanas de Belo Horizonte com as noções de moradores/as. Dessa forma, a delimitação geográfica12 aplicada no mapeamento da Cartografia Cultural da Região da Lagoinha abrangeu integralmente o bairro Lagoinha, a Pedreira Prado Lopes e a Vila Senhor dos Passos e seções dos bairros São Cristóvão, Bonfim, Santo André, Concórdia e Aparecida, conforme se verifica no Mapa 01.13

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É importante ressaltar que a delimitação proposta na Cartografia Cultural possui semelhanças com as projeções oficiais e que, no âmbito do georreferenciamento e do geoprocessamento dos dados, utilizou-se tanto das percepções comunitárias sobre o espaço que ocupam, circulam e rememoram como das definições oficiais de arruamento e confrontações de limites. Ressalta-se, ainda, que não era pretensão do projeto modificar definições governamentais, mas propor que as políticas públicas para aquela região considerem a percepção da localidade de quem ali reside. 13 As referências identificadas extrapolam esses limites, indicando que a territorialidade se alarga e seus fluxos se estendem para trechos nos bairros Colégio Batista, Concórdia e Nova Esperança. Percebeu-se que, especialmente na área de Religiosidade, as fronteiras físicas são rompidas, pois grande parte dos que estão na área delimitada nessa cartografia e dos que estão nas proximidades definem-se como moradores/as da Lagoinha. Assim, considerando as referências indicadas e a noção socialmente construída desse pertencimento, optou-se por apontar no mapa as citações mencionadas pela comunidade local a fim de apresentar as relações existentes entre as localidades. Justifica-se que os bairros onde apareceram apenas alguns pontos não foram delimitados como região da Lagoinha porque não houve aprofundamento das referências nessas localidades.

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Dossiê

Mapa 01: Referências Culturais da região da Lagoinha.

Fonte: Projeto Cartografia Cultural da Região da Lagoinha – relatório final (2019). Elaboração: Clarice Dias Murta.

A distribuição dessas referências no mapa mostrou a fluidez dos limites e das confrontações do bairro Lagoinha e colocou-se como possibilidade de compreender os processos sociais que sustentam as referências culturais dessa localidade. Ademais, permitiu identificar a configuração de territorialidades culturais, através das dinâmicas de espacialização das referências, com concentrações em certas áreas e vazios em outras. Por exemplo, os itens reunidos na área de Lugares foram mais identificados no bairro Lagoinha. Ali se encontra a maior parte das ruas e praças onde acontecem festas, procissões, blocos de carnaval e outras práticas que ocupam os espaços públicos. O bairro também reuniu a maioria das Atividades produtivas e comerciais, muito vinculadas à história de instalação dos comércios e serviços, que informa o desenvolvimento da região e mostra suas continuidades. Inversamente, os Ofícios levantados estiveram mais presentes na Pedreira Prado Lopes e na Vila Senhor dos

maior presença de itens associados ao futebol. Foi possível identificar também a maior REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Na Pedreira, concentraram-se as referências associadas ao Esporte e lazer, com a

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Passos.


Dossiê concentração e a coincidência de Organizações sociais e Equipamentos e serviços públicos no bairro Lagoinha e na Pedreira Prado Lopes, em detrimento de presenças relativamente menos expressivas na Vila Senhor dos Passos e IAPI. O gráfico 01 representa a distribuição das áreas temáticas por localidade, o que permite visualizar as dinâmicas aqui relatadas. Para fins de análise, explora-se mais detidamente a seguir as dinâmicas socioculturais da Religiosidade e da Música, áreas que foram as mais expressivas no levantamento das referências culturais. Gráfico 01 – Distribuição das áreas temáticas segundo localidade

Legenda: PPL - Pedreira Prado Lopes. Conjunto Habitacional IAPI - Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários Fonte: Projeto Cartografia Cultural da Região da Lagoinha – relatório final (2019).

A área da Religiosidade concentrou o maior número de referências levantadas (23,81%), o que indicou sua centralidade entre os/as participantes da pesquisa. Identificou-se uma relativa pluralidade religiosa na região da Lagoinha, com a presença de pessoas, práticas e lugares associados às religiões afro-brasileiras, católica, evangélicas, kardecista e ortodoxa síria. Foi possível reunir algumas tendências socioespaciais. As referências associadas às religiões afro-brasileiras reuniram 50,0% dos itens levantados na região, se concentrando na Vila Senhor dos Passos (80,0% dos 40 itens). Por outro lado, as referências às religiosidades católicas, também relativamente expressivas (36,25%), distribuíram-se por todas as localidades: bairro Lagoinha, IAPI, Pedreira Prado Lopes e Vila Senhor dos Passos. Além disso, as referências evangélicas concentraram-se no bairro Lagoinha e na Pedreira, muito devido à presença da Igreja Batista da Lagoinha e as ações de assistência social realizadas na

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comunidade.

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Dossiê Pode-se atribuir a expressividade de referências culturais de religiões afrobrasileiras à importância que os terreiros possuem nas dinâmicas sociopolíticas da região. Além de reunir o corpo mediúnico e frequentadores que buscam assídua ou esporadicamente orientações espirituais, as casas de candomblé, omolokô e umbanda historicamente atuaram como centros de saúde e assistência social, mediação de conflitos e mobilização política, uma vez que os serviços públicos municipais eram ausentes ou insuficientes, principalmente na Pedreira Prado Lopes e Vila Senhor dos Passos. Até os dias de hoje, esses espaços organizam eventos de distribuição de alimentos, doação de roupas, oficinas, entre outras atividades. Segundo conversas com moradoras, a concentração de terreiros na Vila pode ser atribuída aos processos de ocupação da localidade desde inícios do século XX, com a migração de famílias predominantemente negras que já pertenciam ou mesmo eram chefes de terreiros em suas terras de origem. Importa destacar que as dinâmicas das casas de religiões afro-brasileiras contribuem expressivamente para a fluidez das fronteiras da Lagoinha. Pessoas de diversas regiões de Belo Horizonte e municípios vizinhos participam de suas atividades e, além disso, os terreiros configuram redes de famílias de santo, trocas e visitas que estendem as percepções sobre a delimitação do território até os bairros Aparecida, Concórdia, Nova Esperança e Santo André (Mapa 01). As festas em homenagem aos orixás extrapolam os limites físicos dos terreiros e ocupam os espaços públicos, na forma de cortejos e outros eventos, o que também contribui para as percepções da Lagoinha como um território vivo e rico em práticas culturais. A distribuição das referências católicas em todas as localidades, por sua vez, evidencia as redes de atuação das paróquias presentes nos bairros. Encontram-se igrejas e capelas, festas e procissões por toda a região, mas é possível notar a centralidade do bairro Lagoinha e do Conjunto IAPI devido à presença do Santuário Nossa Senhora da Conceição e da Igreja de São Cristóvão, respectivamente. São nos entornos dessas igrejas que acontece a maior parte das festas, das quais se destacam as comemorações da Semana Santa e as festas de padroeiro, marcadas pelos trânsitos de fiéis e organização de procissões que circulam entre Lagoinha e Vila Senhor dos Passos, por

A festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia 8 de dezembro, é um exemplo de

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celebração que extrapola os territórios da Lagoinha e atrai milhares de pessoas de

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um lado, e IAPI e Pedreira Prado Lopes, por outro.

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Dossiê diversas regiões da cidade. Ao longo das décadas, tais festas testemunharam momentos de maior efervescência, participação da população e apoio da paróquia, mas, atualmente, em entrevistas realizadas com moradores/as, notou-se que as mudanças sucessivas dos párocos responsáveis e o falecimento de pessoas que eram importantes para a continuidade das práticas culturais provocaram a diminuição do engajamento local. A área da Música foi aquela que reuniu o segundo maior número de referências (16,07%). Desse universo, mais da metade estava associada ao samba (62,0%), o que permite indicar sua relevância nas experiências culturais da região da Lagoinha. O samba está relacionado a diversas dimensões da vida coletiva, como nos ambientes familiares, religiosidades e momentos de sociabilidade, o que se traduziu no levantamento expressivo de sambistas, escolas de samba, blocos de carnaval, sambacanções, afoxés, casas de samba, bares e botequins. Essas pessoas, lugares e práticas estão concentradas principalmente na Pedreira Prado Lopes e, em seguida, no bairro Lagoinha. A Pedreira é conhecida como o berço do samba em Belo Horizonte – não por acaso, a maior parte de referências reunidas na localidade está relacionada à música (25,29%). Essa notoriedade deve-se, sobretudo, à fundação da Escola de Samba Pedreira Unida na década de 1930, nesse espaço que é marcadamente pobre e negro e contribuiu para a configuração do imaginário belo-horizontino sobre uma Lagoinha boêmia, malandra e festeira. O que informou sócio-historicamente um olhar externo pejorativo sobre a região é motivo de reconhecimento e valorização para seus moradores e moradoras, que mantêm ativas as experiências do samba no território e contribuem para sua continuidade e transmissão às novas gerações. A Pedreira Unida encerrou suas atividades, mas hoje seus antigos membros estão reunidos na Escola de Samba Unidos Guaranis, que desfilou no carnaval de 2019 tendo como samba-enredo sua própria casa: “Pedreira: a favela encantada”. Além disso, a Velha Guarda da Unidos Guaranis costuma promover encontros mensais nas dependências da Escola Municipal Belo Horizonte para revisitar os antigos sambas e compor novas canções. Na localidade, vivem compositores e sambistas de referência,

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Pedreira e atualmente integrante do grupo ConverSamba.

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como Iolanda Alves Guerra, por muito tempo porta-bandeira da antiga Unidos da

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Dossiê Percebe-se que o samba está diretamente associado aos blocos de carnaval, cujos trajetos ocupam importantes ruas do bairro Lagoinha. Esse é o caso de “O Leão da Lagoinha”, que desfila pela rua Itapecerica e é o bloco mais antigo da cidade, fundado em 1947 e retomado na última década. Ademais, o Mercado da Lagoinha e o CCLAO tornaram-se uma centralidade na realização de atividades, como os ensaios e apresentações do ConverSamba. O grupo surgiu em 2015 com a proposta de valorizar o gênero musical e sua história na região da Lagoinha. Reúne pessoas da velha guarda, como dona Iolanda, Mestre Conga, Mestre Lagoinha e Ronaldo Coisa Nossa, além de sambistas mais jovens, contribuindo para a atualidade do samba no território.

Políticas públicas intersetoriais e a interlocução com as referências culturais Ao longo do projeto, foram identificadas possibilidades de ações dos poderes públicos na área da assistência social voltadas para as juventudes, para os usuários de álcool e outras drogas e para as populações em situação de rua, tendo como motor as referências culturais locais. Os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) executam os serviços da proteção básica no território e são a porta de entrada para a política de Assistência Social. A região da Lagoinha possui dois CRAS, o Vila Senhor dos Passos e o Pedreira Prado Lopes. Ambos estão funcionando com equipe reduzida e em espaços cedidos por outros equipamentos, o que compromete a oferta de todos os serviços e o espaço físico para a realização das atividades. O CRAS Pedreira Prado Lopes conta com a execução do ProJovem, um programa unificado voltado para as juventudes em situação de vulnerabilidade social. O programa prevê a realização de ações artísticas, culturais e sociais no período do contra turno escolar dos jovens. A instituição de tais parcerias mostra-se importante para o funcionamento da política, bem como apresenta aspectos positivos para as juventudes. Verificou-se que o CRAS Vila Senhor dos Passos, por sua vez, não possui a oferta do ProJovem e de outras atividades voltadas para as juventudes. Trata-se, portanto, de medida de grande importância e efetividade reconhecida pela comunidade e pelos poderes públicos, visto que a existência dos CRAS nas duas

intervenção artística na região, como o projeto Cura.Art, voltado para a instalação de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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espaços de vulnerabilidade e risco social. A realização recente de projetos de

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favelas, contudo, demonstra que o poder público reconhece essas localidades como


Dossiê murais em empenas de edificações, mostra a potencialidade de políticas que dialoguem com as linguagens artísticas utilizadas pelas juventudes na região. A presença do Centro de Prevenção à Criminalidade (CPC) e a continuação do Programa Fica Vivo! na Pedreira são exemplos de iniciativas para a redução das taxas de criminalidade e desigualdade social naquele território. O Programa Fica Vivo! pertence à política estadual de defesa social e foi institucionalizado em 2003 como Programa de Controle de Homicídios. Os atendimentos dão-se a partir da oferta de oficinas, entendidas como possibilidades de aproximação com os jovens no contexto da localidade. No campo da oferta de oficinas, também foi identificada a Escola Aberta da E. M. Belo Horizonte, que ministra oficinas de artes marciais, circo, informática, teatro, vôlei, esportes, samba e dança. A escola ainda cede seu espaço para eventos da comunidade e mantém a biblioteca em funcionamento durante os três turnos escolares. A identificação dessas iniciativas e serviços locais apresentou-se como indício de que essas estratégias geram impactos sociais relevantes para a comunidade. As juventudes participantes da construção dos mapas de percepção, as lideranças comunitárias e os servidores dos equipamentos perceberam que a oferta desses serviços é compreendida como positiva e eficaz pelos habitantes da Lagoinha. São interseções de interesses sociais: a oferta de atividades que garantem aos jovens o direito constitucional à cultura, ao esporte e ao lazer; o afastamento das juventudes das atividades infracionais e criminais; a problematização em relação a essas atividades; o referenciamento dos jovens e de suas famílias na rede; e a criação de novas estratégias de construção social. Assim como no campo das juventudes, a oferta dos serviços para as pessoas em situação de rua comprova o conhecimento do poder público em relação à existência e à necessidade de acolhimento e atendimento desses indivíduos. Durante as atividades do projeto com moradores/as, foi possível identificar uma percepção de aumento das pessoas em situação de rua no território. A política de assistência oferta os serviços na perspectiva de inserção desses sujeitos na rede de atendimento e na realização dos encaminhamentos que se fizerem necessários para isso. No caso do Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, o acesso dá-se na forma de demanda

Especializado em Abordagem Social, de outros serviços socioassistenciais, das demais

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políticas públicas setoriais e dos demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos. O

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espontânea por parte dos usuários e a partir de encaminhamentos do Serviço

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Dossiê atendimento é realizado no edifício da Regional Noroeste, no bairro Carlos Prates. Neste quesito, além da necessidade de pessoal técnico especializado, faz-se necessária maior aproximação como iniciativas já existentes e realizadas por Associações e Igrejas, como a Paróquia Nossa Senhora da Conceição e a Igreja Batista da Lagoinha. No que se refere às pessoas usuárias de álcool e outras drogas, a oferta dos serviços de atendimento demanda um trabalho articulado e integrado entre as políticas públicas de diversas áreas. Essa é uma diretriz já em funcionamento pelos equipamentos que oferecem os serviços, contudo atravessada pelos entraves do sucateamento e das próprias políticas públicas. A região da Lagoinha conta também com a oferta do serviço do Consultório de Rua, lotado no Centro de Saúde Pedreira Prado Lopes e vinculado à Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde via Coordenação de Saúde Mental. O Consultório de Rua possibilita que o atendimento se dê no território onde os usuários estão, na tentativa de criação de vínculos e de ampliação do acesso às demais políticas. Construído na perspectiva da redução de danos14, o Consultório de Rua estimula, em outras políticas públicas, a percepção da necessidade de cuidados das pessoas em situação de rua ou que fazem uso de álcool e outras drogas. Desde 2012, o Consultório de Rua tem a equipe formada por motorista, enfermeiro, psicólogo, assistente social, redutor de danos e arte-educador. A atuação no Centro de Saúde Pedreira Prado Lopes dá-se em um território que vem experienciando o cenário do uso de drogas há, pelo menos, uma década. Inserido nesse contexto e entre outras diversas ações, destaca-se o trabalho executado pelo arte-educador desse serviço, na perspectiva de perceber o estabelecimento de um vínculo direto entre a oferta do serviço de saúde e práticas artísticas ou culturais. São propostas construídas para estabelecimento de vínculo com os usuários e para que eles sejam vistos pelas políticas públicas e pela sociedade a partir de uma perspectiva diferente da criminalização e do encarceramento. É importante ressaltar que todos esses equipamentos e serviços públicos foram identificados pelos que participaram das oficinas de mapas de percepção, sobretudo pelos adolescentes e jovens, como referências culturais. São, portanto, os locais em que produzem a cultural local em oficinas de dança, capoeira e arte, entre outras, oferecidas

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De acordo com Garcia (2017, p.16), “Na perspectiva da saúde mental, o uso abusivo de drogas é um sintoma e não a causa do sofrimento do usuário, por isso a importância do protagonismo do sujeito no seu tratamento, a fim de dar o suporte para ele ressignificar o seu desejo. A lógica da Redução de Danos é voltada para aqueles que não podem ou não conseguem parar de usar drogas. Por isso, é diametralmente oposta à lógica da abstinência, que trabalha na expectativa em que o sujeito queira e possa parar de usar radicalmente as drogas. Isso se dá, muitas vezes, mediante práticas biologicistas que defendem o protagonismo da substância em detrimento do contexto sociossimbólico do usuário”.

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Dossiê nas escolas e nos CRAS, ou em eventos oferecidos nas ruas e centros culturais. Além disso, cabe pontuar que, para além de serem compreendidas como referências culturais, esses locais têm a potencialidade de agregar pessoas e de valorizar expressões artísticas e seus mestres, como é o caso dos CRAS, onde há mestres artesãs como oficineiras, ou do CCLAO, que regularmente faz ações de valorização dos mestres sambistas. Nesse sentido, as medidas voltadas para a Assistência Social são indissociáveis das Políticas de Patrimônio Cultural, uma vez que estabelecem vias para a transmissão de saberes locais, para a valorização das pessoas e locais de referência para a comunidade e para o exercício pleno da cidadania.

Considerações finais: proposições para a valorização das práticas e manifestações culturais da região da Lagoinha Os dados levantados ao longo do projeto demonstraram a existência de ricas e diversas práticas culturais no território da Lagoinha. Pode-se dizer que muitas têm sua continuidade ameaçada, como é o caso do bloco O Leão da Lagoinha, sobretudo por questões de fomento e valorização. Enquanto isso, outras já se encontram em processo de desaparecimento, como é o caso do Congado da Vila Senhor dos Passos, que não encontrou atores sociais necessários para sua continuidade. Existem, contudo, várias outras práticas culturais que não enfrentam riscos iminentes e estão vivas e pulsantes. Ao longo da pesquisa, observou-se forte vitalidade de determinadas expressões, às quais distintas pessoas dedicam suas vidas, apesar das limitações socioeconômicas enfrentadas. Nesse âmbito, inserem-se, por exemplo, o samba, as casas e terreiros de matriz afro-brasileira, a Festa de Nossa Senhora da Conceição e o futebol amador. Entendeu-se, ao final da cartografia, que havia, portanto, a necessidade de que o poder público conhecesse a realidade local mais a fundo e voltasse seu olhar para a existência dessas práticas culturais. Compreende-se que existe ali uma efervescência de expressões artísticas, lúdicas e tradicionais, entre outras que compõem um conjunto de elementos conformadores das identidades da região da Lagoinha. Viu-se, assim, que era preciso retirar do olhar tanto a lente do passado, que faz crer que a cultura da Lagoinha se perdeu no tempo, como a lente do preconceito, que impede a contemplação da região

referências culturais, afirmou-se, no relatório final da Cartografia Cultural, que a região REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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A partir dessa compreensão, obtida com o levantamento participativo de

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como um poderoso núcleo de resistência cultural.


Dossiê da Lagoinha é um território dinâmico que tem a potencialidade de manter suas práticas culturais, ainda que tenha que lidar com agentes externos e internos de desarticulação. Em vista de seus potenciais e das demandas apresentadas pela comunidade local ao longo da pesquisa, construiu-se uma série de proposições para a salvaguarda da cultura da região da Lagoinha. Entre elas, destaca-se a indicação de proteção, por meio do registro como patrimônio cultural, de práticas tradicionais na região; a construção de um programa de valorização da cultura afro-brasileira presente na Lagoinha; aplicação de recursos para o fomento de expressões artísticas locais; mapeamento das casas de samba da Lagoinha e criação de circuito musical na região; inventário dos ofícios tradicionais da Lagoinha, tais como relojoeiros, sapateiros, barbeiros, entre outros saberes artesanais.15 As proposições de políticas públicas da Cartografia Cultural da Lagoinha foram construídas em uma perspectiva intersetorial, que compreende a garantia dos direitos humanos a partir do diálogo de todos os segmentos do serviço público e que, por outro lado, valoriza as referências culturais locais. Entre as propostas de ações, estão o fortalecimento das políticas já existentes; a garantia de espaços adequados e de recursos humanos para os serviços ofertados; ampliação do serviço de acolhimento institucional, sobretudo para as mulheres; criação de ações de inserção das pessoas em situação de rua no mercado de trabalho, em articulação com os ofícios locais, entre outras. Por fim, entende-se que a produção da Cartografia Cultural da Região da Lagoinha reproduziu em textos e mapas aquilo que desde o início da pesquisa se ouviu de interlocutores/as: a região do bairro da Lagoinha conforma territorialidades dinâmicas, com fronteiras fluidas e trânsitos constantes entre diversas localidades e outras regiões da cidade. Abrir-se para ouvir o que moradores/as contavam exigiu flexibilizar as noções estanques de território e cultura previstas pelas legislações e teorias, de maneira a abranger dinâmicas socioespaciais para além da delimitação oficial de um bairro e experiências culturais para além das políticas de patrimônio. A cartografia informou que no território da Lagoinha encontram-se vidas, mobilizações políticas e engajamentos; fervilham pessoas, lugares e práticas que contestam as visões descuidadas que atribuem à região uma retórica saudosista presa ao

A lista completa de proposições pode ser acessada no documento Cartografia Cultural da região da Lagoinha – Relatório final (2019), disponível na DPCA. 15

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passado. Além disso, expôs os desafios, mas também as possibilidades, de se


Dossiê operacionalizar ações e políticas públicas intersetoriais abertas e democráticas que contemplem as demandas locais advindas da diversidade de pessoas que ocupam um mesmo território.

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Dossiê

A TOPONÍMIA COMO ELEMENTO DA PAISAGEM CULTURAL DO CONJUNTO URBANO BAIRROS LAGOINHA, BONFIM E CARLOS PRATES La toponimia como elemento del paisaje cultural del conjunto urbano de los barrios Lagoinha, Bonfim y Carlos Prates

Daniel Silva Queiroga*

RESUMO: O Dossiê para proteção do Conjunto Urbano bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates apresenta seu patrimônio cultural, mas não o esgota, sendo, portanto, um documento articulador de outros trabalhos que podem ser realizados na região da Lagoinha. Embora aborde o desenvolvimento dos logradouros, ele não revela o significado da sua toponímia. Esta lacuna vai de encontro com uma pesquisa que identificou logradouros cujas homenagens apresentam marcas culturais significativas para disseminação da história de Belo Horizonte e da própria região. Por esta razão, o presente artigo tem por objetivo apresentar como a toponímia dos logradouros pode ser considerada elemento que compõe a paisagem cultural. Palavras-chave: Conjunto Urbano; Lagoinha; Paisagem Cultural; Patrimônio Cultural; Toponímia. RESUMEN: El Dossier para la protección de los barrios del Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim y Carlos Prates presenta su patrimonio cultural, pero no lo agota, siendo, por lo tanto, un documento articulador de otras obras que se pueden llevar a cabo en la región de Lagoinha. Aunque aborda el desarrollo de lugares públicos, no revela el significado de su toponimia. Esta brecha se encuentra con una encuesta que identificó lugares cuyos homenajes tienen marcas culturales significativas para la difusión de la historia de Belo Horizonte y la propia región. Por esta razón, el presente artículo tiene como objetivo presentar cómo la toponimia de los lugares públicos puede considerarse un elemento que compone el paisaje cultural. Palabras clave: Conjunto Urbano; Lagoinha; Paisaje Cultural; Patrimonio Cultural; Toponimia.

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Daniel Silva Queiroga é professor, especialista do patrimônio cultural, advogado e doutor em Direito (UFMG). É autor do projeto Casas da Lagoinha que realiza atividades educacionais para mostrar a história urbana e evidenciar a memória de pessoas e lugares com significativo valor afetivo, bem como a criação de conteúdo digital e bibliográfico, palestras, realização de diagnósticos, inventários e pesquisas. É um dos idealizadores do Circuito Urbano de Arte (CURA) - Lagoinha, realizado em 2019, uma parceria entre a Pública Agência de Arte e o Viva Lagoinha. E-mail: danielqueiroga@gmail.com.

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Introdução Lagoinha, embora seja uma palavra simples que significa lagoa pequena, desperta uma variedade de sentimentos e traduz uma série de expressões que vão do copo ao samba, do carnaval à boemia, do fantasma ao complexo viário, da prostituição ao patrimônio histórico2. Capaz de despertar amor e ódio, a Lagoinha compõe o enredo de canções, de literatura e filmografia da terceira capital de Minas Gerais3, o que lhe confere posição de destaque na constituição da cultura mineira e belo-horizontina. A sua importância enquanto espaço de memória, patrimônio, paisagem e cultura foi reconhecida na Lei municipal nº 7.166, de 27 de agosto de 1996, com a criação da Área de Diretrizes Especiais (ADE) da Lagoinha. E continua contemplada na Lei municipal nº 11.181, de 8 de agosto de 2019 (Novo Plano Diretor) que ampliou seus limites e funções socioeconômicas e culturais. Contudo, o reconhecimento oficial da Lagoinha como patrimônio cultural de Belo Horizonte só aconteceu em 2016 pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (CDPCM-BH). O Dossiê que baliza essa decisão aponta que o território é portador de marcas culturais que caracterizam um modo de vida particular e que a identificação desses elementos é um grande desafio (DPAM, 2016, p.27). A memória, a história, os monumentos, os imóveis, os marcos, as manifestações culturais e a percepção do espaço pela população foram, acertadamente, critérios utilizados para a elaboração do estudo. Contudo, o Dossiê não traz uma pesquisa pormenorizada do surgimento e do desenvolvimento dos logradouros, tampouco revela o significado da sua toponímia, ou seja, a razão da homenagem que os logradouros fazem para a história, a memória e a cultura da Cidade de Belo Horizonte. Esta lacuna vai ao encontro de uma pesquisa para a edição de um Dicionário Toponímico dos logradouros da região da Lagoinha, que se encontra concluído e ainda não publicado. O estudo realizado entre 2014 e 2020 identificou logradouros cujas homenagens apresentam marcas culturais significativas para disseminação da história de Belo Horizonte e da própria região. Diante dessas considerações, o presente artigo tem como objetivo apresentar como a toponímia dos logradouros pode ser considerada elemento que compõe a paisagem cultural. No caso específico da região da Lagoinha, o artigo mostrará como ela revela um

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Sobre o assunto ver: (BARRETO, 1995), (COSTA, 1998) e (SILVEIRA, 2005). Sobre o assunto ver: (BORGES, 2020), (LIMA, 2008) e (PIROLI, 2004).

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conhecimento até então escondido e que pode ser considerado um bem cultural.


Dossiê A pesquisa foi desenvolvida com consulta ao repositório da Assembleia Legislativa de Minas Gerais4 e da Câmara Municipal de Belo Horizonte5, onde foi possível identificar a atribuição e modificação de toponímias, criação e mudança de nomes de bairros, aprovação de loteamentos, dentre outros. Como alguns logradouros ficaram sem correspondência na pesquisa, foram analisadas as plantas cadastrais no Sistema Plantas Online6 e identificado seu surgimento e atribuição da toponímia. Ademais, consultou-se o original de diversos mapas e plantas no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, no Arquivo Público Mineiro e no Museu Abílio Barreto, em que foram descobertos alguns topônimos atribuídos entre 1897 e 1920, período em que não era comum a edição de leis para atribuição de homenagens aos logradouros.

A região da Lagoinha e o Conjunto Urbano A região da Lagoinha 7 , como território, existia antes mesmo da fundação do antigo Arraial de Curral del Rey e se situa no divisor de águas das bacias do Onça e do Arrudas, entrecortada por dois vales, um conformado pelo córrego do Pastinho e outro pelo córrego da Lagoinha8. Esse território era conhecido como Vargem9 da Lagoinha (ver REIS, 1893) na época da fundação de Belo Horizonte e é coincidente com a região formada pelos bairros Bonfim, Lagoinha, São Cristóvão (que inclui o Conjunto IAPI) e as vilas Senhor dos Passos e Pedreira Prado Lopes, bem como parte dos bairros Carlos Prates, Colégio Batista, Santo André e o entorno da Praça Barão do Rio Branco e da Rua dos Guaicurus no Centro. Com a escolha de Belo Horizonte, em 17 de dezembro de 1893, a Comissão Construtora da Nova Capital, chefiada por Aarão Reis, escolheu a região da Lagoinha para o início dos seus trabalhos (SILVA, 1998, p.25). No plano, a zona urbana da capital seria ocupada a partir da região da Lagoinha, onde se instalaria o Mercado Municipal (atual Rodoviária) que é o mesmo local onde se inicia a principal avenida chamada de Afonso Pena. Também a avenida que delimita a zona urbana, chamada de Dezessete de Dezembro (popularmente do Contorno), começa e termina na região da Lagoinha. Esta descrição 4

Disponível em: http://www.almg.gov.br Disponível em: http://www.cmbh.mg.gov.br Disponível em: http://portal5.pbh.gov.br/plantacp/inicio.do/ 7 O nome Lagoinha é rodeado de mitos. Provavelmente, foi dado em decorrência de pequenas lagoas que existiam na região. Há quem diga que o nome se origina do sobrenome do Padre Manuel da Silva Lagoinha que colonizou o local (LIMA JR, 1957, p.111). 8 Atualmente, ambos os córregos estão canalizados sob as avenidas Dom Pedro II e Presidente Antônio Carlos, respectivamente. 9 A palavra vargem é sinônima de várzea que significa terreno cultivável às margens de um rio ou ribeirão. 5

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Dossiê apresenta a Lagoinha que passou a ser parte tanto da zona urbana quanto da zona suburbana. Com o início das obras da Capital Belo Horizonte, a região da Várzea da Lagoinha começa a sofrer mudanças que a farão perder, paulatinamente, as características de área rural e de caminho de tropas, que passavam pelo arraial com destino ao oeste ou ao norte. É bom lembrar que o plano da Comissão Construtora da Nova Capital não previu uma zona para a moradia dos imigrantes e trabalhadores da construção da capital. Por falta de moradias “oficiais” muitos dos imigrantes e trabalhadores tiveram que viver em situação precária em cafuas e barracões de lona ou zinco. Muitos desses imigrantes e trabalhadores se estabeleceram na região da Lagoinha e foram acolhidos por ela. Italianos, negros, sírios e portugueses que se estabeleceram na região criaram certas relações sociais peculiares que tornam a região da Lagoinha múltipla, diversa e sincrética. Uma harmonia com sotaque italiano, batuque do samba e fé que acabou atraindo uma boemia que lhe rendeu o título de Lapa Mineira. Essa boemia convivia em clima de profundo respeito com as famílias e uma pluralidade de manifestações religiosas. Para alguns, essa boemia deixa saudade eternizada em sambas e outras canções, para outros ela é sinônimo de violência e confusão que traduz justamente o contraponto da cidade planejada na tríade positivista de amor, ordem e progresso. A partir dos anos 1960, graças a fatores como o crescimento populacional e geográfico, a cidade passa por grandes transformações físicas que passaram a privilegiar o automóvel como meio de transporte. É o começo das construções do que são hoje o Complexo da Lagoinha (década de 1980) e a duplicação da Avenida Presidente Antônio Carlos (década de 2000). Fatos que levaram à morte da boemia e à segregação da região como porção central de Belo Horizonte. As mudanças trazidas por uma promessa de “progresso” acabaram trazendo problemas sociais como a concentração de moradores de rua e dependentes químicos. Políticas públicas e projetos de requalificação voltados para a região foram apresentados, mas alguns sequer saíram do papel. E por tal razão, memórias de precioso valor sentimental e histórico estão sendo perdidas. Assim como os fragmentos das demolições, as memórias estão se tornando cacos da história. A sua importância enquanto espaço de memória, patrimônio, paisagem e cultura

de Diretrizes Especiais (ADE) da Lagoinha. Em 9 de setembro de 1997, o CDPCM-BH

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autorizou o início dos estudos para o seu tombamento. Em 8 de setembro de 1998, o

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foi reconhecida na Lei municipal nº 7.166, de 27 de agosto de 1996, com a criação da Área

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Dossiê CDPCM-BH, em resposta à solicitação de tombamento de 116 de imóveis formulada pela então Secretaria Municipal de Indústria e Comércio, determinou a elaboração do dossiê do Conjunto Urbano do Bairro Lagoinha, o qual deveria ainda contemplar um levantamento mais minucioso sobre os imóveis de interesse cultural. Por razões alheias ao interesse da população, os trabalhos não foram concluídos no prazo estipulado para o ano de 1999. A falta de proteção cultural e regulamentação da ADE permitiram uma profunda alteração na paisagem da região entre os anos de 2005 e 2010, com a duplicação da Avenida Presidente Antônio Carlos. Essa obra não teve uma ação integrada entre os órgãos de patrimônio, de obras e de regulação urbana do município e destruiu ruas e quarteirões inteiros que marcariam o modo de percepção e apropriação da paisagem pelos habitantes da cidade. Além disso, fragmentou a região em duas, uma a oeste e outra a leste da avenida, deixando uma série de vazios urbanos que contribuíram para a degradação dos espaços de sociabilidade e para a desvalorização imobiliária. Em 2013, o Decreto municipal nº 15.252, de 28 de junho, desapropriou duas quadras da área da ADE para construir um centro administrativo municipal e, caso tivesse sido implementada, poderia levar à perda da identidade cultural da população e à extinção de parte da malha urbana (BERNARDES, BORSAGLI, 2014, p.62). O projeto da municipalidade sofreu contundentes críticas da sociedade civil e dos moradores, que se mobilizaram pelo cancelamento do projeto. A população saiu vitoriosa no dia 10 de abril de 2014, com o Decreto municipal nº 15.536, que revogou o ato expropriatório. A partir daí, teve início um processo encabeçado por diversos moradores em prol do reconhecimento oficial da região da Lagoinha como patrimônio histórico e cultural de Belo Horizonte. A ação teve resultado positivo com a deliberação do CDPCM-BH, do dia 19 de novembro de 2014, que aprovou o “Plano de Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte”, e determinou a continuação dos estudos para a proteção definitiva do Conjunto Urbano do Bairro Lagoinha iniciados em 1997. O trabalho foi concluído dois anos depois, levando à criação, através da Deliberação nº 193 de 14 de dezembro de 2016 do CDPCM-BH, do Conjunto Urbano bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates. Atendendo, assim, “a uma demanda social latente que é o ato de proteção a coroar o reconhecimento que a região já possui” (DPAM, 2016, p.9). A deliberação foi

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baseada em um Dossiê (DPAM, 2016) que estabeleceu diretrizes para projeto em imóveis e

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Dossiê espaços públicos e relacionou 471 (quatrocentos e setenta e um) bens10 como patrimônio cultural. O perímetro de proteção foi definido segundo critérios já adotados pelo CDPCMBH que teve como ponto de partida vias ou espaços polarizadores “entendidos como áreas possuidoras de valor histórico, simbólico e referencial capazes de atribuir ao espaço urbano um determinado grau de coesão” (PBH, 2016, 8). Esses critérios estão harmonizados com a atual política de preservação do patrimônio cultural, recomendada pelas cartas patrimoniais e pela UNESCO, em que se abandona proteção isolada de monumentos de elevado valor estético. A abordagem passa a articular a paisagem como espaço portador de valor cultural, ou seja, passou a considerar o “próprio território como depositário das representações e das relações constituídas por uma sociedade ao longo do tempo” (PBH, 2016, 20). O conceito de paisagem cultural busca identificar “as interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial desses conjuntos, muitas vezes ignoradas” (CASTRIOTA, 2013). O instrumento legal para essa abordagem é a Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 da UNESCO, promulgada no Brasil pelo Decreto federal nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977. Esse reconhecimento legal e ampliado de patrimônio permite uma proteção entre a ação humana e a natureza, incluído ainda o modo de vida local (CASTRIOTA, 2013). Nessa perspectiva, o Dossiê faz descrição pormenorizada dos logradouros, apresentando sua morfologia, traçando, declividade e pontos de destaque. Ao final, indica os marcos 11 e trajetos referencias para a população, dando destaque para as ruas Além Paraíba, Bonfim, Itapecerica, Patrocínio e Peçanha e para as Avenidas Presidente Antônio Carlos e Dom Pedro II. Desse modo, o Dossiê relaciona a ação humana com a paisagem natural de Belo Horizonte, dando destaque às vistas que o perímetro do Conjunto Urbano proporciona da Serra do Curral. Fato que justifica o estabelecimento de diferentes altimetrias para novas construções nos lotes inseridos no Conjunto de forma a preservar a relação do território da Lagoinha com a Serra do Curral. O Dossiê não leva em consideração os vestígios dos córregos invisíveis do Pastinho e da Lagoinha, nem da nascente deste último localizada no Conjunto IAPI. Por tal

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Sendo 7 imóveis, 3 praças e 2 árvores tombadas; 101 imóveis em processo de tombamento; 273 imóveis indicados para tombamento; 20 tiveram o registro documental concluído; 65 indicados para registro documental. Números expressivos que colocam a área, isoladamente, como a maior em extensão (aproximadamente 2.300 m 2) e em quantidade de imóveis da cidade. 11 São marcos referenciais em ordem de destaque dado pela população segundo o Dossiê (DPAM, 2016, 124): Santuário Nossa Senhora da Conceição dos Pobres, Cemitério do Bonfim, Complexo da Lagoinha, Escola Silviano Brandão, Casa da Loba, Praça Quinze de Junho, Peixarias, Praça Doze de Dezembro, Hospital Odilon Behrens, IAPI, Mercado da Lagoinha, Serra do Curral, Praça Mirante Carlos Prates (topônimo oficial Praça Presidente Castelo Branco).

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Dossiê razão, não formula diretrizes para intervenção e requalificação desses elementos da paisagem que conformou um dia a Vargem da Lagoinha e seus campos agrícolas. Por outro lado, o próprio Dossiê não pretendeu esgotar todo o patrimônio cultural existente na região da Lagoinha (PBH, 2016, p.9), mas inegavelmente é um elemento articulador entre outros trabalhos que podem ser realizados na região da Lagoinha. Nesse sentido, foi realizado, em 2019, o Projeto “Moradores – A Humanidade do Patrimônio” que buscou reviver as memórias de moradores, ex-moradores, trabalhadores e frequentadores da Lagoinha. Em conjunto com o resgate da memória, foi realizada, no mesmo ano, a Cartografia Cultural da Região da Lagoinha que identificou e mapeou as referências culturais da região. Ambos os projetos foram de iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte em conjunto com a NITRO História Visuais, no primeiro, e com a Peixe Vivo Histórias, no segundo. Ademais, são trabalhos complementares que buscam revelar o patrimônio cultural existente na Lagoinha. Nessa mesma perspectiva, o estudo da história e da toponímia dos logradouros é mais uma iniciativa, embora privada, para complementar os estudos até então realizados, como se verá a seguir.

A toponímia como um dos elementos da paisagem cultural A toponímia é uma área do conhecimento que estuda o léxico, a motivação ou a origem dos nomes próprios de lugar, ou seja, é o estudo linguístico e histórico dos nomes de lugares. Pensar a toponímia em uma região da cidade implica estudar a sua aplicação sobre os logradouros. Estes podem ser tanto um espaço ou terreno anexo a uma habitação particular, quanto um espaço comum e público que pode ser usufruído pelo povo de uma cidade. Os logradouros públicos podem ser alamedas, avenidas, becos, caminhos, chafarizes, escadarias, estradas, jardins, largos, parques, passarelas, praças, parques, ruas, travessas, túneis e viadutos, dentre outros, desde que reconhecidos pela administração de um município. Os logradouros recebem nomes que facilitam a sua identificação e, em uma cidade, aqueles que se configuram como espaços públicos podem ser objeto de ação de normas jurídicas que impõem, ou não, o nome próprio a um lugar. A imposição não é uma

história e afeto que dá sentido para as pessoas. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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um nome, criando uma denominação popular para o logradouro, esta sim, recheada de

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questão absoluta, pois a população de uma cidade pode desrespeitar a atribuição oficial de


Dossiê Não se pode olvidar que a cidade é um organismo vivo, que nasce, cresce, se torna adulta, idosa e, às vezes, acaba morrendo. Assim, ela é um espaço de encontros, desencontros e relações que, na maioria dos casos, encontra no espaço público um ambiente favorável e determinante para sua concretização. No espaço público, de uso comum e de posse de todos, é onde se desenrolam atividades de convívio e trocas entre os diferentes grupos heterogêneos que compõem o estrato social de uma cidade. Os logradouros são elementos articuladores da mobilidade das pessoas na cidade, demarcando o modo como se forma a cultura, a estrutura urbana, a sua representação e a imagem da cidade (LYNCH, 1999). De qualquer modo, o topônimo pode constituir memórias da história, do idioma, da cultura e, por vezes, de um passado esquecido. O seu estudo possibilita uma espécie de resgate linguístico, histórico e social do nome atribuído ao logradouro, permitindo recuperar o significado e uma apropriação maior pelo lugar. Com ele, outrossim, é possível recordar certas datas que promovem mudanças na história social; perpetuar características do ambiente físico (vegetação, hidrografia, morfologia, fauna, flora, entre outros); descobrir a formação étnica, econômica e religiosa de um grupo social. Mesmo podendo sofrer transformações com o tempo, os topônimos codificam símbolos da língua que é a primeira manifestação cultural de toda sociedade. Portanto, o topônimo é um instrumento de projeção da cultura de um povo em determinado tempo e espaço. Traduz-se em verdadeira crônica de um lugar, pelas informações vitais da cultura que guardam os logradouros. Verdadeiro patrimônio cultural de uma sociedade, ou melhor, um patrimônio linguístico-cultural que permite aos habitantes que transitam pelos logradouros observar e entender a cidade. A localização dos caminhos públicos do Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates é uma tentativa de conectar a razão das homenagens com a história da cidade e resgatar os nomes originais de alguns logradouros que, por conveniência política, mudaram de nome, o que às vezes provoca profundo sofrimento aos moradores que criam laços afetivos com os topônimos. Há uma imensidão de histórias guardadas em cada um dos retalhos urbanos da Lagoinha. Nesse sentido, os significados das toponímias auxilia o entendimento dos fatos que estão ocultos na paisagem. Ou seja, ajudam a contar um pouco

mutilaram e remodelaram o conjunto ao longo do tempo. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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manifestações socioeconômicas e culturais que resistiram às intervenções urbanas que

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de como foi o passado e enxergar o invisível além dos marcos arquitetônico e dos locais de


Dossiê Esta ideia está em perfeita consonância com o Dossiê sobre o conjunto urbano que aponta “a afetividade e o carinho demonstrado por seus moradores em diversas tentativas de preservação da memória local” (PBH, 2016, p.119) e o que traduz a “importância da salvaguarda de um pedaço significativo da história de Belo Horizonte” (PBH, 2016, p.119). Interessante é que a pesquisa sobre a toponímia dos logradouros identificou antropotopônimos12 e historiotopônimos13 que homenageiam pessoas e eventos históricos decisivos para a formação de Belo Horizonte, dentre outras denominações significativas para a fixação da memória local. Para entender como estas homenagens foram feitas é preciso percorrer, ainda que brevemente, o desenvolvimento urbano da região. É o que se fará na próxima seção.

O desenvolvimento urbano e toponímico da Lagoinha O perímetro do Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates abarca 139 logradouros 14 , 106 tiveram abertura autorizada pelo poder público, ou seja, foram planejados segundo a lei de uso e ocupação vigente à sua época. Os demais 33 surgiram livre e desordenadamente, decorrente de invasões daqueles mais pobres que ocuparam a Vila Senhor dos Passos. Todos os logradouros são exclusivos ou predominantes em 6 bairros oficiais que compõem o conjunto, sendo parte dos Bairros Carlos Prates, Lagoinha e São Cristóvão, um quarteirão do Bairro Santo André e a totalidade do Bonfim e da Vila Senhor dos Passos. Na pesquisa no perímetro do Conjunto Urbano encontrei 13 tipos diferentes de topônimos que refletem sua diversidade e pluralidade, sendo: 40 antropotopônimos (28,78%), 1 astrotopônimo15 (0,72%), 1 cardinotopônimo16 (0,72%), 40 corotopônimos17 (28,78%), 3 etnotopônimos18 (2,16%), 2 fitotopônimos19 (1,44%), 5 geomorfotopônimos20 (3,6%), 6 hagiotopônimos 21 (4,32%), 5 hidrotopônimos 22 (3,6%), 7 historiotopônimos

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Topônimo motivado por nomes próprios de pessoas. Topônimo relativo a movimentos de cunho histórico-social e aos seus membros, assim como às datas correspondentes. 14 São 1 alameda, 6 avenidas, 24 becos, 1 parque, 1 passarela, 13 praças, 81 ruas, 5 travessas, 1 trincheira e 5 viadutos. 15 Topônimo relativo a corpos celestes em geral. 16 Topônimo relativo às posições geográficas em geral. 17 Topônimo relativo a nomes de cidades, países, estados, regiões e continente. 18 Topônimo referente a elementos étnicos, isolados ou não. 19 Topônimo motivado pela vegetação. 20 Topônimo referente à geografia da região. 21 Topônimo relativo aos santos e santas do hagiológio romano. 22 Topônimo motivado por elementos hídricos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Dossiê (5,04%), 9 litotopônimos23 (6,47%), 19 numerotopônimos24 (13,67%) e 1 sociotopônimo25 (0,72%). Para entender como os topônimos são um elemento do patrimônio cultural, é preciso relacioná-los com o desenvolvimento do Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates. Belo Horizonte é uma cidade planejada

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e pensada segundo princípios

republicanos e positivistas, criada para traduzir a importância que Minas Gerais tinha no final do século XIX. Aarão Reis explicou para o então Governador Afonso Pena, na mensagem do dia 23 de março de 1895, a organização da planta geral dividindo a capital em zona urbana, suburbana e rural. A área urbana composta por ruas que se cruzam em ângulos retos, e por algumas avenidas que as cortam em ângulos de 45º (BICALHO, 1895, p.59-60). Por sua vez, a zona suburbana, envolvida por uma zona rural reservada aos sítios destinados à pequena lavoura, teria quarteirões irregulares, lotes de áreas diversas, e as ruas com traçado menos rígido (BICALHO, 1895, p.60). Aarão Reis cuidadosamente escolheu os topônimos das praças, avenidas e ruas, homenageando as cidades, os rios, as montanhas, as datas históricas mais importantes de Minas Gerais e do Brasil, bem como “alguns cidadãos que, por seus serviços relevantes, merecem ser perpetuados na lembrança do povo” (BICALHO, 1895, 60). Ao analisar a Planta desenhada por Aarão Reis e aprovada por Afonso Pena no dia 15 de abril de 1895 (MINAS GERAIS, 1895), encontram-se ruas com homenagens aos metais e minerais na zona suburbana. O plano de Aarão Reis não foi executado na sua integralidade, por isso nem todas as ruas previstas foram abertas, em especial na zona suburbana em que o traçado respeitou a topografia ao invés do desenhado na prancheta. No perímetro do conjunto, 27 logradouros, 19,42%, foram abertos pela Comissão Construtora entre 1895 e 1897 e eles observam a tipologia prevista por Aarão Reis no que diz respeito à toponímia. Os corotopônimos foram contemplados em 16 logradouros, ruas Abaeté, Além Paraíba, Aiuruoca (renomeada para Turvo27, em 1925), Bonfim, Caxambu, Formiga, Itabira (renomeada para Adalberto Ferraz, entre 1912 e 1920), Itapecerica (dividida em duas em 1910, permanecendo uma parte com a mesma denominação e a outra com o nome de Praça 23

Topônimo de índole mineral, relativo, também, à constituição do solo. Topônimo relativo a números. 25 Topônimo relativo às atividades profissionais, aos locais de trabalho e aos pontos de encontro dos membros de uma comunidade. 26 Belo Horizonte é uma cidade planejada, mas não foi a primeira do Brasil. A primeira é a cidade de Salvador, projetada por Luís Dias em 1549. Depois vieram as cidades de Teresina (1852) e Aracajú (1855), Belo Horizonte (1897), Goiânia (1933), Boa Vista (1944), Maringá (1947), Brasília (1961) e Palmas (1990). Assim, Belo Horizonte é a 4ª cidade planejada do Brasil, mas é a primeira do período republicano. 27 O nome atual do município é Andrelândia. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Dossiê da Lagoinha, esta que, posteriormente, foi renomeada para Vaz de Melo, em 1935), Jaguari28, Mariana, Patrocínio, Peçanha, Ponte Nova, Rio Novo, Serro e Sete Lagoas. Os litotopônimos foram escolhidos para a Praça Ametista (renomeada para Presidente Castelo Branco, na década de 197029); e Ruas Cinábrio, Ortose (renomeada para Elias Mussi Abuid, em 1970) e Rutilo (renomeada para Comendador Nohme Salomão, em 1967). Duas pessoas, antropotopônimos, foram homenageadas na Rua Padre Paraíso e na Avenida Cristóvão Colombo (renomeada para Bias Fortes, em 1929). Apenas 1 hidrotopônimo e 1 historiotopônimo foram contemplados, o primeiro é Rua Lambari30 e o segundo é Avenida Dezessete de dezembro. É interessante que dois logradouros fogem da lógica, são eles a Avenida do Ramal (renomeada para Nossa Senhora de Fátima, em 1966) e a Rua Pedreira da Viação (renomeada para Fagundes Varela, em 1932). Ambos constituem sociotopônimos e refletem elementos importantes do período da construção de Belo Horizonte. Ramal se refere à estrada de Ferro que ligou Belo Horizonte a Sabará, já a Pedreira da Viação era o caminho que ligava a Rua Itapecerica à atual Pedreira Prado Lopes, de onde eram retiradas pedras para a construção da cidade. Entre 1895 a 1909, a região começou a ser ocupada, em especial no entorno da Rodoviária e onde é o Complexo da Lagoinha, com a predominância de edificações de uso misto para pequenos comércios, residências ou pensões de aluguel barato para os imigrantes que chegavam à capital. No restante da região, havia a predominância de lotes coloniais, que mediam entre 1.000 e 5.000 metros quadrados, que foram destinados a chácaras de lazer e à pequena produção agrícola. No entorno das pedreiras da Lagoinha e Prado Lopes havia pequenas cafuas onde residiam os operários dessas minerações. Em 1898, o primeiro prefeito da Capital, Adalberto Ferraz, estimulou a ocupação ordenada da cidade pelos mais pobres para evitar a favelização. Assim, os trabalhadores, que não podiam nem conseguiam comprar lotes na zona urbana, puderam adquirir imóvel próprio a preço módico, sob a condição de que as cafuas fossem demolidas e as casas construídas em curto prazo (GUIMARÃES, 1991, p.91). O incentivo foi possível através do Decreto nº 1.211, de 31 de outubro de 1898, que possibilitou que lotes na Lagoinha fossem vendidos para os moradores das primeiras favelas de Belo Horizonte: a do Leitão

O nome atual do município é Camanducaia. O local é conhecido popularmente como Praça Pisa na Fulô ou Mirante Carlos Prates 30 Em 16 de setembro de 1901 foi fundado um município mineiro com o nome de Lambari. 29

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(que esteve nas imediações do Mercado Central) e a do Alto da Estação (que ocupou o


Dossiê entorno da Rua Sapucaí). A política pública do prefeito Adalberto Ferraz ajudou a acabar com as primeiras favelas de Belo Horizonte, mas não foi suficiente para resolver a demanda por habitação e moradia. Por isso se verifica a preocupação dos prefeitos seguintes com a necessidade de dotar a cidade com infraestrutura adequada para os imigrantes. Na década de 1910, surgem 4 logradouros, ou 3,6% do total, Ruas Baritina (dividida em 2, uma parte permaneceu Baritina e outra recebeu o nome de José Ildeu Gramiscelli, em 1971), Coromandel (renomeada para Itatiaia, em 1976), Traíras e Serpentina. Todas são resultado da divisão de lotes coloniais em porções menores que contavam com 300 ou 600 metros quadrados. A demanda de residências estimulou a incorporação à zona suburbana das ex-colônias agrícolas31, através da Lei municipal nº 55, de 5 de fevereiro de 1912, de modo a permitir abertura de logradouros e o parcelamento de imóveis, dando origem, dentre outros, ao Bairro Carlos Prates. Em 1914, tem-se início a ocupação da Vila Senhor dos Passos 32 com duas famílias. No local havia uma fazenda que pertenceu à Família Mata Machado que a doou para a igreja no intuito de que o terreno fosse repassado às famílias carentes (SANTOS, 2006). A vila se consolida no tecido urbano entre as décadas de 1930 e de 1940, com a abertura da Rua Pedro Lessa, quando se separa da Pedreira Prado Lopes. Muitos dos seus logradouros homenageiam santos cristãos e lideranças comunitárias que marcaram a história do local, sendo: 5 antropotopônimos (Becos Saldanha Marinho, Sargento João Beraldo, Sargento São Beraldo e Tancredo Neves e Rua Vivina Faria do Nascimento); 1 corotopônimos (Beco Ibiá); 1 etnotopônimo (Beco Itapiranga A); 2 geomorfotopônimos (Beco da Passarela e Rua Nova Senhor dos Passos); 3 hagiotopônimos (Becos Santa Inês, São Jerônimo e São Marcos); 2 historiotopônimos (Becos Quinze de Abril e Vinte e Um de Abril); 2 litotopônimos (Becos Cinábrio e Beco Ametista); e 17 numerotopônimos (Becos 612, 689, 3284, 3286, 3287, 3290, 3293, 3296, 3297 e 3302; Praças 3156 e 4965; Travessas 614, 620, 621, 783 e 3289). No final da década de 1910, a demanda por moradia não havia sido suprida. Nesse sentido, a Lei municipal nº 178, de 6 de outubro de 1919, deu poderes ao prefeito para criar Vilas Proletárias com lotes de 300 a 600 metros quadrados em pontos que achasse conveniente. A norma ajudou a constituir parte dos atuais bairros Bonfim, Santo André,

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Foram as colônias Bias Fortes, Américo Werneck, Carlos Prates e Adalberto Ferraz e o Calafate. Em função dessa topografia o local recebeu originalmente o topônimo “Buraco”. E em função das bravas mulheres que moravam no local e brigavam muito com as mulheres que se engraçavam com seus companheiros e maridos o local se tornou “Quente”. Daí o local passou a ser chamado de Buraco Quente. Este apelido durou até a década de 1980, quando foi construída a Capela de Nosso Senhor dos Passos, que pertence à paróquia de Nossa Senhora da Conceição. 32

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Dossiê Aparecida, Bom Jesus e Concórdia. Dessa forma, na década de 1920, foram abertos 46 logradouros, 33,09% do total, e mais 10, ou 7,19%, na década de 1930, o que consolida 87,05% do tecido urbano do perímetro do conjunto. Rapidamente a Lagoinha se tornou uma das regiões mais florescentes da Capital (BARRETO, 1995, p.94), tendo na diversidade cultural dos imigrantes o catalisador necessário para dar o tom da irreverência e transgressão dos valores da oficial zona urbana. O crescimento populacional trouxe problemas sanitários com o mau cheiro exalado pelo esgotamento nos córregos e a falta d’água. O problema foi solucionado na segunda metade da década de 1930 devido a dois fatores. O primeiro foi a canalização dos córregos do Pastinho e da Lagoinha onde foram abertas as avenidas Dom Pedro II e Presidente Antônio Carlos, respectivamente. O segundo foi a construção dos reservatórios dos Menezes (situado na Rua Prado Lopes nº 195) e da Lagoinha (situado na Rua Itapagipe nº 49). Dentre os logradouros que surgiram entre as décadas de 1920 e 1930, os corotopônimos apareceram em 16 oportunidades: Ruas Arceburgo, Baependi, Borda da Mata, Botelhos, Capitólio, Entre Rios, Espinosa, Fortaleza33, Guapé, Guarará, Ibiá, Jequeri, Miraí, Pedro Leopoldo, Resende Costa e Resplendor. Cidades de outros estados são homenageadas em 4 oportunidades Ruas Arari34, Jaguarão35, Paranaguá36 e Piratininga37, e um distrito situado no município mineiro de Antônio Carlos é homenageado na Rua Campolide. Seguindo a lógica de Aarão Reis aparecem homenagens, também, para 4 litotopônimos (Ruas Anfibólios, Ardósia, Grupiara e Lazulita); para 13 antropotopônimos (Ruas Alexandre Stockler, Casimiro de Abreu, Evaristo da Veiga, Frei Caneca, Machado de Assis, Pedro Lessa, Pereira Passos, Prado Lopes, Rodrigues Alves e Saldanha Marinho e Avenidas Dom Pedro I (renomeada para Presidente Antônio Carlos em 1946), Dom Pedro II e José Bonifácio); e para 3 hidrotopônimo (Ruas Caparaó, Lagoa Santa38e Paquequer) e para 2 historiotopônimos (Praças Doze de Dezembro e Quinze de Junho). É nesse período que aparecem topônimos distintos da proposição de Aarão Reis, sendo 1 astrotopônimo (Rua Dalva); 2 hagiotopônimos (Ruas São Salvador e São Jorge), 2 fitotopônimos (Ruas Araribá e Magnólia); 1 numerotopônimo (Rua Gama); 3 etnotopônimos: Ruas Acarapé, Itapiranga e Itatuba (renomeada para Doutor João Carvalhaes de Paiva, em 1967); e 1 geomorfotopônimo (Praça Bonfim). 33

O nome atual do Município é Pedra Azul. Município situado no Maranhão. 35 Município situado no Rio Grande do Sul. 36 Município situado no Paraná. 37 Município situado São Paulo. 38 O Município de Lagoa Santa surge em 1938. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Dossiê Ainda na década de 1930, surge o topônimo Bonfim para designar o Cemitério Municipal, em razão da devoção dos trabalhadores do local ao Senhor do Bonfim. O Cemitério se destaca na paisagem por situar em local alto e arejado, ao sopé de uma colina, e com visão panorâmica para a cidade. A necrópole foi projetada espelhando-se no traçado geométrico da cidade de Belo Horizonte compreendida dentro da Avenida Dezessete de dezembro, com quadras em formato de tabuleiro, onde pobres e ricos poderiam descansar lado a lado. Na necrópole há duas alamedas principais, sendo uma delas em perfeito alinhamento com a Avenida Bias Fortes. Outro fato interessante é a tentativa de parcelamento e urbanização da Vila Senhor dos Passos, em 1932, com logradouros que homenageiam escritores brasileiros. A topografia acidentada dificultou a conclusão do parcelamento devido ao alto custo para promover a terraplanagem dos logradouros. Na década de 1940, são abertos mais 5 logradouros, 3,6%, e mais 3 na década de 1950, 2,16% do total. Embora tímido, o desenvolvimento se dá em uma época em que a Lagoinha passa por uma grande transformação que teve início na administração do prefeito Juscelino Kubitschek (1940-1945), que realizou grandes obras que mudaram radicalmente a dinâmica da Capital. Nesse ideal, para embelezar o caminho para a Pampulha, era forçosa a melhoria da infraestrutura da Lagoinha. O amontoado de cafuas sem saneamento atrás de um matagal, conhecido como Pedreira Prado Lopes, foi derrubado para dar lugar ao Bairro Popular (inaugurado em 1947 e concluído apenas em 1951), hoje conhecido como Conjunto do IAPI (Instituto de Aposentados e Pensões dos Industriários). Sem sombra de dúvida, a construção do conjunto foi uma tentativa de modificar o perfil boêmio da região (CARNEIRO, 2001, p.35). A “antiga” e “imoral” Lagoinha estava sendo remodelada para ser mais um novo cartão postal de Belo Horizonte, verdadeiro projeto de requalificação que criou uma nova centralidade na região. Ao lado do IAPI foi inaugurado o Hospital Odilon Behrens, em 1944, o Mercado Popular da Lagoinha, em 1951, o Colégio Municipal de Belo Horizonte, em 1954, e o Departamento de Investigações da Polícia Civil de Minas Gerais, em 1958. Em outra centralidade da região da Lagoinha, foi inaugurada a Primeira Rodoviária de Belo

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A Feira dos Produtores foi transferida para o bairro Cidade Nova, após as desapropriações para a construção do metrô na década de 1980. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Horizonte, em 1941, atrás da Feira Permanente de Amostras, e a Feira dos Produtores39, em


Dossiê 1949, no início da Avenida Dom Pedro II. No período das décadas de 1940 e 1950, os antropotopônimos aparecem 5 vezes (Praça Agostino Martini; Ruas Alberto Gualberto, Professor Corrêa Neto, Ruy Lage e Sebastião de Melo); os geomorfotopônimos 2 vezes (Parque e Praça São Cristóvão); e 1 numerotopônimo (Rua 4233). A década de 1960 é marcada por ideias radicais e conservadoras impostas à região da Lagoinha e que lhe deixaram chagas que até hoje não foram curadas. A região convivia com a superlotação das vias de trânsito por dois motivos. O primeiro eram as passagens de nível das ferrovias Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) e a Rede Mineira de Viação (RMV). O segundo era a Rodoviária, que estava com sua capacidade esgotada. Embora a região estivesse consolidada, a solução foi a unificação dos trilhos e a construção de 2 viadutos, fatos que isolaram a Lagoinha da sua parte situada na área central da Capital (BERNARDES, BORSAGLI, 2014, p.53-55) e abrem as portas para as profundas mudanças que alteraram sua configuração física nos anos seguintes. Com respeito à Rodoviária, optou-se pela sua ampliação, para isso foi demolida a Feira Permanente de Amostras. Os anos 1970 começam com a inauguração da atual Rodoviária e, por isso, eram necessárias melhorias no tráfego na imediação, ou seja, na Lagoinha. Para isso foram feitas inúmeras desapropriações nas imediações dos Viadutos, do Túnel Prefeito Souza Lima e da própria Rodoviária. Na região do Carlos Prates, outras desapropriações foram feitas para a construção do Viaduto Dona Helena Greco. Pelo menos 5 (cinco) quarteirões foram suprimidos junto com logradouros e a memória dos boêmios, incluindo a implosão da antiga Praça Vaz de Mello40. Com a redemocratização, o poder público reconhece nos anos 1990, silenciosamente, seus equívocos, e inicia o discurso de necessidade de requalificação da região da Lagoinha, apontados na primeira seção deste texto que não foram concluídos. Sem proteção, novas intervenções são feitas sem qualquer cuidado com o patrimônio, demolindo-se um quarteirão da Rua Paquequer para criação de uma praça e outros trechos da Rua Itapecerica para uma passarela e alça de viaduto. A mesma falta de cuidado se observou nas obras de mobilidade para a Copa do Mundo FIFA de 2014, onde diversos quarteirões no entorno da Avenida Presidente Antônio Carlos são desapropriados e

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A praça ressurge nos anos 1990 com a demolição do primeiro quarteirão da Rua Itapecerica para ampliação do Complexo Viário da Lagoinha. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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demolidos para a sua duplicação.


Dossiê No período de fragmentação da região da Lagoinha (entre 1960 e 2010) no perímetro do Conjunto Urbano surgiram 11 logradouros, sendo 7 sem contribuir para a fixação da memória local após tanta destruição. Os antropotopônimos aparecem 4 vezes (Alameda Vereador Geraldo Silva de Oliveira; Passarela Governador Ozanam Coelho; e Senador Lúcio Bittencourt; e Viaduto Presidente Castelo Branco – renomeado para Dona Helena Greco em 2014); sendo 3 corotopônimos (Viadutos Angola e Senegal, Praça do Vaticano); 3 numerotopônimos (Viaduto B – renomeado para Sarah Kubitscheck, em 1996 – e Oeste, Trincheira Três Mil Trezentos e Quarenta – renomeado para Horácio de Miranda Pereira, em 2019); e 1 sociotopônimo (Praça do Peixe – renomeado para Elifas Levi, em 2009). Fica claro que a atribuição da toponímia refletiu o contexto social e político do período em que foram atribuídas. Cumpre, então, apresentar e relacionar as homenagens que vão ao encontro com a proposição do artigo, isto é, indicar os logradouros cujos topônimos são elementos da paisagem e do patrimônio cultural do Conjunto Urbano.

A toponímia como articulador do patrimônio cultural da Lagoinha Diante da evolução do desenvolvimento dos logradouros, foi mostrado um pouco do padrão toponímico que marcou as homenagens e como o tecido urbano foi construído e modificado. Os logradouros isoladamente constituem retalhos que, se conectados, em virtude do seu significado, revelam a matéria da memória de uma sociedade. No caso do Conjunto Urbano, para juntar as peças, os logradouros foram classificados em 2 categorias: (i) topônimos consolidados no imaginário cultural que merecem ser preservados; e, (ii) topônimos não consolidados que merecem revisão por serem desconhecidos no imaginário local ou por não contribuírem para a fixação da memória local ou da cidade. Na primeira categoria foram identificados 114 logradouros (82,01% do Conjunto Urbano) que, além de fixados na memória local, cumprem com o planejado para Belo Horizonte, homenageiam algumas das cidades, dos rios, das montanhas, dos metais, dos minerais, das plantas, das personalidades e das datas históricas mais importantes de Minas Gerais e do Brasil. Desse total, 13 estão relacionados diretamente com a história da

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quadro a seguir:

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mudança da Capital e da construção de Belo Horizonte, cujos fatos estão sumarizados no


Dossiê Quadro 1 – Topônimos que contam a história da mudança da Capital e da construção de Belo Horizonte Data 21/04/1792

Fato Histórico O atual município de Resende Costa é considerado o berço dos inconfidentes, movimento que defendia, dentre outros assuntos, a mudança da capital mineira para São João Del Rei. Agostinho Francisco de Souza Paraíso foi um padre e político que aprovou um projeto que determinou a mudança da capital mineira para um lugar mais central do estado. O projeto foi vetado pelo governador José da Costa Machado de Sousa Ribeiro alguns dias depois. Joaquim Saldanha Marinho foi um jornalista político pernambucano responsável pela redação do anteprojeto da primeira Constituição Republicana do Brasil.

27/11/1867

24/02/1891

24/02/1891

Alexandre Stockler Pinto de Menezes foi um médico e político mineiro que atuou de forma ativa na aprovação da primeira Constituição Republicana do Brasil. Data que foi aprovada a primeira Constituição de Minas que, dentre outras disposições, determina a mudança da capital de Ouro Preto.

15/06/1891

17/12/1893

05/03/1894

15/04/1895

1894-1897

1894-1897

12/12/1897

Data em que Belo Horizonte é escolhida para receber a Nova Capital. As localidades Várzea do Marçal (São João Del Rei), Barbacena, Juiz de Fora e Paraúna (Presidente Juscelino) participaram na escolha. Data em que as obras de construção da Belo Horizonte se iniciam na Lagoinha junto à ponte da Estrada de Venda Nova também chamada de Ponte da Lagoinha, às margens do Ribeirão Arrudas. Data em que foi aprovada por Afonso Pena a planta de Belo Horizonte desenhada por Aarão Reis. Antonio Prado Lopes foi um engenheiro, membro da Comissão Construtora da Nova Capital e explorou a Pedreira que leva seu nome. Em 1910 assumiu interinamente o governo de Minas Gerais. As pedras retiradas da Pedreira Prado Lopes e Lagoinha eram transportadas por um ramal férreo pela Rua Itapecerica. Coincidência ou não, esse topônimo significa em tupi-guarani “pedras que rolam”. Data em que foi inaugurada Belo Horizonte.

1893-1898

Chrispim Jacques Bias Fortes foi um político que presidiu a Assembleia Constituinte que determinou a transferência da Capital de Ouro Preto. Era o Governador de Minas Gerais quando se concretizou a transferência da capital para Belo Horizonte. 29/12/1897 Adalberto Ferraz Dias da Luz foi um advogado, membro da Comissão Construtora da Nova Capital e foi nomeado o primeiro prefeito de Belo Horizonte. Fonte: elaborado pelo autor.

Logradouro Rua Resende Costa, Bonfim.

Rua Padre Paraíso, Carlos Prates.

Rua e Beco Saldanha Marinho, Lagoinha e Vila Senhor dos Passos. Rua Alexandre Stockler, Lagoinha. Praça Quinze de junho, Bonfim, Lagoinha e Santo André. Avenida Dezessete de dezembro (Contorno). Locais próximo ao Metro Lagoinha e fora do Conjunto. Rua e Beco Quinze de abril, Lagoinha e Vila Senhor dos Passos. Rua Prado Lopes, Santo André. Rua Itapecerica, Lagoinha.

Praça Doze de Dezembro, Bonfim. Avenida Bias Fortes, Carlos Prates.

Rua Adalberto Lagoinha.

Ferraz,

A fixação da memória local se dá também com homenagens a pessoas, países e nacionalidades que fizeram parte da história e formação do espaço. Foram encontrados 12 logradouros que, longe de enumerar todas as homenagens relevantes, são um bom

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indicativo para a região da Lagoinha:

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Dossiê

Quadro 2 – Topônimos relativos a nacionalidades e a pessoas importantes para a trajetória da Lagoinha Logradouro Praça Agostino Martini Rua Alberto Gualberto Viaduto Angola Praça Coronel Guilherme Vaz de Melo

Rua Elias Mussi Abuid Rua José Ildeu Gramiscelli Praça Professor Corrêa Neto Beco Sargento João Beraldo Beco Sargento São Beraldo Rua Sebastião de Melo Viaduto Senegal Rua Vivina Faria do Nascimento Fonte: elaborado pelo autor.

Razão da homenagem Imigrante italiano que fundou diversos empreendimentos dentre eles a Casa do Vinho. Jornalista e pioneiro na indústria de carimbos. Foi morador da Rua Bonfim. Homenagem à origem dos trabalhadores africanos que vieram para o Brasil. Comerciante nascido no Arraial do Curral Del Rey que muito trabalhou para o engrandecimento de Belo Horizonte e da Lagoinha. Foi proprietário da Chácara do Sapo que deu lugar ao Parque Municipal. Imigrante sírio que fundou uma pequena loja de fazendas e armarinhos na Rua Itapecerica. Comerciante e descendente de italianos que faleceu tragicamente em um acidente de avião. Mineiro, funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil e mestre por vocação. Foi um dos primeiros moradores do Conjunto IAPI. Morador da Vila Senhor dos Passos. Morador da Vila Senhor dos Passos. Morador da Lagoinha. Homenagem à origem dos trabalhadores africanos que vieram para o Brasil. Líder comunitária da Vila Senhor dos Passos.

A geografia e marcos da paisagem do Conjunto são homenageados em 6 oportunidades: Quadro 3 – Topônimos relativos a pontos relevantes da região da Lagoinha Logradouro

Razão da homenagem

Praça Bonfim Rua Itatiaia

É uma homenagem ao Cemitério do Bonfim. Homenageia a Rádio Itatiaia, inaugurada no dia 20 de janeiro de 1952 pelo jornalista e radialista Januário Laurindo Carneiro, uma das principais emissoras de Minas Gerais. Rua Nova Senhor dos Passos É uma alusão à Vila Senhor dos Passos. Beco da Passarela É uma referência a uma passarela que existe próxima ao logradouro. Parque e Praça São Cristóvão Homenageiam a paróquia cuja sede fica no Conjunto IAPI. Fonte: elaborado pelo autor.

O Conjunto Urbano e toda região da Lagoinha são fortemente marcados pelo sincretismo religioso, onde o catolicismo e as religiões de matriz africana são as mais expressivas. Contudo, a posição hegemônica da Igreja Católica, na formação da sociedade brasileira, domina 8 logradouros, sendo: Avenida Nossa Senhora de Fátima41; Ruas São

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Originalmente essa avenida recebeu o nome de Ramal. Em 1937 foi atribuído o topônimo Mauá em homenagem a Irineu Evangelista de Sousa (Visconde de Mauá) que foi o primeiro brasileiro a construir uma ferrovia no país. Com a denominação de Mauá o logradouro ficou famoso no imaginário da cidade, por abrigar diversas casas de prostituição no entorno da antiga Praça Vaz de Mello. Para acabar com a má fama alguns moradores fizeram abaixo assinado para a Câmara Municipal exigindo a mudança de nome.

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Dossiê Jorge42 e São Salvador; Becos Santa Inês, São Jerônimo e São Marcos; Praças do Vaticano e Vinte e Cinco de Dezembro. Um fato interessante é que a mencionada tentativa de parcelamento da Vila Senhor dos Passos trouxe topônimos que homenageiam 4 grandes escritores brasileiros nas Ruas Casimiro de Abreu, Evaristo da Veiga, Fagundes Varela e Machado de Assis. Por fim, os quadros acima refletem topônimos que podem, em conjunto, constituir percursos turísticos ou constituir programas de educação patrimonial. Os percursos devem contemplar, além dos fatos históricos, das pessoas, dos lugares e das múltiplas manifestações religiosas, tanto os bens materiais de interesse cultural quanto o patrimônio cultural imaterial. Casais namorando escondido, assassinatos, moradia de personalidades da nossa história, serestas e encontros musicais, desfiles, brigas, pratos, bebidas, porres, fantasmas, lendas urbanas, amores e desamores, encontros e despedidas. A Lagoinha é cenário do cotidiano de uma urbe, com fatos ordinários tão comuns que o seu resgate os torna especiais na memória daqueles que viveram e daqueles que não viveram e precisam conhecer a outra face do viver belo-horizontino. No que diz respeito à segunda categoria, topônimos não consolidados, a pesquisa identificou 25 logradouros, 17,98% do total, que estão aptos a receber algum tipo de toponímia que possa ser significativa para a história da Lagoinha ou fixação da memória local. São eles 17 numerotopônimos (Becos 612, 689, 3284, 3286, 3287, 3290, 3293, 3296, 3297 e 3302; Praças 3156 e 4965; Travessas 614, 620, 621, 783 e 3289) situados na Vila Senhor dos Passos; 1 antropotopônimo (Passarela Governador Ozanam Coelho) situado na Lagoinha; e, 2 antropotopônimos (Alameda Vereador Geraldo Silva de Oliveira e Trincheira Horácio de Miranda Pereira) situados no Carlos Prates. Para os 4 logradouros sugere-se, desde já, a alteração: Praça Elifas Levi para o nome popular Praça do Peixe; Praça Presidente Castelo Branco para um dos nome populares Praça Pisa na Fulô ou Mirante Carlos Prates; Rua 4233 para Rua Naicyr Gomes, em função do condomínio existente no lugar; Rua Comendador Nohme Salomão para o nome popular Rua Rutilo; e Rua Doutor João Carvalhais de Paiva para o nome popular Rua do Hospital. Para que isso se efetive é necessária edição de lei pela Câmara Municipal que deve

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Conhecido como Ogum no candomblé e na umbanda.

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contar com amplo debate popular, dando voz aos moradores desses logradouros.


Dossiê

Conclusão O conceito de paisagem permite a compreensão do patrimônio natural, cultural, material e imaterial em conjunto. Essa visão permite a inclusão de diversos elementos que conjugados mostram que o patrimônio é vivo, dinâmico e interdependente. Nesse sentido, os logradouros e a toponímia são elementos articuladores das manifestações humanas e da imagem da cidade. Ainda, constituem memórias da história, do idioma, da cultura e, por vezes, de um passado esquecido que demarcam a forma como a cultura é produzida. Este artigo tentou introduzir a discussão da consideração dos topônimos como elementos da paisagem cultural e, por consequência, integrantes do patrimônio cultural. Os argumentos que trouxeram essa discussão não são definitivos, contudo, dignos de consideração pelos estudiosos do patrimônio. Ainda, trazem subsídios para orientar a descoberta das toponímias existentes e analisar se elas fazem sentido para todo e qualquer conjunto patrimonial. Especificamente no caso do Conjunto Urbano bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates, a pesquisa analisou 139 logradouros que representam 0,87% do total de 15.992 existentes na cidade de Belo Horizonte, e identificou no desenvolvimento do Conjunto Urbano, a produção de um patrimônio cultural imensurável, não apenas na natureza, bens materiais e imateriais, mas também nos topônimos. Os elementos desse patrimônio permitem contar a história não só da Lagoinha, mas de parte de Belo Horizonte. A escolha da Lagoinha para abrigar os topônimos relativos ao processo da mudança da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte já lhe concedem mais um título o “berço das homenagens à fundação de Belo Horizonte”. Essas homenagens se misturam com outras relativas à cultura de resistência e de afeto das pessoas que formaram a região da Lagoinha. Assim, algumas lideranças comunitárias, imigrantes e operários são homenageadas em conjunto com a religiosidade, geografia e atividades profissionais encontradas no perímetro estudado. No período entre 1895 e 1960, percebe-se uma sinergia do poder público com respeito ao plano de Aarão Reis e a fixação da memória local. Os corotopônimos e litotopônimos, além de terem sido apropriados pela população cumprem com o papel que

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gerais.

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aquele engenheiro almejou para Belo Horizonte, ou seja, uma homenagem às minas que são

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Dossiê Outra conclusão é que os logradouros reunidos ajudam a contar a história da formação de Belo Horizonte, mas para que isso ocorra é imperioso a apropriação desse bem cultural pela população. Incluí-los nas diretrizes de intervenções pode ser útil para indicar instrumentos para valorização dos topônimos e auxiliar na apropriação, pelo cidadão, desse rico patrimônio cultural. Por fim, recomenda-se que os órgãos do patrimônio cultural dos níveis federal, estadual e municipal, considerem os topônimos dos logradouros em suas ações de salvaguarda. É necessário protegê-los para evitar modificações motivadas por homenagens políticas ou eleitoreiras, feitas sem qualquer participação democrática da população.

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Dossiê

SIMBOLOGIA REPUBLICANA NA ANTIGA SEDE GOVERNAMENTAL BELO-HORIZONTINA: em busca de uma Marianne à brasileira Simbología republicana en la antigua sede gubernamental Belo-horizontina: en busca de una Marianne a la brasilera

Pamela Emilse Naumann Gorga*

RESUMO: O presente artigo busca problematizar a construção da simbologia republicana na figura da Marianne no contexto da construção da cidade de Belo Horizonte. Uma vez que ocuparia espaços do poder público, indagamos qual foi a releitura feita na hora de “brasilizar” um ente importado, por parte de uma sociedade miscigenada que buscava, ao mesmo tempo, uma política de branqueamento racial. Para tal fim, utilizar-se-ão as seguintes fontes: o afresco da República de Frederico Steckel, localizado na antiga Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais, e a obra contemporânea, Redenção de Cam, de Modesto Brocos. As duas serão abordadas segundo a “cultura visual” da época, uma proposta metodológica de Ulpiano Bezerra de Meneses. Assim, o registro iconográfico rende-nos indícios de uma concepção republicana almejada distante do heterogêneo perfil de cidadãos, omitindo, por fim, a sua matriz negra. Palavras-Chave: República; Cultura visual; Culturas políticas.

RESUMEN: Este artículo busca problematizar la construcción de la simbología republicana en la figura de Marianne en el contexto de la construcción de la ciudad de Belo Horizonte. Como ocuparía espacios del poder público, nos preguntamos cuál fue la reinterpretación realizada en el momento de “brasilizar” un ente importado, por parte de una sociedad mixta que buscaba, al mismo tiempo, una política de blanqueamiento racial. Para este propósito, se utilizarán las siguientes fuentes: el fresco de la República de Frederico Steckel, ubicado en la antigua Secretaría de Hacienda del Estado de Minas Gerais, y la obra contemporánea, Redenção de Cam, de Modesto Brocos. Las mismas serán abordadas de acuerdo con la “cultura visual” de la época, una propuesta metodológica de Ulpiano Bezerra de Meneses. De esa forma, el registro iconográfico nos da evidencia de una concepción republicana deseada distante del perfil heterogéneo de los ciudadanos, omitiendo, finalmente, su matriz negra. Palabras clave: República; Cultura visual; Culturas políticas.

Projeto republicano: fabricando identidades, modelando cidadãos. A nação constrói tempos vazios e homogêneos, e amnésias coletivas fazem parte desse jogo político, também por aqui, muito bem disputado.

Lilia Schwarcz

Refletir o surgimento de uma nação acarreta, quase que imediatamente, o exercício de considerar a construção de um sentimento de pertencimento atrelado a ela,

Licenciada em História pela FFYL/UBA, Mestra e Doutoranda na linha de pesquisa História e Culturas Políticas do PPGHIS/UFMG, com ênfase em História Medieval. Educadora Bilíngue no Memorial Minas Gerais Vale. E-mail: pnaumanngorga@gmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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isto é, o chamado “nacionalismo”. Um conceito amplamente complexo que, como


Dossiê demonstrou Eric Hobsbawm em Nações e Nacionalismo (1991), é tão abrangente e mutável segundo questões sociais, históricas e políticas, que resulta difícil etiquetá-lo segundo uma definição única e estanque. Mas quando e como ele surge? Esse afeto por uma origem comum entre cidadãos é datável? Inclusive, é transmissível? Embora possamos rastrear já desde a Antiguidade Clássica um elo afetivo com o solo de nascença ou com aquele coletivo que, como família estendida, abraça um corpo de patrícios - e que podemos denominar de “pátria” (CATROGA, 2007), o nacionalismo é um problema moderno (HOBSBAWM, 1991) atrelado à configuração e ao surgimento dos estados-nação europeus no final do século XVIII1. Ora, esse quesito foi uma realidade que acabou migrando para as Américas com a irrupção das diversas revoluções e independências: novos países começavam a ser concebidos e contornados e, nessa missão, achou-se a necessidade de uma ligação afetiva que unisse os membros desses novos coletivos. À diferença do velho continente, cujos emergentes Estados nacionais ancoraramse em uma “pseudo-história” que tentava resgatar do passado - principalmente medieval - as supostas raízes de unidades socioculturais imutáveis que explicariam uma (mítica) “aquisição primária” (GEARY, 2005, p.22), os países americanos enfrentavam uma realidade miscigenada e relativamente recente se a compararmos às histórias de seus colonizadores. Com isso não queremos dizer que os países europeus estivessem isentos de migrações e movimentos populacionais, mas que os quebra-cabeças em que as diversas sociedades americanas tinham se tornado eram resultado não apenas de ondas migratórias, mas de uma grande porcentagem de escravizados, arrancados à força de seus lugares de origem. Libertos, imigrantes, antigos colonos e seus descendentes (os criollos, por exemplo, da América espanhola), inclusive indígenas, conformaram uma massa altamente heterogênea que, agora, devia se unificar sob um epíteto de dimensões

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Por outra parte, caros nomes ao debate em torno ao nacionalismo e à sua decorrente identidade precisam ser mencionados. Dentre eles, Benedict Anderson que na sua obra, Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e difusão do Nacionalismo (2008), grosso modo, desvela o manto essencialista que sobre o termo costuma pousar-se. Assim, “Anderson mostrou de que maneira a nação é – dentro de um espírito antropológico – uma comunidade política imaginada; quase uma questão de parentesco ou religião” (SCHWARCZ, 2008, p. 11); noutros termos, a identidade nacional é um construto que se diferencia de outras a partir de várias formas segundo as quais cada uma é imaginada. Por sua vez, Stuart Hall, também rastreia os meandros da sua conformação e, assim, enxerga as identidades nacionais como “formadas e transformadas no interior da representação”, um conjunto de significados que cobram sentido dentro de uma determinada cultura nacional” (HALL, 2006, p.48-49, grifo do autor). Assim, “a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional” (HALL, 2006, p.49, grifo do autor). Nesse sentido, no capítulo intitulado “As culturas nacionais como comunidades imaginadas”, Hall resgata a obra de Ernest Gellner e a contundente importância da identidade nacional para a identificação do sujeito moderno e sem a qual se sentiria incompleto. O filósofo convida-nos à reflexão ao dizer que “Um homem deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e duas orelhas. (...), mas o fato de isso ter vindo a aparecer tão obviamente verdadeiro é de fato um aspecto, ou talvez o próprio cerne, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo inerente da humanidade, mas agora passou a aparecer como tal” (GELLNER, 1983, p.6, tradução nossa, grifo do autor).

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Dossiê macro; doravante, os membros desse heteróclito contingente deviam chamar-se de “brasileiros”, “argentinos”, “chilenos” etc., independentemente de suas origens e histórias. Nesse sentido, o nacionalismo vem à tona: explorado como uma ideologia tornase uma útil ferramenta pedagógica que busca agir como um factível diluente das desigualdades endógenas a esses grupos. Dessa forma, uma língua em comum é louvada, um perfil étnico é demarcado, um passado compartilhado é glorificado, entre outras particularidades. Em definitivo, busca-se “que a identificação nacional seja tão natural, fundamental e permanente a ponto de preceder a história” (HOBSBAWM, 1991, p.27). No entanto, a conexão entre um Estado e o corpo de cidadãos que o conforma não é sine qua non, lógica; para o chamado “reconhecimento coletivo do pertencimento de grupo” (HOBSBAWM, 1991, p.32) torna-se necessária uma veia sentimental, não racional, que faça essa amálgama tão heterogênea –talvez– se agrupar. O culto de uma nacionalidade e, no caso a trabalhar, de uma ideia republicana cujo discurso buscaria abranger - ou homogeneizar - uma população, é uma ferramenta plausível nessa construção de país. Na obra Entre Deuses e Césares (2006), Fernando Catroga aprofunda a relevância desse fator emocional na perspectiva ecumênica que a “religião civil” significou no contexto da Revolução Francesa. Entendida como a religião do cidadão, a partir da qual se encontraria com outros compatriotas, com os quais compartilha a sacralidade de mitos, ritos e símbolos relativos à sua pátria, assim como a sua devoção, a religião civil resultou na criação de uma moral cidadã na qual o sentimento patriótico arvorava uma prova sublime que “se encontrava na voluntária disponibilidade para o sacrifício da sua própria vida a favor da comunidade” (CATROGA, 2006, p.139). Dessa forma, e retomando a obra de Rousseau, Catroga afirma que “o filósofo francês achava que uma perspectiva exclusivamente racional do contrato social seria incapaz de o sustentar. Só um sentimento ou paixão de Estado consolidariam a razão de Estado (...)” (CATROGA, 2006, p.125). Noutros termos, enfatizar apenas o caráter de homo rationalis significaria dissecar a ontologia do ser histórico e, assim, afastar-nos do sentido que a religião poderia ter tido para ele (CATROGA, 2006, p.99).

ocasiões, o levará a lutar por convicções intangíveis em guerras que, talvez, nunca REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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uma afeição por um ente que o transcende de sobremaneira e que, inclusive, em certas

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Detenhamo-nos por um momento para refletir: o que faz despertar em um sujeito


Dossiê tivesse procurado ou que foram geradas por motivos e/ou objetivos que desconhece, senão um envolvimento irracional? Nesse sentido, rituais cívicos, datas comemorativas, hinos e cânticos, heróis, memórias, entre outras coisas, foram criadas e resgatadas da história para dar conteúdo a uma narrativa político-pedagógica que norteasse o surgimento de uma república; um projeto nacional que, em definitivo, precisava de um corpo de cidadãos aos que devia sensibilizar em prol da sua causa. Todavia, essa empreitada enfrenta dois obstáculos. Por um lado, abordar o tema do nacionalismo é indagar um sentimento de pertencimento e, portanto, a construção de uma identidade. Contudo, nascer em um solo “x” torna a pessoa direta e imediatamente oriunda, “natural”, dessa pátria? E mais, ao perguntar a uma pessoa “Quem você é?”, a única resposta que obteremos serão gentílicos macros do tipo antes assinalados? A origem é, necessariamente, sinonímia de pertencimento? Ao interrogarmos o nacionalismo de uma pessoa - ou o que entende por ele estamos, ao final das contas, escrutando a própria ontologia do indivíduo. Como demonstrou José Carlos Reis (2015), a identidade é um problema melindroso de indagar-se, principalmente porque nele confluem vias de diversas naturezas que acabam sedimentando-se em uma superposição de camadas: o psicológico, o social, o nacional, o cultural e o biológico são as estruturas de uma dupla cadeia que vão entrecruzando-se segundo duas variáveis, tempo e espaço. Assim como o composto genético, este “DNA metafísico” guarda as informações (genéticas?) que singularizam o perfil de uma pessoa que, por sua vez, pode sofrer metamorfoses a partir das várias experiências, momentos, lugares, pessoas e circunstâncias vivenciadas. Ora, qual seria a conexão entre identidade e nacionalidade? O vínculo é íntimo e direto, em definitivo: “Em história, a questão da identidade é grave porque desencadeia a guerra (...)” (REIS, 2015, p.73). A questão, então, seria interrogar: todo brasileiro entende por nacionalismo o mesmo sentimento? Quantos Brasis existem? Por quem eles estão sendo pensados e para quem? Quem é esse “povo” chamado de “brasileiro”? Pode existir um vínculo fraternal entre pessoas desse coletivo tão heterogêneo em prol de um bem comum maior? Por outro lado, a elaboração de um projeto nacional e republicano como o que

proposta elaborada por um grupo de indivíduos que busca projetá-la para outro grupo REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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nele e quem é o seu alvo. Ou seja, a concepção de uma nação não deixa de ser uma

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está sendo discutido entrelaça três sujeitos: quem faz o projeto, quem está idealizado


Dossiê cujas características costumam ser bem distintas daquelas idealizadas. Em um dos extremos dessa relação encontramos a intelligentsia por trás da simbologia política proposta que, na segunda metade do século XIX, encontrava-se imbuída pelos valores positivistas segundos os quais uma pequena elite devia reconhecer as leis da evolução histórica independentemente do consentimento das maiorias populares ou parlamentares sempre versáteis. Tratava-se de agir de modo tal que o povo aceitasse ou até mesmo gostasse desta forma de governo. A fim de obter tal resultado, os positivistas se engajaram amplamente no processo de criação de símbolos da nova República, procurando ganhar por meio destas formas visuais — ou sonoras — uma população que, em sua maioria, era analfabeta (...). (JURT, 2012, p.502).

Grosso modo, a elite dirigente tinha perante dela dois “povos”2 no momento da declaração da República no Brasil. Por um lado, um “desejado” ou, por assim dizer, “ideal”, isto é, aquele anelado por ela e modelado segundo suas expectativas e concepções: branco? Centrado no litoral? Católico? Homogeneizado? Etnocêntrico? 3 Por outro, o “real”, uma massa heterogênea, miscigenada, popular, ex-escravizada, trabalhadora; conceitualmente falando, seria o dito “baixo povo”, aqueles “sujeitos que obedecem, trabalham e se sacrificam pela pátria, mas estão revestidos de uma ficção inclusiva que situa em igualdade de proporções suas ‘virtudes cívicas e guerreiras’” (VALLEJOS; ZÁRATE, 2011, p.234, tradução nossa). A construção dialética entre o que existe e o que se almeja é um processo no qual “vocábulos tais como ‘povo’, ‘pátria’ ou ‘cidadania’, marcados por sua imprecisão e polissemia conceitual”, deveriam ser “historicizados desde os distintos usos, aplicações e transformações que vão adquirindo segundo os sujeitos que os empregam e as situações em que o fazem” (VALLEJOS; ZÁRATE, 2011, p.231, tradução nossa). Assim, a concepção republicana nesse processo nunca é singular: o projeto pode ser hegemônico, mas não a sua apropriação que, por sua vez, se encontra atravessada por disputas, negociações e releituras. Dessa forma, o entendimento das ferramentas político-pedagógicas e dos símbolos escolhidos para sua transmissão, nesse intuito por construir o povo cidadão correspondente, também não é único. O desafio que enfrenta essa nascente República no que tange à construção de um sentimento de pertencimento radica na sua própria

Na utilização deste conceito, apropriamo-nos da teoria de Julio Pinto Vallejos (2011). Sobre as “histórias gerais”, plurais e regionalizadas, nutrindo uma historiografia múltipla que aborda a conformação do estado brasileiro desde diversos patamares, em contraposição à alvejada “história geral, universal e verdadeira”, ver REIS, 2017. 3

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natureza abstrata. À diferença de uma monarquia na qual a referência é o rei - ou seja, o


Dossiê corpo real e tangível aonde o sentimento dos membros de uma comunidade canaliza-se é o corpo político régio (KANTOROWICZ, 1992, apud JURT, 2012) -, o povo republicano encontra-se desprovido disso. Na prática, enfrenta um paradigma: onde está a República? Em quem? Quem a representa? Dessa forma, se a diversidade de contextos e características dos sujeitos envolvidos obstaculiza a comunicação entre as partes, assim como a linguagem utilizada e a definição dos conceitos tratados, a descorporificação ou desmaterialização (JURT, 2012) que significa um projeto republicano complica ainda mais as coisas, uma vez que o mesmo baseia-se mais em uma ideia ou valores do que em uma pessoa. Como transmitir essa metafísica da res publica? Quais serão os itens escolhidos para essa empreitada? Entre o repertório previamente assinalado, os símbolos são uma linguagem, geralmente visual, plausível a ser trabalhada, porém, também não é direta nem sui generis. Nesse sentido, a fundação de Belo Horizonte como cidade capital, nascida no âmago do projeto republicano, resulta em um caso pertinente de análise. O seu centro administrativo foi materializado segundo uma linguagem republicana, mas ela foi entendida ou decodificada por todos? Foi (ou é) adotada por outras parcelas da sociedade, além de uma elite dirigente? O mais importante para o tema que nos compete: essa materialidade linguística foi executada pensando a totalidade da população e respeitando as suas diferenças?

República e símbolos na fundação de Belo Horizonte: a importação de uma ideia 15 de novembro de 1889. Declara-se a República no Brasil e uma nova etapa inaugura-se na história do país. Falar de ares totalmente novos pode soar um pouco destoante perante a realidade política desse contexto: diferentemente das nascentes repúblicas latino-americanas provindas do regime colonial espanhol, que atravessaram por lutas de independência para se constituírem, ou da República dos Estados Unidos, que também vivenciou uma guerra de emancipação, o surgimento da República Federativa do Brasil foi singular por dois motivos. Por um lado, a ruptura com o poder colonial, vale dizer, com o elo português,

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surgimento do Império. Noutros termos, a emancipação de Portugal não é resultado de

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não sucede com a declaração republicana, mas com a Independência e o consequente


Dossiê uma luta travada por um coletivo - mesmo que ainda em formação - cujo elo aglutinador fosse cortar as amarras com a metrópole, como nos casos de países como Argentina, Venezuela e Chile, por exemplificar, apenas, alguns, nem consequência de uma consciência nacional compartilhada, senão um “compromisso entre os desejos de autonomia e de estabilidade das províncias - mais exatamente daqueles que as dominam - temendo antes de tudo que a ordem seja perturbada” (NOLASCO, 1997, p.110 apud JURT, 2012, p.480), motivo pelo qual certos historiadores têm optado por cunhar esse processo sob epítetos como “insólito” ou “atípico” (ENDERS, 1997; BENNASSAR; MARIN, 2000 apud JURT, 2012, p.478). Ora, embora possam ser rastreados sinais políticos deste lado do Atlântico que já reivindicavam por “liberdade política, autogoverno, soberania e envolvimento dos cidadãos nos assuntos da colônia” (STARLING, 2018, p.16), cabe perguntarmos em que medida eles estiveram refletidos naquele 7 de setembro de 1822. O levantamento de fontes realizado pela historiadora Heloísa Starling permite-nos perceber como, durante a Colônia, um linguajar político, em grande parte decorrente das discussões suscitadas pela chegada de novos conceitos, assim como da sua apropriação e ressignificação em solo americano, foi nutrindo a imaginação dos colonos “de um ideal de bom governo, justiça, bem público e amor à pátria” (STARLING, 2018, p.16). Dessa forma, e principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, o espírito republicano na América portuguesa foi crescendo ao lado do conceito de liberdade e, portanto, contestando a autoridade régia (STARLING, 2018, p.18). Todavia, perante a incandescência das fervorosas vozes republicanas que emanaram das conjurações mineira (1789), carioca (1794) e salvadorense (1798), acaso o “grito de Ipiranga” foi, apenas, um fogo-fátuo? Por que, durante o período regencial, foi apelidado pelos “exaltados” como “a farsa da independência Ipiranga” (NEVES, 2009)? Por outro lado, e relacionado ao primeiro apontamento, a própria irrupção da República brasileira surge no âmago de uma elite dirigente cujas características eram distantes da grande massa da população. Embora houvesse movimentos republicanos populares, o golpe cívico-militar daquela madrugada de novembro não foi, justamente, uma tomada da Bastilha. Ora, se bem tudo na História é resultado de processos,

também podemos aventurar-nos a dizer que para o povo de base, aquele que REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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entre diversos grupos: oligárquicos, positivistas, radicais, liberais (JURT, 2012); mas

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podemos enunciar que havia grandes e variadas vertentes republicanas sendo discutidas


Dossiê denominados de “povo real”, foi um acontecimento súbito: adormeceu realista para acordar republicano. Entretanto, não podemos pensá-lo segundo uma natureza inerte ou passiva: a sua (re)ação diante do cenário político expressava-se das mais variadas formas: revistas ilustradas, alegorias nos “carros de ideias” durante o carnaval, ruas ocupadas por uma sociedade politizada (MELLO, 2009). Entre bestializada e consentida, a participação popular foi revisitada por uma vasta historiografia4, contudo, diante do projeto político vencedor, atrevemo-nos a afirmar que os republicanos do final do século XIX acabaram por eliminar dela toda a experiência política anterior que não pudesse se encaixar nos parâmetros da República que haviam proclamado - e que se revelou uma forma de governo oligárquica, excludente e sem nenhuma sensibilidade para a questão social. (STARLING, 2018, p.18).

A declaração da República no Brasil, nessa intenção por parte da elite de manter o status quo, insere-se no que alguns teóricos denominaram “política conciliatória” sinal marcante da mineiridade para Otávio Dulci (1984). Assim, poucos anos depois de ter sido concebida, a República tornou-se uma fugaz utopia, uma reminiscência de um sonho que alguma vez foi sonhado (MELLO, 2011). Mesmo assim, havia uma nova fase que precisava legitimar-se e, nesse intuito, a cidade como agente modelador de cidadãos/cidadania não foge dessa empreitada; pelo contrário, converte-se em uma aliada para essa mediação. Noutros termos, o político e a sua simbologia buscam na materialização que o urbanismo possibilita aquela ferramenta pedagógica almejada pela elite dirigente: A possibilidade de se fundar uma cidade para abrigar a sede do poder estadual delineava-se, por conseguinte, nesse horizonte de expectativas – confiantes ou não – em relação à jovem república brasileira. O projeto instigou as mentes contemporâneas, produzindo uma constelação de imagens urbanas. Entusiastas projetavam na futura Capital um ambiente promotor de desenvolvimento material, social e cultural. Como um personagem prometeico, creditavam-lhe o poder de desfazer o descompasso de Minas em relação a padrões civilizacionais desejados, de modo a atrair o progresso e irradiá-lo por todo o Estado. (JULIÃO, 2011, p.117).

Nesse sentido, o requerimento de Augusto de Lima, então presidente de Minas Gerais, ao Congresso Constituinte Mineiro, solicitando a mudança da capital do Estado, é encorajado por essa suscetibilidade: toda cidade encontra-se atravessada por uma

CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, 1987; MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida: cultura democrática e científica do final do Império, 2007; FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano – O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930, 2006. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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sensibilidade e um imaginário específicos que acabam por modelar, por sua vez,


Dossiê formulações identitárias também singulares (JULIÃO, 2011, p.114), e Ouro Preto, como antiga capital da província, não era alheia a essa caracterização5. Ora, a matéria-prima, por assim dizer, com a qual a Comissão Construtora estava trabalhando ia ao encontro do que se cobiçava: a natureza do corpo governamental do Estado, cujos membros pertenciam à elite ouropretana, determinavase pelo seu passado “escravista e colonial” (JULIÃO, 2011, p.120); por outro lado, o local objetivado, o antigo Arraial do Curral Del Rei, não era mais do que um entreposto para os tropeiros. Tanto a proveniência quanto o destino definiam-se segundo um ar interiorano, rural; um tempo marcado por um ritmo lento, bem diferente daquele proposto pela modernidade advinda; uma vida cujos contornos, em definitivo, não estavam determinados pelas promessas do progresso, nem pelas exigências do desenvolvimento (JULIÃO, 2011). De um lado, rusticidade, Barroco, escravidão, Portugal, tradição, conservadorismo, valores patriarcais, atraso, insalubridade, incultura, colônia, passado; do outro, ciência, tecnologia, invenções, indústria, modernidade, vida cosmopolita, ecletismo, higiene, liberdade, progresso, civilização, positivismo, res publica, Brasil, futuro. Assim, inserida em uma “cultura de reforma” que atravessava a elite nacional e era norteada pelos valores da ciência e da técnica, a “Cidade de Minas” foi planejada e, nessa perspectiva, a nova idade política inaugurada no Brasil devia sair do plano do abstrato para o plano do concreto. Resgatar esses sinais, essas metáforas tangíveis, significa compreender qual projeto político estava sendo discutido; todavia, a simbologia republicana não é apenas uma linguagem, pois aproxima-se mais de um universo semiótico a ser desvendado: cada projeto, isto é, a organização das ruas, os nomes das praças, as estátuas, os afrescos etc., é um signo dentro de uma estrutura, dentro de um sistema. Por isso, doravante, buscaremos decodificar quais são as convenções que explicam esses signos, quais são as imagens que eles despertam, em suma, quais são as ideias por detrás desses programas. Uma vez que o Barroco, como estilo artístico e arquitetônico, estava vinculado

Embora não seja parte do escopo do presente artigo, cabe ressaltar que a mudança da capital não se restringia, apenas, a um caráter simbólico-urbanístico. Pelo contrário, junto com a necessidade política, havia ponderáveis econômicos que clamavam pela integração do Estado e, assim, superar o declínio pelo qual atravessava. Para isso verificar: CEDRO, Marcelo. Praça Sete, Pampulha e Savassi: centralidades urbanas e modernidade periférica na cidade de Belo Horizonte, 2016. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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profundamente à fase histórico-política que se queria ultrapassar, não foi uma opção a


Dossiê ser considerada6. Assim, Heliana Salgueiro aprofunda o raciocínio republicano que rejeitava o Barroco, por assimilá-lo à época Colonial, ao trabalhar relatos dessa época: as velhas igrejas são sinônimos de “mau gosto”, vistas como “manchas a se destacar no meio de ridente progresso”; representam ainda “uma epocha de dolorosa vergonha”, pois nelas se ouviam “as preces dos cativos implorando liberdade: já mesmo por isso deviam desapparecer”. Além do retórico horror à escravidão recém-abolida, as crônicas da época pretextam a simplicidade como critério justificativo das demolições: … “os defeitos do barroco se aggravam entre nós, nas mãos de artistas secundários”. (SALGUEIRO, 1997, p.126, grifo do autor).

Pelo contrário, um ecletismo à moda burguesa europeia foi a pauta e os “repertórios urbanísticos” (JULIÃO, 1996, p.54) levantados para tal fim chegaram ora do outro lado do Atlântico, ora de experiências americanas que já tinham passado por modernizações citadinas que traduziram em pedra esse espírito republicano, como La Plata, na Argentina, e Washington, nos Estados Unidos.7 Todavia, o contexto do final do século XIX exaltava a cidade de Ouro Preto ao reconhecer nela um elo embrionário republicano que atravessa a história do Estado. Característico da Modernidade que busca resgatar no passado as raízes de uma suposta origem8, é na Minas Colonial - e não na Imperial, considerado um período de usurpação - onde se acha o nascimento de um novo homem, diferente do português, nascido no âmago geográfico do país e que irrompeu ao clamor de um grito nativo, libertário e republicano na Inconfidência Mineira. Logo, a nascente República do final do século XIX vê no epílogo do XVIII a semente política que a legitima, motivo pelo qual seus personagens, principalmente Tiradentes, são resgatados sob o epíteto de heróis. Uma vez que a paisagem ouropretana foi o berço de tamanho movimento, ela não foi totalmente rejeitada, pelo contrário, “a construção da nova capital mineira significou, no

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Ilustrativa deste argumento é a apreciação dos Profetas de Aleijadinho antes do resgate efetuado por Mário de Andrade e a Caravana dos Modernistas na segunda década do século XX. Ao contrário do aprecio e apropriação que possuem na atualidade, as leituras do final do século XIX e começo do XX são outras: enquanto Bernardo Guimarães caracteriza a dita execução artística como “muito longe da perfeição”, João do Rio considerava as estátuas “detestáveis” pois “causam uma sensação mórbida” (JULIÃO, 2015, p.3). As palavras da crônica de Alfredo Camarate, colaborador na construção da nova capital, vão na mesma direção: sob o título “Por montes e vales”, o artista caracteriza a matriz, cuja fachada era de estilo barroco, como “mau exemplar desse mau estilo de que Minas possui edifícios notáveis, pela pureza desse gênero arquitetônico pesadão e destituído desses donairosos lineamentos” (BARRETO, 1996a, p.251). Nesse sentido, cabe refletir a construção histórica por trás da “condição” patrimonial de um bem, uma vez que ajuda a desnaturalizá-lo. 7 Segundo Georg Simmel, a coexistência de pluralidade de estilos que explode neste tempo moderno encontrava-se determinada pelo estágio cultural alcançado na segunda metade do século XIX que deu como fruto um “alargamento do saber histórico” e, concomitantemente, o “rompimento de um mundo uno” (WAIZBORT, 2006, p.187): “As tendências historicizantes do nosso século, sua capacidade incomparável de reproduzir e tornar vivo o que se encontra mais distante - em sentido temporal e espacial - é apenas o lado interior do aumento geral de sua capacidade de adaptação e de sua grande mobilidade” (SIMMEL, 2004, p.467, tradução nossa). Nesse sentido, a variabilidade moderna e esse horizonte de conhecimento expandido - em uma época em que a História e a Arqueologia corporificam seu saber (SALGUEIRO, 1987, p.106) - permitem que a Antiguidade Clássica, o Gótico Medieval ou o Renascimento italianizante, entre outros, sejam “desempoeirados” e voltem à vida sob o epíteto dos “neo” objetivando, assim, em Belo Horizonte um “repertório de estilemas que recebe hoje a rubrica de Ecletismo” (SALGUEIRO, 1987, p.118). 8 A ambiguidade para Le Goff: “o ‘moderno’, à beira do abismo do presente, volta-se para o passado. Se, por um lado, recusa o antigo, tende a refugiar-se na história. Modernidade e moda retro caminham lado a lado. Este período, que se diz e quer totalmente novo, deixa-se obcecar pelo passado: memória, história” (LE GOFF, 1990).

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Dossiê discurso republicano, que a justifica e glorifica, não uma ruptura do tipo novo/velho, moderno/antigo, mas uma recomposição do tempo histórico dentro de uma legitimação da justaposição tradição/futuro” (MELLO, 1996, p.13). Dessa forma, o centro governamental belo-horizontino objetiva em signos o fervor do mito do embrião republicano de outrora: os nomes das ruas próximas ao centro administrativo estadual reproduzem os dos conjurados; a escultura do Pico do Itacolomi, marca distintiva e emblemática dessa paisagem, é colocada na Praça da Liberdade cujo nome, por sua vez, é alusivo desse projeto político. Segundo o 26º ofício de 23 de março de 1895 do Dr. Aarão Reis, “as nossas primeiras ruas, praças e avenidas [receberiam] nomes de cidade, rios, montanhas, datas históricas e nomes de alguns cidadãos credores de serviços ao povo”. Outras nomeações, como “minerais, pedras preciosas e tribos indígenas, que figuram na planta, foram acrescentadas posteriormente” (BARRETO, 1996b, p.253, grifo do autor). Por conseguinte, esses elementos “ouropretanos” não seriam interpretados em um sentido de continuidade nem tautológico, mas entendidos como um estágio superior da história do Estado dentro da perspectiva evolucionista própria do positivismo, em voga na época. Ora, outros elementos “importados” foram utilizados para dar corpo a esse esteticismo urbano de teor republicano. Entre eles, podemos enunciar o objeto da nossa pesquisa: a alegoria da República. A sua origem pode ser rastreada do outro lado do Atlântico, na conjuntura da Revolução Francesa. Apelidada de Marianne, a figura feminina acaba tornando-se a imagem representativa da nova forma de governo (em contraposição à Monarquia, cujo emblema era o rei, uma figura masculina) e associada a outra virtude louvada nesse contexto político: a Liberdade (HUNT, 2007, p.87). A mulher simboliza essa última virtude nos padrões culturais provenientes da Antiguidade Clássica, padrões que também são resgatados na época Moderna. Assim, a metáfora imagética da República pode ser reconhecida a partir de certas particularidades: as vestes brancas à usança das túnicas das deusas romanas, a coroa de laurel romano ou gaulês que simbolizava a virtude cívica (HUNT, 2007, p.85) e o barrete frígio que representava os libertos (CARVALHO, 2014, p.75). Todavia, dado que a política não se resume, apenas, à arena governamental, as

reafirmem a legitimidade de governar. Em certo sentido, legitimidade é a concordância REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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sem histórias, sinais e símbolos que, de inúmeros modos tácitos, transmitam e

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práticas ritualistas e simbólicas tornam-se necessárias. Assim, “não é possível governar


Dossiê geral sobre sinais e símbolos” (HUNT, 2007, p.77). Dessa forma, o novo governo também precisava dessa poesia corpórea e o antigo centro administrativo do Estado, localizado ao redor da Praça da Liberdade, faz jus a esse desejo. Embora as secretarias tivessem sido pensadas para uma praça triangular localizada na VI seção da planta original, ficando a Praça da Liberdade destinada apenas para o Palácio Presidencial (BARRETO, 1996b, p.254), essa última acabou albergando, segundo o 28º Ofício de 2 de março 1895 expedido por Aarão Reis e julgada afirmativamente pelo governo em 13 de abril do mesmo ano, a construção de “três edifícios distintos, sendo um para cada uma das três Secretarias de Estado e suas repartições anexas”, isto é: as Secretarias do Interior, das Finanças e da Agricultura (BARRETO, 1996b, p.246) (Fig. A). Figura A - Projetos das Secretarias da Agricultura, Interior e Finanças, em substituição do projeto do Palácio da Administração não aprovado

Fonte: BARRETO, 1996b, p. 244.

Comecemos pelo recinto que coroa a alameda da Praça da Liberdade, isto é, o Palácio do Governador9. A alegoria sob estudo encontra-se representada na própria fachada: em cima da arcada central da varanda do segundo piso, um tabernáculo de pedra-sabão ergue-se reservado para o seu busto. Nesse caso, a República porta o que parece ser uma túnica alindada por uma série de ornamentos circulares e, sobre a coroa de louro, carrega outra de cinco raios que brinda certo ar estoico à sua figura. Diferentemente, no interior do edifício, a dita alegoria perde este último atributo em prol apenas do barrete frígio, como demonstra o busto que aflora ao chegar ao

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Precisamos realizar um apontamento acerca da simbologia espacial que envolve estes espaços. Originalmente, a Av. João Pinheiro denominava-se Av. Liberdade e unia uma espécie de procissão republicana já que conectava dois pontos sugestivos desde seu viés simbólico. Saindo da Praça da República, hoje Praça Afonso Arinos, o cidadão ia subindo a Av. Liberdade em direção à Praça da Liberdade que, orograficamente, encontra-se em um patamar mais alto. Logo, ao chegar ao “jardim” do Palácio, a alameda de palmeiras continua lhe indicando o caminho em direção a este último prédio que se lhe desponta como um altar corado pelo busto da República.

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Dossiê segundo piso pela escadaria principal, ou da coroa de louro e do barrete frígio, como apresentam os afrescos do forro do hall da dita escada. Aqui, ela aparece em quatro oportunidades para representar quatro valores caros ao processo político em discussão. Primeiramente, ao falar de “progresso”, encontra-se representada em uma triga romana, dirigida por um putto que levanta na sua mão a palma da liberdade. Já na alegoria da “liberdade”, a figura feminina tira os grilhões de dois escravos. Em um terceiro momento, um altar de pedra é escolhido para representar o valor de “ordem”; nesse caso, a República não aparece protagonizando a cena, mas partícipe ao estar representada em uma estrutura de pedra que possui dois escudos de Minas Gerais. Por último, ela reaparece ao presenciar uma cena de harmonia: a “fraternidade” está garantida, uma vez que a figura feminina em questão consagra a saudação entre dois homens. Portanto, nas representações do Palácio da Liberdade percebem-se duas abordagens para esta metáfora imagética: enquanto no seu interior, os afrescos demonstram um traço mais suave e moderado, a escultura da fachada distancia-se dessa proposta. Se bem não é uma República que faça lembrar aquela figura combativa que Rouget esculpiu em La Marseillaise, tampouco evidencia-se de forma sutil: seja pela coroa de raios, seja pela natureza do material, essa República olha estoicamente em direção à Praça da Liberdade. Se pensarmos na alegoria esculpida em pedra, ela aparece mais uma vez no prédio da antiga Secretaria de Educação, originalmente pensada para ser a Secretaria do Interior (GROSSI, 1997, p.20). Nessa ocasião, a imagem não possui as mesmas características que a sua supracitada correlata. Na fachada, uma abóbada desponta por cima do último piso para abrigar o busto da República, trajada com uma túnica e o barrete frígio. Por último, encontramos a dita representação em mais uma oportunidade no antigo complexo administrativo, a saber: na Secretaria da Fazenda. Localizado no segundo pavimento do prédio, deparamo-nos com um imponente afresco de mais uma Marianne. Embora o estudo pormenorizado dessa fonte seja desenvolvido no seguinte apartado, podemos já dizer que o seu perfil assemelha-se ao das pinturas do Palácio da Liberdade.

a serem executadas nos prédios previamente nomeados, nem às particularidades que REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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recomendação ou sugestão por parte da Comissão Construtora com respeito às temáticas

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Segundo as fontes resgatadas por Abílio Barreto, não se percebe nenhum tipo de


Dossiê elas deviam carregar. Porém, identifica-se o titânico esforço que tamanha tarefa implicava. Dessa forma, o Dr. Francisco Bicalho, sucessor de Aarão Reis no cargo de engenheiro-chefe, expressa o seguinte a respeito dos “grandes edifícios públicos”:

Cada edifício exigia mais de uma centena de desenhos, inclusive os de detalhe e ornamentação. Encetada ao mesmo tempo a edificação de todos eles, não era possível obter grande cópia de desenhos, feitos nas horas regulamentares de trabalho, sem um batalhão de desenhadores, que dificilmente poderiam ser reunidos. Por esta razão, resolvi suprimir o escritório de desenho arquitetônico e ajustar por empreitada, com o próprio arquiteto, autor dos mesmos projetos, o Sr. Dr. Jose de Magalhaes, o preparo de todos os desenhos, mesmo assim, apesar de ter feito ele vir do Rio e São Paulo muitos desenhadores hábeis e trabalhar frequentemente até mortas horas da noite, não tem podido fornecê-los com a presteza que era de desejar, preparando, porém, para cada edifício, os que se vão tornando indispensáveis para o andamento das obras. (BARRETO, 1996b, p.485).

Nesse sentido, cuidando de cada detalhe, o Dr. Bicalho entra em contato com o renomado artista alemão, Frederico Antônio Steckel, residente na época no Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 1896, solicitando-lhe amostras de seu trabalho e os respectivos valores. Após uma troca de várias missivas, envia-lhe por intermédio de um agente no Rio de Janeiro o “passe da Estrada de Ferro Central do Brasil” convidando-o, assim, para a negociação no tocante à “ornamentação e pintura dos palácios e edifícios em construção” (BARRETO, 1996b, p.486, grifo do autor). Depois das respectivas tratativas, o Dr. Bicalho escreve-lhe, em 7 de agosto de 1896, as seguintes linhas: ficam aprovadas as especificações constantes da sua proposta para ornamentação e pintura do Palácio Presidencial, Secretarias do Interior, das Finanças e da Agricultura, na parte relativa à ornamentação com estuquecartão e, quanto à pintura, provisoriamente, como está indicado nas mesmas propostas, mas podendo eu alterá-las até o momento de sua execução. Fica, portanto, V.Sª. autorizado a fazer, em nome e por conta desta Comissão, a encomenda de todo o material, quer do referido estuque-cartão, quer de tintas e mais ingredientes (...). (BARRETO, 1996b, p.486).

Dessa forma, em 28 de janeiro de 1897 o famoso artista junto a uma equipe que contava com o pintor e decorador Bertolino Machado, inicia “os serviços de pintura das casas para funcionários e pintura, decoração e ornamentação dos grandes edifícios

Embora nas fontes compiladas por Abílio Barreto não apareça uma referência direta que relacione a autoria do afresco da República, localizado na antiga Secretaria da Fazenda, com o nome de Frederick Steckel, graças a esta citação chega-se à conclusão que dito pintor teria executado a obra em questão. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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públicos” (BARRETO, 1996b, p.492)10.


Dossiê À vista disso, cabe perguntar-nos, agora, no tocante às particularidades dessas escolhas quando feitas, especificamente, nos contextos das secretarias. Uma vez que a sua natureza era (e é) pública, isso implicaria uma oportunidade de diálogo com o projeto cívico-político almejado, já que o dito contexto arquitetônico oferecia um espaço apropriado, como uma tela em branco, para a sua propaganda e louvor. Toda autoridade política requer o que Clifford Geertz chama de “moldura cultural” ou “ficção mestra” na qual possa definir-se e afirmar-se. A legitimidade da autoridade política depende de sua ressonância com pressuposições culturais mais globais, até mesmo cósmicas, pois a vida política é “envolta” em concepções gerais sobre como a realidade se forma. Além disso, muitos antropólogos e sociólogos asseveram que toda moldura cultural possui um “centro” com status sagrado. O centro sagrado possibilita uma espécie de mapeamento social e político, dando aos membros da sociedade sua noção de posição. Ele é o cerne das coisas, o lugar onde cultura, sociedade e política se encontram. (HUNT, 2007, p.113).

Por conseguinte, qual “moldura cultural” dá sentido ao afresco executado por Frederico Steckel na primitiva Secretaria da Fazenda? Que buscava legitimar a autoridade política mineira presente no final do século XIX? Ela conseguiu “definir-se e afirmar-se”? Quem estava contemplado por ela? Qual foi a solução plástica para representar esse heteróclito contingente que, agora, formava o Brasil republicano? Que lugar lhe coube aos/às recentes ex-escravizados/as? Eis a nossa seguinte empreitada.

Uma Marianne à brasileira? As fontes a partir das quais os pesquisadores debruçam-se para o escrutínio da História podem ser das mais diversas naturezas, inclusive visuais. Nesse sentido, Ulpiano Bezerra de Meneses, em seu artigo “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, propõe seu uso nos parâmetros metodológicos da pesquisa histórica, sem com isso significar um desdobramento epistemológico. Contrário à ideia de que a particularidade do fato documental determina um conhecimento histórico específico que justificaria a sua segmentação científica, Meneses argumenta a necessidade de compreender que a fonte é um meio para chegar a tal conhecimento; noutros termos, uma ferramenta para analisar a sociedade. Portanto, neste específico caso, “o visual” é apenas um dos vários campos operacionais, um dos

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p.25).

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ângulos escolhidos para desvendar o problema histórico em questão (MENESES, 2003,

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Dossiê Ao aprofundar a tese de Meneses, deparamo-nos com mais dois conceitos caros à nossa pesquisa. Em primeiro lugar, devemos demarcar essa plataforma a partir da qual abordamos a nossa empreitada, vale dizer, tentar definir o que entendemos por “cultura visual”. Nesse sentido, o autor ampara-se na argumentação de Malcolm Barnard como uma resposta possível, mas não finita. Assim, ao falar de “cultura”, isso compreende os “valores e identidades construídas” que, neste caso, serão transmitidos pela mediação “visual” entendida como “toda a gama de coisas que os homens produzem e consomem ‘as part of their cultural and social lives’: de arte e design a expressões faciais, moda, tatuagem e assim por diante” (MENESES, 2003, p.25). Por conseguinte, a imagem, abrangendo um amplo leque de manifestações, é produzida, consumida, circulada e lida entre os membros de uma sociedade em contextos históricos específicos, e nenhum desses processos encontra-se isento de pugnas e negociações, já que a “interação entre observador e observado” (MENESES, 2003, p.16) - e, também, podemos adicionar “entre observadores” - nunca é retilínea, nem unívoca. Noutros termos, as imagens são historicamente datáveis e, portanto, não têm sentido em si, imanentes. Elas contam apenas — já que não passam de artefatos, coisas materiais ou empíricas — com atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar. Daí não se poder limitar a tarefa à procura do sentido essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados às motivações subjetivas do autor, e assim por diante. É necessário tomar a imagem como um enunciado, que só se apreende na fala, em situação. (MENESES, 2003, p.28)

Nessa perspectiva, o aporte da Antropologia Visual é muito proveitoso, já que proporciona um olhar perspicaz no que diz respeito aos mecanismos de “produção de sentido” que surgem como fruto da interação entre os elementos do tripé: autor-obrainterlocutor; mecanismos, por sua vez, múltiplos e mutáveis. Portanto, a fonte implica três abordagens: “o documento visual como registro produzido pelo observador; o documento visual como registro ou parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente, a interação entre observador e observado” (MENESES, 2003. p.17); quer dizer, a fonte imagética “é muito mais do que uma simples produção de um artista, ela

retroalimentação” (GORGA, 2016, p.104). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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é resultado e com a qual, paralelamente, dialoga; isto é, há entre as duas uma

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perpassa o domínio do seu criador para formar parte de uma cultura determinada da qual


Dossiê Figura B - Alegoria da República localizado no segundo piso da antiga Secretaria da Fazenda, adjudicado ao artista Frederico Antônio Steckel

Fonte: IEPHA/MG.

Em segundo lugar, o termo “iconosfera”, entendido como “o conjunto de imagens que, num dado contexto, está socialmente acessível” (MENESES, 2003, p.15), oferece-nos uma oportuna ferramenta analítica. Dessa forma, a pesquisa imagética vai além da tradicional leitura panofskyana (PANOFSKY, 2009) dos patamares iconológico e iconográfico já que o documento indagado não é isolado de outros contemporâneos;

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do problema histórico levantado.

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destarte, o diálogo que surgir ao colocá-los em conjunto ofereceria indícios mais ricos

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Dossiê Ora, a nossa empreitada original foi desmembrar a concepção de República que estava sendo construída e buscava ser transmitida no Brasil do final do século XIX. Para tal fim, escolheu-se o recorte belo-horizontino no que diz respeito à prístina área administrativa do Estado. Nessa paisagem urbana, um afresco chamou a nossa atenção: a alegoria da República, localizada no segundo piso da antiga Secretaria da Fazenda, adjudicada ao artista Frederico Antônio Steckel (Fig. B). Subida a uma biga - sem cavalos, mas alada -, a figura feminina parece fazer uma entrada triunfal na cena, abrindo-se caminho radiantemente por cima das nuvens de um céu sereno, diáfano. As suas lassas vestes ajustam-se na região da cintura graças a um cinto coroado por um medalhão, cujo formato sugere - embora vagamente - o formato do escudo de Belo Horizonte (Fig. C e D). Dessa forma, dita composição deixa entrever as linhas da sua fisionomia, mas, diferentemente da Marianne de Delacroix, essa República encontra-se mais decorosa. Continuando com as características da sua roupagem, as suas cores, em consonância com o restante da composição, despontam ao olho aguçado pela sua escolha: branco, verde, azul e dourado compõem os diversos objetos da cena, emulando, assim, a bandeira nacional. A dita preferência permite determinar a sua identidade: ela é a República do Brasil. Assim, essa paleta é apenas suspensa pela cor do barrete frígio que, tradicionalmente, nas representações aparece na cor vermelha. Ao aprofundar os sinais que manifestam a sua identidade, outros dois elementos afloram. Por um lado, o imponente escudo que a alegoria segura com a mão esquerda (Fig. E) e cujo centro é reservado para os componentes da bandeira do Estado de Minas Gerais: o triângulo e a epígrafe em latim, Libertas quæ sera tamen. Dentro do triângulo, mais dois objetos formam parte da composição: dois martelos que fariam referência à economia mineradora do Estado e uma lâmpada, metáfora pictórica e metonímica da razão, própria do Iluminismo. Por outro, o centro da biga é reservado para a data comemorativa, que é a razão de tudo isso: 15 de novembro de 1889 (Fig. F). Logo, a constituição da obra conversa simbolicamente de forma direta com o contexto físicopolítico no qual se encontra: essa Marianne está ancorada na república brasileira, ao

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mesmo tempo em que se escora na mineira.

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Dossiê

Figura C - Detalhe do afresco

Fonte: Acervo MMGV.

Figura D - Projetos dos brasões para a cidade de Belo Horizonte e para o Estado de Minas Gerais gerados pela Comissão Construtora da Nova Capital e datado em 15 de fevereiro de 1895.

Fonte: Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital de Minas (1895) 11.

Por último, mais um elemento desponta nesse afresco: com a mão esquerda, em gesto de suave mesura, a República segura uma folha de palmeira. Além da gama de cores adotada, da data e da releitura da bandeira mineira, esse componente é mais um

Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital de Minas (APCBH/APM/MHAB). Disponível em:< http://www.comissaoconstrutora.pbh.gov.br/exe_dados_documento.php?intCodigoDoc=CC%20DV%2003&strTipo=DESENHOS %20TECNICOS>. Acesso em: 2 ago. 2019. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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indício da origem da figura em questão; é mais uma ferramenta que ajuda a discernir a


Dossiê específica identidade dessa figura feminina: com a folha de palmeira12 desponta a sua brasilidade. Contudo, essa particularidade aparece na personagem em questão? Esse “DNA metafísico” do povo brasileiro expressa-se graficamente na fisionomia da “sua” Marianne? Figuras E e F - Detalhes do afresco.

Fonte: Acervo MMGV.

Ao repararmos em seus traços físicos, chamam a atenção certas particularidades: de contornos suaves e arredondados, típicos da beleza vitoriana em voga na época, essa mulher é de tez clara e cabelos loiros, quase ruivos, e olhos esverdeados. Esses traços denotam um fenótipo muito específico, apenas pertencentes a uma das três matrizes que deram origem ao povo brasileiro: a europeia. Se bem poder-se-ia alegar que, uma vez que a representação figurativa da República é um ente simbólico importado da França, podia-se esperar que a sua execução plástica levasse a manter os atributos “originais”, mas isso não implica uma necessidade incondicional se pensarmos no contexto social pelo qual foi recebida. Tomemos como exemplo ilustrativo desse argumento outra figura “importada”, assim como o movimento no qual se inseriu, isto é, o Barroco. As Nossas Senhoras europeias, de traços brancos e loiros, sofrem uma transformação deste lado do Atlântico. Nesse sentido, a obra do Mestre Manoel da Costa Ataíde é um caso interessante para se refletir: as suas Madonnas, principalmente a do forro da nave da Igreja de São Francisco em

Ouro

Preto,

possuem

atributos

negroides/mulatos

(OLIVEIRA,

2011),

12

Sua escolha seria aleatória ou faria referência à alameda de palmeiras da Praça da Liberdade que, como o corredor da nave central de uma igreja, conduz-nos em cívica procissão ao altar, neste caso, da República? REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Santa Ceia, na obra exposta no Santuário do Caraça. Por conseguinte, se durante a

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características que voltariam a aparecer na figuração que faz de Jesus Cristo na cena da


Dossiê Colônia houve uma “reinterpretação do tema mariano sob o prisma local” (OLIVEIRA, 2011, p.100), por que essa releitura não aparece na alegoria da República brasileira? Para conseguir contornar uma possível resposta precisamos, agora, lançar mão da “iconosfera” na qual está inserida a fonte sob escrutínio e colocá-la em diálogo com outra: A redenção de Cam (1895), do artista Modesto Brocos (Fig. G).

Brasil republicano: que cores são essas? No intuito de enriquecer a nossa análise iconográfica, precisamos compreender, grosso modo, o contexto de debate racial do final do século XIX e começo do XX e que, portanto, envolve a obra que examinaremos a continuação. A partir de 1870 começaram a chegar ao Brasil novas doutrinas, tais como o positivismo, o darwinismo e o evolucionismo e, com elas, discussões raciais que não foram abafadas pelo advento republicano. Pelo contrário, perante um país que era caracterizado como um “festival de cores” ou uma “sociedade de raças cruzadas” (AIMARD, 1895; ROMERO, 1895 apud SCHWARCZ, 1993, p.15), a República Velha encontrou-se atravessada por uma miríade de debates que buscavam dar conta de uma realidade miscigenada criticada pelas teorias estrangeiras, na busca por concretizar as expectativas de um jovem projeto nacional; em definitivo, um paradoxo substancial, pois a própria fundação de uma nova era política merecia uma resposta à pergunta: “afinal, que país é este?” (SCHWARCZ, 1993, p.28). Dessa forma, a controvérsia foi abraçada e problematizada pelos mais diversos agentes e instituições: viajantes, elite, estabelecimentos científicos, centros de ensino, museus, faculdades, institutos históricos e geográficos, entre outros. Assim, “o argumento racial foi política e historicamente construído nesse momento, assim como o conceito raça, que além de sua definição biológica acabou recebendo uma interpretação sobretudo social” (SCHWARCZ, 1993, p.23). Foi nessa conjuntura de debate racial que o Dr. João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi convidado a participar do I Congresso Internacional das Raças, em julho de 1911, “como representante de ‘um típico país miscigenado’” (SCHWARCZ, 1993, p.15). Segundo a

a matriz negra ver-se-ia esbranquiçada na terceira geração. Eis que entra em cena a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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solução) de ser modificada mediante um rápido processo de cruzamento segundo o qual

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tese por ele apresentada, a natureza racial brasileira tinha a esperança (e, portanto, a


Dossiê outra obra que faz parte da “iconosfera” em análise: na abertura do seu ensaio, Lacerda exibiu, como ilustração, uma representação da pintura de Modesto Brocos, A Redenção de Cam (1895). Nessa obra, uma família de três gerações protagoniza a cena; contudo, certas características de seus membros denotam mudanças biológicas - e com um fundo político, como discutiremos na continuação - entre as filiações (Fig. G). Do lado esquerdo, uma avó encontra-se em postura de louvor, de sugestivo agradecimento, perante um dos integrantes da família da sua filha: o seu neto. Por que ela estaria mostrando gratidão em uma situação como essa? A história pode começar a ser tecida se repararmos nas fisionomias dos membros da obra: avó negra, filha mulata, neto branco. Figura G: A redenção de Cam, Modesto Brocos (1895)13

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Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam>. Acesso em: 24 jul. 2020.

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Fonte: Wikipedia, s.d.


Dossiê

A simbologia da cena adquire um patamar maior ao reparar no viés religioso da sua composição: na usança das representações da natividade cristã, o artista utiliza a mesma paleta de cores escolhida para Maria e veste a mãe mulata de branco, celeste e rosa. Sentado em seu colo, seu filho relembra o Menino Jesus, na posição de bênção característica do Cristo Pantocrator, isto é, a mão direita alçada e os dedos indicador e do meio apontando para o céu. Na mão esquerda, segura uma fruta que parece ser uma laranja e que poderia significar uma metáfora pictográfica de riqueza que chega com essa nova geração. Ao lado direito, seu pai, a figura masculina e branca14 que, como sugere seu altivo olhar, foi a grande causa da transformação que essa família sofreu. Portanto, temos perante nós uma construção pictográfica que se encontra longe de ser aleatória ou casual. Embora espanhol, o artista estava imbuído do espírito sociocultural e político que emanava pelas ruas do Rio de Janeiro e encontrava-se em contato com ele ao trabalhar em periódicos nacionais, como O Mequetrefe que, como demonstram suas capas, por exemplo, discutia temas do cotidiano, como política, sociedade, economia etc. Segundo Tatiana Lotierzo, a composição imagética e cenográfica de Brocos reflete “um sistema de notação realista, em chave alegórica, ou seja, um realismo que anuncia significados secundários através de uma elaborada simbolização que não deve ser vista como fortuita” (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.14). O título da tela denota o teor político do seu conteúdo: se o episódio bíblico protagonizado por Cam deu ao Ocidente das grandes navegações a justificativa escravocrata em relação ao povo africano, a cena familiar em questão busca “reverter a maldição” (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.7): o movimento contrário ao enegrecimento é possível. Noutros termos, a “ocidentalização” retratada na imagem é o meio que permite purgar aquele pecado e com ele, mesmo mediante a mestiçagem (em contraposição a muitos dos discursos políticos e cientificistas da época), a civilização é plausível. Porém, a perspectiva religiosa não desprestigia nem míngua a perspectiva biologicista,

base

do

“projeto

político

racializante”

almejado

(LOTIERZO,

SCHWARCZ, 2013, p.8). Mas, a metáfora imagética não termina por aqui.

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Podemos conjecturar que esse não seja o único homem branco que causou um impacto na descendência da família. A primeira figura paterna encontra-se ausente; ora, uma vez que as características físicas da avó denotam uma mulher idosa, talvez escravizada antes de 1888, principalmente pelo sinal dos seus pés descalços (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.16), pode-se inferir que a união inter-racial que deu fruto uma filha mulata não aconteceu segundo os padrões da seguinte geração: diferentemente da filha que carrega na mão esquerda uma aliança que demonstra a estabilidade e legalidade da sua união, esse indício encontra-se ausente na sua mãe.

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14


Dossiê Estudiosa da obra, Lotierzo argumenta que o discurso pictográfico envolve além da leitura racial, uma abordagem de gênero/sexualidade: nesse contexto, não apenas “A brancura (...) era associada à ideia de perfectibilidade”; concomitantemente, o negro, principalmente no corpo feminino, era associado aos excessos de criminalidade, sexualidade e alienação (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.11). Na “hierarquia humana” do Oitocentos refletida no padrão estético da mulher nas artes plásticas, a mulher negra alcançava o último degrau, representante, assim, da anomalia ou da patologização (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.13). Contrariamente, Brocos propõe uma leitura não voyeurista desses corpos, apresentando uma incorporação social da mulher negra. Mas isso não significa uma inversão de valores: o Ocidentalismo branco e masculino continua sendo o predominante, o que marca a norma. Quais são os sinais dessa afirmação? A fisionomia das mulheres negras da sua composição demonstraria curvas suaves ou nulas, mas nada exacerbadas e todas completamente cobertas por vestes à moda ocidental, assim como também cabelos “devidamente presos” (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.17) para não insinuar nenhum tipo de “selvageria” ou “barbárie”. Por sua vez, sua distribuição na paisagem construída tampouco é acidental: ao passo que a avó permanece em pé sobre solo de terra, o progresso, representado no solo de pedra, encontra-se do lado do seu genro; a filha está no meio caminho, elo da transição biológica, cultural e ideológica. Quer dizer, cada cor, cada gesto, cada elemento são metáforas pictográficas que denotam um discurso político em voga; o paradigma racista de branqueamento materializado imageticamente “ultrapassa o plano da moldura para espelhar práticas morais e discursivas (...)” (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.18). Por conseguinte, os “esquemas” pictóricos escolhidos - isto é, lugares comuns onde elementos gráficos corporificam uma semiótica plástica - demonstram “contextos mentais” (GOMBRICH, 2007 apud LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.9) próprios de uma época: as escolhas previamente analisadas não estão apartadas da realidade político-social do final do século XIX, pelo contrário, elas são emanações dessa realidade. Noutros termos, são exemplos tangíveis da “cultura visual” da época. Eis a importância das fontes visuais já que, ao “espelharem o padrão dominante”, acabam por

com o propósito de expressar ‘os atributos do olhar de quem olha como se fossem REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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retroalimentação circular: elas acabam por se tornar “imagens padrão de referência (...)

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reforçá-lo, “naturalizando” aquilo que é um produto cultural em um movimento de


Dossiê expressão cultural do outro que é olhado’” (LOTIERZO, SCHWARCZ, 2013, p.13). Nesse sentido, qual é a relação entre esses corpos femininos materializados plasticamente em ambas as obras analisadas? Existe uma semelhança entre os esquemas pictóricos adotados nessas fontes? Os contextos mentais por trás delas são afins? Por fim, pelo fato de compartilharem uma iconosfera, tornaram-se expressão de uma referência discursiva da época? Essas perguntas nortearão a conclusão deste artigo.

Brasil: uma República de quem para quem? Àquela época, naquele início dos anos vinte, o governo de Minas dava a impressão de solidez babilônica. Seu símbolo era o palácio da Liberdade todo de pedra e parecendo uma esfinge agachada no fundo da praça. Dali saíam o prêmio e o castigo. (...) O palácio, no fundo do duplo renque de palmeiras (...) Diminuí o passo, fui chegando perto, olhando a pedra cinzenta que o pó de Minas ia tomando. Olhando para cima, vi um busto de mulher, soberbos seios de granito. Um capricho da luz movente do sol deume a impressão que ela me olhava com olhos serenos e vazios. Era evidente que baixara para mim a pupila. Pareceu também que mexia os lábios. Falava. Ouvi distintamente: sou a República ou a Liberdade, ou o símbolo que quiserem mas, como vês, estou cá de fora. Aí dentro falam e agem os que dizem fazê-lo em meu nome. Pedro Nava

Examinadas cada uma das fontes em questão, buscaremos, agora, estabelecer um diálogo entre elas, tendo em vista a nossa empreitada inicial: qual foi o argumento construtivo por trás da metáfora plástica que materializou a representação da nova etapa advinda no Brasil? A República construída era uma mera importação ou foi concebida “à imagem e semelhança” do povo brasileiro? Houve, em definitiva, uma Marianne à brasileira? Podemos concordar que toda nação, principalmente em momentos de inflexão, precisa de símbolos que, como expressões de um culto cívico, permitam despertar nos seus cidadãos um sentimento de comunhão, de encontro; noutros termos, necessita de signos que se transformem em elos afetivos que atinjam as veias e não a razão (CATROGA, 2006). Entre eles, a escolha dos chamados “heróis cívicos” é uma profícua medida político-pedagógica, já que encarnam “instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos”

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identificação coletiva” (CARVALHO, 2014, p.55).

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por serem os depositários de “ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de

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Dossiê Desde os primeiros anos da república brasileira, essa construção foi uma preocupação e, na busca pela sua legitimação, o novo regime nas mãos do Congresso Constituinte almejou povoar um pantheon cívico colocando em prática “o princípio positivista de veneração cívica através do culto a homens ilustres em substituição à adoração dos santos católicos, erguendo-lhes um panteão do mesmo modo que tradicionalmente se erguiam templos às divindades míticas religiosas” (SALGUEIRO, 2008, p.100 apud ORIÁ, 2014, p.44). Todavia, essa elevação de personagens históricos ao patamar de heróis nacionais teve um empecilho: quem ocuparia esse lugar? Protagonistas da História como José de San Martín, Simón Bolívar, Bernardo O’Higgins ou Carlos Manuel de Céspedes deixaram a sua marca nas nascentes repúblicas latino-americanas como os “libertadores” dos seus povos contra o jugo espanhol. No caso brasileiro, esse papel coubera a Dom Pedro I. Ora, como podia se laurear um personagem desses no contexto republicano se com ele não se tinha inaugurado a República, mas o Império? Perante esse problema, haveria outra figura que o pudesse substituir e que, ao mesmo tempo, abraçasse o Brasil todo? Nessa concepção, a alegoria da República poderia ter cumprido um papel importante: embora abstrata, teria sido “a” opção para coroar o altar cívico dos heróis da nação. Não obstante, o seu reconhecimento como tal não teve suficiente adesão. No decorrer do tempo, foi uma figura masculina e protagonista de um movimento regional que ocupou a lacuna: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Partícipe da Inconfidência Mineira, a sua figura já fora resgatada durante o Império entre várias releituras e escaramuças políticas, como demonstra o capítulo que José Murilo de Carvalho lhe dedica em sua obra, A formação das Almas (2014). Com a chegada da República, o culto cívico a Tiradentes tornou-se ainda maior com a declaração do feriado nacional dedicado à sua pessoa, em 1890. Envolvido por um misticismo próprio da simbologia cristã - que, por sua vez, era reflexo da tradicional religiosidade mineira/brasileira -, o personagem histórico tornou-se “o” mártir da República: ao se imolar pelos ideais libertários, Tiradentes não apenas foi fiel aos seus princípios políticos, como selou seu destino para as futuras gerações, entrando, assim, para a

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Perante a envergadura que esse mito alcançou, cabe voltar à nossa indagação:

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História. Noutros termos, quem se tornou imortal precisou morrer primeiro.

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Dossiê

Por que o fracasso da representação positiva da República como mulher? A busca da explicação poderá ir em várias direções. Mas o centro da questão talvez esteja na observação já referida de Baczko de que o imaginário, apesar de manipulável, necessita, para criar raízes, de uma comunidade de imaginação, de uma comunidade de sentido. Símbolos, alegoria, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no qual se alimentarem. Na ausência de tal base, a tentativa de criá-los, de manipulá-los, de utilizá-los como elementos de legitimação, cai no vazio, quando não no ridículo. Parece-me que na França havia tal comunidade de imaginação. No Brasil, não havia. (CARVALHO, 2014, p.89).

Ora, pensarmos a representação imagética que a materializou foi uma dessas várias direções escolhidas pelo presente artigo para tentar uma possível explicação para essa rejeição. O fato de ter comparado duas fontes iconográficas que compartilharam uma mesma iconosfera permitiu-nos desvendar certos valores que deram o sustento ideológico e discursivo para as escolhas pictográficas consubstanciadas nas obras. Nesse sentido, conferiu-se que a metáfora plástica da república brasileira, em momento algum, apresenta qualquer outro fenótipo que não seja o europeu. No repertório iconográfico explorado, o traço negro reserva-se, apenas, para dar cena a exescravizados/as: no caso da pintura de Modesto Brocos, ele se corporifica na história que guarda a personagem da avó; no conjunto imagético do Palácio da Liberdade, destina-se aos que estavam sendo liberados dos grilhões pela República15, apagando, dessa forma, qualquer marca de sua luta nesse processo. Duas sistematizações pictográficas que, no final das contas, imprimem no corpo negro que se adentra no período republicano um espírito de gratidão perante o corpo branco - ora do neto, ora da República. Certamente, o final do século XIX foi um momento decisivo para o nascimento do Brasil republicano: uma emergente nação devia ser legitimada e louvada e, para tal intuito, uma pedagogia cívica devia ser espalhada. Nesse turning point todas as dimensões temporais entram em questionamento e tensão. Assim, certos personagens e acontecimentos da história são resgatados, enquanto outros são deixados de lado, nesse “espaço de experiência”; as duas ações feitas conscientemente, com um propósito que visa a um “horizonte de expectativa” específico e almejado (KOSELLECK, 2006). Noutros termos, o presente, olhando para o futuro, pinça no passado - às vezes, com

Resulta curioso o fato de que, ao compor a cena metafórica da libertação dos escravizados, Steckel optou pela figura feminina republicana desplazando, assim, à monárquica, isto é, a Princesa Isabel que, ao assinar a Lei Áurea, em 1888, foi consagrada como “a Redentora” (MESQUITA, 2009). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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precisão cirúrgica - aqueles retalhos que justificarão a sua missão: “O exame das fontes,


Dossiê a escolha dos conceitos, das teorias, dos temas de pesquisa, a organização da argumentação estão sempre articulados a uma experiência presente da história, que propõe uma determinada redescoberta do passado e uma determinada tendência em relação ao futuro” (REIS, 2017, p.12). Perante as fontes analisadas podemos inferir, portanto, que a República no Brasil nascia motivada pelos padrões e molduras políticos que tinham determinado a política desde a chegada dos portugueses: o país que se alvorava trazia a marca predominante de matriz europeia e, portanto, branca. O discurso nacionalista assim arquitetado por um específico projeto cívico-político devia atingir seu público-alvo, às vezes por vias não muito democráticas, esquecendo as suas múltiplas origens e características - ele devia ser homogeneizado. Noutros termos, estamos perante a modelagem de uma identidade única, “essencialista”, projetada nos corpos de uma “comunidade imaginada”. Todavia, nem a identidade, nem a comunidade eram outra coisa a não serem presumidos “tipos ideais” que foram concebidos apenas no campo das ideias, muito longe da(s) realidade(s) brasileira(s), inclusive belo-horizontina. Dessa forma, o traço africano (assim como o indígena, embora ele mereça uma discussão à parte que extrapola o recorte deste artigo) foi totalmente diluído no discurso aqui explorado. A sua luta, abafada pela suposta grandiosidade republicana que emerge como a protagonista da libertação, apropriando-se, assim, da história de resistência negra. A sua participação (política), esbranquiçada por um projeto eugênico que via, a partir de uma “hierarquia racial” sustentada em uma pseudociência, o negro como uma raça não apenas inferior, mas também prejudicial. Esse pensamento reflete no discurso do Dr. João Baptista de Lacerda, proferido no I Congresso Internacional das Raças, que

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apontamos previamente:

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Dossiê

O negro, quase completamente selvagem, comprado dos feitores africanos e transportado à costa do Brasil pelos traficantes portugueses até a metade do último século, chegava aqui no estado de mais completo embrutecimento no qual é possível decair uma raça humana. Os aventureiros que exploravam nesta época as terras férteis do Brasil tratavam-nos pior do que a animais domésticos, infligindo-lhes provas das mais cruéis e humilhantes. (...) Foi assim que, para cultivar o solo, os portugueses introduziram no Brasil cerca de dois milhões de negros. Essa nefasta imigração forçada de escravos pesou sobre os destinos do Brasil até os nossos dias, implicando em resultados morais desastrosos que não desaparecerão a não ser com a lenta ação do tempo. (...) É de propósito que nós citamos esses fatos, porque os julgamos precisamente muito importantes para explicar como os vícios do negro foram inoculados na raça branca e na mestiça. Vícios de linguagem, vícios de sangue, concepções errôneas sobre a vida e a morte, superstições grosseiras, fetichismo, incompreensão de todo sentimento elevado de honra e de dignidade humana, baixo sensualismo: tal é a triste herança que recebemos da raça negra. Ela envenenou a fonte das gerações atuais; ela irritou o corpo social, aviltando o caráter dos mestiços e abaixando o nível dos brancos. (...) A população mista do Brasil deverá então ter, dentro de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, que aumentam a cada dia e em maior grau o elemento branco desta população, terminarão, ao fim de certo tempo, por sufocar os elementos dentro dos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro. O Brasil, então, tornar-se-á um dos principais centros civilizados do mundo (...). (LACERDA, 1991).

Desse modo, a negritude e a herança africana eram totalmente esbarradas do projeto político do país: a República brasileira relegava, conscientemente, ao oblívio, uma grande parcela da população que a construíra e conformara. Essa chave discursiva foi a chancela com a qual se selou, no decorrer do século XX - e cabe questionar-se o seu legado na atualidade -, o destino de todo um continente. África apresenta-se, segundo aponta Achille Mbembe, como um “mundo aparte”, alheio, com o qual nenhum tipo de elo de identificação nos une. Assim, um continente por inteiro é resumido a um “mundo abrumado pela hostilidade, a violência e a devastação, África constituiria o simulacro de uma força obscura e cega, encerrada em um tempo, de alguma maneira, pré-ético e inclusive pré-político” (MBEMBE, 2017, p.49). A natureza “humana” dos membros envolvidos não é a mesma, nessa “relação” não existe um vínculo entre semelhantes; na melhor das hipóteses, o que existe é um sentimento de culpa, ressentimento ou piedade, mas nunca de justiça ou responsabilidade (MBEMBE, 2017, p.50). Por conseguinte, como seria levada a sério uma herança política de uma matriz com a qual não compartimos um mesmo mundo?

esmiuçado no decorrer deste trabalho sofreu alguma mutação? O perfil dos seus REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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reflexão: em 130 anos de República brasileira, o pioneiro projeto cívico-político

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Ao olhar retrospectivamente, surge, quase que iminentemente, a seguinte


Dossiê mentores pluralizou-se ou continua o mesmo? Quantos presidentes negros o Brasil já teve? Em definitivo, o fenótipo da República, como apreciamos, metaforizada artisticamente, chegou a democratizar-se realmente? À luz do analisado, um possível caminho para achar uma resposta a essas perguntas pode radicar nos dados estatísticos apresentados por Tadeu Kaçula, presidente do Núcleo de Pesquisas Clóvis Moura da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em referência à paisagem política de 2018: “Dos 513 deputados federais, 24 são negros. Dos 81 senadores, três são negros. Dos 5.570 prefeitos, 1.604 são negros. Dos 57.838 vereadores, 24.282, são negros. Dos governadores dos estados e do DF, nenhum é negro. Dos ministros do STF, nenhum é negro” (REPRESENTATIVIDADE, 2018). Perante o 53% da população que, segundo os dados do último censo (ROSSI, 2015), declara-se negro/a, a sua representatividade chega aos 40% nos cargos políticos. No entanto, se não levarmos em consideração àqueles ofícios correspondentes às esferas de convívio mais próximo e pensarmos na esfera macro, isto é, governadores, deputados, senadores e membros do STF, esse número decresce, drasticamente, para 4%. Com isso não queremos dizer que a sua luta política não tenha cabida no país; pelo contrário, o movimento negro possui uma história de longa data no Brasil, mas a sua representatividade no cenário político ainda não ganhou o lugar que possui por direito, ainda não foi imaginada uma Marianne de traços negros, mulatos, brasileiros... Talvez esses dados sejam mais do que evidentes; não obstante, em época de falsos profetas onde a pós-verdade aparece entre memes e fake news, às vezes até o óbvio precisa ser dito.

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REMINISCÊNCIAS DE UMA MODERNIDADE PROJETADA: a experiência do cinema como produtor de sentidos e sociabilidades no espaço urbano em Belo Horizonte (1909-1932) Reminiscences of a projected modernity: the experience of cinema as a producer of meanings and sociability in the urban space in Belo Horizonte (1909-1932)

Luiz Fernando Cristiano Ferreira da Silva*

RESUMO: Esse artigo tem como objetivo principal analisar o papel do Cinema na construção e sustentação de uma determinada imagem sobre a recém-criada Belo Horizonte. Destacando as imagens construídas pelos filmes de Aristides Junqueira e Igino Bonfioli em torno da ideia do “ser e parecer moderno”. Procurou-se compreender o contexto de criação da capital republicana de Minas a partir da ótica da demanda por imagens surgida com a chegada do cinema em Belo Horizonte. Discutindo-se as problemáticas advindas das relações entre tradição e modernidade, dentro de uma lógica em que se buscava a formulação de novas imagens (representações) em detrimento de antigas. Pensando em como que o cinema, e a fotografia, dentro dessa disputa, estariam atuando no campo do imaginário, produzindo representações, muitas vezes, absorvidas pelos jornais e revistas da época. Palavras-chave: Cinema; Belo Horizonte; Modernidade; Historiografia ABSTRACT: This article has as main objective to analyze the role of Cinema in the construction and support of a certain image about the newly created Belo Horizonte. Highlighting the images constructed by the films of Aristides Junqueira and Igino Bonfioli around the idea of “being and appearing modern”. We tried to understand the context of creation of the republican capital of Minas Gerais from the perspective of the demand for images that emerged with the arrival of cinema in Belo Horizonte. Discussing the problems arising from the relationship between tradition and modernity, within a logic that sought the formulation of new images (representations) to the detriment of old ones. Thinking about how cinema, and photography, within this dispute, would be acting in the field of the imaginary, producing representations, often absorbed by newspapers and magazines of the time. Keywords: Cinema; Belo Horizonte; Modernity; Historiography

Introdução Ao nos voltarmos para as imagens produzidas e reproduzidas no início do século XX, que circularam nas diversas galerias, teatros e casas de exibição da recém-criada capital, nos deparamos com uma série de representações pelas quais se constroem, destroem e reconstroem identidades1. Figuras como Igino Bonfioli e Aristides Junqueira reproduziram em seus filmes uma cidade, por vezes, díspar daquela observável em

Graduado em História. Professor de História. E-mail: luizfernandocristiano1997@gmail.com.

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Para Roger Chartier (1990), citado por Ferreira (2003, p.19), a noção de história desenvolvida pela História Cultural tem por objetivo identificar como, em diversos lugares e tempos, certa realidade social é construída. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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algumas falas da época, como a de Monteiro Lobato:


Dossiê Não havia povo nas ruas. Os passantes, positivamente funcionários que subiam e desciam lentamente, a fingir de transeuntes. Transeuntes públicos. Daí, o sono que dava aquilo. Uma semana passada lá deixava a impressão de meses (DIÁRIO DA TARDE, 2 de janeiro, 1963, p.2 apud JULIÃO, 1996, p. 62-63).

Na contramão da visão de uma cidade socialmente morta, esses pioneiros na aventura cinematográfica no Brasil, produziram imagens urbanas que expressavam algumas sensibilidades com relação ao que se pensava ser moderno. Um desejo, ou melhor, uma projeção do que a cidade deveria ser. Afinal, se Belo Horizonte, segundo escritos da época, era tão pacata, bucólica e burocrática, o que dizer das filmagens de uma cidade tão movimentada, alegre e moderna que Bonfioli registrou em seu improvisado cinematógrafo2. Dito isso, a pesquisa que originou o presente artigo buscou responder as seguintes questões: Qual diálogo pode-se estabelecer entre o que se produziu em termos de imagens sobre Belo Horizonte e a historiografia? Qual Belo Horizonte aparece nesses filmes? A “cidade do tédio” de Drummond, ou o grande símbolo da República dos discursos parlamentares? Quais os temas que esse cinema busca registrar? Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a construção de representações sociais a partir do estudo das práticas ligadas ao cinema em Belo Horizonte na primeira metade do século XX, destacando as imagens construídas pelos filmes de Aristides Junqueira e Igino Bonfioli em torno da ideia de modernidade. Além de, também, discutir sobre quais universos culturais e representações sociais estariam sendo referenciadas por esses curtas produzidos em Belo Horizonte. Pretendeu-se entender o cinema enquanto produtor de sentidos. Pensando suas contradições, percebendo a dualidade entre este ser percebido como um elemento que confere, em termos sociais e mentais, uma “alma” moderna à cidade, ao mesmo tempo em que se percebe como um elemento que, supostamente, “emburrece” a sua população, ao romper com artes mais “tradicionais” como a literatura e o teatro. Algo que podemos

Uma das características desses pioneiros do cinema em Belo Horizonte, e no Brasil como um todo, era a criatividade, inventividade e experimentalismo. O próprio Igino Bonfioli construiu uma série de aparelhos que necessitava para o seu ofício, dentre eles as próprias câmeras cinematográficas reutilizando peças de outras máquinas. (CAMPOS, 2008, p. 108). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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observar em uma crônica da Revista Novo Horizonte, publicada em novembro de 1910:


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Já se vae tornando proverbial em Belo Horizonte a falta de público para festas de arte. Posto de lado o cinematógrafo que é realmente uma diversão moderna e predileta do povo, só os circos de cavalinhos, as touradas e os cafés concerto logram alguma frequência do público da Capital. [...] Sejamos francos e rompamos de vez com o preconceito inadmissível de se ocultar a verdade. E a verdade é que o teatro, as conferências literárias, os concertos, todas as festas de arte enfim, são abandonadas pelo povo (REVISTA NOVO HORIZONTE, 1910, p. 3).

De acordo com Michele Lagny, todo processo de produção de sentido é uma prática social, e que, sendo assim, o Cinema não é apenas uma prática social, como também é um gerador de práticas sociais; ou seja, o Cinema, além de ser um testemunho das formas de agir, pensar e sentir de uma sociedade é também um agente que suscita certas transformações, veicula representações ou apresenta um modelo (VALIM, 2006, p. 27). Não por acaso, já em 1939, a Revista Alterosa em sua sessão As Últimas de Hollywood discute como que as noções de moda presente nos filmes e entre as atrizes ditavam tendências para a cidade: Lana Turner, jovem atriz da Metro Goldwyn Mayer, introduziu, nesta quinzena uma moda que pelo interessante que é promete pegar. Ela harmoniza os seus sapatos de baile, feitos de malha metálica com luvas do mesmo material. [...] A última novidade para depois de lavar a cabeça são os turbantes de rêde em cores vivas, conforme imaginou Myrna Lay, estrela da Metro Goldwyn Mayer. (REVISTA ALTEROSA, 1939, p. 67).

Assim, pretendeu-se identificar no cinema do início do século XX a presença, reforço e projeção das práticas sociais do que se entendia como “mundo civilizado” europeu, da retórica da Belle Époque. E como essas práticas foram recebidas e apropriadas pela aspirante à modernidade, cidade de Belo Horizonte. O que se propõe, em síntese, é a discussão do papel do Cinema na construção e sustentação de uma determinada imagem sobre a nova capital mineira. Uma imagem que, por vezes, buscará contradizer a ideia de que Belo Horizonte não seria tão moderna quanto as urbs europeias em que se inspirava. E assim, essas imagens presentes nas produções de Junqueira e Bonfioli, vão, em muito, expressar esse desejo de ser e,

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principalmente, parecer moderno.

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Imagens de um mundo em transformação: As urbs modernas e a demanda por imagens O Brasil do final do XIX e início do XX tem como meta alcançar o trem do progresso e da civilização. A Proclamação da República trouxe, por parte de uma nova elite, a confirmação de que se estivesse em curso um processo de ruptura com um passado que, por ser colonial, é considerado retrógrado. E que assim, a chegada de um novo tempo, o tempo da República, colocaria o país de vez em harmonia com os países considerados civilizados. Para Sevcenko (1998), era como se a instauração do novo regime implicasse pelo mesmo ato o cancelamento de toda a herança do passado histórico do país. É, portanto, entre a retórica e desejo da modernidade e propostas de ruptura com um passado, que podemos pensar o Brasil nesse contexto. As elites brasileiras, principalmente aquelas ligadas à indústria do café, impressionaram-se bastante com o que viram na Europa e nos EUA. No contexto da chamada Belle Époque, a incorporação dos modos de vida dos europeus era de suma importância para que se pudesse ser moderno. O próprio termo Belle Époque mostra como que tal modernidade estava entrelaçada com a França, que será um grande referencial para essas elites, que vão querer reformar e transformar suas áreas urbanas em pequenas ‘Parises’ (SIVEIRA, 1996, p.120). Essas reformas deveriam transformar essas cidades em símbolos do progresso e da civilização, e, em alguns casos, representar o sucesso econômico da indústria cafeeira. Noções como higienismo, urbanismo e cientificismo, farão parte do referencial dessas reformas, que vão evidentemente excluir aqueles que as elites julgavam não poderem fazer parte da modernidade. O que poucos anos antes eram apenas parcos aglomerados de casebres, anônimos, insignificantes, entregues à modorra sonolenta da rotina, num repente acordavam, tomados de pressa ingente para entrar no bonde da história e atingir as benesses do progresso, acordados que foram pelo aroma forte e instigante de uma bebida dadivosa como o café e atingidos pelo imaginário alimentado em torno do moderno. (DOIN; NETO; PAZIANI; PACANO, 2007, p. 95).

República sempre foram conceitos que se intercruzaram, uma vez que a ‘coisa pública’ REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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melhor se encaixaria e representaria o espírito da República brasileira. Cidade e

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Entendia-se que a cidade, ou melhor, a urbs moderna ao estilo europeu, era a que


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deveria ser debatida no ‘espaço público’. Assim, o contexto emprenhado pela ideia de modernidade e os discursos elaborados na época a respeito, ligados às ideias de progresso e racionalidade, “invadiram” as concepções de Cidade e República. A cidade não poderia mais ser apenas compreendida como o espaço em que orbita o cidadão, mas a materialização de um novo espírito do tempo e de um determinado projeto de República. O passado, as cidades coloniais, o regime político, a sociedade agrária, a vida social pacata, estariam de acordo com outro tempo, que deveria ser superado com o advento da República. Ou seja, mais que um evento político, a Proclamação da República representou um marco inaugural de um processo pensado de ruptura com um determinado passado. E nesse sentido, a própria cidade moderna se apresenta como símbolo de um novo poder, de um novo tempo e de uma nova sociedade. É nessa relação simbólica e material de ruptura, que temos a construção da cidade de Belo Horizonte, substituindo a arcaica e colonial Ouro Preto como capital do estado.

(...) a efervescência ideológica dos primeiros anos da República, em meio à necessidade de legitimar o regime, instaurado por um golpe militar, sem dúvida delineou um horizonte favorável ao gesto ousado de construção de uma cidade-capital. (...) Na fala dos defensores do projeto, a cidade aparece como signo de um novo tempo; centro de desenvolvimento intelectual e de novas formas de riqueza e trabalho; foco irradiador da civilização e progresso; um lugar moderno, higiênico e elegante, capaz de consolidar um poder vigoroso e assegurar a unidade política do Estado. (JULIÃO, 1996, p. 49-50).

Por outro lado, no mesmo contexto da criação da nova capital de Minas Gerais, surge o cinema. É um momento em que, segundo Jean-Claude Bernardet, a burguesia desenvolve mil e uma máquinas e técnicas que não só facilitarão seu processo de dominação, a acumulação de capital, como criarão um universo cultural à sua imagem (BERNARDET, 1980, p. 15). Isso fica evidente ao observarmos a maneira como nesses primeiros anos do cinema os filmes foram produzidos e distribuídos. A própria participação dos irmãos Lumière, considerados por muitos os pais do cinema, na Exposição Universal de Paris de 1900, proporcionando exibições públicas do seu Cinematógrafo, estava, naquele contexto, afirmando a apreensão do cinema pela

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século XIX. Segundo Flávia Cesarino Costa, essas exposições universais funcionavam

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cultura racionalista, de fé no progresso e na modernidade que se desenvolve em fins do

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como um microcosmo do mundo civilizado. Seriam uma espécie de vitrine onde as várias nações mostravam sua cultura e sua tecnologia (CESARINO, 1995, p.2). Diversos países viam a reprodução de imagem, e, portanto, o cinema como uma espécie de farol, um elemento de política externa, pelo qual poderiam colocar-se como um modelo a ser seguido de civilização e progresso, e por meio da reprodução de imagens, projetar-se para o mundo como tal. O cinema representara para esses países que, como a França e Inglaterra, passaram por um desenvolvimento social, econômico, tecnológico e político, um trunfo dentro da perspectiva da cultura (BERNARDET, 1980, p.15). Não é por acaso que, em um dos primeiros registros da história do cinema, os irmãos Lumière se preocuparam em registrar cenas do mundo da industrialização, como a chegada de um trem à estação, em L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat (1895), e a saída de operários de uma fábrica em La Sortie da l’usine Lumière à Lyon (1895). Duas cenas clássicas do cinema mundial, e que registram eventos ligados ao universo industrial e a um discurso sobre modernidade e modernização. Assim, o fato de Belo Horizonte nascer junto à conformação de uma demanda por imagens, ou melhor, vistas, que a consolidação do cinema traz, é significativo. Afinal, estamos falando de um momento em que o registro, reprodução e exibição de imagens era fundamental, e, portanto, é preciso discutir em que medida essas imagens ajudaram a construir algumas das representações da capital mineira e que representações são essas. Uma vez que a construção de uma cidade não se dá apenas no campo material, mas também no campo simbólico. As imagens, tanto as produzidas pelo Gabinete Fotográfico da Comissão Construtora da Nova Capital, quanto pelos estúdios de fotografia e pintura espalhados pelo centro, guardam uma memória a respeito do cotidiano, das pessoas, das transformações, dos hábitos e espaços-símbolos, referentes àquela experiência histórica dos primeiros anos de Belo Horizonte. As fotos e filmes rodados constituem um material que contribuiu e contribui de forma significativa na formação de uma memória visual sobre a capital mineira, até hoje reproduzida. Elas se relacionam com a historiografia sobre Belo Horizonte, na medida em que

foram encomendadas por certos grupos e tinham propósitos específicos a serem REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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isso, elas não são apenas fontes, são agentes, uma vez que, sabe-se que essas imagens

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apresentam as mesmas discussões a respeito de modernidade e tradição. E mais do que


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cumpridos. Poderiam servir como instrumento técnico para a Comissão Construtora, ou como forma de dar visibilidade para os grandes feitos da capital por meio das revistas e jornais. Ou então, serem divulgadores do que se tinha de mais moderno no Brasil por meio dos cartões-postais. Assim, embora existisse a percepção de uma cidade pacata, fantasmagórica, quase que vazia; alguns periódicos da época buscavam, intencionalmente ou não, registrar o contraditório. O exemplo disso são as inúmeras fotografias que têm como fim capturar o movimento das massas, a moda à francesa das senhoras e senhoritas, as máquinas da modernidade como o automóvel e o bonde. Ou seja, tudo aquilo que contribuísse para formação de uma imagem de uma capital tão moderna quanto qualquer outra no Brasil e até no mundo. O que se pode observar, ao se contrapor certas fontes, é que, ao mesmo tempo em que algumas crônicas, escritos de autores por si só bastante icônicos, discorrendo a respeito do caráter pacato da cidade, com pouco fluxo populacional, nem de longe comparável às urbs modernas pelo mundo, têm em algumas representações imagéticas, uma réplica. A ideia que se tem é que tanto a tradição quanto a modernidade, em Belo Horizonte, estavam em disputa, e essa disputa se dava no campo do imaginário.

Entre o “caipira” e o smart: O cinema como projetor e mediador de sociabilidades Umas das questões que orbitam as discussões a respeito do projeto de modernidade de Belo Horizonte se encontram justamente no limiar da, já mencionada, tradição e modernidade. Com seu traçado urbanístico moderno, com grandes e largas avenidas, paradoxalmente, a percepção que se tinha era de uma cidade socialmente morta (JULIÃO, 1996, p. 63). Uma vez que o projeto da nova capital possuía uma lógica segregacionista, materializada no próprio traçado, afastando as grandes massas de trabalhadores para fora do centro da urbs, obteve-se como resultado uma cidade pouco complexa. Com áreas delimitadas, um elemento essencial da vida urbana acabou por ser prejudicado, no caso, a circulação de pessoas, a troca de experiências.

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comércio, como é o caso do Bairro dos Funcionários e da Avenida do Comércio, cria

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Uma cidade que classifica os lugares de acordo com as suas funções, trabalho e

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um espaço público essencialmente burocrático, o que já era apontado em uma crônica da Revista Novo Horizonte de 1911: Belo Horizonte é uma cidade burocrática por excelência! A acusa todos os sintomas de seu mal parasitário a quem queira se der ao trabalho de lhe tomar o pulso. É uma febre de mau caráter e que tem suas fases aguadas e de declínio; e como um mal intermitente, manifesta-se periodicamente as mesmas horas com uma normalidade precisa, caindo, logo depois, em seu estado comatoso e de dormência. O curioso que se postar a uma das esquinas da rua da Bahia, das 10 às 11 horas dos dias uteis há de constatar forçosamente, a precisão deste diagnostico, os períodos agudos de sua moléstia. É a hora em que os micróbios começam a se agitar para sugar-lhe, com ferocidade, o sangue, minando-lhe o organismo depauperado. E, na verdade, é a hora, é a hora em que o transito é maior, dos que sobem e descem, depois do almoço engolido às pressas, mal salivado e cujo resíduo, depositado nos dentes, ainda se aproveita com o auxílio do palito, pela rua, na preocupação de ainda alcançar o ponto nas repartições públicas. Surgem das esquinas, das ruas laterais e desfilam simultaneamente pela rua da Bahia, professoras apressadas suarentas, com suas valisas de mão e acompanhadas de crianças, funcionários de toda casta e de toda idade; velhos obesos, abarrotadados do almoço; rapazes opilados e franzinos, como um produto mirrado de estufa, homens de meia idade, já precocemente encanecidos e alquebrados; fomentando, uns, intrigas de repartição, bramindo, outros, contra a escandalosa preferência dos chefes, entre arrotos mal contidos e sempre se queixando da miséria dos honorários e aspirando projetadas reformas. Os bondes cruzam-se, tilitando, pejados de funcionários que habitam a parte mais afastada do centro. (REVISTA NOVO HORIZONTE, n. 5, 1911).

Observa-se nesse trecho da crônica a maneira como que o autor pensa a cidade enquanto um organismo que, em suas palavras, seria um “organismo depauperado”. Aqui, pode-se observar um cotidiano organizado pelo tempo do trabalho, do funcionalismo público principalmente. Esse caráter burocrático, e em certos pontos até apático, que a cidade possuía mostrava as dificuldades que se tinha de preencher o espaço público de forma mais orgânica e menos artificial, como o autor da crônica aponta ao dizer que o movimento na cidade “manifesta-se periodicamente as mesmas horas com uma normalidade precisa, caindo, logo depois, em seu estado comatoso e de dormência”. O autor critica o fato de que a vida social da cidade era esporádica e ainda se tinham a permanência de alguns hábitos considerados provincianos. Se com a chegada da iluminação pública e relatos de uma cidade na Europa que supostamente nunca dormia, a ideia de uma “urbs que lhes garante um longo cochilar” (REVISTA NOVO HORIZONTE, n. 5, 1911), parece-nos um pouco destoante dos

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bucólico das cidades interioranas. O que mais uma vez, reacende a questão entre

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signos de uma modernidade da efervescência das noites, e mais próximo ao cotidiano

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tradição e modernidade, urbano e interiorano, citadino e provinciano. Era preciso que as luzes do progresso se ascendessem todas as noites. Nesse sentido, em resumo, tinha-se uma cidade, em termos materiais, moderna, porém, com uma “alma provinciana”. Segundo Julião, era necessário que a vida no centro fosse mais “civilizada” e smart, e, portanto, um projeto civilizador precisaria ser imposto às elites urbanas para que assim pudessem se livrar de suas “caipirices”, substituindo-as pelas novidades provenientes do Rio e de São Paulo, para não dizer Europa. Isso significava operar uma metamorfose das suas relações sociais aristocráticas e tradicionais para as do tipo burguês, utilitarista e pragmático (JULIÃO, 1996, p. 66). Tanto a fotografia quanto o cinema assumem, nesse contexto, o papel desse elemento que, por um lado, projetava para o mundo não europeu um ideal de mundo europeu, como uma ferramenta de política externa. Por outro, era possível produzir imagens de si para os outros, que não necessariamente condiziam com a realidade, mas que reforçavam um desejo, como, também, uma ferramenta de política interna. Salomão de Vasconcellos em Memórias de uma República de Estudantes, de 1951, nos traz alguns vislumbres de como era a experiência do cinema em seus primeiros anos na capital. Quase em frente (ao Teatro Soucasseaux), do lado da Bahia, nos baixos do “Palacete Pimentel” junto à atual Casa Giacomo, instalou-se, ainda precário, mas constituindo uma novidade, o que então se chamava um cinematógrafo. Um aparelho ordinário, primitivo, de projeção trêmula e apagada, contudo coisa que atraiu. (...) Pagava-se dez tostões de entrada – muito naquela época. A primeira fita exibida – bem me recordo – era um romance puxado a Tarzan, mal engendrado. Um casal de jovens perdidos em uma floresta africana, no meio de feras. Mas, como novidade, a coisa agradou e atraiu muita gente. A cena principal, de maior sensação, foi quando apareceu um orangotango mal encarado, que foi entrando calmamente em luta com o rapaz por causa da mulher, e o matou. Matou-o e, pegando depois a moça desmaiada, carregou-a nos braços para dentro do mato. A assistência encheuse, naturalmente, de incontida curiosidade. Todos queriam ver o resto (...), mas, neste momento, a tela anunciou: Continua amanhã. (VASCONCELLOS, 1951 apud GOMES, 1997).

O cinema, encarado como um espelho, proporciona que encaremos os nossos medos, desejos, angústias. E em um contexto em que a discussão sobre ser moderno

correndo perigo para tal besta, funciona como um par antitético para o moderno, e

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evocando a figura imagética de um “orangotango mal encarado” e a civilizada mocinha

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estava em destaque na opinião pública, um filme em que se projeta em tela o primitivo,


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assim, contribui para uma distinção e formação de uma identidade atrelada à noção de moderno, civilizado em contraposição ao incivilizado e primitivo. No trecho a seguir, vemos, mais uma vez, o cinema indo de encontro com a fantasia, registrando o despir dos desejos e, para alguns, da moral: Outra fita foi a história de um banho de moças num rio. Coisa também de empolgar. Surgiu a Fazenda, vasta, de larga varanda na frente, o terreiro cercado de paredões, coqueiros em roda, e o rio passando ali perto. Chegou no topo da escada o grupo alegre de moçoilas, de toalhas sobre os ombros. Desceram para o terreiro em algazarra e correram em direção ao rio. Os espectadores iam acompanhando tudo aquilo com olhos ávidos, antegozando a surpresa. Chegadas à margem do rio, começou cada qual a se despir-se... Soltaram os cabelos, tiraram as blusas, as saias, os sapatos. Restavam as camisas. Mas, no momento de tirá-las... interrompeu-se a fita! Só reapareceram as banhistas depois do banho, quando, já vestidas, voltavam para casa! (VASCONCELLOS, 1951 apud GOMES, 1997).

Muitos compreendiam a cidade como um espaço que favorecia a promiscuidade. Isso aparece até em discussões a respeito dos filmes de origem narrativa dos espetáculos de vaudeville, como é o caso acima, em que o erotismo tinha grande espaço. Filmes cujo mote, por exemplo, um incêndio num Cabaré, era apenas uma desculpa para ver mulheres, que nem sempre eram mulheres, seminuas correndo. É claro que esse cinema não foi tão bem recepcionado pela moral mineira. Muitos na época entendiam esse tipo de filme como imoral, desagregador dos valores da tradição e da família, coisa que muitos entendiam como sendo típico do conservadorismo mineiro. A exemplo disso, uma vez, no Cinema Odeon, que ficava um pouco acima da Avenida Afonso Pena, à direita de quem sobe a Bahia, certa noite, segundo José Bento Teixeira de Salles, outro memorialista, o presidente Mello Vianna, diante de uma cena amorosa de um casal, na plateia, gritou: “Prenda este bolina!”. E assim foi feito. “Estava salva a honra da tradicional família mineira” (SALLES, 2005, p.08). Porém, mesmo assim, os cinemas foram um sucesso e se espalharam por toda a cidade. Do espetáculo esporádico, o cinema ia se afirmando como um lazer definitivo em Belo Horizonte (BRAGA, 1995). E assim, o cinema acabou tendo um papel fundamental no fomento de hábitos modernos, observáveis em vários filmes da época, e

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para a formação de uma nova sociabilidade na capital.

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Eram assim, naquele tempo, quando não se falava ainda nas maravilhas de Hollywood, os programas da “empresa”. Mas – escusado é dizes – apesar disso a sala enchia-se todas as noites, com a lotação completa”. (VASCONCELLOS, 1951 apud GOMES, 1997).

Assim, é possível que através do cinema e das produções cinematográficas advindas da Europa e Estados Unidos, muitas das práticas sociais do mundo burguês, civilizado e europeu tenham penetrado na aspirante à modernidade, cidade de Belo Horizonte. Pode-se pensar em uma recepção do cinema dentro de uma perspectiva voyeurista, ou seja, tal como o personagem de James Stewart em Janela Indiscreta (1954), as elites belo-horizontinas iriam estar de uma “janela”, observando a cultura europeia, de modo a desejar fazer do Brasil, uma “Europa dos Trópicos”. O olhar brasileiro nos primeiros anos de sua República eram tão voltados ao estrangeiro que as pessoas não se cumprimentavam mais à brasileira, mas repetiam uns aos outros: “Vive la France!” (SEVCENKO, 1998, p. 26). Porém, como já foi colocado, essa modernidade “à mineira” sempre esteve em conflito com o tradicional. Não por acaso, essa dificuldade da população em se adaptar a essa modernidade foi registrada nas revistas e jornais, por meio de crônicas e charges, por vezes, criticando o modo de ser dito moderno, por outras, apenas apontando o quão complicado era para as pessoas se adequarem à nova “moda”.

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Aquele cavalheiro de bigodes petgnan, de colarinho parafinado, rosto encrostado de gorduras de Lubin e furfuraceo de pós cheirosos de Houbigant, não parece, pelos modos, muito profundo em leituras de bom tom. Chega ao cinema, muito solene, muito protocolar em matéria poses, perscruta a plateia, com a técnica de um general que esboça um plano, enfia, murmura um seco – dá licença... e repoltreia-se na cadeira, como um molusco que espraia as suas gelatinosidades, sem se incomodar com os calos do próximo, nem com os contatos incivis que ás senhoras repugnam. Em posição, divaga um olhar inexpressivo, com ar postiço de fastio, pela arraia circunstante, acende ritualmente a cigarette, de ponta dourada, e desanda a soprar as bochechas alheias, engasgando a plateia com o refinamento contestável dos seus charutos aristocráticos e fumacentos. Debalde a senhora e a senhorinha, ao pé, irrequietam-se na cadeira, esgazeiam olhares trespassastes, abanam-se desesperadamente... O elegante... nada, nem desconfia. Smartismo, hoje em dia, é o pó de arroz, a brilhantina, o creme, a linha impecável do frak. Urbanidade, civilidade não entram em conta (...) (REVISTA VITA, n.2, 1913).

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Era entre o caipira e o smart que muitos cronistas viam o comportamento das pessoas pelas ruas e cinemas da cidade. “A Capital é uma moça toda catita e liró, Smart, fresca, empoada... Não de pó de arroz... de pó! (REVISTA VITA, n. 2, 1913).

Reminiscências e vistas de uma modernidade projetada: Aristides Junqueira e Igino Bonfioli Existe certa dificuldade em se produzir estudos a respeito do cinema em Belo Horizonte, principalmente sobre os anos iniciais. Os poucos livros publicados sobre o assunto aglutinam os registros de fontes que praticamente são de jornais que acompanharam a trajetória dos cinemas da cidade e não o cinema em si (ASSIS, 2006). Isso se dá justamente pelas especificidades deste tipo de documentação. No caso, as películas produzidas durante os primeiros anos de Belo Horizonte, em boa parte, se perderam em decorrência da má gerência e conservação desse material altamente inflamável. O que podemos considerar um aspecto sintomático de nossa relação entre História e Memória. Embora tenha sido, desde o início, capturada e registrada em fotografias e filmes, o que nos restam desses registros imagéticos da Belo Horizonte do início do século XX são apenas Reminiscências. Hoje, cerca de 90 por cento dos filmes brasileiros foram perdidos. As latas de filme do cinema brasileiro foram esquecidas nos quartos de despejos, no meio de ferramentas e coisas velhas, as imagens se apagaram pela ação da água, da terra e pela deterioração da película. Foram perdidas principalmente pela falta de ação do homem, que não conseguiu preservá-las. (MARQUES, 2007, p. 11).

Pensar o cinema enquanto fonte leva em conta compreender que este é um fenômeno cultural complexo em que se entrecruzam fatores de ordem estética, política, econômica e social. Entender o filme como um objeto isolado, ou seja, fora de um contexto, leva a conclusões imprecisas sobre a obra. Segundo Pierre Sorlin (1985), em sua obra Sociologia del Cine, o desenvolvimento de uma História Social do Cinema deve conter a identificação de um

um filme busca passar para seu telespectador, uma vez que o cinema é uma arte REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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sendo representados e como estão sendo representados; e problematizar as emoções que

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sistema de representações ficcionais ou sociais; quais elementos ou grupos sociais estão


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empática, em que sentimentos são mobilizados, como vemos nessa crônica da Revista Vita: Mademoiselle não pode reprimir aquele grito de indignação – desaforo! – ao ver o rapaz fugir aos beijos da mocinha. Mas mademoiselle não tinha razão em zangar-se: o rapaz andou bem, porque amava e era amado por uma irmã dessa mesma que o queria seduzir. E depois, mademoiselle que, exprimindo tão alto a sua emoção, chamou atenção de toda a sala, ha de convir que não valia a pena impressionar-se tanto por tão pouco: aquilo era fita, e Nordisk; na vida real talvez as cousas se passassem por outra forma (...) (REVISTA VITA, n.1, 1913).

Esse, que Flávia Cesarino Costa chama de Primeiro Cinema (COSTA, 1995, p.21), em muito, pode ser caracterizado, segundo as análises de Tom Gunning, como uma produção de tendência exibicionista, que aparece tanto na escolha dos assuntos filmados como na maneira com que esses assuntos se comportam diante da câmera (COSTA, 1995, p. 72). Ou seja, em comparação aos grandes épicos de D. W. Griffith, que temos a partir de 1915, por exemplo, nesses primeiros anos, o cinema foi visto como uma espécie de fotografia em movimento que visava uma paisagem feita de objetos que se moviam. Vemos em vários desses filmes, transeuntes acenando para a câmera ou o cinegrafista, o acionamento de máquinas em fábricas, automóveis em movimento, e, o que talvez seja o grande símbolo desse primeiro cinema e dessa modernidade em si, o trem. O tema do trem, nas suas aparições na tela ou nas imagens tomadas dele, era uma presença recorrente nos filmes mostrados nestas conferências de viagem e em muitos dos primeiros filmes. O mundo visto a partir do trem, mostrado como uma paisagem que desfila rapidamente diante do retângulo da janela, aludia a uma experiência sensorial da velocidade que era inteiramente inédita. Estava surgindo uma nova percepção do mundo, mediatizada pelas formas mecanizadas de deslocamento, mas transformada em percepção visual com o auxílio direto do próprio cinema, única mídia capaz de reproduzir a sensação de velocidade. (COSTA, 1995, p. 27-28).

Para Gunning, os primeiros filmes têm como assunto “sua própria habilidade de mostrar alguma coisa” de preferência uma coisa em movimento (COSTA, 1995, p. 73). Porém, o que deveria ser mostrado passa por um filtro cultural, social e econômico. Quando voltamos para o contexto belo-horizontino do início do século XX, as especificidades da maneira como o cinema chega à capital, quem produz esses filmes e

Autores como o crítico e ensaísta Paulo Emílio Salles Gomes, dividem essa produção inicial mineira em duas categorias: O “Ritual de poder” e o “Berço REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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temáticas.

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para quê ou quem, são questões fundamentais para a compreensão das escolhas


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esplêndido”. Segundo ele, o primeiro privilegiava o registro das autoridades políticas, militares e eclesiásticas, enquanto o segundo focava em mostrar belezas naturais, obras de engenharia e questões ligadas ao desenvolvimento industrial, bem ufanista.

Se o princípio foi o verbo, pode-se adjetivar as primeiras lentes como descritivas, idílicas, europeias, voltadas para face do país próspero, urbano, gravando as praças e belas paisagens. Segundo Paulo Emílio, “o cinema no Brasil funcionou como irrisória compensação para o nosso atraso; posto a serviço do culto das belezas naturais”. (MARQUES, 2007, p. 49).

Analisamos para esse artigo alguns filmes produzidos por Aristides Junqueira e Igino Bonfioli. Os dois são pioneiros na produção de filmes em caráter de cine reportagens, ou seja, focados no registro das “coisas atuais” e, por isso, são considerados os primeiros “documentaristas” mineiros. Embora, muito pouco do que esses dois cineastas produziram tenha sido preservado (apenas uma pequena e significativa parcela), é, pois, a partir dessas reminiscências que podemos captar uma projeção de modernidade. Não por acaso, esse é o título atribuído, Reminiscências, da principal obra de Aristides Junqueira, que reúne imagens gravadas entre 1909 e 1926. Datadas do início do século XX, essas imagens registram automóveis retornando de uma cerimônia de casamento. Um grupo composto por moças e rapazes caminhando pela Rua Rio de Janeiro, quase esquina com a Rua dos Caetés, no centro de Belo Horizonte. E vemos pessoas aguardando a chegada de um bonde, que vem se aproximando da tela de modo a preenchê-la ao final da sequência. Aristides, como muitos funcionários públicos da época, mudou-se com sua família de Ouro Preto para Belo Horizonte com a transferência da capital do estado em 1897. Onde se dedicou tanto à fotografia quanto ao cinema, trabalhando com a produção de filmes institucionais, registro de eventos sociais, políticos e documentários por quase cinco décadas. Ele personifica muitas das discussões pelas quais passamos ao longo do artigo, sobre a ruptura com um passado colonial, o caráter moderno e tradicional de Belo Horizonte, o sonho de ser uma Petit Paris e ser vista pelo mundo como tal e o cinema

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como um elemento de política externa.

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(...) em 1910, ele já realizara um filme sobre o Estado de Minas Gerais, que, apresentado pelo Governo da época, foi aceito como propaganda do estado a ser feita no estrangeiro, (...), como diz ofício de 28 de outubro de 1910, do então secretário da Agricultura, Sr. José Gonçalves de Souza. Tal propaganda foi feita em várias cidades da Europa, especialmente na exposição de Turim, em abril de 1911. A película intitulava-se “Minas Gerais” e foi exibida em diversas cidades italianas, como divulga um dos boletins de propaganda aqui produzidos. (REVISTA DE CINEMA, 1957, p. 17).

A produção de Aristides, como de muitos outros, estava dentro do que os estudiosos da História do Cinema Brasileiro consideram como “cavação”. Em que se recebia um financiamento, podendo ser estatal ou privado, para a produção de filmes, quase sempre documentários, sobre as atividades do Estado ou de empresas familiares, mostrando sempre as grandes obras ou as grandes famílias. Basicamente eram filmes feitos sob encomenda, em que quem os encomendava queria ver sua história contada pelo melhor ângulo, como em uma campanha promocional (FERREIRA, 2003). Em Reminiscências, essencialmente um filme de família, ou melhor, da própria família de Aristides, em que vemos em um intertítulo “A família do Cel. Antônio Francisco Junqueira em foco quando residia à Rua da Bahia em Belo Horizonte”, vemos muitos aspectos do que eram essas produções de “cavação” e o tinham como intenção. O storyboard a ser filmado era o sucesso, o das elites vencedoras, do país que se modernizava. (BERNADET, 1979: 58 apud FERREIRA, 2003). O que reflete mais uma contradição, uma vez que o cinematógrafo, esse elemento-símbolo de uma modernidade do início do século XX, acaba sendo usado para guardar a memória de uma típica e longeva família tradicional mineira. Ou seja, até mesmo nesse Primeiro Cinema Mineiro, ao registrar o filho mais velho do Cel. Antônio Francisco Junqueira “e seus filhinhos Chloris, Alice, Heloisa, Moacyr e Zuleika”, persistem os traços de uma sociedade rural, conservadora e que tem a imagem da

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família patriarcal como aquilo que deveria ser registrado para a posteridade.

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Dossiê Figura 1 – Reminiscências – Cenas de um casamento.

Legenda: Muito do que se produziu desse cinema de “cavação”, era relacionado ao registro dos grandes acontecimentos das famílias mais tradicionais da capital mineira. Era comum existirem muitas fitas registrando casamento, no caso aqui, vemos a imagem de um dos trechos de Reminiscências, mas Aristides produziu filmes como este. Fonte: EXMA. FAMÍLIA, 1913.

Já Igino Bonfioli, que em muito se espelhou no trabalho de Aristides Junqueira, nos mostra como que os imigrantes, especialmente os italianos, tiveram grande influência na formação de um cinema mineiro. Igino Bonfioli foi um dos “fazedores de filmes” da primeira geração que, como muitos na época, vinham emigrados da Itália e se estabeleceram em Minas, especificamente em Belo Horizonte, em busca de oportunidades e espaços para trabalho. A quantidade de estrangeiros assumindo estúdios fotográficos e produzindo filmes em Belo Horizonte revela traços de um cosmopolitismo no que diz respeito a esses ofícios, expresso na mobilidade profissional e na circulação de ideias, produtos, experiências e padrões de visualidade advindos de outras terras e mares (CAMPOS, 2008, p. 17). A exemplo disso, temos o filme Feira Industrial e Agrícola de Belo Horizonte, de 1932, produzido por Bonfioli. Muitas das imagens que aparecem nessa produção dialogam com ícones da cinematografia europeia. Tanto os planos de L’Arrivée d’un

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(1895), aparecem em determinados trechos do filme, o que aponta para uma intenção de

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train en gare de La Ciotat (1895), quanto de La Sortie da l’usine Lumière à Lyon

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se mostrar uma modernidade ligada à questão da industrialização, que é essencialmente o “motor” do filme. Figura 2 e 3 – Cenas do filme Feira Industrial e Agrícola de Belo Horizonte

Legenda: Cenas do filme Feira Industrial e Agrícola de Belo Horizonte. Assim como nos filmes dos irmãos Lumière, Bonfioli registra tanto a chegada de um trem, quanto a saída de funcionários da usina. A referência a tais ícones demonstra a existência de uma cultura visual cinematográfica atrelada aos valores burgueses e aos signos do mundo industrializado. Fonte: CENAS, 1932.

Aqui, podemos fazer uma crítica com relação à distinção entre “Ritual do poder” e “Berço esplendido”, já que podemos entender que o registro da indústria e de elementos de paisagem, ao estarem associados à noção de progresso, ainda estariam inseridos em uma lógica do ritual do poder, pois não se pode distanciar esses filmes de uma dimensão, ainda assim, política. Ou seja, muitos desses filmes transitam de forma orgânica entre essas duas dimensões, ao invés de compartimentalizarem-se. Em uma cena muito bem construída, temos a ideia de uma “procissão” para o progresso, para a modernidade, apresentada de forma bastante sofisticada. Utiliza-se uma técnica em que se posiciona uma câmera na frente de um automóvel, que ao se mover, gera a sensação de que estamos acompanhando os passos de um fantasma e, por isso, essa técnica ficou conhecida como Phantom ride.

câmera, algo característico do Primeiro Cinema. Subimos mais um pouco, vemos uma

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canto esquerdo da filmagem, vemos uma mulher e uma criança, que olham para a

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Na cena, a câmera, de forma bastante cadenciada, sobe uma estrada de terra. No


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casa à direita da imagem e, logo em seguida, há um corte, e vemos uma panorâmica da área destinada à usina. Dois elementos da modernidade nos acompanham nessa “caminhada ao progresso”, o automóvel e a câmera. O filme passa a ideia de um progresso, lento, associado ao domínio do homem sobre a natureza. Não é à toa que, à medida que o carro avança vemos, dentre as árvores, vários postes de luz. O interessante desse filme é notar que existe uma forte tendência à “narrativização”. Na descrição da cena acima, isso fica em vários aspectos evidente. A ideia de que a cena começa em um ponto A e termina em um ponto B, nos mostra como que esses filmes eram pensados e organizados para formarem algum sentido. Um sentido que poderia ser construído pelo movimento de câmera, pela interação entre as cenas através da montagem – que passa a ser recorrente a partir de 1910 – ou, então, pela divisão do filme em partes. Esses três elementos elencados aparecem em Feira Industrial e Agrícola de Belo Horizonte. Portanto, podemos aferir que alguns desses filmes eram pensados e organizados para além da exibição, possuindo já uma roteirização por trás buscando a geração de sentido. Estudando os roteiros dos primeiros filmes, Pat Loughney afirma que é desconcertante para nós constatar que os filmes já utilizavam roteiros em 1902 e descobrir que “simples comédias de perseguição de 1904, que hoje supomos terem sido concebidas em total improviso, eram na verdade baseadas em documentos escritos bastante similares àqueles dos filmes atuais. (COSTA, 1995, p. 85).

Podemos perceber esse mesmo processo de “narrativização” presente em outro filme de Bonfioli, Saída do Cinema – Rua da Bahia, de 1920. O filme acompanha a ida ao cinema de um grupo de pessoas e as atividades que se seguem disso. Ou seja, novamente, existe um ponto A, antes de ir ao cinema, e o filme caminha para um ponto B, depois de ir ao cinema. Nesse filme, podemos discutir outras questões tão pertinentes quanto, a exemplo de, como, através do que é mostrado nas imagens, podemos perceber que ir ao cinema era um evento digno de nota, ou pelo menos assim foi registrado por Bonfioli. As pessoas que aparecem no filme estão trajadas tal como se em Paris estivessem, e bem ao

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capital traziam textos como:

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passo do que se consideraria smart. Não é por acaso que os anúncios de cinemas da

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(...) frequentado diariamente pelo que Belo Horizonte tem de mais chic e seleto em sua sociedade, o Cinema Avenida, de propriedade, dos srs. Santos, Irmão & Pinto, exibe fitas de assuntos locais, de grande efeito, sem se falas nas inúmeras coleções com que frequentemente surpreende os seus frequentadores. (NOVO HORIZONTE, n. 2, 1910).

De fato, a forma como as pessoas se vestiam pelas ruas da capital era algo de significativa atenção para elas. Na cena inicial do filme, vemos um grupo de pessoas na escadaria de uma residência vestidas com trajes de gala. A moda era uma forma prática de apresentar-se como moderno, afinal, ao vestir-se tal como um parisiense, automaticamente assentar-se-ia qualquer vestígio de uma então “caipirice”. É por isso que podemos constatar nas revistas e jornais, alguns registros fotográficos e notas sobre a moda na capital, como era o caso da Hora Chic da Revista Vita: Em homenagem ás nossas gentis conterrâneas resolvemos instituir uma secção nova – A hora chic, destinada a fixar pela photografia instantânea a silhueta das senhoras e senhoritas que a nossa objectiva conseguir registrar, ás quintas-feiras, de 3 ½ a 4 ½ horas da tarde, na rua da Bahia, em frente ao Petit Louvre. (...) (BELO HORIZONTE, 30 de novembro de 1913).

Em outra cena, o mesmo grupo de pessoas posa para a câmera diante de um cartaz do filme Double Trouble (1915), protagonizado por Douglas Fairbanks. Aqui, além de reiterar essa característica de “mostração” do primeiro cinema, em que as “personagens” do filme sabem que estão em um filme, temos um vislumbre do tipo de produção que era exibida na capital em seus anos inicias. O filme de produção, do já citado D. W. Griffith, é uma releitura do tema de Jekyll e Hide, em que a personagem de Fairbanks, descrita como tímida e “efeminado”, adquire uma segunda personalidade, imprudente e paqueradora, após ser atingido com um golpe na cabeça. Double Trouble é um filme fruto de um momento em que ocorre um aumento do público do cinema, o surgimento de grandes empresas e a gradual domesticação das formas de representação e exibição dos filmes, que visa a cooptação das classes médias ao cinema, o que leva à adoção de dramas burgueses, adotando a literatura como base, o surgimento do formato de longa-metragem e o aperfeiçoamento dos dispositivos narrativos. O interessante é que as lentes de Bonfioli registram um novo tempo para o

Por fim, em outra cena, após saírem do cinema, o grupo faz uma parada em um estabelecimento onde conversam e tomam café. Nela podemos observar que os cafés REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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do dito Primeiro Cinema, indicando a fluidez do tempo histórico.

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cinema, concomitantemente, a linguagem utilizada para isso, ainda está de acordo com a


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eram, e assim foram registrados, os principais espaços de encontro e sociabilidade para um determinado grupo social, em específico o que aparece no filme. Lugar de reunião, de debates políticos e literários acalorados, de irradiação de notícias e boatos, de contrato de negócios, de sofrer de dores de amores, de aprender as novas modas e dos comportamentos civilizados, de iniciar e estreitar amizades, ou de contatos breves e superficiais. (...) os cafés eram percebidos, juntamente com o teatro, o cinema, os boulevards, como espaços de civilização. (SILVEIRA, 1996, p. 121-122).

Bonfioli, através de seu filme faz uma associação direta entre a atividade de ir ao cinema e o hábito de tomar café, o que nos ajuda a vislumbrar como o cinema, aliado aos cafés, se tornaram espaços de sociabilidade que dialogavam com os anseios de uma elite que buscava se sentir em uma Petit Paris em Belo Horizonte (SILVEIRA, 1996). Essa produção, provavelmente encomendada pelo grupo que aparece na maioria das cenas, nos mostra como que a Rua da Bahia representava, para aqueles habitantes, o que se tinha de mais próximo de um estilo europeu de viver, e os filmes que aqueles homens e mulheres assistiam confirmavam isso. De todas as ruas da capital, sem dúvida, a da Bahia encarnava a síntese do ambiente cosmopolita. Para ali convergiam o comércio, o cinema, o burburinho da multidão, o café. Era a artéria por onde transitavam homens e mulheres elegantes, automóveis e bondes. Na esquina com a Avenida Afonso Pena ficava o Bar do Ponto, no mesmo quarteirão preferido para o footing, o flirt e a boêmia smart (JULIÃO, 1996, p. 67-8). E foi dessa forma que Bonfioli registrou. O cinema, assim como os cafés, como referência de sociabilidade, modernidade e, é claro, civilização.

Considerações Finais Portanto, esse artigo teve como objetivo pensar a experiência do cinema no contexto da Belo Horizonte da primeira metade do século XX, pensando na questão desta estar inserida numa lógica em se buscava formular novas imagens (representações) em detrimento de antigas. É o republicano em detrimento do colonial. É o moderno no lugar do antigo. É o movimento no lugar do pacato.

Procurando compreender tanto o contexto de criação da capital republicana de Minas, quanto da chegada do cinema em Belo Horizonte. Discutindo-se as problemáticas REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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primeiros anos da capital, com uma historiografia sobre os primeiros anos do cinema.

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Buscou-se discutir as possíveis intersecções entre a historiografia sobre os


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advindas das relações entre tradição e modernidade, e como que o cinema, e a fotografia, dentro dessa disputa, estariam atuando no campo do imaginário, produzindo representações, em muitas vezes, absorvidas pelos jornais e revistas da capital. Além disso, viu-se nas revistas analisadas, Vita e Novo Horizonte, como que o diálogo entre o tradicional e o moderno se dava não só na contraposição, mas, às vezes, pela mistura. Assim, podemos observar, nos relatos trazidos, representações modernas, porém, com lastros na tradição. E, por fim, este trabalho se propôs a analisar algumas produções cinematográficas do início do século XX, fase inicial do cinema, que, no caso de Belo Horizonte, recortado de 1898 até o final dos anos trinta. Em especial, discutimos alguns filmes de Aristides Junqueira e Igino Bonfioli, dois pioneiros do cinema em Minas. Seus filmes, hoje, colocam-se como de grande importância historiográfica ao retratar a sua visão a respeito do que seria a vida, o cotidiano, na nascente Belo Horizonte.

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Dossiê FAMÍLIA Machado. Direção: Aristides Junqueira. Belo Horizonte/MG/Brasil. Acervo Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte, 1922. FEIRA industrial e agrícola de Belo Horizonte. Direção: Igino Bonfioli. Belo Horizonte/MG/Brasil. Cinemateca Brasileira, 1932. Disponível em: < http://www.bcc.org.br/filmes/443181>. Acesso em: 07 set. 2020. FERREIRA, Suzana Cristina de Souza. Cinema Carioca nos anos 30 e 40: os filmes musicais nas telas da cidade. São Paulo, Annablume: Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2003. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GOMES, Paulo Augusto. 100 anos de cinema em Belo Horizonte. Varia História, Belo Horizonte, n. 18, set/97, p. 347-372. ____. Os italianos e o nascente cinema mineiro. Disponível em: <https://www.ponteentreculturas.com.br/media/textos_palestras/Os_italianos_e_o_nascente_cinema_min eiro_Paulo_Augusto_Gomes.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2016. JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: Itinerários da cidade moderna (1891-1920). In: DUTRA, Eliana Freitas (org.); BH: Horizontes Históricos. Belo Horizonte: C/ARTE, 1996, p. 49-118. ____. Sensibilidades e representações urbanas na transferência da capital de Minas Gerais. História (São Paulo) v.30, n.1, p.114-147, jan/jun 2011, ISSN 1980-4369. KOSSOY, Boris. Fotografia e História. Ateliê Editorial, São Paulo, 2001. MARQUES, Alexandre Pimenta. O registro inicial do documentário Mineiro: Igino Bonfioli e Aristides Junqueira. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. MITCHELL, W. J. T. O futuro da imagem: a estrada não trilhada de Rancière. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (orgs.). Culturas das Imagens: desafios para a arte e para a educação. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2012. MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 11-42, 2003. NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 235-289. NOVATO, Ana Cristina; COSTA, Eduardo. Os primeiros 100 anos. Belo Horizonte: Gráfica e Editora 101, 1997. PAIVA, Eduardo França. A Nação/República, a Cidade e o Cemitério. In: Belo Horizonte: Histórias de uma cidade centenária. Belo Horizonte, Faculdades Integradas Newton Paiva, 1997. REMINISCÊNCIAS. Direção: Aristides Junqueira. Belo Horizonte/MG/Brasil. Acervo Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte, 1909.

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REVISTA NOVO HORIZONTE, Belo Horizonte, setembro/1910 – janeiro/1911. Acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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A TRANSFORMAÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS DA AVENIDA AFONSO PENA NO SÉCULO XX: discussões sobre a relação entre metamorfose da paisagem e a permanência da sua identidade The transformation of urban spaces on Afonso Pena avenue in the 20th century: discussions of the relationship between landscape metamorphosis and the permanence of its identity

Tatiana Pimentel Barbosa*

RESUMO: O século XX trouxe, simultaneamente, uma grande aceleração da transmutação da paisagem das cidades e o surgimento e desenvolvimento dos conceitos de preservação do patrimônio. Em Belo Horizonte, entre meados da década de 30 até a criação do IEPHA em 1971, a verticalização se desenvolve fortemente, transforma os ambientes urbanos e substitui ícones arquitetônicos que constituem espaços de referência identitária. Porém, mesmo com toda essa profusão de demolições e construções é possível que a identidade cultural da avenida tenha traços de permanência para os grupos sociais que a frequentavam e frequentam. Partindo do princípio de que as ambiências urbanas são cenários geradores de referências simbólicas que resultam em processos identitários, ou seja, na construção da identidade cultural de grupos sociais, pretende-se aqui uma contribuição na discussão sobre a relação entre metamorfose da paisagem e a permanência da sua identidade. Palavras-chave: Patrimônio; Arquitetura; Belo Horizonte.

ABSTRACT: The 20th century brought, simultaneously, a great acceleration of the transmutation of the landscape of the cities and the appearance and developments of the concepts of heritage preservation. In Belo Horizonte, between the mid-1930s and the creation of IEPHA in 1971, verticalization developed strongly, transforming urban environments and replacing architectural icons that constitute spaces of identity reference. However, even with all this profusion of demolitions and constructions, it is possible that the cultural identity of the avenue has traces of permanence for the social groups that frequented and frequent it. Based on the principle that urban environments are scenarios that generate symbolic references that result in identity processes, that is, in the construction of the cultural identity of social groups, we intend here to contribute to the discussion on the relationship between landscape metamorphosis and construction your identity. Keywords: Heritage; Architecture; Belo Horizonte.

Introdução Este artigo teve seu embrião na sala de consultas do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Por meio da visualização de microfilmes de projetos arquivados, é possível analisar o histórico de um determinado lote apurando os projetos elaborados para serem ali construídos. Observando a somatória de projetos catalogados para cada caso analisado e pressupondo suas consequentes obras, que em muitos casos chegam a

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Arquiteta e Urbanista / Mestranda em Arquitetura e Urbanismo / UFMG. E-mail: tatiana@tatianapimentel.arq.br.

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totalizar quatro diferentes construções em um mesmo terreno, fica clara a acelerada


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velocidade da transformação da cidade ao longo de uma história urbana de pouco mais de 120 anos. A partir da verificação de dezenas de casos em que se pôde notar essa acumulação de camadas de arquitetura e memória1 em pontos diversos da cidade, surgiu o impulso por levar essa análise aos principais pontos de referência urbana da capital mineira. Não foi necessária vasta pesquisa historiográfica para encontrar evidências de que a história de Belo Horizonte é caracterizada por sucessivas substituições de ícones urbanos. A cidade se originou no final do século XIX com a implantação do plano de Aarão Reis sobre a demolição do arraial2, marcando um ciclo de transmutação constante do panorama que perdurou no decorrer do século seguinte. Concomitantemente a toda essa profusão de demolições e construções que caracterizaram a aceleração da transformação da imagem da cidade, o século XX manifesta também o surgimento e o desenvolvimento dos conceitos patrimoniais conhecidos atualmente. Nas primeiras décadas do século XX não houve, por parte dos gestores ou da maior parte da população, o entendimento da arquitetura de Belo Horizonte como patrimônio a ser preservado. Até os anos 1930, a cidade estava ainda no longo processo de conclusão da implantação do projeto de Aarão Reis. Em 1922, foi aprovada uma nova legislação urbanística, possibilitando edificações com altimetria muito superior ao permitido na legislação anterior, de 1901. A partir de então, seriam possíveis prédios com altura proporcional à largura de cada via, o que significaria até 50 metros na Avenida Afonso Pena. Essa reconfiguração da lei demonstrou uma grande expectativa do poder público em relação ao desenvolvimento da verticalização e do adensamento da cidade e poderia ter sido a marca do início do ciclo de substituições de ícones urbanos, não fosse o fato de que a liberação da verticalização ainda não condizia com uma real demanda de mercado (CASTRIOTA; PASSOS, 2017). Também é a partir da década de 20, marcada pela Semana de Arte Moderna de 1922, que se iniciou a busca dos modernistas pela construção de uma cultura genuinamente brasileira e, com isso, as primeiras discussões que deixariam como

São consideradas aqui camadas de arquitetura e memória a sequência de construções, demolições e reconstruções em um mesmo terreno, todas elas carregadas da sua representação histórica. 2 O arraial citado refere-se ao distrito, pertencente a Sabará, nomeado por ordem régia em 1750 como Nossa Senhora do Curral Del Rey e que em 1890 foi renomeado como Belo Horizonte. Elevado à condição de capital mineira com o nome de Cidade de Minas, em 1901 passou a receber o nome de Belo Horizonte. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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legado os conceitos atuais de patrimônio. Naquele momento, o que se via como objeto


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arquitetônico a ser protegido não tangenciava a nossa capital, essencialmente eclética e construindo um horizonte modernista. Neste primeiro momento da preservação, a manifestação da cultura mineira foi atribuída à arquitetura barroca das cidades coloniais, o que motivou a elevação da cidade de Ouro Preto à categoria de monumento nacional brasileiro em 1933 e seu tombamento em 1938. No ano de 1933, foi regulamentado o uso do concreto armado pela Prefeitura de Belo Horizonte e, já em 1935, os primeiros “arranha-céus” da cidade foram inaugurados: o edifício Ibaté e a Feira Permanente de Amostras, ambos com 10 pavimentos. “Apesar de poucos edifícios verticais terem sido erguidos na década de 1930, eles eram vistos com grande empolgação, como uma evidência do progresso da Capital” (CASTRIOTA; PASSOS, 2017, p.135). Os arranha-céus representavam o vertiginoso progresso, percebido tão positivamente, que levaria a população a um futuro considerado evoluído. Na esfera patrimonial, iniciou-se na Era Vargas a formulação do estatuto legal e ideológico do patrimônio cultural brasileiro e, em 1937, criou-se o SPHAN3, o órgão público a serviço da defesa do patrimônio cultural. Belo Horizonte teve o primeiro bem do país protegido pelo órgão federal em 1947, a Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha. Em seguida, os últimos vestígios do Curral del Rei foram salvaguardados pelo SPHAN. Em 1951 e 1960, tombou-se, respectivamente, a casa da Fazenda do Leitão - atual Museu Abílio Barreto - e o Lavatório da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem. A este ponto, o ecletismo, que constitui a maior parte da arquitetura praticada na implantação da capital dos mineiros, ainda não era percebido como patrimônio a ser defendido. As décadas de 40, 50 e 60 foram marcadas pela forte aceleração da verticalização e do desenvolvimento econômico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início de um novo período democrático no Brasil, fomentou-se um “surto de otimismo na sociedade brasileira” (ANDRADE; MAGALHÃES, 2017, p.52). Com Juscelino Kubitschek no governo do estado de Minas e depois da presidência da República, a década de 50 é marcada por acelerado desenvolvimento e consequente transfiguração do ambiente citadino, com numerosas demolições e reconstruções, tanto

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Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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urbanos.

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de edificações sem grande destaque na cena urbana quanto de importantes ícones


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Belo Horizonte segue o mesmo percurso de grandes cidades do continente americano que, segundo Lévi-Strauss (1996) foram construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas. A perspectiva do autor sobre as cidades da Américas poderia ser observada também em Belo Horizonte. “Nas cidades do Novo Mundo (...) o que me impressiona não é a falta de vestígios: a ausência é um elemento de seu significado” (LÉVI-STRAUSS, 1996. p.91). Como São Paulo, Nova Iorque ou Chicago, a capital mineira parece ter perpassado seu primeiro século entre o canteiro de obras e a pilha de entulhos. Com a criação do IEPHA-MG4 em 1971, começou ser ampliada a lista de bens protegidos, demonstrando uma mudança de postura em relação à valorização do ecletismo como expressão cultural. Por isso, a década de 70 pode ser considerada o início da história do reconhecimento e da preservação da arquitetura eclética belohorizontina. Em 1975 foram tombados o Palácio da Liberdade - em todo seu complexo: fachadas, áreas internas, elementos decorativos, esculturas, orquidário, quiosque e todos os bens de valor artístico e histórico -, o Arquivo Público Mineiro - seu terreno e as edificações ocupadas por ele - e o Conjunto Paisagístico Parque Municipal Américo Renê Giannetti. Em seguida, em 1977, foram protegidos o Edifício do Necrotério do Cemitério do Bonfim, o monumento Comemorativo ao Centenário da Independência Nacional (Pirulito da Praça Sete), a Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem e o Palácio da Justiça Rodrigues Campos. No mesmo ano, foi realizado o tombamento do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Praça da Liberdade. O conjunto compreendia seus jardins, alamedas, lagos, hermas, fontes e monumentos, além dos prédios das Secretarias de estado da Fazenda, Obras Públicas (antiga Secretaria da Agricultura), Educação (antiga secretaria do Interior), Segurança Pública e Interior e Justiça, incluindo fachadas e interiores, além dos prédios dos Palácios da Liberdade e dos Despachos. No ano de 1978, foi realizado o tombamento do Museu Mineiro e em 1979 a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Na década de 1980, o IEPHA seguiu com a proteção do Instituto de Educação de Minas Gerais (1982), Escola Estadual Afonso Pena, Escola Estadual Ordem e Progresso, Casa do Afonso Pena Júnior (1983), Conjunto Arquitetônico da Pampulha (1984) e diversos outros processos de

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Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.

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tombamento (IEPHA, 2014) que pouparam grandes referenciais urbanos da demolição.


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Mesmo sob a construção dos conceitos de preservação e a criação dos órgãos destinados a este serviço ao longo do século XX, durante todo esse tempo especialmente até 1975, com os primeiros tombamentos do IEPHA - aconteceram inúmeras demolições, construções e reconfigurações de edificações e espaços públicos que constituíam fortes referenciais urbanos de Belo Horizonte. Dentre os casos, pode-se citar, limitando a abordagem a alguns fatos ocorridos na principal avenida da região central da cidade, a Afonso Pena: as diversas subtrações de espaços do Parque Municipal; a substituição do prédio dos Correios pelo Edifício Sulacap (1943) e posterior construção do anexo (1971); a demolição do primeiro Mercado para a construção da Feira de Amostras (1935) e sua sobreposição pela Rodoviária (1971); a destruição da Igreja Metodista para construção do Edifício Acaiaca (1947); a construção do prédio da Delegacia Fiscal sobre o terreno da Praça da República e sua posterior demolição para a construção do Edifício da Receita Federal - Ministério da Fazenda (1969); a retirada dos fícus do centro da avenida; as diferentes caracterizações da Praça Sete, tanto no que se refere às edificações quanto aos espaços públicos. Em 1984, a Lei Municipal nº 3.802 organizou a proteção do patrimônio cultural e criou o CDPCM-BH5 e, em 1993, originou-se o órgão municipal responsável pela implementação e gestão da política de proteção ao patrimônio cultural. Em reconhecimento à sua indiscutível relevância, logo no ano de 1994 foi tombado pelo órgão municipal o Conjunto Urbano da Avenida Afonso Pena e Adjacências. Além de ser o principal eixo da região central da cidade, a Afonso Pena constitui uma amostra representativa do espaço urbano belo-horizontino e é testemunha dos maiores acontecimentos sociais e políticos da história da cidade.

Conforme precisamente

descrito no texto de caracterização geral do conjunto que compõe o dossiê de tombamento, na Avenida Afonso Pena “a população se reconhece enquanto comunidade, enquanto coparticipante de um mesmo espaço e de um mesmo lugar” (PMBH, 2014). O tombamento do conjunto e das edificações isoladas alterou a trajetória da transformação da paisagem, contendo o processo de substituição dos

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Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte .

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grandes ícones urbanos a partir de então.


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A questão da identidade

A partir dessa constatação de um século de metamorfose ativa dos ambientes urbanos, desenvolveram-se as seguintes questões: que tipos de consequências sociais podem ter sido geradas por estas mudanças? Como essas reconfigurações do espaço afetaram a vivência da cidade pela população? Como os frequentadores do espaço perceberam e reagiram a essas transformações? Como a renovação dos cenários do cotidiano podem influenciar processos de identificação da população com a cidade? Como esses processos de identificação são construídos? Apesar da transformação da ambiência urbana da Avenida Afonso Pena, quais os valores simbólicos que atravessaram o tempo e permanecem na atualidade ainda gerando processos de identificação? Não se intenciona responder todas essas questões neste artigo, mas introduzir alguns conceitos para que se possa levantar discussões a respeito. Para Sarlo (2006, p.89), “a rua é o lugar (...) onde diferentes grupos sociais realizam sua batalha de ocupação simbólica. A arquitetura, o urbanismo e a pintura olham, recusam, corrigem e imaginam uma cidade nova”. Partindo do princípio de que as ambiências urbanas são cenários geradores de referências simbólicas que resultam em processos identitários, ou seja, na construção da identidade cultural de grupos sociais, pretende-se aqui uma contribuição na discussão sobre a relação entre metamorfose da paisagem e a permanência da sua identidade. Segundo Araújo e Haesbaert (2007), no livro Identidades e Territórios, existe uma ambivalência de importante destaque para a compreensão do conceito de identidade. As identidades sociais são simbólicas, ou seja, não estão inscritas no real, estão sujeitas a interpretações do imaginário, não necessariamente realistas, “podendo ver em uma coisa o que ela não é” (ARAUJO, HAESBAERT, 2007, p. 43). Porém, os símbolos que compõem essa identidade precisam estar ancorados em referentes materiais concretos. Esse material concreto, citado pelo autor, se refere aos espaços geográficos que se tornam referenciais simbólicos por meio dos quais grupos sociais se reconhecem e assim afirmam suas identidades. Portanto, a construção da identidade é

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Segundo os autores, essa referência simbólica constitui a identidade cultural.

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um processo social simbólico que se apropria do elemento concreto como referência.

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Dossiê Para Poche, poríamos tanto falar de identidade cultural quanto de referência simbólica, mas o primeiro termo acabou prevalecendo, em função de evocar mais claramente um “dinamismo potencial” e de ter uma relação mais clara com fundamentos históricos e etnológicos – em particular a língua, mas também certos elementos da economia local mantidos através do gênero da vida. (ARAUJO, HAESBAERT, 2007, p. 43).

Portanto, ao se falar de identidade cultural neste texto, que se refere à história da metamorfose dos espaços urbanos da Avenida Afonso Pena, estar-se-á abordando as transformações e deslocamentos dos seus referenciais simbólicos como espaços de referência identitária. Primeiro questionamento que se faz é se é possível falar de uma identidade única para Belo Horizonte. De acordo com Candau (2011), é cada vez menos pertinente tratar de uma identidade singular nas sociedades contemporâneas, em que se têm memórias fortes fragmentadas, compostas de pedaços heterogêneos, testemunhos opostos, vestígios incoerentes. O que o autor chama de retóricas holistas, que seria a memória fixa, imutável, organizadora de uma identidade aplicável a todos ou à maioria dos membros de um grupo, são dificilmente sustentadas, visto que a interpretação dos fatos é individualmente diferenciada, portanto, mesmo que a lembrança de um acontecimento possa ser compartilhada, suas representações permanecem pessoais. O autor também constata que essas retóricas poderiam funcionar em pequenos grupos, na medida em que as memórias fossem repetidamente lembradas, como acontece em famílias e suas histórias contadas, recontadas, recriadas e resignificadas. A criação da nova capital de Minas no final do século XIX surgiu pautada na necessidade de esquecimento de um passado recente monárquico e escravagista, com intenção assumida de criar uma metrópole símbolo de modernidade, saúde, liberdade, organização. Essa imagem da metrópole moderna parece ser uma representação dominante na consciência popular que permanece no tempo, desde a intenção projetual do plano de Aarão Reis até os dias atuais, um valor simbólico que se manifesta perene como referencial para a maioria da população. Segundo Candau (2011), algumas memórias organizadoras podem ser importantes para criar vínculos entre os indivíduos da sociedade e trazer um sentimento

memória. Não é possível uma uniformidade nas interpretações pessoais a respeito dos lugares - e isso nem é desejável - mas é preciso aceitar que é impossível essa REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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pontos, deixando livre a representação, o valor simbólico de cada ponto de resgate de

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de unidade social. Segundo o autor, a história precisa estar representada em certos


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planificação das identidades e escolher as memórias a serem herdadas, como ícones edificados espalhados pela cidade. O discurso do autor sugere, em aplicação ao caso da análise aqui discorrida, uma tendência ao entendimento de que as transformações dos espaços urbanos não necessariamente trariam um apagamento de memórias, desde que referenciais simbólicos estrategicamente definidos se mantivessem presentes na cidade. É importante considerar o dito por Norberg-Schulz (2006):

A estrutura de um lugar não é fixa e eterna. É normal que os lugares mudem, às vezes muito rapidamente. Isso não significa, porém que o genius loci necessariamente mude ou se extravie. Mais adiante veremos que ter lugar pressupõe que os lugares conservem suas identidades durante determinado período de tempo. Stabilitas loci é uma condição necessária para a vida humana. Como então essa estabilidade é compatível com a dinâmica da mudança? Deve-se assinalar primeiramente que qualquer lugar deveria ter a capacidade de receber diferentes conteúdos, naturalmente dentro de certos limites. Um lugar que só é próprio para certos fins logo se torna inútil. Segundo é obvio que se pode interpretar um lugar de diferentes maneiras. Na verdade, proteger e conservar o genius loci implica concretizar sua essência em contextos históricos sempre novos. (NORBERG-SHULZ, 2006, p.454).

O texto reforça mais adiante: É importante não só que nossa ambiência possua uma estrutura espacial que facilite a orientação, mas que também seja constituída de objetos concretos de identificação. A identidade humana pressupõe a identidade do lugar. (NORBERG-SHULZ, 2006, p.457).

A análise dos conceitos trazidos pelos autores estudados sugere possível que ao longo da história de grandes transformações nos referenciais simbólicos urbanos da Avenida Afonso Pena, sua identidade cultural tenha sido preservada por meio dos pontos de resgate de memória, que constituiriam o que permaneceu edificado, ou por recriações de novos espaços ou ícones edificados capazes de se configurarem como referenciais identitários como mesmo valor simbólico do que foi reconfigurado.

Breve história dos ícones urbanos A Revista Geral dos Trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital, assinada por Aarão Reis em 1895, descreve a população do arraial de Bello Horisonte

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da seguinte forma:

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Esgrouviados, pálidos, anêmicos, e tristes como doentes; sem alegrias, nem folguedos próprios e naturaes, tendo por único consolo as rezas nas Egrejas, os terços e procissões pelas ruas. (...) Quem, no futuro, cortado já o arraial de largas avenidas, de espaçosas e bellas ruas ornadas de palacetes dos mármores do Gandarella, de ajardinamentos de luxo, chácaras de primor, formoso parque, etc. ficará, tendo lido esta pequena descripção surpreendido de ter habitado n'ella uma população tão mesquinha, e não haver, há muitos annos, sido escolhido este arraial para a construcção de uma grande cidade. (REIS,1895, p.15.).

O texto, assinado por Fabio Nunes Leal, secretário da comissão, deixa claro a expectativa de evolução da população por meio da sofisticação que o projeto da nova capital traria.

A respeito da Avenida Afonso Pena, em descrição breve sobre a

totalidade do projeto urbano da cidade, a revista destaca a grande via, que receberia o nome do então presidente do Estado de Minas Gerais, Dr. Affonso Augusto Moreira Penna, que expediu o Decreto nº 680, de 14 de fevereiro de 1894, mandando executar as obras da construção da nova capital. Ainda na mesma página, a revista explica:

Haverá uma grande avenida de 50 metros de largura, com duplo renque central de arvores, e 3200 metros de comprimento, ligando em linha recta o bairro comercial, junto a estação, ao alto do Cruzeiro, onde será edificado o majestoso tempo projectado pelo Dr Magalhães (...) A grande avenida finalmente, de 50 metros de largura, terá: no centro, uma facha de 8 metros de largura, areiada, para os passeios a cavalo, dous passeios de 3 metros de largura, cada um, dispostos de um e outro lado da facha central e guarnecidos de árvores frondosas alinhadas, duplos passeios junto aos prédios, de 3 metros de largura cada um; e duas faixas de 13 metros cada uma, de largura, para o movimento dos vehiculos. (REIS,1895, p.99.).

Toda essa promessa de transformação social se apoiou em um projeto que teve como foco o rompimento total com o passado colonial, monárquico e escravagista representado por Ouro Preto e na proposta de um plano geométrico, hierarquizado, em um traçado racional e preocupado com a saúde e a qualidade de vida da população da república recém-criada. No intuito de oferecer uma cidade adequada à população de um novo tempo em contraponto àquela população ouro-pretana relatada na revista de Aarão Reis como “tristonha, nos beirais do caldeirão formado pelos serros do Itacolomy, sem horizontes

arborizados, estruturados, com facilidade de locomoção e utilização e com uma grande REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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quase inacessíveis” (REIS, 1895), a proposta da nova capital ofertava espaços amplos,

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sem luz, sem espaço, nem ar para a acanhada população, que se atrofiava em ladeirais


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avenida que representava tudo isso, cortando a cidade do mercado à matriz e sendo espaço de encontro e manifestação da sociabilidade e cidadania. Um vasto parque, de 640.000m² de área, localizado em ponto central ao plano, em forma de um quadrado em que cada uma das pontas teria uma praça pública, simbolizaria essa saúde vital da proposta. A história da paisagem urbana da avenida se confunde com a própria história da sobreposição de seus ícones urbanos. A concepção inicial do Parque Municipal não demorou a ser repensada. As praças nas extremidades foram loteadas logo nos primeiros anos após a inauguração da cidade. Em 1904, se iniciaram as obras do edifício dos Correios sobre o terreno reservado à Praça Tiradentes, no triângulo formado pelo encontro das ruas Tamoios, da Bahia e Avenida Afonso Pena. O edifício ali permaneceria até sua demolição, em 1940, para a construção do edifício Sulacap / Sulamérica. Em 1933, aprovou-se um projeto para a ampliação dos Correios, que já não acomodava suas funções no espaço. Mas o projeto não foi executado e, em 1938, anunciou-se o leilão do lote dos Correios e Telégrafos, com a determinação de que se fizesse uma galeria ligando a Avenida Afonso Pena à Tocantins (CHACHAM, 1996), atual Assis Chateaubriand, iniciada no viaduto Santa Tereza. Sob essa determinação, o projeto assinado pelo engenheiro civil Arthur Arcuri trazia o espaço público para o terreno privado e traçava uma perspectiva do viaduto através do pórtico estabelecido pela volumetria das duas torres, resgatando a ideia inicial da CCNC de que o terreno se configurasse como espaço público. Um ato de civilidade, um ponto de referência urbana criado e dissolvido pela construção de um anexo em 1973 que ainda permanece nos tempos atuais. Em tempos subsequentes ao plano de metas de JK, em que o objetivo foi desenvolver 50 anos em 5, em uma cidade voltada para o futuro, em eterna reconstrução, em constante cancelamento de suas referências urbanas, essa atitude não causaria qualquer alarde. A intensa arborização central de fícus da avenida atravessou as primeiras décadas do século XX figurando a representação da cidade vergel. Sombreando os largos 50 metros a serem atravessados para chegar ao lado oposto da avenida, configurando espaços do encontro, principal meio de deslocamento da cidade, a

episódio transforma rapidamente a imagem da avenida, que até ali fora cartão postal da

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cidade, materialização da intenção projetual da comissão construtora, espaço de

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arborização foi removida em uma madrugada, para a surpresa da população. Esse

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manifestações populares e convivência dos habitantes locais em uma via rápida, de passagem, de congestão urbana. Não se pretende aqui um olhar saudosista e tratar a retirada da arborização como um ato impositivo de uma prefeitura sobre uma população. É sabido que as décadas de 1960 e 1970 foram a consolidação da verticalização, da prevalência do carro em relação ao pedestre, da aceleração da economia e que a transformação do espaço urbano seguiria o mesmo caminho. A praça conformada pelo cruzamento das avenidas Afonso Pena e Amazonas, conhecida popularmente hoje como Praça Sete, foi o ponto inicial da construção da cidade e foi inicialmente nomeada com a data do acontecido, Praça 14 de Outubro. Em 1922, em comemoração ao centenário da independência do Brasil, a praça recebeu o obelisco e teve seu nome alterado para Praça 7 de Setembro. Por mais de quarenta anos o ponto foi a referência da praça central da cidade até que, em 1963, mesmo ano do corte da arborização em fícus, o obelisco foi transferido para a praça da Savassi, enquanto foi instalado no centro da praça um Monumento aos Fundadores e Construtores da Cidade de Belo Horizonte. A praça se renovou completamente, sem fícus e sem obelisco, em uma representação do descarte habitual das referências. No início da década de 80, depois de quase duas décadas, o obelisco voltou ao seu posto inicial trazendo de volta o monumento ícone de ponto de convergência da movimentação urbana, que nunca deixou de estar na praça, com ou sem obelisco. Na primeira extremidade da avenida, onde o projeto de Aarão Reis contemplava o Teatro Municipal, foi construído, em 1902, o Mercado Municipal, ponto de chegada dos tropeiros e suas mercadorias, que eram comercializadas na zona suburbana. Com estrutura metálica belga, a arquitetura inspirada no estilo dos halles europeus tinha coberturas bombé nas torres das extremidades (LEMOS, 2017) e ali permaneceu por três décadas. Em 1922, a legislação urbanística foi alterada, possibilitando edificações de até 50 metros de altura na Avenida Afonso Pena, demonstrando mais uma grande expectativa do poder público em relação ao desenvolvimento da verticalização e do adensamento da cidade do que uma real demanda de mercado. Somente na década de 30, iniciou-se o processo de verticalização do centro conhecido como “ciclo do arranhacéu”. Em 1933, é regulamentado pela Prefeitura o uso do concreto armado e, já em

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a Feira Permanente de Amostras. Os prédios altos e planos brancos substituíam o

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1935, os primeiros edifícios de 10 andares da cidade são inaugurados: o edifício Ibaté e

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casario eclético e a volubilidade fisionômica (CASTRIOTA; PASSOS, 2017) representava o progresso, neste momento percebido como evolução. A Feira de Amostras era um mostruário da economia mineira e se tornou parte do percurso de passeios em família nos fins de semana. A edificação principal se localizava no alinhamento da via, de frente para o eixo da avenida, determinando seu ponto inicial. Nos fundos, voltada para a Avenida do Contorno, ficava a estação rodoviária, com 10 vagas, de onde saíam e chegavam ônibus dos percursos intermunicipais. Entre a inauguração da Feira de Amostras, em 1935, até sua demolição para a construção da rodoviária foram apenas 30 anos. Em 1971, a Estação Rodoviária de Belo Horizonte foi inaugurada e permanece presente sob a proteção municipal por meio de tombamento. Na esquina da Avenida Afonso Pena com a Rua Espírito Santo, pelas primeiras quatro décadas do século XX, em vasto lote com fartos afastamentos, encontrou-se a Igreja Metodista. No lugar desta pequena igreja, demolida em 1943, foi edificado um daqueles que podem ser considerados os grandes símbolos da modernidade em Belo Horizonte. Inaugurado durante a Segunda Guerra Mundial, o edifício Acaiaca possuía um abrigo antiaéreo, os elevadores mais rápidos da cidade e um sistema de lajes cogumelo que possibilitavam a integração de várias salas para compor andares corridos. Um marco referencial que, 80 anos depois, ainda se preserva ícone e é protegido por tombamento municipal. Para a área em frente à entrada principal do Parque Municipal, pela Avenida Afonso Pena, o plano de Aarão Reis previa uma ampla praça, dividida em dois blocos pela Avenida Álvares Cabral. A Praça da República perdurou por 30 anos até ser loteada para a construção do Automóvel Clube de um lado e a Delegacia Fiscal de outro, ambos inaugurados em 1929. Neste momento, a cidade vivia uma intensa movimentação cultural na avenida, especialmente na esquina com a Rua da Bahia, onde se desenvolviam discussões políticas intelectuais, esportivas e de notícia no Bar do Ponto. Os prédios foram inaugurados no período entre a liberação do adensamento e o ciclo dos arranha-céus, tempo de esforço em encher todo o vazio urbano que causava

glamour e elegância. A edificação da delegacia fiscal manteve-se por 30 anos, que parece ser uma duração bastante comum nesta análise, até ser demolido em 1969, para a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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plenamente utilizado para festas e comemorações particulares na atualidade, símbolo de

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tanto estranhamento e críticas. Quanto ao Automóvel Clube, o prédio permanece sendo


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construção de um novo prédio, de múltiplos pavimentos, em concreto e vidro, para melhor atender às demandas funcionais e simbólicas do novo tempo.

Conclusão O século XX trouxe, simultaneamente, uma grande aceleração da transmutação da paisagem das cidades e o surgimento e desenvolvimento dos conceitos de preservação do patrimônio. Em Belo Horizonte, em meados da década de 1930, iniciase o processo de verticalização do centro que, mesmo após a criação do SPHAN, se desenvolve fortemente, transforma os ambientes urbanos e substitui ícones que constituem espaços de referência identitária. Porém, mesmo com toda essa profusão de demolições e construções, é possível que a identidade cultural da avenida tenha traços de permanência para os grupos sociais que a frequentavam e frequentam. Os conceitos trazidos pelos autores estudados sugerem essa possibilidade da permanência da identidade cultural da Avenida Afonso Pena, apesar da metamorfose ativa da paisagem por grande parte do século XX. Essa preservação pode ter ocorrido por meio da estabilidade dos pontos de resgate de memória, que constituem o que permaneceu edificado, ou por recriações de novos espaços ou ícones edificados capazes de se configurarem como referenciais identitários como valor simbólico equivalente ao que foi reconfigurado. Choay (1992), em A Alegoria do Patrimônio aborda o que considera como uma crise de identidade contemporânea gerada pelo ritmo acelerado das transformações, que cria a necessidade de uma autoimagem forte. A autora critica o patrimônio por traduzir por meio do conjunto de realizações arquitetônicas uma falsa heterogeneidade que nega a ruptura provocada pela metamorfose em curso, afirmando uma identidade intacta. É interessante que, mesmo com a crítica severa ao patrimônio, a proposta de solução de Choay não é o fim da preservação, mas a restauração da “competência de edificar”, que seria a conservação da capacidade de dar continuidade ao objeto arquitetônico e de substituí-lo, de transformar a cidade e buscar sua atualização que, dentro do conceito patrimonial, significa trazer o objeto do passado ao uso presente. Este se mostra um

Afonso Pena, uma forma de lidar com a metamorfose de maneira a viabilizar a

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preservação dos referenciais simbólicos e, assim, a identidade cultural. É este o caminho

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recurso considerado nessa análise muito pertinente na aplicação ao caso da Avenida

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que se manifesta nas diretrizes contidas no dossiê de tombamento do Conjunto Urbano da Afonso Pena, que propõe alguns tombamentos isolados, condições especiais para o entrono imediato desses bens, estabelecimento de volumetrias para novas edificações que variam conforme caracterização de trechos pré-definidos, valorização de visadas importantes e humanização das vias.

Referências ANDRADE, Rodrigo Ferreira; MAGALHÃES, Beatriz de Almeida. A formação da cidade. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci (org.) 2. Ed. Arquitetura da modernidade. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2017. p. 31- 72. CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto 2019. CASTRIOTA, Leonardo Barci; PASSOS, Luiz Mauro do Carmo. O “estilo moderno”: arquitetura em Belo Horizonte nos anos de 1930 e 1940. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci (org.) 2. Ed. Arquitetura da modernidade. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2017. p.125-174. CHANCHAM, Vera. A memória urbana entre o panorama e as ruínas. A rua da Bahia e o bar do Ponto na Belo Horizonte dos anos 30 e 40. In: DUTRA, Eliane de Freitas (org.) BH Horizontes Históricos. Belo Horizonte: Ed. C/ Arte, 1996. p.183- 238. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano V. Machado. São Paulo: Editora Estação Liberdade, Editora UNESP, 2017. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Bens Tombados e Processos de tombamento em andamento. IPHAN, 2015. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista%20Bens%20Tombados%20por%20Estado.pd f>. Acesso em: 22 out. de 2020. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL(IPHAN). História- Belo Horizonte (MG). IPHAN, c.2014. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1832/>Acesso em: 21 out. 2020. INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS – (IEPHA) Guia de Bens Tombados Volume 1. Belo Horizonte, 2014. LEMOS, Celina Borges. A cidade republicana: Belo Horizonte, 1897/1930. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci (org.) 2. Ed. Arquitetura da modernidade. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2017. p.73-124. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. NORBERG-SCHULZ, Christian. O espírito do lugar. In: NESBITT, Kate (org.), Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.443-461.

REIS, Aarão. Revista Geral dos Trabalhos. Rio de Janeiro: H. Lombarts & C.1895. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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SARLO, Beatriz. Modernidade e mescla cultural. Tradução de Ana Claudia Veiga de Castro. São Paulo: Risco, 2006. p.57- 92. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/risco/article/view/44676/48298>. Acesso em: 26 out. 2020.

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O LUGAR DO ESPORTE NA POLÍTICA DE PATRIMÔNIO DA PBH The place of sport in pbh’s heritage policy

Flávia da Cruz Santos Wanessa Pires Lott RESUMO: Este trabalho tem como objetivo discutir o lugar ocupado pelo esporte na política de patrimônio da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), tomando como exemplo o caso do Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, localizado na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Concluímos que há um esquecimento e/ou silenciamento do esporte nas ações de salvaguarda da PBH. Como procedimento metodológico foram empregadas a pesquisa bibliográfica, bem como a pesquisa documental. As principais fontes utilizadas estão disponíveis no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). Palavras-chave: Patrimônio; Esporte; Belo Horizonte.

ABSTRACT: This paper aims to discuss the place occupied by sport in the PBH’s heritage policy, taking as an example the case of the “Stadium Governador Magalhães Pinto”, better known as Mineirão, located in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. We conclude that there is a forgetfulness and/or silencing of the sport in the actions of safeguarding PBH. As a methodological procedure, bibliographic research and documentary research were used, mainly from the sources available at the Public Archive of the City of Belo Horizonte (APCBH). Keywords: Heritage; Sport; Belo Horizonte.

Introdução A preservação de bens culturais no Brasil teve início na década de 1930. Inicialmente pautada na salvaguarda de bens culturais móveis e imóveis, tem-se a partir da década de 1970 o crescente debate sobre a ampliação do conceito de patrimônio cultural. A partir deste debate, os elementos culturais imateriais foram incluídos na política de salvaguarda, possibilitando uma maior representatividade na construção da memória e identidade do país por meio do patrimônio cultural. No entanto, apesar dessa ampliação da noção de patrimônio cultural, os bens vinculados ao esporte ainda estão esquecidos e/ou silenciados nas ações preservacionistas. Com poucos bens desta natureza inscritos nos Livros do Tombo, há de se problematizar esta questão, pois o esporte é parte significativa da identidade nacional brasileira, principalmente uma de

Doutora em Estudos do Lazer. Professora Adjunta na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: flacruz.santos@gmail.com Doutora em História. Professora Adjunta da Universidade Federal do Pará. E-mail: wanessalott@hotmail.com

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suas modalidades, o futebol.


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O presente trabalho tem como objetivo discutir o lugar ocupado pelo esporte na política de proteção da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), a partir do caso do Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão. Para o desenvolvimento do artigo, iremos primeiramente apresentar uma breve trajetória de algumas das instituições responsáveis pelo patrimônio e, em seguida, apresentaremos a relação dos belo-horizontinos com o esporte e os estádios da cidade. Por fim, o tombamento do Mineirão será analisado, como forma de discutir o lugar do esporte na política de proteção da capital mineira. A pesquisa está sustentada não só por estudos acadêmicos que versam sobre o tema, mas principalmente pelo dossiê do tombamento disponível no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). Ademais, foram utilizados documentos do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA/MG), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)1 e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Um breve histórico: IPHAN, IEPHA/MG e CDPCM/BH A política de preservação na cidade de Belo Horizonte tem seguido as linhas delimitadas pelo IPHAN e pelo IEPHA/MG. O primeiro, criado em 19372 com caráter consultivo, estava vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, e teve como grande líder o arquiteto Rodrigo Mello Franco de Andrade. Apesar de o anteprojeto de constituição do instituto ter como forte referência as manifestações populares, constituintes da identidade nacional, na prática as ações preservacionistas do IPHAN voltaram-se majoritariamente para o tombamento de um passado colonial barroco, deixando à margem outros elementos relevantes para a construção da identidade oficial do Brasil (CHUVA, 2003). A arquitetura modernista

A denominação do SPHAN sofreu alteração ao longo do tempo: “SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1937 a 1946. DPHAN – Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1946 a 1970. IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1970 a 1979. SPHAN – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de 1979 a 1990. IBCP – Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural de 1990 a 1994. IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1994” (PESSÔA, 1999, p.11). Utilizaremos neste texto a nomenclatura atual. 2 Na década de 1920, antes da criação do IPHAN, houveram ações pontuais vinculadas ao Museus Nacional em prol da salvaguarda dos bens arqueológicos e dos monumentos nacionais. Também foram criadas as Inspetorias de Monumentos Históricos em Minas Gerais, na Bahia e em Pernambuco nos anos de 1926, 1927 e 1928, respectivamente. Ente 1934 e 1937 a Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN) foi responsável pela inspeção das edificações de valor histórico e artístico e do controle do comércio de objetos de arte e antiguidades (LOTT, 2017). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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também foi significativamente preservada pelo IPHAN, principalmente na cidade de Belo Horizonte: Os cânones da arte brasileira e sua universalidade foram construídos de modo eficaz, com a consagração de uma associação inédita até então, entre as formas e princípios renovadores do barroco e a produção arquitetônica moderna. Isso se deu, privilegiadamente, no âmbito da ação de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional (CHUVA, 2003, p. 313).

Assim, o IPHAN dispôs do tombamento como instrumento jurídico principal para a proteção do acervo artístico, histórico e cultural, valorizando principalmente os elementos nacionais de caráter arquitetônico. A perspectiva de arte, história e cultura adotadas, no entanto, estava ligada à cultura das elites. Este primeiro momento da instituição é tido como a ‘fase heroica’ ou a ‘fase de pedra e cal’. A referência adotada para a adoção dessa linha de ação foi a Constituição Federal de 1934, que estabelecia: “compete concorrentemente à união e aos estados (...) proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico” (BRASIL, 1934). Tal perspectiva estava presente também nas Cartas de Atenas de 1931 e 19333, e forneceu os subsídios para os intelectuais que fizeram parte do órgão, e que acabaram por torná-lo um novo nicho acadêmico. Tendo como base o discurso do iminente desaparecimento dos vestígios de um passado brasileiro, a retórica da perda deu a tônica das políticas de salvaguarda. “Os efeitos desse esquema de pensamento” resultaram no desenvolvimento de “um interminável trabalho de resgate, restauração e preservação de fragmentos visando a restabelecer uma continuidade com aquela situação originária” (GONÇALVES, 2002, p.24). Não obstante a relevância de tais ações, estas não contemplaram a diversidade cultural brasileira. Com a saída de Rodrigo de Andrade e de seu sucessor, Renato Soeiro, do IPHAN, a ampliação do conceito de patrimônio cultural foi aos poucos sendo discutida no órgão, a partir da década de 1970. Aloísio Magalhães assumiu o instituto em 1979, e

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As Cartas Patrimoniais de 1931 e 1933 foram fruto de debates internacionais, em torno do patrimônio e do urbanismo. A primeira foi elaborada pelo Escritório Internacional dos Museus Sociedade das Nações, e apresentou debates e preocupações a respeito das técnicas de conservação de bens materiais, e das legislações nacionais sobre o tema. Com base em tais indagações, construiu-se diretrizes gerais para o restauro e preservação dos patrimônios materiais. No ano de 1933, o Congresso Internacional de Arquitetura (CIAM) tomou a frente das discussões patrimoniais e elaborou a Carta de Atenas. Formulada por renomados arquitetos e urbanistas que apoiavam os conceitos da cidade funcional, o documento apresentou diretrizes sobre o urbanismo racionalista. No âmbito do patrimônio, assim como na Carta anterior, as diretrizes pautaram apenas o patrimônio arquitetônico, recomendando a salvaguarda dos edifícios isolados e dos conjuntos urbanos (IPHAN, 2020a).

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adotou ações de valorização das riquezas culturais do presente4, incentivando principalmente a salvaguarda dos bens referentes à história local, deixando à margem a preservação de bens vinculados ao passado monárquico e de referência nacional:

A nossa realidade é riquíssima, a nossa realidade é inclusive desconhecida. É como se o Brasil fosse um espaço imenso, muito rico, e um tapete velho roçado, um tapete europeu cheio de bolor e poeira tentasse cobrir e abafar este espaço. É preciso levantar este tapete, tentar entender o que se passa por baixo. É dessa realidade que devemos nos aproximar, entendendo, tendo sobre ela uma certa noção (MAGALHÃES, 1997, p.19).

A política de Aloísio Magalhães, ao apontar para a valorização da heterogeneidade da cultura brasileira, levou à constatação de que o instrumento do tombamento não era suficiente para abraçar esta diversidade (GONÇALVES, 1996). Então, um novo contexto foi inaugurado no Brasil no final dos anos 1970, quando houve a unificação da política federal de preservação, através da fusão de vários órgãos que possuíam visões diferentes de cultura e de patrimônio. A partir dessa fusão, visões novas e modernas levaram a ações que buscavam a democratização da política cultural. Interesses de grupos até então negligenciados passaram a ser considerados, o que se deu no bojo da chamada “abertura democrática” ou “abertura política”, empreendida nos últimos governos da ditadura civil-militar brasileira5. Havia, portanto, consonância entre a nova política de cultura e o contexto político nacional. As discussões internacionais, contidas nas Cartas Patrimoniais e nas experiências do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), também influenciaram o cenário brasileiro, e a formulação das diretrizes para a operacionalização da política cultural da Secretaria de Cultura do Ministério de Educação e Cultura (MEC) em 1981. A perspectiva, a partir daí, passou a ser a de que os bens culturais deveriam ser valorizados não apenas por sua suposta exemplaridade, mas também por fazerem parte da vida cotidiana dos brasileiros. A Constituição Federal de 1988 incorporou a nova diretriz patrimonial, e passou a entender o patrimônio cultural brasileiro como “os bens de natureza material e

A ampliação do conceito de patrimônio no Brasil é reflexo dos debates que formularam a Recomendação de Nairóbi (UNESCO, 1976). A partir de então, é incorporada de forma mais significativa a noção antropológica de cultura, assim o patrimônio não é tido como ‘artístico’ e/ou ‘histórico’, mas como ‘cultural’. 5 O AI-5 foi revogado, a censura prévia foi extinta, houve diminuição das restrições às propagandas eleitorais e o habeas corpus para crimes políticos foi restabelecido REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à


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identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988). No entanto, essa mudança de paradigma com repercussões na legislação, não tem sido suficiente para fazer com que os bens eleitos para serem protegidos possuam valor nacional e sejam, portanto, marcos de uma identidade com a qual a maior parte da população brasileira se identifique. Mas ao contrário, eles continuam sendo símbolos abstratos e distantes da nação, com forte identificação com a cultura das elites (FONSECA, 2017, p. 22). Reside aí, portanto, parte da explicação para o fato de só recentemente os bens ligados ao esporte terem merecido alguma atenção da política de patrimonialização federal. O esporte participa da constituição da cultura nacional brasileira e, portanto, nela deixa suas marcas. Marcas nos modos de ser dos brasileiros, em nossos corpos, no tecido de nossas cidades. O futebol é o esporte mais popular do país, está intimamente ligado à identidade nacional brasileira, assim como também integra a imagem que se tem do Brasil no exterior. No entanto, os bens materiais ligados ao esporte, como suas edificações, não têm sido preservados, o que indica que eles não têm sido compreendidos como testemunhos da história e tão pouco como arte. Dos cerca de mil bens protegidos pelo IPHAN, apenas um está ligado ao esporte. Trata-se do mundialmente conhecido Estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã (SANTOS, 2018, 2020). Em nível estadual, a assinatura do Compromisso de Brasília possibilitou a criação dos institutos estaduais de preservação. Em 1971 foi criado o IEPHA/MG, que inicialmente adotou a antiga política de ‘pedra e cal’, tombando grande número de bens coloniais, como núcleos urbanos e igrejas católicas (IEPHA/MG, 2020a). Atualmente o órgão afirma adotar uma política de proteção que não se vincule unicamente às ações marcadas pela nostalgia de uma época representada pelo que foi possível proteger, e buscar conhecimento de “outros” territórios da cultura, onde se abrem relatos, acontecimentos, formas de viver, formas de relacionamentos, culturas vinculadas a um passado, mas presentes na dinâmica urbana (IEPHA/MG, 2020b, grifo do autor).

coloniais. No entanto, os esforços do IEPHA/MG se voltaram para o registro do

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patrimônio imaterial, em detrimento de bens culturais materiais de grande

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Um grande passo foi dado ao abandonar a “retórica da perda” dos bens

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representatividade cultural, que ainda aguardam a proteção e o reconhecimento oficial, como é o caso do patrimônio esportivo. Em Belo Horizonte tal situação se repete. O serviço de preservação da cidade foi criado em um momento de maior abertura política e, por conseguinte, com maiores possibilidades de participação da sociedade na construção da identidade do país. Ainda assim, o fenômeno esportivo permanece ausente na política de proteção da cidade. As preservações iniciais seguiram a trajetória do IEPHA/MG: em um primeiro momento, os conjuntos urbanos e edificações representativas da construção da capital mineira foram tombados – retomando, assim, a ideia da “retórica da perda” –, e posteriormente o patrimônio imaterial da cidade foi protegido. Apesar dos avanços na preservação do patrimônio local, os bens tombados em Belo Horizonte seguiram a tradicional linha de salvaguardar os bens ligados à história originária da cidade, ou os bens relacionados à arquitetura modernista brasileira. Exemplo disso foi o significativo movimento preservacionista local que se organizou contra a destruição do Cine Metrópole. Apesar das manifestações anteriores contrárias à destruição da Serra do Curral6, do corte das árvores da Igreja São José7 e da revitalização da Praça da Estação8, o caso do cinema é o marco do patrimônio cultural na cidade. O Cine Metrópole (1942-1983) substituiu o antigo Theatro Municipal, construído em 1906 no estilo eclético. A edificação foi descaracterizada para abrigar o cinema, assumindo as tendências modernistas das décadas de 1930 e 1940. O projeto foi assinado pelo arquiteto Raffaello Berti no estilo art decó, a pedido de Juscelino Kubitschek (JK), então prefeito da cidade (BARRETO, 1995). Em 1983, o prédio do cinema foi vendido para o Banco Bradesco, que pretendia derrubá-lo para a ampliação de seus escritórios na cidade. Apesar da grande manifestação de entidades vinculadas às questões urbanas e patrimoniais, através da Carta-Manifesto de Belo Horizonte, e da aprovação unânime do tombamento da edificação pelo IEPHA/MG, o prédio foi demolido. “A decisão final sobre o seu destino coube ao então governador Tancredo Neves, que, segundo o texto do seu despacho de

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A mineração na Serra do Curral levou à destruição significativa da serra, que circunda a zona sul da cidade e faz limite com a cidade de Nova Lima (MATA MACHADO, 2003). 7 A igreja São José está localizada no centro da cidade e ocupava um grande quarteirão com frondosas árvores que emolduravam o templo religioso. Com o crescimento da especulação imobiliária, os padres derrubaram as árvores para a construção de um centro comercial (BOTELHO e ANDRADE, 2003). 8 O movimento em prol da revitalização da Praça Rui Barbosa, popularmente conhecida como Praça da Estação, na década de 1970 foi encabeçado pelo Departamento de Minas Gerais do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-MG), órgão este que estava presente na grande maioria dos debates em torno do patrimônio cultural belo-horizontino.

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23 de agosto de 1983”, impediu o tombamento do Cine Metrópole. Esta medida foi possível porque o conselho do IEPHA/MG era apenas consultivo, ou seja, era necessária a anuência do governador para a efetivação do tombamento (BOTELHO, ANDRADE, 2005, p. 92). Este episódio aqueceu as ações em prol do patrimônio na cidade, o que levou à criação em 1984 da Lei 3.802/84 que organizou a proteção do patrimônio cultural, e instituiu o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (CDPCM/BH). A partir de então, o cancelamento de um tombamento “dependerá de decisão favorável do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município e de homologação do Chefe do Executivo Municipal” (BELO HORIZONTE, 1984, art. 11). Na época de sua criação, o CDPCM/BH era composto por um presidente, que era o então Secretário Municipal de Cultura e Turismo, pelo Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – que substituía o presidente em suas faltas –, e por um representante de cada um dos seguintes órgãos: Conselho Deliberativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, IPHAN, IEPHA/MG, além de dois representantes da Câmara Municipal. Em 1989 o Decreto 6.337 amplia para quinze membros, incorporando um representante da Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG); um do Instituto dos Arquitetos Brasileiros (IAB-MG); um do Núcleo Regional de Minas Gerais da Associação dos Professores Universitários de História (ANPUH-MG) e mais três representantes do Prefeito. Em 2000 outra alteração incluiu um representante do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado de Minas Gerais (SINDUSCON-MG) e um da Secretaria Municipal de Atividades Urbanas (TEIXEIRA, 2015, p.60).

O setor da construção civil colocou em tela os debates em torno da expansão urbana e das medidas empreendedoras, expandindo para além das questões sobre memória e identidade os debates do conselho. Tal ampliação foi reflexo da trajetória do CDPCM/BH que, aos poucos, ampliou a sua atuação sobre o patrimônio da cidade. Em um primeiro momento, os tombamentos e a produção de inventários foram escassos. Com a promulgação do decreto 6.337/89 as ações do conselho cresceram, mas ainda se

igrejas e edificações da fase originária da cidade foram salvaguardados pelo município.

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patrimônios natural, paisagístico, artístico e histórico. Matas, paisagens, colégios,

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mantiveram arraigadas à tradicional linha de tombamento do IPHAN: a preservação dos


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No entanto, nesta mesma época, a PBH retomou o modelo de participação popular, tendo como principal marca a criação de Conselhos Comunitários ligados às Administrações Regionais. Tais conselhos já existiam, mas só a partir da descentralização política, preconizada pela Constituição de 1988, eles começaram a funcionar efetivamente e passaram a se desenvolver em regionais em que já havia uma tradição de participação popular. Assim, as ações do CDPCM/BH decolam depois de cinco anos, mas sem grande expressão no cenário belo-horizontino. Apesar de não se configurarem como um movimento popular, os conselhos permitiram a participação, mesmo que como ouvinte, da população em geral. O Movimento Negro9 teve forte atuação na esfera patrimonial, o que levou ao tombamento da comunidade terreiro “Ilê Wopo Olojukan”, e da comunidade banto católica “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá”, em 1995 (LOTT, 2005). O estudo dos conjuntos urbanos se constituiu numa forte ação patrimonial na capital mineira, por meio do “Inventário do Patrimônio Urbano e Cultural de Belo Horizonte” (IPUC), o que culminou na salvaguarda de 23 conjuntos urbanos na cidade.10 Ademais, a política de “negociação urbana” democratizou o trabalho do CDPCM/BH na década de 1990, possibilitando a inserção mais efetiva no debate patrimonial de esferas vinculadas ao mercado imobiliário. Por meio desta política, foi possível conceder a construção em áreas com edificações tombadas ou com interesse de preservação e, em contrapartida, o construtor faria alguma benfeitora na região e/ou na obra tombada no terreno. Desta forma, houve a possibilidade de incentivar o setor imobiliário à salvaguarda, ao invés de negar este importante ator político na relação preservacionista, além de promover um diálogo do CDPCM/BH com este setor (ANDRADE, 2002).

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É importante ressaltar que o Movimento Negro representou diversas entidades, associações e grupos culturais, interligados ou não, que representavam causas diversas que permeiam a comunidade negra. Neste contexto se destacou o Centro de Integração Sócio Cultural da Raça Negra (CISCURNE), o Grupo Interdisciplinar de Estudos Afro-Brasileiros da UFMG, a Federação de Congadeiros de Minas Gerais (COMCAN), a Congregação Mineira de Candomblés, a Federação Espírito-Umbandista de Minas Gerais, grupos de dança afro, grupos de capoeiras e sindicalistas, universitários negros ligados principalmente a partidos políticos como o PT, PDT, PMDB, PC do B (LOTT, 2005). 10 Os 23 conjuntos urbanos protegidos em BH são: Praça Rui Barbosa; Rua dos Caetés; Praça da Liberdade-Av. João Pinheiro; Rua da Bahia; Praça da Boa Viagem; Av. Afonso Pena; Av. Carandaí-Av. Alfredo Balena; Av. Álvares Cabral; Praça Floriano Peixoto; Praça Hugo Werneck; Bairro Floresta; Lagoa da Pampulha - Edificações de Uso Coletivo e seus bens integrados; Praça Raul SoaresAv. Olegário Maciel; Av. Barbacena-Grandes Equipamentos; Bairros Prado e Calafate; Bairro Santo Antônio; Bairro Cidade Jardim; Bairro Santa Tereza; Conjunto arquitetônico e paisagístico do Mosteiro Nossa Senhora das Graças, Vila Paris, e sua área de entorno; Serra do Curral e sua área de entorno; Conjunto Arquitetônico de tipologia de influência da Comissão Construtora da Nova Capital; Conjunto Arquitetônico Sylvio de Vasconcellos; Conjunto Urbano Bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates (BRANDÃO, SOARES, 2017).

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No que se refere ao esporte, a política de proteção da PBH silencia. Os bens ligados a essa dimensão da cultura que foram protegidos, como o Estádio Jornalista Felipe Drummond (Mineirinho), o Barroca Tênis Clube, o Conjunto Arquitetônico do Minas Tênis Clube e o Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, foram protegidos devido às suas exemplaridades arquitetônicas, e não por suas ligações com o esporte11. Tal negligenciamento evidencia a incompreensão existente em torno do papel do esporte na constituição identitária da cultura belo-horizontina, e sua desvalorização como fenômeno social que contribui para a compreensão da história e salvaguarda da memória da cidade. Na tentativa de melhor compreender o lugar ocupado pelo esporte na política de patrimônio da PBH, discutiremos a seguir o processo de patrimonialização do estádio do Mineirão.

Os belo-horizontinos, o esporte e os estádios Engendrado desde o século XIX, o esporte é uma das manifestações culturais mais fortes e marcantes do mundo. Possui relações com temas e dimensões diversas da vida como o lazer, a educação, a política, a saúde e a economia, por exemplo, e se articula a ideários, imaginários e valores. O esporte é uma marca da nossa cultura. Apesar de possuir uma estrutura universal que o torna global, o esporte possui grande plasticidade, o que o permite se articular a realidades locais, gerando pertencimentos, vínculos emocionais e identidades. Belo Horizonte possui relações com o esporte desde seus primórdios. Na planta da planejada cidade, já havia a previsão de espaços esportivos para duas modalidades, especificamente, o turfe e o ciclismo (RODRIGUES, 2006, p. 98, 100). O ciclismo foi o principal divertimento belo-horizontino dos finais de semana e feriados nos primeiros anos da cidade, isso para os abastados, é bom que se diga, pois o preço das bicicletas as tornava acessíveis a poucos. Apesar de haver espaço especificamente destinado ao ciclismo no Parque Municipal, sua prática rompeu os

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Relacionados ao esporte e também sob proteção da PBH estão o Iate Tênis Clube, o Touring Club do Brasil e o Antigo Clube Belo Horizonte. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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(RODRIGUES, 2006, p. 101, 102). Tornou-se moda na capital mineira e era praticado

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limites do parque, ocupando as ruas poeirentas da cidade recém-inaugurada


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por mulheres e homens, jovens e velhos, todos, no entanto, membros da elite. Às camadas populares cabia a assistência, muitas vezes até mesmo fora das arquibancadas do parque. No entanto, nem o turfe, nem o ciclismo se enraizaram na cidade (RODRIGUES, 2006, p. 149). O esporte que caiu no gosto dos moradores da nova capital foi mesmo o futebol. Em seus primórdios, ele serviu como elo entre os belo-horizontinos e a modernidade. Através desse divertimento, como praticantes ou espectadores, os moradores da nova capital se ligavam a um modo de ser elegante, civilizado e cosmopolita, e às concepções de saúde e estética corporal vigentes, e aos quais eles ainda não estavam conectados (COUTO, 2003, p. 91-97). Se no início, quando de sua chegada à cidade, o futebol também estava restrito às elites, a partir de 1915 ele se disseminou pela periferia de Belo Horizonte, através de clubes menores (COUTO, 2003, p. 106). Entre os últimos anos da década de 1910 e meados da década seguinte, houve a estruturação de torneios e das torcidas na cidade. Os clubes Atlético Mineiro, América e Palestra Itália possuíam a predileção dos belohorizontinos, que em torno dessas equipes organizaram torcidas (ALVES et al, 2014). A fixação do futebol como uma marca social na cidade, gerou a demanda por estádios que comportassem o novo fenômeno, que já reunia multidões. A construção dos estádios estava atrelada a um projeto de cidade moderna, que impunha exigências crescentes aos estádios. O atendimento a essas exigências estava ligado também à necessidade de projetar a cidade e o estado para o restante do país.

A construção de um estádio de futebol representa mais que um marco geográfico na paisagem. Por ser a sede de um depositário de emoções, representa o espaço onde experiências sensoriais profundas ocorrem. Uma profusão de sensações que se desdobra em sons, cheiros e impactos visuais permanentemente mutáveis (SOUZA NETO, 2017, p. 12).

Os estádios são, portanto, “espaço-símbolo e simbólico de ocorrência do futebol” (SOUZA NETO, 2017, p. 12). Eles são espaços capazes de mobilizar tanto uma nação inteira, como cada indivíduo. São geradores de pertencimentos e identidades.

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O primeiro estádio da capital mineira foi o Prado Mineiro, de 1906, depois, na década

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de 1920, houve a construção de quatro novos estádios12. Em 1950 foi inaugurado o Independência, e em 1965 o famoso Mineirão. Construído para ser o maior estádio de Minas Gerais e o mais moderno do Brasil, o Estádio Governador Magalhães Pinto, incialmente chamado de Estádio Minas Gerais, foi inaugurado em 05 de setembro de 1965. Até então, o Estádio do Independência era o principal palco do futebol belo-horizontino, o maior estádio de Minas Gerais e o terceiro maior estádio do Brasil, com capacidade para 45 mil pessoas. Apesar da existência do Independência e de outros estádios em Belo Horizonte13, havia demanda por um espaço maior e mais moderno para o futebol da capital. Em 1954, o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, iniciou os debates sobre o assunto, que acabou por ganhar força com a apresentação de uma proposta pela Federação Mineira de Futebol para a construção de um estádio. Em 1958 os jornais da capital mineira ecoaram tal necessidade, apontando a falência dos estádios existentes – ainda que o Independência não tivesse completado uma década de vida, e os demais estádios tivessem passado por importantes reformas na década anterior –, e a consequente necessidade de um novo templo para o futebol mineiro (SOUZA NETO, 2017, p. 143). Em 1959 o projeto se consolidou, com a sanção do então governador, José Francisco Bias Fortes:

Fica o Poder Executivo autorizado a construir em Belo Horizonte, em terreno de propriedade do Estado, ou que adquirir ou lhe venha a ser doado, um Estádio – que se denominará "Minas Gerais" - para a prática do futebol e atletismo, com capacidade para cem mil espectadores (MINAS GERAIS, 1959: art. 1º)

A Diretoria de Esportes de Minas foi responsável pela obra, e a aquisição do terreno contou com a parceria entre o Ministério da Educação e Cultura, o Conselho de Administração do Estádio Minas Gerais, a Diretoria de Esportes do Estado de Minas Gerais e a Universidade de Minas Gerais (UMG)14, sendo esta última a doadora do terreno (CEU, 2020). As obras tiveram início na gestão do governador Bias Fortes e foram continuadas – a princípio a contragosto, devido às posturas políticas contrárias – no

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Foram eles: Estádio do América (1923), Estádio Juscelino Kubitschek (1923); Estádio Otacílio Negrão de Lima (1928), Estádio Antônio Carlos (1929). 13 Sobre os estádios de futebol de Belo Horizonte, ver o estudo de SOUZA NETO (2017). 14 “Instituição pública de ensino superior gratuito, é a mais antiga universidade do estado de Minas Gerais. Sua fundação ocorreu em 7 de setembro de 1927 com o nome Universidade de Minas Gerais (UMG)”. Posteriormente o nome da instituição foi alterado para Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2020).

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governo de José Magalhães Pinto (COSTA; RODRIGUES, 2013). À medida que a data da inauguração do estádio se aproximava, sua construção era acelerada e o resultado evocava não apenas elogios, mas também comparações com os demais estádios brasileiros. O Minas Gerais, projetado para receber 100 mil torcedores, era maior que o Independência e mais moderno que o carioca Maracanã! Qual a diferença entre o Maracanã e o Minas Gerais? O Maracanã é maior, porém o Minas Gerais é mais moderno. Seu aspecto geral segue a tradicional linha elíptica inglesa, enquanto o Maracanã é circular. Neste, a distância do último degrau da arquibancada ao centro do campo é de 126 metros e, no Minas Gerais, apenas 90 metros. Os mineiros vêem o jogo mais de perto. E também não apanham chuva, pois uma grande marquise, com vão livre de 28 metros, cobre todas as localidades. Além disso, terão mais luz para os jogos noturnos, fornecida por um sistema de 240 refletores – 20 a mais do que o Maracanã – que é a última palavra no assunto (BIANCHI, 1965, p. 20).

O Mineirão tornou-se a casa do futebol mineiro, e um importante marco para o desenvolvimento do esporte em Belo Horizonte. Ele inaugurou um novo momento do desenvolvimento do futebol na cidade, e foi se constituindo, pouco a pouco, como um símbolo significativo para a identidade esportiva mineira.

O lugar do esporte na política de patrimônio da PBH A despeito da significativa relevância do Mineirão para os belo-horizontinos e sua identidade, o tombamento do estádio ocorreu apenas no ano de 2003 pela PBH, sem que para tal, fosse apresentada qualquer justificativa referente ao esporte. A salvaguarda do estádio se deu, tudo indica, a reboque do processo de tombamento do Conjunto Moderno da Pampulha. A Pampulha é uma região localizada ao norte da cidade de Belo Horizonte, que passou por significativas mudanças urbanas a partir da década de 1930. Escolhida para abrigar o primeiro aeroporto da cidade (1933), e uma barragem que, a princípio, iria abastecer a capital (1938), mas que acabou por se tornar um dos espaços de lazer mais cobiçados da capital, devido a sua utilização para esportes náuticos. Na gestão municipal de Juscelino Kubitscheck, a Pampulha assumiu o discurso modernizante da década de 1940, e foi tomada por edificações modernistas assinadas

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Lagoa da Pampulha, foram inseridas a Igreja São Francisco de Assis, a Casa do Baile, o

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pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Ao redor da barragem, que passou a ser chamada de

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Cassino, o Iate Tênis Clube e a residência de fim de semana de JK15, que foram emoldurados pelo paisagismo de Burle Marx. A trajetória de salvaguarda do Conjunto Arquitetônico da Pampulha teve início no IEPHA/MG por meio do decreto nº 23.646 de 26 de junho de 1984, que inscreveu o conjunto nos quatro Livros do Tombo estaduais:

O conjunto arquitetônico da Pampulha composto pela Casa do Baile, edifício do antigo Cassino, Iate clube e a Igreja de São Francisco foi construído nos primeiros anos da década de 40 e inaugurado em maio de 1943, com a presença do Presidente Getúlio Vargas. O projeto elaborado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, a convite de Juscelino Kubitschek visava a modernização arquitetônica de Belo Horizonte. O Conjunto da Pampulha causou grande impacto na vida dos belo-horizontinos, que tiveram seus hábitos e gostos influenciados pelo novo centro de lazer da cidade. A mudança nas construções particulares, tanto nas áreas nobres quanto nos bairros populares da capital, demonstra a assimilação da nova estética arquitetônica (IEPHA/MG, 2020c, grifo nosso).

Nesse primeiro tombamento, realizado em nível estadual, do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, a arquitetura foi o elemento destacado como justificativa, apesar da referência à questão do lazer estar presente. No segundo ato de preservação, agora em nível federal, ocorrido em 15 de dezembro de 1997 pelo IPHAN (Processo:1341-T-94)16, o conjunto arquitetônico e paisagístico da Pampulha foi inscrito no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, no Livro de Belas Artes e no Livro Histórico. Mais uma vez, a arquitetura tem destaque na justificativa do tombamento: os bens representam “um marco fundamental para a compreensão da arquitetura moderna brasileira”. Em ambos os tombamentos, o Mineirão e o Mineirinho não foram contemplados. Como elemento vinculado à prática esportiva, apenas o Iate Tênis Club foi protegido, mas as justificativas para tal estão relacionadas à sua relevância arquitetônica e sua participação na “construção do complexo de lazer da Pampulha” (IPHAN, 2020c).

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A Casa do Baile, construída para ser um restaurante e um espaço de dança mais popular, tornou-se o Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design em 2002. O edifício do Cassino abriga desde 1957 o Museu de Arte da Pampulha (MAP) e foi tombado pelo IPHAN em 1994, pelo IEPHA/MG em 1984 e pelo CDPCM/BH em 1994. A casa de JK tornou-se o Museu Casa Kubitschek (MCK) em 2013. 16 A Igreja de São Francisco de Assis ou Igreja da Pampulha foi anteriormente inscrita como bem individual no Livro de Belas Artes (nº do processo 0373-T-47 de 01/12/1947). O tombamento inclui o acervo da Igreja por meio da Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13/08/1985, referente ao Processo Administrativo nº 13/85/SPHAN (IPHAN, 2020).

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Na reunião do Conselho Consultivo do IPHAN, ocorrida em sete de dezembro de 1994, após a leitura do parecer do Conselheiro Maurício Roberto, o debate versou sobre a área de tombamento e os bens específicos que seriam especialmente protegidos (Processo 1341-T-94/IPHAN: 166167). De acordo com as discussões, os estádios Magalhães Pinto (Mineirão) e Felipe Drummond (Mineirinho), bem como o restaurante “Redondo” foram considerados de interesse para a história local sendo, portanto, indicados para receber proteção municipal. Desta feita, apenas os quatro edifícios arquitetados por Niemeyer17 e situados na orla da lagoa da Pampulha mais a casa de JK e o Monumento a Iemanjá deveriam ser tombados individualmente pelo IPHAN (MARTINS, 2019, p.05).

A exclusão do Mineirão e do Mineirinho do tombamento federal, foi reafirmada no último parecer do Conselho Consultivo do IPHAN, em agosto de 1996, realizado por Ítalo Campofiorito. A justificativa para a exclusão também estava pautada na questão da arquitetura: O arquiteto alegou que os estádios de futebol e o terreno da Fundação Zoobotânica poderiam receber tombamentos municipais ou estaduais, mas, que não eram compatíveis, nem no valor histórico, nem no valor artístico, daquilo que se entendia por “Conjunto Arquitetônico da Pampulha”. Segundo ele, “as edificações citadas em destaque são de fato as mais importantes” e “as obras de arte a tombar seriam todas as que se realizaram conforme os projetos de Oscar Niemeyer” (Processo 1341-T94/IPHAN: 218). (MARTINS, 2019, p.06, grifo nossos).

Diante dos pareceres estadual e federal, restou ao Mineirão a salvaguarda pelo CDPCM/BH, que ocorreu em 2003.18 No entanto, o estádio foi protegido por ser uma edificação de uso coletivo, que integra o perímetro de entorno da área tombada estabelecida pelo IEPHA/MG e reafirmada pelo IPHAN. Ou seja, o estádio só foi oficialmente preservado pela municipalidade devido a sua localização. No documento “Inventário de bens culturais imóveis”, elaborado pela Gerência do Patrimônio Histórico Urbano da Secretaria Municipal de Regulação Urbana em 2003, o Mineirão, que pertence à Área de Diretrizes Especiais (ADE) Pampulha, foi indicado para proteção municipal como “tombamento conjunto” e com grau de proteção “integral”. A sugestão da referida gerência foi acatada pelo CDPCM/BH, por se tratar de um tombamento vinculado ao inventário do “Conjunto urbano Lagoa da Pampulha e

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São eles: Igreja de São Francisco de Assis, o antigo Cassino, a Casa do Baile e o Iate Tênis Clube. Deliberação nº 106/2003 do CDPCM/BH.

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para todo o conjunto, sem considerar qualquer especificidade de cada um dos imóveis

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adjacências”. A justificativa da salvaguarda, portanto, foi construída de forma única,


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que o compõem. No texto de abertura do inventário, foram enaltecidos os valores arquitetônicos do conjunto das edificações da Lagoa da Pampulha e adjacências. Esses valores arquitetônicos é que justificaram o tombamento, sem qualquer referência específica ao Mineirão e ao fenômeno esportivo. No parecer denominado “Relatório de análise de dossiê de tombamento do Conjunto Urbano Lagoa da Pampulha e adjacências e Inventário da Arquitetura Modernista de Belo Horizonte bairro São Luiz e Cidade Jardim”, de 12 de agosto de 2003, é expressa a intenção de compreender o movimento modernista para além das formas arquitetônicas: para o entendimento do ambiente cultural modernista de Belo Horizonte pela expressão arquitetural, é necessário tratar das relações de pertinência entre os edifícios e as transformações econômicas, os projetos políticos, as mutações na sociabilidade da vida cotidiana da sociedade, principalmente pós 45 (...) pretende-se compreender o patrimônio modernista da cidade de Belo Horizonte não apenas pela sua imagem visível e nem só pelo seu conjunto arquitetônico, mas sim, fundamentalmente, pelo seu espaço urbano vivencial (BAHIA, 2003, n.p.).

Apesar de as manifestações esportivas ocorridas no Mineirão comporem o ‘espaço urbano vivencial’ de que nos diz o parecer, não há no documento qualquer elemento relativo ao esporte e à sua relevante contribuição para a construção identitária do “Conjunto Urbano Lagoa da Pampulha” e, por conseguinte, de Belo Horizonte e seus moradores. A candidatura do “Conjunto Moderno da Pampulha” à Patrimônio Mundial da UNESCO, também foi construída com base em elementos arquitetônicos, a partir dos seguintes critérios: (i) representar uma obra-prima do gênio criativo humano; (ii) exibir um importante intercâmbio de valores humanos, ao longo de um período de tempo ou dentro de uma área cultural do mundo, sobre desenvolvimentos em arquitetura ou tecnologia, artes monumentais, urbanismo ou paisagismo; (iv) ser um excelente exemplo de um tipo de edifício, conjunto arquitetônico ou tecnológico ou paisagem que ilustra (a) etapas significativas da história da humanidade (UNESCO, 2020, tradução nossa).

No dossiê de candidatura encaminhado à UNESCO, o Mineirão também aparece como área adjacente ao “Conjunto Moderno da Pampulha”, que em 2016 foi

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UNESCO. Disponível em: <https://whc.unesco.org/en/list/1493/gallery/&maxrows=51> Acesso em: 18 jun. de 2020 .

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de 202019, as imagens são dedicadas, majoritariamente, a detalhes arquitetônicos e não

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reconhecido pela UNESCO. Na página da internet desta instituição, analisada até junho


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há, sequer, uma única imagem do estádio. Também nesse caso, o reconhecimento do Mineirão se deu a reboque das obras de Oscar Niemeyer, sem qualquer reconhecimento de sua relevância cultural.

Conclusão

A partir do estudo do caso da salvaguarda do estádio Mineirão pela PBH, percebemos a ausência de valorização do esporte como elemento constitutivo da identidade e da memória da cidade e de seus moradores. Não obstante os avanços nas ações de salvaguarda no Brasil, que ampliou o conceito de patrimônio cultural, principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, a representatividade do esporte nos Livros do Tombo não reflete o lugar de importância ocupado por esse elemento da cultura na história, memória e cotidiano dos cidadãos. O caso do tombamento do Mineirão demonstra que a tradicional valorização da arquitetura, presente desde o início do IPHAN, ainda marca fortemente as políticas de preservação nos diferentes níveis de governo, inclusive na PBH. Ainda que se trate de bem ligado ao esporte, não identificamos nos documentos do processo de inventário do estádio, nenhuma justificativa para a salvaguarda relacionada a esse fenômeno social. Além do mais, não há qualquer argumento especificamente ligado ao estádio. Ele foi tombado, por estar geograficamente localizado nas adjacências do Conjunto Moderno da Pampulha. Nem mesmo a imponente arquitetura do Mineirão ganhou destaque no processo, como ocorreu com as edificações assinadas por Oscar Niemeyer.

Referências ALVES, R. O. T et al. “O football precipitando a vida: os primeiros anos do esporte bretão em belo horizonte (1904-1933)”. Belo Horizonte: Licere, v.17, n.1, 2014. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/licere/article/view/628/430>. Acesso em: 28 jun. 2020. ANDRADE Mário Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mário de Andrade. 2002; nº 30: 128-137, 2002.

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BAHIA, C. L. M. Relatório de análise de dossiê de tombamento do conjunto urbano Lagoa da Pampulha e adjacências e Inventário da Arquitetura Modernista de Belo Horizonte Bairro São Luís e Cidade Jardim. Belo Horizonte: 12 de agosto de 2003. Disponível no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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CAMPOS INVISÍVEIS: a Paraopeba como a avenida do futebol na Belo Horizonte dos anos 1920 Invisibile stadiums: the Paraopeba as the football avenue in Belo Horizonte of the 1920s

Ives Teixeira Souza

RESUMO: O artigo busca criar a memória da Avenida Paraopeba (atual Avenida Augusto de Lima) como o principal endereço do futebol em Belo Horizonte na década de 1920. Com a inauguração de dois novos estádios, o do América Futebol Clube e o da Sociedade Esportiva Palestra Itália, ambos em 1923, somados ao campo existente do Clube Atlético Mineiro, a avenida tornou-se o polo dos estádios de futebol na capital mineira. Este artigo também propõe que o processo de retirada de parte desses estádios da Paraopeba pelo poder público é justificado pela urbanização da cidade - com a canalização do Córrego do Leitão e a terraplanagem do vale - e pelo uso político dos novos empreendimentos construídos na região. Ao fim, sugere a valorização de pistas que fazem emergir na atualidade as memórias desses antigos estádios. Palavras-chave: Estádios de futebol; Avenida Paraopeba; Urbanização.

ABSTRACT: The article seeks to create a memory of Paraopeba Avenue (now Augusto de Lima Av.) as the main football address in Belo Horizonte in the 1920s. With the opening of two new stadiums, that of América Futebol Clube and that of Sociedade Esportiva Palestra Itália, both in 1923, in addition to the already existing soccer field of Clube Atlético Mineiro, the avenue became the center of the football stadiums in the capital of Minas Gerais. This article also proposes that the process of removing part of these stadiums of Paraopeba Avenue by the public authorities is justified by the urbanization of the city - with the channeling of the Leitão Stream and the earthwork of the valley - and by the political use of the new projects built in the area. Finally, it suggests the appreciation of some clues that make the memories of these old football stadiums emerge into the current scene. Keywords: Football stadiums; Paraopeba Avenue; Urbanization.

Introdução Este artigo tem origem em inquietações sobre os antigos estádios de futebol de Belo Horizonte. Em uma década em que são discutidas as reformas realizadas nos dois maiores estádios da cidade - o Mineirão, na região da Pampulha, e o Independência, na região leste - e que viraram realidade as obras para a construção de mais um grande estádio, na região noroeste, perguntas surgiram sobre quais outros estádios permearam a história do futebol na cidade. Começou assim “Campos invisíveis”, pesquisa desenvolvida entre 2016 e 2017, no

Jornalista e Relações Públicas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando em Comunicação Social (Comunicação e Sociabilidade Contemporânea) pela mesma instituição. E-mail: ives@ufmg.br REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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A pesquisa, ao aproximar história e jornalismo, trouxe à tona resquícios das memórias dos

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âmbito do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


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estádios extintos de futebol de Belo Horizonte, seja por textos científicos, entrevistas com personagens que fizeram parte das histórias desses lugares e documentos jornalísticos de jornais e revistas produzidas ao longo do século XX. Ao fazer essa aproximação entre história e jornalismo, Barbosa (2019) afirma que o jornalismo possui a pretensão de ser testemunha de um tempo. “O jornalista utiliza o tempo como capital simbólico de sua profissão e da importância que ela deve ter, e não apenas o presente, tomado como possibilidade de ser o futuro do passado, mas igualmente também o passado no presente” (BARBOSA, 2019, p. 6). É compreendendo essa pretensão do jornalismo de construir o tempo que foram realizadas as análises das fontes documentais para este artigo. Como exemplos, a análise do periódico Araldo Italiano foi realizada sem menosprezar a construção pelo jornal de sua própria imagem perante a comunidade italiana em Belo Horizonte ou do Minas Gerais, entendido como periódico oficial do Estado. Dessa maneira, buscou-se não preterir as próprias narrativas desses rastros do passado que foram trazidos à tona para serem narrados por nós, pesquisadores. Afinal, é a partir das narrativas desses rastros que se torna possível construir uma narrativa sobre a avenida Paraopeba (atual avenida Augusto de Lima) ser a avenida do futebol em Belo Horizonte. Como sustenta Barbosa (2019), O rastro material/documental é, portanto, algo que foi voluntária ou involuntariamente guardado e que prova a existência do passado, ensejando a qualidade daquilo que figura como representação dos tempos idos, possuindo a positividade de representá-lo e de ser reconhecido como possibilidade de instaurar uma espécie de aura de um tempo que poderia ter sido irremediavelmente perdido (BARBOSA, 2019, p.9).

Os rastros documentais atuam, portanto, a partir da presença do pesquisador, que os colocam como fontes na construção de um ato narrativo. Dessa maneira, ambas as narrativas, a construída pelas próprias fontes de pesquisa e a do pesquisador, extraem das fontes intencionalidades distintas das que foram originalmente publicadas. “É aquilo que, resultado da tessitura da intriga que põe em jogo acontecimentos, com seus agentes e padecentes articulados nas relações passado-presente-futuro, permite a mínima apreensão do tempo” (LEAL; CARVALHO, 2017, p.11). Pois assim como o jornalista, o pesquisador, ao narrar, também busca dominar a percepção sobre algo, cada um com suas indagações e

passado e presente. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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periódicos e revistas - revisitadas para este artigo funcionam enquanto mais um elo entre

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interpretações. Dessa maneira, as fontes documentais - artigos científicos, teses, dissertações,


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Isto posto, se a narrativa só existe quando é produzido sentido sobre ela pelo ato de narrar, de modo a configurar novas compreensões, o que pretendemos com este artigo é criar uma narrativa que ao recuperar rastros, cria uma nova memória sobre a Paraopeba e suas relações com o futebol. É uma tentativa de apreensão temporal daquela avenida que foi o local, cem anos atrás, do esporte mais popular da cidade. Afinal, como destaca Barbosa (2019b), posicionada entre lembrança e esquecimento, “a memória produz o ingresso no passado pelo caminho da reminiscência construída como brechas para esse passado a partir do presente (BARBOSA, 2019b, p.21). Em busca da construção dessa memória, interpretamos os rastros dos primeiros locais onde houve a prática de futebol em Belo Horizonte até o início das partidas nos terrenos localizados na avenida Paraopeba. Em seguida, mostramos como o poder político contribuiu para a consolidação da região como palco esportivo e os principais eventos ali realizados. Por fim, desenvolvemos uma apropriação mais aprofundada que a comumente relacionada ao processo de retirada dos estádios pelo poder público da Paraopeba (PAIVA, 2012; NETO, 2017): ao mostrar que a saída dos estádios da avenida fazia parte de um amplo processo de urbanização daquela região, com a canalização do Córrego do Leitão e a terraplanagem da bacia do córrego, bem como de um processo de conquista de capital político pelos governantes da capital e de Minas Gerais.

Até chegar à Paraopeba O Sport Club, primeiro clube de futebol criado em Belo Horizonte, em julho de 1904, apesar de realizar suas primeiras partidas no Parque Municipal, próximo ao atual Teatro Francisco Nunes, que, inclusive, foi local do primeiro campeonato do esporte na cidade, logo buscou um espaço próprio para realizar seus treinos (RIBEIRO, 2012). Era a área em que está localizado o Centro Mineiro de Promoções Israel Pinheiro, o Minascentro, entre as atuais ruas Curitiba, Guajajaras, Bias Fortes, Santa Catarina e Augusto de Lima. O Sport Club nivelou, gramou e cercou o espaço para seus treinos e partidas. Em 1906, o clube tentou a concessão do terreno, mas não conseguiu (RIBEIRO, 2007). Mas era um momento de declínio do

Enquanto isso, de acordo com Ribeiro (2007), outros clubes de futebol se fundiram e diminuíram as mensalidades para os associados, com a expectativa de manter viva a prática REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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no início do mesmo ano, após passar férias no Rio de Janeiro (RODRIGUES, 2006).

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esporte na cidade. Um de seus primeiros incentivadores, Victor Serpa, havia morrido de gripe,


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do futebol na jovem capital mineira. Entre os exemplos, o Sport Club Mineiro e o Athletico Mineiro Football Club (atual Clube Atlético Mineiro), ambos fundados em 1908. O primeiro, inclusive, foi autorizado pela prefeitura a utilizar para suas atividades parte do terreno do Parque Municipal, ao lado da avenida Mantiqueira (atual Alfredo Balena), onde hoje é a Faculdade de Medicina da UFMG. Apenas com a criação de novas equipes, como o Yale (1910) e o América Futebol Clube (1912), que os campos começam a se espalhar mais para a região oeste da cidade. Antes disso, em 1905, o Viserpa Football-Club utilizou área que corresponde, atualmente, à praça Diogo de Vasconcellos (RIBEIRO, 2007). De acordo com Rodrigues (2006), em 1911, o Yale conseguiu da Prefeitura a concessão do terreno entre as atuais ruas Guajajaras, Amazonas e Mato Grosso, próximo ao córrego Barro Preto, para sediar seus jogos. Foi no local que aconteceu a primeira partida na capital em que se cobrou ingresso, ao custo de 1000 réis, contra o Morro Velho, de Nova Lima, quando o time da capital perdeu por 1x0 (SOUZA NETO, 2017). Outro clube, o Minas Gerais, fundado no mesmo ano, ocupou, de imediato, área em frente ao antigo local utilizado pelo Sport Club, na antiga Paraopeba, local em que há mais de 90 anos está o Mercado Central de Belo Horizonte. No mesmo período, o Atlético reocupou o terreno em frente para suas atividades, já que no qual estava antes, bem próximo dali, na rua Guajajaras, não passava de 30 metros de largura e 70 metros de comprimento, sem linhas laterais e nivelação irregular (ZILLER, 1974). Com o campo, o clube aumentou sua visibilidade no meio esportivo, cedendo-o para a atuação de outros times. Mas faltava a presença de mais um clube para a tentativa do apogeu da Paraopeba como o principal centro esportivo da capital: o América Futebol Clube. Fundado em 1912, o América logo utilizou o terreno da Prefeitura, na rua Timbiras com Espírito Santo, compactado por macadame, para realizar suas atividades. No ano seguinte, desceram a Timbiras rumo ao Córrego do Leitão quando ocuparam um desterrado que contava com um barranco que servia de arquibancada, o que não duraria muito tempo (PAIVA, 2012). Em setembro, o Minas Gerais, que tinha o apoio do prefeito Olinto Meirelles, se fundiu com o América - clube do filho e do sobrinho do então presidente, como chamava à época o atual governador de Estado, de Minas Gerais, Júlio Bueno Brandão - que passou a

Com a explosão do futebol na cidade, os dois campos da Paraopeba e o do Yale não

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comportavam a grande quantidade de pessoas que assistiam às partidas. Para a disputa da

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contar com os jogadores e o campo no qual jogava o extinto clube (COUTO, 2012).

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Taça Bueno Brandão, que homenageava o então presidente de Minas, o local escolhido por Yale, Atlético e América foi o Prado Mineiro, que estava praticamente abandonado após o fim das corridas de cavalo que aconteceram ali na segunda metade da década anterior (RIBEIRO, 2007). Conforme Rodrigues (2006), planejado pela Comissão Construtora da Nova Capital para ser construído fora do perímetro da avenida do Contorno, o Hipódromo teve sua construção iniciada em 1906. Em 1904, o jornal Minas Gerais publicou os estatutos da Sociedade Anônima Prado Mineiro, que havia solicitado a construção do espaço conforme a planta da cidade. Em maio, a inauguração aconteceu com mais de 1500 espectadores na arquibancada. Mas em 1908, o turfe já dava sinais de que não era o esporte predileto dos que moravam na capital (RODRIGUES, 2006). Destaca Souza Neto (2017), que “por ser um esporte reservado a uma esfera diminuta da cidade, de difícil acesso e envolvendo altos investimentos financeiros, o turfe não chegaria a ser uma prática duradoura no cotidiano de Belo Horizonte” (SOUZA NETO, 2017, p.38). Em 1911, aconteceu a última corrida de cavalo no local, que, no ano seguinte, foi repassado ao poder público - que utilizava o espaço como alojamento militar e para abrigar a exposição anual agropecuária de Minas (SOUZA NETO, 2017). Era, portanto, o cenário ideal para a prática do campeonato que reuniria os principais clubes da cidade, com grande presença de público. A partir daquele momento, com a fundação da Liga Mineira de Esportes Atléticos, e o início dos campeonatos anuais, o Prado tornou-se o principal local de realização dos jogos de futebol da cidade até 1923. Entretanto, as resistências ao Prado eram muitas. Como lembra Souza Neto (2017), o tamanho era acanhado para as dimensões do futebol praticado na cidade (1500 pessoas sentadas), o gramado não era de boa qualidade e a distância com a região central da cidade incomodava os homens do esporte local, que reclamavam constantemente da superlotação dos

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bondes para as idas às partidas.

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Os estádios da Paraopeba Em 1916, o prefeito Cornélio Vaz de Mello, pouco antes de deixar o cargo, cedeu oficialmente o terreno na Paraopeba, com o intuito de ser o mais novo um espaço do futebol na cidade, ao Atlético. De acordo com a Lei nº 121 de 18 de outubro de 1916, o Atlético estava autorizado a “estabelecer o seu campo de esporte e, de acordo com a legislação em vigor, efetuar a construção de arquibancadas e outras obras necessárias ao seu fim” (PBH, 1916). Porém, o projeto atleticano não foi concretizado como idealizavam os amantes do esporte na cidade. O prefeito seguinte, Affonso Vaz de Mello, irmão do anterior, autorizou a concessão do terreno em frente ao América, que ocupava o espaço desde a fusão com o Minas Gerais, corroborando o desejo do poder municipal de fazer daquela localidade o centro do futebol em Belo Horizonte. A Lei nº 187, de 6 de outubro de 1920, permitiu ao clube construir as arquibancadas e outras obras necessárias para estabelecer o campo de esportes (PBH, 1920). A cessão do campo foi assinada no dia 9 de dezembro. Era o início da construção do primeiro estádio de futebol da cidade. Logo a diretoria americana iniciou as tratativas de arrecadação financeira para a construção daquela que seria, até então, a maior praça de esportes de Belo Horizonte, com quadras de tênis, vôlei e basquete (PAIVA. 2012). De acordo com Paiva (2012), seis contos de réis foram subvencionados pelo Congresso Mineiro. O clube também investiu todo o dinheiro que tinha disponível. Afinal, a obra era orçada em 40 contos de réis, o que correspondia a 12% do valor gasto com obras públicas pela prefeitura em 1920 (RIBEIRO, 2007). As obras, de fato, tiveram início em abril de 1922. Como destaca Souza Neto (2012), a arquibancada ocupava todo o lado esquerdo da Avenida Paraopeba, acomodando “folgadamente” duas mil pessoas. Outras três mil poderiam assistir aos jogos da geral “relativamente confortáveis”, como avaliava o Minas Gerais (MINAS GERAIS, 1923). Apesar da proximidade no estádio, os públicos não se misturavam muito, já que os portões de entrada eram diferentes. A geral tinha acesso pela rua Curitiba e a arquibancada pela Avenida

ficavam as acomodações do clube. Salões para recepções de oficiais, reuniões de diretoria e secretaria, salão para ginásticas, toalete, dois bares, dois vestiários (SOUZA NETO, 2012). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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escadaria central e o restante do público as escadas laterais. Na parte inferior da arquibancada

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Paraopeba. Até mesmo dentro da arquibancada havia divisões. Os sócios utilizavam a


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O estádio, que era murado, modificou o hábito costumeiro de assistir às partidas sem pagar ingressos, como destaca Souza Neto (2017). A primeira partida do América no estádio aconteceu contra o Palestra Itália, no dia do centenário da Independência do Brasil, e ficou empatado em 3 x 3. Mas a inauguração oficial só aconteceu em maio de 1923, quando as obras estavam concluídas. Com pontapé inicial do então governador de Minas e conselheiro do América, Raul Soares, o América venceu o xará do Rio de Janeiro por 5 a 1 (PAIVA, 2012). Naquele início de década, mudanças na avenida Paraopeba também aconteceram na parte situada no Barro Preto. Fundado em janeiro de 1921, a Sociedade Esportiva Palestra Itália (atual Cruzeiro Esporte Clube), cultivou a vontade de construir seu próprio estádio desde a fundação. Como forma de pressionar para a concessão do terreno, a pedra fundamental do estádio foi lançada no dia do primeiro aniversário do clube. Poucos meses depois, a Lei nº213 da prefeitura de Belo Horizonte, de 7 de abril de 1922, estabeleceu a concessão, por aforamento - concedido em contrato que o poder público julgasse conveniente para assegurar as defesas dos interesses municipais - do terreno entre as ruas Ouro Preto, Guajajaras, Araguari e a Avenida Paraopeba (PBH, 1922). Também assinada por Affonso Vaz de Mello, a lei é diferente da que concedeu o terreno ao América e ao Atlético. Nas dos dois clubes a concessão não era por aforamento. Afinal, enquanto ambos os clubes eram formados por associados de elevada projeção social na cidade, o Palestra era formado por colonos italianos, que nos anos 1920 correspondiam a 9% da população total da cidade (DUTRA, 1989). O que reforça ser a rivalidade entre América e Atlético, naqueles anos iniciais do futebol na cidade, apenas um rito de distinção entre dois grupos privilegiados (COUTO, 2003), diante da hegemonia de ambos os clubes sobre o futebol e o poderio político na cidade. Por outro lado, o Estádio do Barro Preto era uma forma do Palestra marcar posição no cenário futebolístico da cidade e da colônia italiana se fazer presente em meio à elite belohorizontina. Como destaca Souza Neto (2017), “ter um território particular aumentava a identificação do clube com a colônia de italianos, além de representar uma visibilidade concreta e palpável do clube com a cidade” (SOUZA NETO, 2017, p.56). As obras começaram em junho de 1922, ainda na gestão de Aurélio Noce, quando o

associados, as obras também contaram com a colaboração de jogadores, e operários -

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funcionários dos associados do clube (ARALDO, 1923). Em junho de 1923, juntamente com

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terreno foi murado, nivelado e gramado, ao custo de 37 contos de réis. Com mais de 300

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o estádio do América, o estádio do Barro Preto sediou o campeonato da Cidade. Logo depois, as obras das arquibancadas de madeira, que suportavam cinco mil torcedores, foram finalizadas. A inauguração oficial foi em 23 de setembro, em meio às comemorações dos 53 anos da tomada de Roma no processo de unificação italiana, quando o Palestra Itália empatou com o Flamengo, do Rio de Janeiro, por 3 a 3 (RIBEIRO, 2014). A partir da inauguração dos dois estádios, em 1923, a Paraopeba passou a vivenciar, de fato, o seu apogeu como a avenida do futebol em Belo Horizonte. O futebol na cidade tinha estrutura adequada para os torcedores e para a imprensa. Era a consolidação do espaço esportivo do futebol na cidade, do torcer, do espetáculo. Entre os principais eventos que aconteceram nos estádios da Paraopeba, na década de 1920, estava a permissão pelo Palestra Itália, em 1925, para a participação no time de jogadores que não pertenciam a colônia italiana (SILVA, 2012). Foi no Estádio do América que ocorreram as últimas três conquistas do decacampeonato da Cidade pelo América, iniciado em 1916, no Prado Mineiro (PAIVA, 2012), e uma das partidas que, na atualidade, gera mais controvérsia entre os torcedores de futebol de Belo Horizonte, por causa da atual rivalidade entre os torcedores do Atlético e do Cruzeiro. Em 27 de novembro de 1927, a partida Atlético e Palestra Itália terminou com o placar de 9 a 2 para o primeiro. De acordo com o Minas Gerais (1927), o jogo anterior entre as equipes, em agosto, quando o Atlético também venceu, houve tumulto iniciado por torcedores atleticanos, com reações por parte dos palestrinos, o que foi chamado de conflitos de proporções desagradáveis. O primeiro tempo da partida terminou com a vitória parcial do Atlético por 2 a 1, com gols de Said (Atlético) e Ninão (Palestra). Os restantes foram anotados no segundo tempo, por Bengala (Palestra) e Jairo, Mário de Castro, Getulinho (Atlético) (MINAS GERAIS, 1927). Enquanto o Atlético tentava construir seu estádio e o Palestra conquistava, em fevereiro daquele ano, o primeiro título em seu estádio (Campeonato alternativo da Cidade), o 9x2 foi o último grande momento da Paraopeba como o centro do futebol na cidade. A partir daquele Campeonato da Cidade, os caminhos dos grandes jogos mudariam para o bairro Santa Efigênia, ao lado do Parque Municipal, local no qual começou a prática do futebol em Belo

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Horizonte.

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A Paraopeba não poderia ser a mesma Paiva (2012) e Souza Neto (2017) afirmam que as transferências do estádio do América e do campo do Atlético da rua Paraopeba para os atuais bairros de Santa Efigênia e Santo Agostinho foram pela necessidade do governo municipal de construir um novo mercado e do governo estadual de construir um prédio para a Secretaria de Saúde. Como contrapartida, os clubes receberiam seus novos estádios totalmente prontos (PAIVA, 2012; SOUZA NETO, 2017). Souza Neto (2017) ainda apresenta, para corroborar com o argumento, o relatório do prefeito Christiano Machado de 1927-1928, que define a construção do novo mercado na Paraopeba como “necessidade imperiosa” (PBH, 1928). Porém, para melhor compreender sobre esse processo, é preciso analisar a intensa urbanização da capital mineira na década de 1920 e a consequente ocupação do vale do Córrego do Leitão, onde ambos os estádios da Paraopeba estavam situados. Conforme Borsagli (2019), a área correspondente à bacia do Leitão não era urbanizada até metade da década de 1920. O leito natural do córrego funcionava como uma barreira à expansão do tecido urbano naquela região. Nos anos iniciais do século, por exemplo, houve a cobertura da vala do Córrego do Mendonça, na atual região da Savassi, que foi desviado para a bacia do Leitão pelo córrego do Zoológico (ruas Felipe dos Santos, Rio de Janeiro e Alvarenga Peixoto), que atravessava o bairro de Lourdes, próximo ao hoje Minas Tênis Clube (BORSAGLI, 2019). Com isso, a ocupação urbana foi expandida das áreas em torno da atual região da Savassi, aos fundos do Palácio da Liberdade e da Rua da Bahia. Outro córrego, o do Barro Preto (que seguia pela rua Araguari e Mato Grosso - pouco antes de atravessar a Paraopeba), também parte da bacia do Leitão, atravessava o bairro, que foi criado em 1902 para reassentar moradores das favelas do Leitão e do Alto da Estação (BORSAGLI, 2019). Dessa maneira, a urbanização completa da avenida Paraopeba era limitada pelos córregos do Leitão e do Barro Preto. Em sentido leste-oeste, desde a rua São Paulo, onde

prática de futebol na cidade, o Estádio do América e o campo do Atlético. Ambos com

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urbanização. Não por acaso, era essa a localização de dois dos principais espaços para a

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passava o Leitão, até a rua Rio Grande do Sul, próximo ao córrego do Barro Preto, não havia


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terrenos cedidos pelo poder público municipal, que via a possibilidade da área do vale do Leitão ser ocupada, enquanto a urbanização não era realizada. Por outro lado, o restante da avenida Paraopeba, no Barro Preto, que se ligava à região central apenas pela rua Tamoios, estava urbanizada desde 1918, inclusive o quarteirão que logo depois pertenceria ao Palestra Itália, ao lado do córrego Barro Preto (BORSAGLI, 2019). Afinal, como ressalta Borsagli e Bernardes (2016), o crescimento urbano de Belo Horizonte era contrário ao planejado quando da construção da capital. Da periferia, na qual foram instaladas colônias agrícolas na beira de córregos, para a região central. É deste período, inclusive, dos mandatos dos irmãos Vaz de Mello, como dito anteriormente, a tentativa de modernização dos campos da cidade, o que só aconteceu com a inauguração do Estádio do América, em 1923. Com o crescimento das colônias agrícolas, na transição entre as décadas de 1910 e 1920, Belo Horizonte convivia com um rápido crescimento populacional. De acordo com Penna (1997), em 1916, ano do início da gestão Afonso Vaz de Mello, a cidade tinha aproximadamente 47 mil habitantes. Em 1922, quando assumiu o prefeito Flávio Fernandes dos Santos (1922-1926), a população era de 65 mil. No último ano de mandato, era de 87 mil, quase o dobro da registrada 10 anos antes. Como lembra Borsagli e Bernardes (2016), a região residencial em torno da rua da Bahia não era mais suficiente para a demanda da cidade, já que com a ampliação populacional muitos comércios foram abertos na região central. Era preciso criar uma nova área residencial na cidade. Mesmo assim, a ocupação do vale ocorreu de forma lenta e gradual, visto que os lotes eram bem mais caros se comparados a regiões como Lagoinha e Carlos Prates. As canalizações dos córregos que cortavam o projeto inicial da capital eram percebidas pelo poder público como a única possibilidade para a expansão da malha urbana da cidade, ao possibilitar a abertura de vias e minimizar os problemas das enchentes, como a de 1915. Como mostra o relatório do prefeito de 1923-1924 (PBH, 1924), no qual foram apresentados os estudos sobre as canalizações dos córregos, muito mais que motivos econômicos, como o aumento da arrecadação da prefeitura com os loteamentos, e estéticos, já que antes só era feita a capina nas margens e a manutenção das pontes, a canalização foi feita por ordem higiênica (PBH, 1924), diante da enorme quantidade de esgoto que era despejado

metade da década de 1920, como o Arrudas (da rua Araguari até a Ponte do Perrella, na

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Avenida do Contorno), o Barro Preto, e o Acaba Mundo (BORSAGLI; BERNARDES, 2016).

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nos leitos. Outros cursos d`água também foram canalizados em seção aberta na segunda

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O Leitão corria em leito natural até chegar à rua Alvarenga Peixoto com São Paulo, quando recebia o curso d´água, em canalização fechada, do Córrego do Zoológico. Apenas na década seguinte, entre 1935 e 1936, o Leitão foi coberto entre a avenida do Contorno e a rua São Paulo, quando foram abertas para a passagem do córrego canalizado as ruas Marília de Dirceu e Barbara Heliodora (BORSAGLI, 2019). As obras da canalização aberta do Leitão, que começaram em novembro de 1924 e se estenderam até 1930, perpassou a São Paulo (cruzamento com Alvarenga Peixoto) e seguiu a São Paulo rumo à Paraopeba. Quando a canalização chegou à avenida houve uma alteração de curso, com a criação de uma rua diagonal ao leito natural do córrego, a Padre Belchior. A canalização seguiu o curso d´água para a rua Tupis e Mato Grosso, onde o córrego deságua no Arrudas. Todo esse trecho só foi coberto quase 50 anos depois, na década de 1970 (BORSAGLI; BERNARDES, 2016).

O projeto político em torno da Paraopeba Como dito, o crescente aumento populacional da capital culminou na necessidade, pelo poder público, de canalizar o Córrego do Leitão - visto como principal alternativa para a urbanização de grande parte da região central de Belo Horizonte - e terraplanar toda a região do vale do córrego. Mas isso não explica a necessidade de retirada do estádio do América e do campo do Atlético da Paraopeba. Afinal, por qual motivo as áreas não poderiam fazer parte da nova Paraopeba que surgia? Para compreender isso, é necessário recuperar o contexto político-administrativo de Belo Horizonte na década de 1920 e entender as motivações políticas em torno da avenida Paraopeba e dos clubes de futebol, que, como lembra Souza Neto (2012), já era o esporte mais popular da cidade. Era um momento de completo domínio do Partido Republicano Mineiro (PRM) em todas as esferas administrativas de Minas. À época, não havia eleição direta para prefeito de Belo Horizonte, que era indicado pelo governador do Estado. Este sim, escolhido por eleição direta. Em março de 1922, o então governador Artur Bernardes foi eleito presidente da República. No mesmo ano, Raul Soares foi eleito governador de Minas e convidou o advogado e industriário alagoano Flávio Fernandes dos Santos para o cargo de prefeito da

mandato.

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eleição, Fernando de Mello Vianna foi votado para completar o restante de tempo do

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capital mineira. Raul Soares faleceu em agosto de 1924, quando no mesmo ano, após nova


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Nas eleições de 1926, Mello Vianna foi eleito para ocupar a vice-presidência da República e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada a presidência de Minas. Andrada escolheu Christiano Machado, antigo oficial de gabinete de Raul Soares, para ser o prefeito de Belo Horizonte. Todos membros do PRM e com mandato de quatro anos. Neste período entre 1926 e 1930, Antônio Carlos - que quando eleito governador pretendia fortalecer a base eleitoral para ser eleito presidente da República (MALIN, 2001) - foi um dos líderes da Aliança Liberal, iniciada ainda em 1928, após o então presidente Washington Luís apoiar a candidatura do paulista Júlio Prestes para o cargo. Foi neste contexto de busca de fortalecimento político de Antônio Carlos que foram inaugurados o novo estádio do América, em setembro de 1928, e do Atlético, em maio de 1929, que, inclusive, recebeu o nome do então presidente de Minas. Com o objetivo de obter capital político para a futura candidatura à presidência da República e ao governo de Minas, fazia parte do projeto político da parceria Antônio Carlos e Christiano Machado a rápida urbanização da capital. O objetivo era transformar Belo Horizonte “do antigo povoado sertanejo, no atual centro urbano atraente e moderno” (PBH, 1927, p.50), como definiu o próprio Machado, que também afirmava ser mandatário fiel de Andrada, cujo programa já se transforma em realizações imponentes, a começar pelo auxílio orçamentário para os serviços da cidade, que sua excelência propugnou fosse aumentado de mais de cento por cento. Este e muitos outros de ainda maior valia porão em evidência o nome do eminente brasileiro como o do grande servidor de nossa capital (PBH, 1927, p.50).

Alguns dos projetos da dupla realizados na capital mineira foram a conclusão, pela prefeitura, da obra de canalização do Leitão, para dar “à parte oeste da cidade um aspecto agradável e útil” (PBH, 1927, p.34), o calçamento da avenida Paraopeba da rua São Paulo até a rua Araguari - finalizando a avenida em todo seu trajeto. Bem como a construção da praça Raul Soares, do novo Mercado Municipal e a finalização das obras em torno do estádio do Atlético e do prédio para o Ginásio Mineiro. Na região do rio Arrudas, a finalização da canalização do rio da rua Araguari até a Avenida do Contorno (Ponte do Perrella), do viaduto sobre as linhas de trem que ligaria o bairro da Floresta à cidade (atualmente conhecido como

Antônio Carlos de preferir as soluções definitivas (PBH, 1927). Soluções que foram REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Como afirmou Machado, ao se dirigir para o Conselho Deliberativo, era o pensamento de

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Santa Teresa), a abertura da Avenida dos Andradas e a construção do estádio do América.


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finalizadas somente nos meses finais dos mandatos, em meio ao acirramento do processo da Aliança Liberal. Para além das obras de urbanização de Belo Horizonte, a gestão de Antônio Carlos focou em políticas públicas educacionais, sob o comando do secretário do Interior e professor da Faculdade de Direito Francisco Campos. Em comemoração ao primeiro ano de mandato, em setembro de 1927, foi criada a Universidade de Minas Gerais e o desenvolvimento do projeto para a criação da Cidade Universitária. A parceria, que modificou a legislação da educação mineira com uma ampla reforma educacional, também criou uma escola de especialização para as professoras das escolas primárias do Estado, a Escola Mineira de Aperfeiçoamento. Não por acaso, o novo prédio construído para o Ginásio Mineiro, no antigo terreno do campo do Atlético, foi o local escolhido para ser a sede da Escola, na qual mulheres de diversas cidades de Minas foram aprofundar seus estudos sobre pedagogia, o que culminou para o avanço do processo de urbanização da região (KULESZA, 2019).

A Paraopeba não era mais a mesma Afinal, havia a necessidade de construir o novo mercado de Belo Horizonte no estádio do América? Para responder a essas perguntas é preciso elucidar a situação do então mercado da cidade e voltar ao processo de terraplanagem do Leitão. Criado em 1900, o mercado da praça Rio Branco passou por constantes obras de ampliação ao longo desse período. Afinal, a população passou de pouco mais de 13 mil habitantes da virada do século para 75 mil, em 1924 (NETTO, 1997). Mesmo assim, no relatório de gestão do prefeito Flávio dos Santos 1924-1925, o mercado é descrito com boas condições de asseio e higiene, apesar da queda da movimentação dos negócios, por causa da diminuição dos preços dos alimentos (PBH, 1925). Com o aumento populacional no bairro Funcionários, a prefeitura construiu, em 1924, um mercado municipal na região. Mas ele ficou pouco tempo aberto. No início do ano seguinte, o mercado deixou de funcionar, após a recusa dos comerciantes em alugar os espaços. O

No relatório do ano seguinte, publicado no primeiro mês da gestão de Christiano Machado, o mercado da Rio Branco é descrito como “conservado, mas insuficiente para o REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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mesmo com a gratuidade do aluguel durante o segundo semestre (PBH, 1925).

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Mercado do Funcionários foi definido pela própria prefeitura como um “fracasso completo”,


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serviço que ele presta.” (PBH, 1926, p.31) Mas essa mudança de posicionamento, apesar do aumento populacional, foi motivada pela necessidade de ocupar outra área da cidade, o vale do Córrego do Leitão, que naquele momento estava sendo canalizado. Nada melhor que o Mercado Municipal para levar as pessoas para aquela região. Ao mesmo tempo, era uma forma de ampliar a capacidade de atendimento do mercado, garantir o público consumidor, já que continuaria sendo o único na região central da cidade, e de valorizar os loteamentos abertos com a urbanização do vale. Com o mesmo objetivo, foi idealizado anteriormente, ainda na gestão Flávio dos Santos - Mello Viana, a construção de nova sede do Ginásio Mineiro para o local do campo do Atlético. Nos dois anos iniciais da obra no Leitão, foi realizada a canalização entre a Avenida São Francisco (atual Olegário Maciel) até a Paraopeba, bem como a terraplanagem de toda essa área correspondente ao vale do Leitão. Dessa maneira, ainda em 1925, foram iniciadas, pelo poder público, as tratativas para a desapropriação do terreno do Atlético. Como lembra Ribeiro (2007), quando da formulação da lei, houve intensa discussão pelos membros do Conselho Deliberativo sobre a necessidade da doação do terreno, já que por ser localizado em região central da cidade, logo poderia ter outra serventia. Dessa maneira, o artigo terceiro da lei que concedeu o terreno ao clube afirmava que em caso de desapropriação do terreno por necessidade ou utilidade pública a associação seria indenizada no valor das benfeitorias existentes (PBH, 1916). Assim sendo, as tratativas com o Atlético não foram prolongadas. A prefeitura concederia o novo terreno em região mais ao sul, que também passava por terraplanagem (PBH,1926), e arcaria com os custos da terraplanagem do novo campo. Em janeiro de 1926, o clube oficializou a proposta municipal e recebeu o quarteirão 13, da 9ª seção urbana (atualmente localizado entre as ruas Gonçalves Dias, Rio Grande do Sul, Bernardo Guimarães e Olegário Maciel), no atual bairro Santo Agostinho, sem outras ocupações ao redor, já que a região, localizada na 12ª seção urbana, era reservada para a criação da Cidade Universitária. Enquanto a ocupação da região ao lado, de Lourdes, aconteceria somente na década seguinte, a região do Santo Agostinho só seria ocupada após as vendas dos loteamentos pela Universidade Minas Gerais, na década de 1940, que decidiu por fazer seu campus na região

Atlético - visto que não havia necessidade de ocupar o Barro Preto, que era urbanizado desde o fim da década anterior (BORSAGLI, 2019). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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1920, apenas o estádio do Palestra permanecia na Paraopeba - próximo ao novo terreno do

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da Fazenda Dalva, mais ao norte do município (BORSAGLI, 2017). Ao final da década de


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No mesmo ano de 1926, foram iniciadas as obras, pelo governo estadual, no terreno do antigo campo do Atlético para a construção de nova sede do Ginásio Mineiro, projetado por Francisque Couchet e Arquimedes Memóriam, que idealizaram inúmeros edifícios no Rio de Janeiro (PBH, 2008). A obra foi concluída apenas em 1929, quando a recém-criada Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais foi instalada no local. Ao contrário do que afirmam Paiva (2012) e Souza Neto (2017), apenas em 1948, com o desmembramento da secretaria estadual de Educação com a de Saúde e Assistência, criada pelo governador Milton Campos, que o local do antigo estádio do Atlético passou a abrigar a Secretaria de Saúde e Assistência, sob a chefia do professor e pesquisador José Baeta Vianna (PBH, 2008). Por outro lado, a lei que concedia o terreno ao América não estabelecia medida semelhante a do Atlético. Apenas afirmava que o terreno era inalienável e em caso de dissolução do clube, os terrenos e as benfeitorias seriam revertidos para a Prefeitura (PBH, 1920). Dessa maneira, as negociações foram conduzidas pela gestão seguinte de Christiano Machado e Antônio Carlos. Durante o ano de 1927, avançaram as tratativas políticas com as lideranças do América, que decidiram que o estádio poderia ser em outro local, mas as benfeitorias realizadas no terreno (a maior praça de esportes da cidade) deveriam fazer parte da indenização devida ao clube. O que foi aceito pelo poder público, que queria ali, na nova Paraopeba, como demonstrado anteriormente, o novo mercado da cidade. O relatório do prefeito de 1926-1927 indicava o projeto e o orçamento de um estádio de concreto armado com capacidade para 10 mil torcedores. O local escolhido foi ao lado do Parque Municipal, com entrada pela avenida Araguaia (atual avenida Francisco Sales), que também havia passado por terraplanagem (PBH, 1927). As obras relacionadas ao estádio só foram finalizadas em 1929 (quadras de basquete, tênis, serviços hidráulicos), mas o estádio foi inaugurado em setembro de 1928, composto por três grandes arquibancadas em cimento armado (PBH, 1928). A razão da escolha por aquela área para sediar o estádio do América foi devido ao intenso processo de urbanização que também acontecia na região ao leste da avenida Afonso Pena. O Parque Municipal ficou limitado à margem sul do ribeirão Arrudas, após a canalização do rio e a abertura da Avenida dos Andradas (BORSAGLI, 2019). Entre outras alterações no Parque, foi aberta a atual Alameda Álvaro Celso, que começava na avenida

desembocando na Avenida Mantiqueira (ao lado do atual hospital João XXIII). Ao final da

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década de 1920, a nova alameda tinha de um lado o novo estádio do América, o “Estádio da

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Araguaia, descia em direção ao Parque Municipal e contornava o Instituto do Radium,

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Alameda”, e do outro o Instituto do Radium, atualmente localizado dentro do campus Saúde da UFMG. Enquanto isso, a expectativa do Atlético de construir seu estádio só saiu do papel após o início das obras do rival América. A terraplanagem do campo e das ruas adjacentes só foi finalizada pela prefeitura em 1928 (PBH, 1928). No mesmo período, Antônio Carlos propôs ao Atlético que o Estado auxiliaria a execução das obras do estádio. Serviços que depois seriam pagos pela prefeitura da capital, como valor de indenização ao clube pela saída da Paraopeba. Em 26 de novembro de 1929, meses após a inauguração do estádio - que aconteceu em 30 de maio, com a presença de toda a cúpula política de Antônio Carlos - um decreto assinado pelo prefeito indenizou o Atlético em 350 contos de réis (PBH, 1929a). Não à toa, o estádio foi batizado de “Estádio Presidente Antônio Carlos”. Quando ainda aconteciam as tratativas com o América, em 1926, o Congresso Mineiro aprovou verba de um milhão e 400 contos de réis para a construção do novo mercado da capital (PBH, 1927). Mas o dinheiro não foi o suficiente. Apesar das “linhas arquitetônicas muito simples, estrutura em concreto armado, com capacidade cinco vezes superior a do atual e obedecer a todos os preceitos de higiene” (PBH, 1927, p.34), a prefeitura completou, com recursos próprios, 400 contos de réis para a finalização da obra (PBH, 1929), que contava com 176 cômodos para lojas, com acessos pelas quatro esquinas. Com a conclusão do Mercado, em setembro de 1929, a abertura da Escola de Aperfeiçoamento e a construção da praça homenageando o ex-governador Raul Soares, o vale do córrego do Leitão na Paraopeba, naquele final dos anos 1920, não era mais um espaço pouco valorizado, como no começo da década, onde se praticava futebol. Pelo contrário, era símbolo, como pretendiam os ideais políticos de Antônio Carlos, de uma nova Belo Horizonte, moderna, “majestade da cultura de Minas” (PBH, 1929).

Considerações finais Por entender a memória “muito mais do que como um locus do passado, mas uma espécie de canal multitemporal, em que presente e passado sobrepõem-se e, assim, também

palco esportivo de Belo Horizonte e, desta forma, contribuir para a construção de uma nova memória coletiva sobre os estádios de futebol na capital mineira. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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apresentar rastros sobre a antiga Paraopeba capazes de recuperar a avenida como o principal

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projetam aspectos do próprio futuro” (BRUCK, 2010, p.29) propusemos, com este artigo,


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Ao ressaltar que importante fator para a transformação do que Couto (2012) chama de período de introdução e transformação do futebol belo-horizontino passa pela justificativa da urbanização - de reposicionar os campos em áreas em que ela não se fazia tão presente, e, posteriormente, retirá-los em prol da mesma urbanização - o artigo também evidenciou o que foi costumeiro desde então. A necessidade da presença do poder público, comandado por políticos com objetivos eleitorais de ocuparem cargos mais altos na hierarquia do executivo, para a efetiva construção de novos estádios em Belo Horizonte, tendo como justificativa a evocação de um ideal de modernidade e de urbanização de novas regiões da cidade, como se repetiu na região da Pampulha, no início da década de 1960 (SOUZA NETO, 2017), e com a construção do Estádio Minas Gerais (Mineirão). Se “o passado, agora, dá-se em instantes” (BRUCK, 2010, p.31), é necessário fazer com que esses campos da Paraopeba voltem rapidamente a fazer parte da memória coletiva de Belo Horizonte, antes que as pistas dos atuais estádios de Belo Horizonte, como o Mineirão, logo se estabeleçam apenas enquanto memória de uma antiga modernidade. Para tanto, com os lugares de memórias retratados neste artigo, a expectativa é que, ao mínimo, as memórias da Paraopeba atiçadas possam servir como pistas para rememorar um ideal de cidade que foi perdido e que solicita ser recomposto pelo trabalho da imaginação e da memória, em primeiro lugar. Em algum canto dessa imaginação e dessa memória, requerem ser desveladas e tiradas da mera condição de restos, as formas e as palavras de uma cidade que pedia e ainda pede passagem, que atraía as pessoas para habitá-la e que gostava delas. (BRANDÃO, 2018, p.39).

Como afirma Brandão (2018), a Belo Horizonte atual se move “como um ator que não sabe o que fazer no palco, que não entende seu personagem, cujas ações não têm nenhuma intenção e que não interage nem com a cena e nem com que contracena” (BRANDÃO, 2018, p.31). Dito isso, o que pretendemos com este artigo foi articular essa engrenagem em sentido contrário. Feito um assistente de direção capaz de estruturar, por meio da narrativa, passado, presente e futuro de uma de suas principais avenidas, a Augusto de Lima, e seus estádios de

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futebol.

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MANZO NGUNZO KAIANGO E A FORÇA DO CHÃO: uma reflexão acerca das decorrências do processo de patrimonialização do quilombo na esfera estadual Manzo Ngunzo Kaiango and the strength of the land: a reflection about the consequences of the process that transform the quilombo into cultural heritage at the state level

Laura Moura Martins *1 [1] RESUMO: Manzo Ngunzo Kaiango é um quilombo e terreiro de candomblé cujo território atualmente se encontra disperso entre os municípios de Belo Horizonte e Santa Luzia. A comunidade, fundamentada sob os preceitos religiosos da umbanda e, posteriormente, do candomblé de nação Angola, sofreu na última década graves violações de direitos, perpetradas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Essa situação fez com que membros do quilombo se mobilizassem politicamente, reunindo diversos apoiadores na busca pela reparação. Ao longo dessa trajetória, o grupo atingiu resultados importantes no acesso a políticas públicas, dentre eles o registro como patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais. Durante o processo de patrimonialização, as demandas de salvaguarda colocadas pelos quilombolas de Manzo acabaram por promover deslocamentos na própria atuação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Este artigo busca uma reflexão acerca desse processo de registro e suas reverberações na atuação do Instituto. Palavras-chave: Manzo Ngunzo Kaiango; Patrimônio Cultural Imaterial; Regularização Fundiária. ABSTRACT: Manzo Ngunzo Kaiango is a quilombo and a candomble terreiro currently located in scattered territories of Belo Horizonte and Santa Luzia. The community, funded under the religious precepts of umbanda and, latter, of candomble of Angolan nation, has suffered severe rights violations in the last decade, perpetrated by the government of the city of Belo Horizonte. The situation has made the members of the quilombo to engage themselves politically, gathering various supporters in order to get reparation. Through this journey, the group has achieved important results in the access of public policies, among which being registered as an intangible cultural heritage of Minas Gerais. During the process of patrimonialization, the demands posed by the members of Manzo turned out promoting changes in the acts led by the Minas Gerais State Institute for Historical and Artistic Heritage. This work seeks to reflect on this process of registering and its repercussion on the procedures of the Institute.

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* Laura Moura Martins é graduada em Ciências Sociais pela UFMG e atualmente é analista de Patrimônio Cultural Imaterial do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha–MG). E-mail: laura.mouramartins@gmail.com 1 Agradeço a Ana Paula Lessa Belone pelas trocas de ideias e inspirações para a construção deste artigo e a Débora Raíza Rocha Silva pelo incentivo.

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Keywords: Manzo Ngunzo Kaiango; Intangible cultural heritage; Land regularization


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Apresentação2

Manzo Ngunzo Kaiango é um quilombo e terreiro de candomblé, cujo território se encontra atualmente disperso entre os municípios de Belo Horizonte e Santa Luzia, em Minas Gerais. O surgimento da comunidade remete a sua matriarca, Efigênia Maria da Conceição que, nascida em 1946, no Morro da Queimada, em Ouro Preto (MG), migrou com a família para Belo Horizonte ainda criança, na década de 1950. A Serra de Ouro Preto, onde se localiza o Morro da Queimada, na antiga capital foi, no século XVIII, uma das principais regiões de exploração de ouro, realizada primordialmente com mão de obra escravizada, mas também, em menor quantidade, por pessoas livres e negros aquilombados. Ao final desse século, a extração aurífera na localidade entrou em declínio, o que acabou por ocasionar seu esvaziamento. Posteriormente, já no século XX, o crescimento urbano desordenado da cidade de Ouro Preto impulsionou a reocupação do Morro da Queimada, desta feita por pessoas livres, mas, ainda, marginalizadas e de maioria negra (MINAS GERAIS, 2018). A religiosidade perpassa a trajetória de Efigênia e é aspecto fundante da comunidade. Acerca desse aspecto, a matriarca contou em entrevistas realizadas para a equipe do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha–MG)3 que, desde criança, já manifestava sinais de sua mediunidade e, por volta dos onze anos de idade, teve sua primeira incorporação do Preto Velho Pai Benedito4 (MINAS GERAIS, 2018). O antropólogo Carlos Eduardo Marques (2015) aponta em sua tese de doutorado sobre a religiosidade em Manzo, que por volta dos quinze anos de idade, Efigênia principiou o desenvolvimento de sua espiritualidade dentro dos preceitos da umbanda. Religião brasileira de origem africana, a umbanda começou a ter seus princípios organizados e ordenados nas primeiras décadas do século XX, a partir das confluências

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Este artigo decorre das reflexões surgidas no processo de registro do quilombo Manzo Ngunzo Kaiango como patrimônio cultural imaterial do estado de Minas Gerais e no desenvolvimento de ações de salvaguarda junto à comunidade, atuações que desenvolvi e continuo desenvolvendo enquanto técnica em patrimônio cultural do Iepha/MG. Nesse contexto, tive a oportunidade de participar da pesquisa para a produção do Dossiê técnico que subsidiou a decisão do Conselho Estadual de Patrimônio (Conep), ocasião que me possibilitou o contato com representantes da comunidade e a realização de entrevistas, e visitas ao território do quilombo durante o segundo semestre de 2018, além de aprofundamento sobre alguns temas relacionados à comunidade por meio da pesquisa em fontes bibliográficas. As transcrições das entrevistas realizadas para o processo de registro estão disponíveis no Dossiê técnico, que pode ser acessado em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/programas-e-acoes/patrimonio-cultural-protegido/bensregistrados/details/2/7/bens-registrados-comunidade-quilombola-manzo-ngunzo-kaiango. 3 O Iepha-MG é uma fundação instituída por meio da Lei nº 5.775 de 30 de setembro de 1971. Vinculado à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, o Iepha-MG atua no campo das políticas públicas de patrimônio cultural, sendo responsável pela pesquisa, proteção e promoção dos bens culturais materiais e imateriais do estado de Minas Gerais. 4 No panteão da religião umbandista, os Preto Velhos são divindades que se apresentam sob o arquétipo de velhos africanos, estando muito vinculados ao universo do cuidado (DIAS e BAIRRÃO, 2011).

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Dossiê entre o espiritismo kardecista, tradições religiosas africanas, catolicismo popular e rituais indígenas. De acordo com o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2005), ainda no século XIX era possível reconhecer nas práticas religiosas populares da época, alguns elementos que viriam a compor a religião umbandista, principalmente nas práticas de origem banto5 que, principalmente nas regiões norte e nordeste do país, desenvolveram cultos nos quais a influência indígena se fazia muito presente nas práticas afro-brasileiras, como a pajelança e o catimbó. Dessa amálgama, a umbanda formou um panteão diverso, composto pelas entidades africanas, pelos caboclos, por santos de devoção do catolicismo popular e pelos ‘guias espirituais’ do espiritismo kardecista6. Para essa religião, os orixás são considerados espíritos evoluídos e que, por isso mesmo, se distanciam dos homens. São eles que estão à frente das ‘sete linhas da umbanda’, sendo cada uma delas derivadas por outras sete falanges, compostas por entidades menos evoluídas que os orixás e que, por isso, estariam mais próximas aos homens e seus problemas mundanos. Dentre essas entidades, estão os caboclos e preto velhos, arquétipos vinculados, respectivamente, aos indígenas e aos africanos. Esses arquétipos podem assumir uma miríade de personalidades, posto que são considerados indivíduos que já viveram na Terra, recebendo inclusive, nomes próprios, como no caso de Pai Benedito. Tanto os orixás que estão à frente das linhas de cada casa podem variar, bem como as entidades que compõem as falanges (boiadeiros, ciganos, marinheiros, estivadores e outros, a depender, por exemplo, da região onde o culto é praticado), o que faz com que haja uma “diversidade quase infinita” de panteões relativos a cada casa de umbanda, derivada dessa combinação de orixás e as falanges possíveis (CANCONE, 2006). Os Exus e Pombas Giras, por exemplo, podem ser cultuados em algumas casas, mas, por serem considerados espíritos menos evoluídos, não se fazem presentes em todas elas (SILVA, 2005). Iniciada na umbanda e, posteriormente, com o cumprimento de obrigações rituais, Efigênia se tornou Mãe de santo nesta religião7. Mesmo antes de atingir esse posto, Efigênia já realizava atendimentos espirituais aos que a procuravam para

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Os bantos, bem como os sudaneses, foram os principais grupos étnicos dos escravizados a desembarcarem no Brasil vindos da África. Os bantos são os povos que ocupam a região que conforma hoje os países Congo, Moçambique e Angola (SILVA, 2005). 6 Para a doutrina espírita, os guias espirituais são pessoas que já estiveram encarnadas na Terra, mas que, depois de mortas se tronam espíritos que podem retornar à terra para a realização de curas e da caridade por meio da incorporação nos médiuns. 7 Os pais e mães de santo são os líderes máximos da umbanda, que tem em cada terreiro ou casa, unidades relativamente autônomas, posto que não há uma organização centralizada de seus preceitos e doutrinas (PRANDI, 2004).

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Dossiê consultas e tratamentos, sempre mediados pela entidade de Pai Benedito (MARQUES, 2015).

O sagrado em Manzo Ngunzo Kaiango A centralidade de Pai Benedito não diz respeito apenas à vida da matriarca, mas à comunidade como um todo. De acordo com as narrativas de origem do quilombo, o território de Manzo em Belo Horizonte foi adquirido por Mãe Efigênia ainda na década de 19708. Essa aquisição foi possibilitada por uma cura espiritual realizada por intermédio do Preto Velho já que, como agradecimento, a pessoa curada doou um terreno no bairro Santa Efigênia, para a matriarca. Entretanto, devido a problemas com essa transação, o dono do terreno devolveu o dinheiro a Mãe Efigênia, que então foi utilizado para adquirir o território originário de Manzo. Nesse novo local, a matriarca construiu um pequeno cômodo para realizar os atendimentos espirituais mediados pela entidade. Batizado de Senzala de Pai Benedito, este cômodo, além de espaço do sagrado, servia de moradia para Mãe Efigênia e seus filhos (MINAS GERAIS, 2018). Nota-se, assim, que a religião funda e inaugura Manzo e, como veremos, nunca deixou de organizar a comunidade e suas práticas culturais. Na década de 1980, Efigênia se iniciou no candomblé, “religião brasileira dos orixás e outras divindades africanas” (PRANDI, 2004, p. 223). O nome Candomblé designa uma grande diversidade de cultos, cujas diferenças rituais podem ser referenciadas em torno de modelos de ritos chamados de “nações”9, como: nagô, angola e jeje, além de várias outras formas pelas quais as religiões afro-brasileiras se combinaram – e ainda se combinam – no país (SILVA, 2005). Assim como acontece com a umbanda, cada casa de candomblé se forma em torno da figura de um pai ou mãe de santo, fazendo com que haja tanta diversidade de ritos quanto casas de candomblé,

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Território é entendido aqui em uma perspectiva antropológica, informada por Paul Little (2002), segundo a qual, o território seria a consequência dos esforços de um grupo na ocupação, apropriação, organização, classificação e identificação de/com o ambiente em que vive, resultando em construções materiais, mas não só, do ambiente em se vive. Como fruto da ação humana, só é possível falar em território através de uma abordagem histórica que contextualize determinada conformação territorial, momentaneamente encontrada. Esses esforços estão, quase sempre, em conflito ou em diálogo com outras ações e intenções territorializadoras (LITTLE, 2002). 9 “A palavra nação, no candomblé, expressa uma modalidade de rito em que, apesar dos sincretismos, perdas e adoções que se deram no Brasil, e mesmo na África de onde procediam os negros, um tronco linguístico e elementos culturais de alguma etnia vieram a prevalecer” (PRANDI, 1991, p. 17).

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Dossiê posto que não existe nessa religião uma organização padronizada, que unifique diretrizes para os terreiros10 como um todo (PRANDI, 2004). Efigênia foi iniciada no Candomblé de nação Angola, de origem Banto11, que tem por divindades os inquices12, e possui um panteão mais extenso relativamente aos ritos jejê/nagô (práticas sudanesas). De acordo com Reginaldo Prandi (1991) os ritos de nação Angola teriam legitimado o culto aos caboclos brasileiros desde muito cedo. Como visto anteriormente, os caboclos são entidades que também podem compor as falanges da umbanda. Após a “feitura de seu santo”13, Mãe Efigênia recebeu a dijína14 de Muiandê e, posteriormente, após o cumprimento das obrigações necessárias, se tornou Mametu15, cargo assumido pelas mulheres que chegam a ocupar o posto mais alto na hierarquia dessa religião. Mametu Muiandê abriu, então, seu próprio terreiro, no mesmo local onde tocava a Senzala de Pai Benedito e morava com os filhos. Nomeado como Manzo Ngunzo Kaiango16, o terreiro passou então a identificar a própria comunidade.

A territorialização do sagrado em Manzo Ngunzo Kaiango Os terreiros são as casas religiosas do candomblé, incluindo todas as estruturas que os compõem, como: assentamentos, quartos de santo, cozinha, salão, camarinha, entre outras17. Esses são locais privilegiados de trocas (sejam elas de energia, atendimentos, conselhos...) entre os devotos e as divindades ou entidades (MARQUES, 2015). É nos terreiros que se encontram os assentamentos18 da casa e dos que se iniciaram ali, e que devem ser guardados e cuidados sob o olhar zeloso do pai ou mãe de santo. 10

Nome dos templos religiosos da umbanda e do candomblé. Os bantos, juntamente com os sudaneses, foram as principais etnias de africanos escravizados trazidos ao Brasil durante o período colonial, o que refletiu enormemente nos cultos que os africanos e seus descendentes praticavam no Brasil durante o período e posteriormente (SILVA, 2005). 12 Os inquices são o equivalente banto aos orixás para a nação nagô, cultuados no candomblé queto, cujas divindades, os orixás, tiveram maior difusão e se tronaram mais conhecidos devido a fatores que Reginaldo Prandi (1991) descreve muito bem. 13 Diz-se “fazer o santo”, a respeito do processo de iniciação de adeptos no Candomblé, no qual considera-se que o neófito “renasce” na religião, em uma fusão com seu(s) santo(s). A esse respeito, ver GOLDMAN, 2012. 14 Nome que o “santo traz” após a iniciação no candomblé de nação Angola e que está relacionado com o processo de “renascimento” da pessoa na religião. 15 Equivalente a Mãe de santo ou a Ialorixá, no candomblé queto. 16 Manzo Ngunzo Kaingo significa “Casa da força de Matamba”, sendo Matamba o nome da divindade de Mãe Efigênia, corresponde a Iansã, em Ketu. 17 Terreiro pede designar também, de forma mais restrita, o salão no qual acontecem os rituais, conhecidos como “giras”. 18 Os assentamentos são objetos que “contêm os elementos naturais que os representam”, nos quais as divindades habitam e que, portanto, devem permanecer em local sagrado (SILVA, 2004, p. 46). Deriva daí, toda a atenção e devoção para com os assentamentos que, tratados como coisas vivas, necessitam dos cuidados de seus cultuadores, orientados por seus pais os mães de santo. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Dossiê De acordo com Vagner Gonçalves da Silva (2005), desde o século XVIII e, posteriormente, com a abolição da escravidão no século XIX, o crescente contingente de negros livres e libertos se reuniam para cultuar seus deuses nas casas de candomblé que se instauravam nas cidades que cresciam em todo o país. Essas casas, afirma Silva (2005), eram também, muitas vezes, espaço de moradia dos devotos, sendo essa confluência entre lugar de moradia e de culto nas casas de candomblé, uma característica que se mantém até hoje. Ainda segundo Silva (2005), ao confluir espaço de moradia e de culto, os terreiros reproduziam em menor escala, a organização espacial dos padrões africanos, nos quais as famílias extensas moravam em pequenas casas que se ladeavam formando um quadrado ou retângulo com um pátio interno ao centro, onde se dava o convívio social do grupo. As casas eram voltadas para o pátio e o acesso ao exterior se dava por um corredor. A proteção espiritual dessas organizações “era assegurada pelo altar de Exu, localizado nas proximidades da entrada do conjunto, e pelas divindades dos núcleos familiares que os formavam” (SILVA, 2005, p. 63). No Brasil, os terreiros reproduziram esse padrão, mantendo Exu na entrada e os quartos de santo, conforme os cultos de cada família – aqui, transformados nos quartos dedicados aos santos onde se guardam, também, os assentamentos de seus filhos. É possível reconhecer essa organização espacial em Manzo Ngunzo Kaiango. O croqui abaixo representa as estruturas do terreiro de Manzo em Belo Horizonte. Nele, os cômodos maiores que não estão identificados, correspondem às partes destinadas às moradias:

Fonte: Adaptado de Laudo Arquitetônico Antropológico (2016). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Figura 1 - Croqui de Manzo Ngunzo Kaiango em Belo Horizonte (Bairro Santa Efigênia)


Dossiê

Religião e território são dimensões indissociáveis na comunidade quilombola de Manzo, fundado e constantemente conformado pela umbanda e pelo candomblé, tanto na organização do espaço físico quanto mítico, onde a organização da vida e do espaço tem de ser negociados junto às entidades e em relação aos fundamentos religiosos. Assim, as duas religiões inscrevem seus signos no território, como é possível perceber no croqui apresentado acima. Mesmo após a iniciação de Mãe Efigênia e a fundação do terreiro de candomblé, a umbanda, assim como a presença de Pai Benedito, nunca deixaram de serem cultuados e de atuar no candomblé em Manzo. Neste contexto, os fundamentos das duas religiões convivem e se entrecruzam, organizando a territorialidade, as vivências, as práticas culturais e os saberes que são constituídos ali (MARQUES, 2015).

Candomblé e quilombo No ano de 2007, a comunidade de terreiro se autorreconheceu enquanto quilombola e acessou a Fundação Cultural Palmares (FCP), que emitiu a certificação de comunidade remanescente de quilombo19. Por quilombos, compreende-se aqui, a categoria jurídico-política acessada por grupos etnicamente diferenciados da sociedade envolvente. Acerca dos quilombos também há uma grande discussão científica que busca conceituá-los sem prover o afunilamento da categoria. Nesse sentido, os quilombos possuem algumas características, conforme apontado por Marques:

(1) indissociabilidade entre identidade e território; (2) processos sociais e políticos específicos, que permitiram aos grupos uma autonomia; (3) territorialidade específica, cortada pelo vetor étnico no qual grupos sociais específicos buscam uma afirmação étnica e política em face de sua trajetória. (MARQUES, 2009, p. 346).

Apesar dessa definição, não se deve compreender essas características como “pré-requisitos” para a classificação de comunidades enquanto quilombolas, posto que só é possível compreender a autoafirmação a partir de uma abordagem etnográfica que

19

Portaria Fundação Cultural Palmares nº 42/20178, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 16 de abril de 2007.

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que fundamenta esse pleito.

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ilumine a compreensão do contexto de seu atorreconhecimento e a trajetória do grupo


Dossiê Há particularidades, no entanto, com relação aos quilombos em contextos urbanos, como é o caso de Manzo, já que esses mobilizam relações com o território que podem não estar diretamente associadas à subsistência e ao trabalho como parte integrante da autonomia do grupo, como muitas vezes se dá nos quilombos localizados nos meios rurais. Nas cidades, os quilombos podem estar relacionados a outras referências territoriais como, por exemplo, ao próprio movimento das pessoas na cidade (MARCON, 2008). Em Manzo, como analisado até aqui, a ligação dos quilombolas com o território está intrinsecamente relacionado à religiosidade praticada ali, o que fez com que, no processo de autorreconhecimento da comunidade enquanto remanescente de quilombo, o nome escolhido para designar o grupo foi, justamente, o do terreiro de candomblé.

Violação de direitos e reterritorialização Simultaneamente à certificação da comunidade pela FCP, o processo de regularização fundiária foi aberto junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)20, mas não foi iniciado até o presente momento. A morosidade em sua concretização no caso de Manzo manteve o território em situação de vulnerabilidade e, em 2012, uma ação perpetrada pela Defesa Civil municipal e a Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte (URBEL) desapropriou as famílias da comunidade, que passaram por um deslocamento forçado temporário21. Durante essa ação, foram realizadas obras definidas à época como “emergenciais”, sem a devida informação e discussão com a comunidade. Nesse aspecto, é importante ressaltar que a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, prevê o direito à consulta prévia “livre e informada” para qualquer ação a ser realizada em territórios de povos e comunidades tradicionais. 22 As intervenções no território foram realizadas com profundo desrespeito às práticas religiosas e culturais do grupo. Os assentamentos e outros objetos sagrados

Processo de Regularização Fundiária nº 54170.006166/2007-91. Sobre essa ação, ver MARQUES (2015) e MINAS GERAIS (2018). 22 O cumprimento da Convenção nº 169 da OIT foi ratificado no Brasil pelo Decreto Presidencial nº 5.051/2004. 21

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foram manuseados sem a devida precaução e solenidade, e sendo até mesmo destruídos,


Dossiê desconsiderando as especificidades culturais da comunidade que, àquela época, já havia sido certificada como remanescente de quilombo pela FCP (MINAS GERAIS, 2018). O território originário e tradicionalmente ocupado pelos quilombolas de Manzo foi, portanto, descaracterizado pelas obras realizadas pela URBEL. Nesse sentido, é importante considerar, como o fazem diversos antropólogos que se debruçam sobre as temáticas relacionadas aos povos e comunidades tradicionais e indígenas (GALLOIS, 2004; LITTLE, 2004; OLIVEIRA, 1998), que os territórios tradicionais não são apenas pedaços de terra, mas abarcam também os símbolos, os significados e as práticas que têm lugar em determinado espaço, e no qual se inscreve a história de ocupação desse grupo, fazendo dele um território tradicionalmente ocupado. Nesse sentido, é muito elucidativa a fala de Makota Kidoiale23, filha de Mametu Muiandê, que em entrevista a Marques (2015) afirma:

O que realmente é o Manzo, (...) [é] aquela fumaça do fogão de lenha subindo, aquele monte de roupa branca no varal [...]. Estamos em Manzo por causa do Intoto, mas ele está dormindo. O Intoto e a Comunheira estão aqui, mas sem o essencial para movimentá-los é como se eles estivessem adormecidos. Falta o círculo de pessoas rodando em torno, não tem a fumaça do fogão de lenha, o fogo. (...) E isto nós estamos sem ter. Sem este despertar. Igual a fumaça, muita gente se incomoda com fumaça. Mas quando você sabe que aquela fumaça ali, você está preparando uma comida para o santo. E consegue imaginar a comida pronta e a maravilha de arriar aquela comida e enfeitar a Mesa toda, você tem a sensação até mesmo com a fumaça. E é justamente na fumaça que vem a roda de conversa, pois é na cozinha (KIDOIALE apud MARQUES, 2015, p. 167).

Este relato ilumina as dimensões sociais e culturais do território coletivo. Além disso, é possível perceber também que os aspectos culturais e sociais de Manzo são perpassados pela religiosidade, explicitada nas roupas brancas – fundamento presente nas religiões de matriz africana – e na fumaça que é exalada do fogão, quando da preparação das comidas votivas e destinadas às festas. Por esse olhar, a fumaça do fogão a lenha e as roupas brancas no varal, compõem o território de Manzo tanto quanto o lote, ou o pedaço de terra sobre o qual se localizam hoje, as moradias e o espaço do terreiro de candomblé. Em decorrência dessa violação, a comunidade esteve alijada de seu território por

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Makota designa o cargo de zeladora do terreiro no candomblé Angola e Kidoiale é a dijina que recebeu quando de sua iniciação no candomblé. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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um terreno adquirido anos antes, em uma área de chácaras do município de Santa Luzia,

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onze meses. Durante esse período, Mametu Muiandê transferiu-se com o terreiro para


Dossiê na

Região

Metropolitana

de

Belo

Horizonte

(RMBH),

promovendo

uma

reterritorialização do quilombo e do terreiro. Esse terreno havia sido adquirido pela matriarca como estratégia para contornar aspectos que comumente se colocam aos terreiros localizados nas cidades: o reduzido espaço físico e o restrito acesso a recursos naturais (SILVA, 2001), que são essenciais às práticas religiosas de matriz africana. Com este movimento, a territorialidade do quilombo foi dilatada, e atualmente se encontra dispersa entre dois municípios: Belo Horizonte, onde está estabelecido o território original, e Santa Luzia, lugar do terreiro e moradia de Mametu Muendê atualmente. Figuras 2 e 3 - Território originário de Manzo, no bairro Santa Efigênia (Belo Horizonte – MG) e Extensão do território Manzo, no bairro Bonanza, em Santa Luzia (MG)

Fonte: Google Earth

Após esses episódios, a comunidade se mobilizou politicamente em parceria com vários agentes externos – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afrobrasileira (CENARAB), pesquisadores e acadêmicos, Defensoria Pública Estadual de Minas Gerais, Ministério Público Estadual (MPE-MG) e agentes do estado que aderiram às reivindicações da comunidade – possibilitando o retorno do grupo ao território originário. A rede formada pela mobilização política feita à época possibilitou também a articulação para a manifestação de outras reivindicações por parte da

Assim, no ano de 2017, o quilombo foi registrado como patrimônio imaterial do

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município de Belo Horizonte, em um processo que contemplou outras duas

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comunidade.

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Dossiê comunidades quilombolas localizadas na capital, a saber: Luízes e Mangueiras (BELO HORIZONTE, 2017). Posteriormente, acionado pelos quilombolas de Manzo, IEPHAMG instaurou o processo de registro, dando início à pesquisa para a elaboração do dossiê que subsidiaria a decisão do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep) acerca da patrimonialização em nível estadual.

Patrimonialização do quilombo e o alargamento da atuação de salvaguarda

Durante as pesquisas para a elaboração do dossiê para registro estadual da Comunidade Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango (MINAS GERAIS, 2018) ficou clara a relação intrínseca entre o território – e o terreiro – e as práticas culturais e religiosas produzidas pelos quilombolas. Uma imagem interessante para se pensar na importância do território para o grupo é a do intoto, assentamento dedicado ao inquice Kavungo, que é o dono do chão na cosmologia do candomblé de nação Angola. Por preceito, esse assentamento deve ser enterrado no centro do terreiro, em composição com a comunheira24, assentamento para o inquice da casa (Matamba). Esses dois elementos compõem e concentram a força da casa, o axé (MARQUES, 2015). Assim, eles são fundadores do terreiro de candomblé e, por extensão, contribuem para a existência do próprio quilombo. É importante notar aqui que, mesmo com a transferência do terreiro para Santa Luzia, o intoto permaneceu assentado no território originário da comunidade. Constituída a partir da religiosidade, a comunidade experiencia e percebe o terreiro como o centro vital do grupo (MARQUES, 2015) e, dada a centralidade que o território configura para esta comunidade, indicou-se que o registro se fizesse sob a categoria de Lugares25. Categoria essa que abrange espaços, territórios e lugares nos quais se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. É importante pontuar que a relação indissociável entre território e práticas culturais é uma característica fundamental e definidora no que diz respeito aos povos e comunidades tradicionais de

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A comunheira é o assentamento para o inquice da casa, que deve ser assentado acima do intoto, dependurado em altura superior às cabeças dos frequentadores do terreiro. 25 O Decreto nº 42.505 de 15 de abril de 2002 institui as formas de registro dos bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural de Minas Gerais, definindo quatro categorias que, a princípio, contemplariam os bens culturais imateriais em quatro livros de registro, quais sejam: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro dos Lugares.

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24


Dossiê modo geral, e define obrigações legais que se colocam aos órgãos públicos no sentido de garanti-los. 26 Assim, no dia 24 de outubro de 2018, o Conselho Estadual do Patrimônio Cultural decidiu por unanimidade pelo registro da Comunidade quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango no Livro de Registro dos Lugares, considerando tanto o território originário, em Belo Horizonte, quanto sua extensão em Santa Luzia. Ambos os territórios foram entendidos como locus fundamentais para as práticas religiosas e culturais da comunidade. Dessa forma, também, é que durante e após o processo de registro de Manzo Ngunzo Kaiango como patrimônio cultural imaterial do estado de Minas Gerais, a demanda de salvaguarda mais pungente colocada pelos quilombolas era a regularização fundiária de seu território, demanda que se colocou como a principal ação a ser articulada naquele momento pelo Iepha-MG. Assim, a GPCI/Iepha-MG iniciou a pesquisa cartorial do terreno ocupado pelo quilombo, e verificou que este se localizava em parte de um lote colonial indiviso, pertencente ao Estado de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2018). Em seguida, foi realizado em parceria com a Urbel, o levantamento topográfico da área ocupada atualmente pela comunidade a fim de possibilitar a regularização de parte do lote colonial. Levantada e mapeada a área em diálogo com representantes da comunidade, passou-se à segunda fase do processo, que consistiu em uma articulação do Iepha-MG junto à Secretaria de Estado de Fazenda, para a consecução da autorização para o destacamento de parte do antigo lote colonial e sua regularização em favor da comunidade. Assim, de posse do levantamento topográfico e da autorização do estado de Minas Gerais, a Urbel realizou os trâmites para a regularização fundiária do terreno ocupado por Manzo em Belo Horizonte, registrando-o em nome da Associação de Resistência Religiosa e Cultural da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango. Todo esse movimento foi possível pela aplicação de um recente instrumento legal, a Lei Federal nº 13.465/2017, que “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana” e dá outras providências (BRASIL, 2017). Tendo em vista que o processo de

26

Ver: Convenção nº 169 da OIT; Decreto Presidencial nº 5.051/2004; Decreto Presidencial nº 6.040/2007; Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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complexo, abrangente e prolongado, a aplicação dessa nova Lei possibilitou resguardar

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titulação dos territórios de povos e comunidades tradicionais pelo Incra mostra-se mais


Dossiê o terreno da comunidade de invasões e violações de seus direitos, tendo em vista que a garantia ao território é, também no caso de Manzo, a garantia ao direito à pluralidade cultural. É importante frisar, no entanto, que a aplicação dessa legislação não compete em concorrência à regularização fundiária via Incra ou Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (SEAPA-MG), que podem realizar os procedimentos administrativos que lhe competem para a titulação do território a qualquer tempo. Deve-se ressaltar a existência de legislação estadual específica para a titulação coletiva de territórios de povos e comunidades tradicionais, a Lei nº 21.147/2014, que foi regulamentada pelo Decreto estadual nº 47.289/2017. O processo administrativo para a titulação desses territórios em nível estadual é realizado pela SEAPA, cuja estrutura processual se assemelha ao procedimento técnico-administrativo do Incra. Nesse sentido, também os processos são mais demorados, posto que mais complexos e definitivos. A experiência de patrimonialização do quilombo, bem como a execução das ações de salvaguarda relacionadas a esse bem cultural imaterial, notadamente a regularização do terreno, vem promovendo alguns deslocamentos, ainda que iniciais, na própria Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial e no IEPHA-MG. Um exemplo disso pode ser observado comparando-se os processos de registro da comunidade dos Arturos e de Manzo Ngunzo Kaiango, ambas inscritas no Livro do Registro dos Lugares. Esse livro foi inaugurado em 2014, com a inscrição da comunidade dos Arturos, localizada no município de Contagem (MG). Naquele momento, pela primeira vez, uma comunidade tradicional era registrada na categoria dos lugares, o que teve por consequência a ampliação da própria categoria. Ainda assim, apesar de o dossiê técnico elaborado à época do registro reconhecer a “indissociabilidade entre identidade e território” (MINAS GERAIS, 2014, p. 145), o plano de salvaguarda27 não previu nenhuma ação especificamente voltada à garantia do território dessa comunidade (MINAS GERAIS, 2014). Todas as ações previstas no referido plano se voltavam à proteção, promoção ou difusão das Celebrações, Saberes,

27

Estabelecimento de estratégias e prioridades de ações para a proteção do patrimônio cultural, direcionadas a reconhecer, valorizar, estimular, fomentar e divulgar o bem cultural. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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território para a produção e a reprodução dessas manifestações culturais. Isso permite

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Formas de expressão e Mestres da comunidade, mas não admitiam a primazia do


Dossiê entrever que quando da realização desse processo, não somente a instituição, mas também os próprios detentores do bem cultural estavam em outro momento do entendimento e das práticas e discursos relativos às políticas de patrimônio. Mesmo ao longo do processo de registro de Manzo, foi possível constatar que existem poucas produções técnicas e acadêmicas acerca da temática dos territórios e suas relações com o patrimônio imaterial. Essa discussão costuma se basear nos “entornos” ou “perímetros”, muitas vezes direcionados ao patrimônio tombado. Consequentemente, verifica-se também a ausência de instrumentos para a proteção desses territórios, identificados como as bases das práticas culturais. 28 A experiência de regularização fundiária de Manzo por meio da aplicação da Lei Federal nº 13.465/2017, abre um precedente para os povos e comunidades tradicionais que estejam localizados em terras devolutas ou de propriedade do estado de Minas Gerais. Ainda que essa legislação não trate especificamente dos povos e comunidades tradicionais e que a titulação desses territórios, de fato, impliquem em pesquisas e processos muito complexos, entende-se que esse instrumento pode garantir, ao menos, uma parcela de território ocupado, minimizando a condição de vulnerabilidade em que muitas delas se encontram. Esse processo demonstra como os órgãos de patrimônio estão sendo cada vez mais acessados pelos grupos de detentores de bens culturais imateriais, a fim de garantir o acesso a políticas que extrapolam as próprias fronteiras do patrimônio cultural, promovendo um alargamento da atuação do órgão de patrimônio no que tange à salvaguarda dos bem culturais. Acredita-se que essa atuação, incitada, a todo momento, pelos quilombolas de Manzo, forçou o deslocamento dos tão falados – com justa razão – “limites do patrimônio” (GONÇALVES, 2007).

Apontamentos finais Recentemente, Makota Kidoiale, ao escrever sobre o adoecimento psíquico que paira atualmente sobre estudantes e professores nas universidades, enfatiza que a cura

Nesse sentido, é importante frisar que o IEPHA-MG publicou em 2020 uma nova deliberação normativa que apresenta as diretrizes para avaliação de impacto ao patrimônio cultural protegido e com interesse de proteção pelo estado. Nesse mesmo movimento, foram incluídos à Infraestrutura de Dados Espaciais do Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IDESisema), os perímetros dos bens acautelados pelo Instituto. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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está relacionada à volta ao chão. Nas palavras de Makota,


Dossiê as matrizes de conhecimento dos povos africanos, das quais somos os representantes, até mesmo na luta por sua preservação contra todo tipo de violência advinda de espaços como a academia, oferecemos o próprio chão a essas pessoas adoecidas, que resolveram nos acompanhar a partir do momento que os colocamos em contato com, simplesmente, o chão. Retornamos com esses para o útero do candomblé, ensinamos a elas como se ensina a uma criança a comer, a rezar, a cantar, enfim, a sentir todo sentimento que um humano pode manifestar, e elas, através dos olhos, nos agradecem, e passam a perceber esses valores (KIDOIALE et al, 2020, grifo nosso).

A ação de trazer para o chão pode ser compreendida como um processo de cura, no sentido conferido por Kidoiale, de um mal que ainda permeia a prática e as instituições de patrimônio: ainda que no campo do discurso, a noção de que não existe a separação entre patrimônio material e imaterial seja um ponto pacífico, a prática não costuma refletir esse entendimento. A regularização fundiária de Manzo é um passo nessa direção, fazendo com que a abstração das práticas culturais sejam (re)fixadas na materialidade do território. Esse processo permitiu que a Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial do Iepha-MG voltasse a atenção – e a atuação – para os territórios e para a importância da regularização fundiária dos povos e comunidades tradicionais em prol da garantia da continuidade de suas práticas culturais, unindo o patrimônio imaterial a sua materialidade. É claro que não se trata aqui de considerar como patrimônio apenas “a pedra e o cal”, mas, de reconhecer, devidamente, a materialidade que dá suporte à toda e qualquer prática cultural.

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Dossiê

VIVA SÃO JOÃO: as quadrilhas juninas como patrimônio cultural de Belo Horizonte Viva São João: the quadrilhas juninas as a cultural heritage of Belo Horizonte

Jéssica Parreiras Marroques*

RESUMO: Este artigo busca analisar as Quadrilhas Juninas como patrimônio cultural de Belo Horizonte/MG considerando esta prática como um importante elemento da identidade e memória da cidade. Serão apresentadas as influências das quadrilhas juninas em relação às festas de junho, especialmente o São João, e suas reconfigurações entre a tradição e a contemporaneidade. O estudo justifica-se pela importância do tema como disseminação do patrimônio cultural de Belo Horizonte, além da incipiência de trabalhos científicos produzidos sobre a temática. Utilizou-se como metodologia a revisão de literatura, estudo de caso com emprego de entrevista semiestruturada através de elementos da metodologia de história oral com o diretor e integrante da quadrilha São Gererê, localizada no bairro São Geraldo. Concluiu-se que as quadrilhas juninas possuem extrema importância cultural enquanto formação da identidade mineira, configurando-se como patrimônio para as pessoas envolvidas com a cultura junina, e proporcionando geração de renda, trabalho, ações educativas e interação por meio da sociabilidade, da dança, da festa, dos afetos, do lazer e da ludicidade. Palavras chave: Quadrilhas Juninas; Patrimônio Cultural; Cultura Popular.

ABSTRACT: This article aims to analyze the Quadrilhas Juninas as a cultural heritage of Belo Horizonte / MG considering this practice as an important element of the city's identity and memory. The influences of the Quadrilhas Juninas in relation to the festivities that happened during the month of June will be presented, especially the São João, and their reconfigurations between tradition and contemporaneity. The study is justified by the importance of the theme as the dissemination of Belo Horizonte's cultural heritage, in addition to the incipience of scientific works produced on the theme. The literature review, case study with the use of semi-structured interviews using elements of the oral history methodology with the director and member of the Quadrilha São Gererê, located in the São Geraldo neighborhood, used as methodology. The conclusion is that the Quadrilhas Juninas have an extreme cultural importance as a formation of the identity of the Minas Gerais state population, becoming a patrimony for the people involved with the festival’s culture, providing income generation, work, educational actions and interaction through sociability, dance, party, affection, leisure and playfulness. Keywords: Quadrilhas Juninas; Cultural Heritage; Popular Culture.

Introdução As expressões e as manifestações culturais de cada região de um país contribuem

para

o

enriquecimento

e

a

diversidade

cultural,

artística

e,

consequentemente, do patrimônio cultural de uma nação. Esses aspectos, atrelados ao

Bacharel em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Especialista em Arte e Movimento pelo UniBF. Mestranda em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: jpmarroques@gmail.com. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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contexto de construção social, política e econômica de cada comunidade e território,


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atuam como instrumento de formação e disseminação das identidades culturais, bem como dos modos de ser e viver. Neste trabalho de investigação será apresentado como as quadrilhas1 juninas se constituem como parte da identidade e patrimônio cultural da cidade de Belo Horizonte. Sendo assim, as quadrilhas serão apresentadas enquanto prática social que proporciona sociabilidade,

divertimento,

formação

educativa,

interação

social,

lazer,

desenvolvimento local, geração de renda e trabalho, principalmente no período dos festejos juninos e da devoção a São João. A motivação deste estudo está atrelada à incipiente produção acadêmica realizada sobre a temática em Minas Gerais e principalmente na cidade de Belo Horizonte, em contraponto com a vasta presença das quadrilhas nestes territórios. Em consulta realizada ao catálogo de dissertações e teses do banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), durante o mês de maio de 2020, a partir do termo “quadrilhas juninas”, foram encontrados apenas 104 resultados de pesquisas realizadas que abordam o termo. Destas, 74 são dissertações de mestrado e 25 são teses de doutorado. A consulta foi realizada no banco sem uso de filtros, incluindo todas as universidades e as faculdades em território brasileiro. Foram localizadas apenas 03 pesquisas desenvolvidas em Minas Gerais que abordaram a prática no estado. Nestas, as quadrilhas juninas são citadas como atividades educativas realizadas em espaços formais de ensino, mas pouco ou nada se aprofundam sobre elas enquanto manifestação e prática sociocultural atrelada à construção de identidade, memória e valorização do território. As 03 pesquisas mencionadas foram desenvolvidas em programas de pós-graduação na área da Educação, na qual 02 são dissertações e 01 é tese. Outro aspecto de motivação foi a impossibilidade da realização do Arraial de Belo Horizonte2 no ano de 2020, devido a políticas de distanciamento social implementadas por causa da pandemia da COVID-19 e a observação de grupos juninos que estavam se manifestando nas redes sociais com apresentações individuais em casa,

A quadrilha é uma dança típica das festas juninas, que acontece de forma coletiva com pares ou “casais” vestidos com indumentárias que remetam as simbologias do ambiente rural ou “caipira”. A dança é comumente embalada ao som de forró, baião, xote, xaxado ou músicas instrumentais e é dirigida pela narração de uma pessoa (que faz brincadeiras e conduz os pares de acordo com a narrativa criada). 2 O Arraial de Belo Horizonte (denominado até o ano de 2017 como Arraial de Belô), é um dos maiores festejos juninos do Sudeste brasileiro. Criado há 40 anos, é atualmente promovido pela prefeitura da cidade, em parceria com a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte (Belotur).

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realizando lives, compartilhando vídeos das coreografias e alimentando a festa e a prática quadrilheira de forma online, mesmo que em regime de distanciamento social. A metodologia deste estudo constitui-se por levantamento teórico e estudo de caso a partir de entrevista semiestruturada através de elementos do método de história oral, com Jadison Nantes, diretor, coordenador artístico e integrante da quadrilha São Gererê, localizada no bairro São Geraldo, em Belo Horizonte. Jadison foi convidado para compor o estudo, pois, além de integrar a São Gererê, ele também é presidente eleito da União Junina Mineira, no qual vem representando e atuando com as quadrilhas juninas há mais de duas décadas. A entrevista foi realizada no mês de junho de 2020, durante o cumprimento de políticas e práticas de distanciamento social relativas à pandemia da COVID-19 no país. Desta forma, devido às medidas de orientação da Organização Mundial de Saúde, bem como a possibilidade e risco de contágio e contaminação sanitária entre entrevistado e pesquisadora, optou-se por realizar-se a entrevista a partir de uma ligação telefônica, por escolha do entrevistado, mesmo que isso implicasse em alguns limites na elaboração do trabalho científico como a não ida ao bairro, a impossibilidade de registros visuais e inclusive do contato com demais integrantes do grupo e com o atual presidente da São Gererê, por ser idoso e se enquadrar enquanto grupo de risco. O material da entrevista foi gravado como dado para consulta. A escolha das perguntas que compuseram a entrevista, que será apresentada posteriormente, foi realizada a partir do levantamento teórico e empírico feito pela pesquisadora, bem como a participação da mesma enquanto expectadora nas 03 últimas edições do Arraial de Belo Horizonte, no qual ela já havia feito os primeiros contatos com a quadrilha São Gererê, a aproximação de demais grupos e principalmente da sua inserção de alguns espaços da cultura junina quadrilheira. Este periódico não está atrelado a uma pesquisa de dissertação ou tese, sendo realizada, até o momento, apenas enquanto um estudo para elaboração deste artigo científico realizado especificamente para esta edição da revista do Arquivo Público de Belo Horizonte. Desta forma, compreendem-se os limites do seu desenvolvimento, mas também a sua relevância de

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ineditismo no campo da pesquisa científica acadêmica.

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Cultura e patrimônio cultural Para analisar as práticas culturais, tem-se feito necessário, no campo dos estudos culturais, o aprofundamento acerca dos conceitos de cultura, identidade e memória. Tendo em vista que principalmente no campo institucional, do poder público, o tema “cultura popular” é abarcado como forma de salvaguarda de patrimônio, o debate acerca de patrimônio cultural também será apresentado aqui. Para se conhecer uma comunidade deve-se analisar a cultura local dela, suas práticas e vivências. Ou seja, como práticas e ações sociais que seguem um padrão determinado no espaço e território, por meio da continuidade e da transformação de conhecimentos. De acordo com Antônio Almeida, em seu livro Alguns conceitos sobre cultura, ele afirma que cultura “refere-se a crenças, comportamentos, valores, histórias, regras morais que permeiam e identificam uma sociedade” (2012, p. 109). A cultura contempla ainda as manifestações que expressam a vida e o cotidiano de um povo ou comunidade. São maneiras de explicar e intervir na realidade, trabalhando em criações e reproduções de formas e instrumentos para resolução de problemas e necessidades, em contextos e realidades específicas. Essas manifestações são, em suma, a própria identidade de uma sociedade, a riqueza, o patrimônio cultural de uma nação, de uma região, ou de uma comunidade local. Para Silva e Souza (2006, p. 216) cultura é o “registro de um povo” que constitui sua maneira de pensar e agir diante do mundo, ou seja, trata-se de um conjunto de práticas sociais ligadas inexoravelmente à identidade e à memória. Neste seguimento, ao observarmos as quadrilhas juninas de Belo Horizonte, constatamos como essas trazem elementos complexos por agregar à história e à memória da cidade. Quando tratamos sobre cultura e memória nos referimos a elementos que possibilitam que grupos sociais se identifiquem e se reconheçam. Por sua vez, a diversidade cultural, conforme definida na convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais (UNESCO, 2005, p. 4), “refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades

por meio do patrimônio cultural. Laraia menciona que “a cultura é um processo REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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distribuição e fruição das expressões culturais, sendo também divulgada e transmitida

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encontram sua expressão” e se manifesta pelos modos de criação, produção, difusão,


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acumulativo resultante de toda experiência histórica das gerações anteriores, o que reafirma o conceito antropológico de patrimônio” (2006, p. 49). Para explorarmos esse conceito e sua relação com a produção cultural, faz-se necessário ressaltar que: A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 216, ampliou o conceito de patrimônio estabelecido pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, substituindo a nominação Patrimônio Histórico e Artístico, por Patrimônio Cultural Brasileiro. Essa alteração incorporou o conceito de referência cultural e a definição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de caráter imaterial. A Constituição estabelece ainda a parceria entre o poder público e as comunidades para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro, no entanto mantém a gestão do patrimônio e da documentação relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública. (IPHAN 3)

No artigo 216 da Constituição Federal (1988), configuram patrimônio: as formas de expressão; os modos de criar; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; além de conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1990).

Cabe, portanto, salientar que patrimônio cultural pode ser tanto aquele reconhecido e protegido pelo Estado quanto aquele que tem relevância apenas numa determinada comunidade e não está sob a tutela do poder público, em esfera nacional, estadual ou municipal (BERNARDI; DELLAMORE, p. 09). O patrimônio é elemento fundamental na construção das identidades culturais, e é, por outro lado, o local no qual as identidades se expressam e se materializam. O patrimônio cultural pode ser definido como um bem (ou bens) de natureza material, imaterial ou natural considerado importante para a identidade de um povo ou comunidade. O patrimônio cultural de um povo ou comunidade lhe confere identidade e orientação. Em questão de salvaguarda de patrimônio, Aloísio Magalhães (1979 apud CAMPOS, 2005, p. 159), ressalta que “a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio. Só se preserva aquilo que se ama e só se ama aquilo que se conhece”. Dentro deste contexto, a quadrilha junina compõe um dos elementos principais das festas juninas presentes em todas as regiões do país, possibilitando que grupos e pessoas se mobilizem para a comemoração das datas juninas, representando uma importante celebração na cidade de Belo Horizonte e no Estado de Minas Gerais. Atores

No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é responsável por promover e coordenar o processo de preservação e valorização do Patrimônio Cultural Brasileiro, em suas dimensões material e imaterial. Enquanto o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico.

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sociais, empresariais, políticos, dentre outros, são ferramentas de suporte e capacitação


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para o evento da festa junina. As quadrilhas integram, juntamente com os/as dançarinos/as, equipes de apoio, os/as artesãos,/ãs o conjunto de atores culturais “responsáveis pelo aspecto lúdico-criativo do evento, pela elaboração, transformação e transmissão dos valores culturais (artísticos, estéticos, históricos, éticos, morais etc.) através de sua produção artística” (BARROSO, 2013 et al COUTINHO, 2008 p.60).

Contextualização histórica das comemorações e festas juninas: viva São João! As quadrilhas juninas compõem parte das tradições e festejos de comemoração e devoção dos santos católicos do mês de junho, em especial São João, São Pedro e Santo Antônio. Os festejos apresentam origem religiosa católica e atualmente são comemorados de diversas formas em todas as diversas regiões do nosso país. As festas de São João já eram uma tradição nas aldeias de Portugal, e foram, portanto, trazidas pelos portugueses e europeus no processo de colonização do Brasil. Ao serem incorporados em território brasileiro, ganharam elementos de origem indígena e africana devido ao processo de hibridismo cultural4. Segundo Milton Vieira Silva (1949), no livro Festas Populares e suas origens, esses festejos:

Vieram da Europa trazidas pelos portugueses, que cultuavam São João numa festa chamada "Joanina" desde o século quarto. Ao chegar em terras brasileiras o nome evoluiu para "Junina", ganhando mais brilhantismo com a introdução do consumo de comidas típicas como a mandioca, milho, leite de coco, janipapo, licores, pé-de-moleque, pipoca e tantas outras guloseimas regionais próprias da dieta indígena e dos negros escravos. Em função dos costumes que se confundiam com as comemorações juninas, quadrilhas, boibumbá, tambor-de-crioula, frevo etc, as festas estenderam-se por todo mês de junho, incorporando nesses dias os santos mais populares (...) (SILVA, p. 123).

O historiador Peter Burke e a historiadora Denise Bottmann, no livro Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800, com sua primeira edição em 1978, apontaram referências do festejo ao relacioná-lo aos ritos pagãos de fertilidade, associando-o ao solstício de verão na Europa em uma era pré-cristã. Os autores sugerem que a igreja católica medieval adotou a festa com o objetivo de cristianizá-la. O

O hibridismo cultural ocorre quando se unem práticas culturais, hábitos, costumes, elementos e atitudes de grupos distintos, misturando mais de uma cultura como se elas fossem uma só. Para melhor compreensão sobre o conceito indica-se a consulta de Peter Burke e Durval Muniz Albuquerque Júnior. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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historiador Eric Hobsbawn complementa a teoria no livro A invenção das tradições


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(1997) e refere-se ao festejo associando-o à comemoração da chegada da estação veraneia com o objetivo de afastar os maus espíritos e as pragas que pudessem afetar as colheitas. Vale ressaltar que o solstício de verão no hemisfério norte acontece justamente em junho, antecedendo a colheita no continente europeu. Como em diversos cultos do paganismo antigo, os antecessores das festas juninas eram também rituais à fertilidade, buscavam favorecimentos dos deuses e deusas para o crescimento da vegetação, fartura das colheitas e reprodução animal. Milton Vieira Silva comenta que as festas referentes ao solstício também eram comuns no “Oriente Médio e norte da África, observadas também entre os pagãos celtas, bretões, bascos, sardenhos e outros, cujas expressões religiosas estavam no uso das cores, nas vestimentas, nos altares e nas próprias casas” (1949, p. 124). O pesquisador ainda relaciona que esses rituais, apesar de serem considerados pagãos, não poderiam ser apagados da memória dos povos. Então, a igreja católica os adaptou às comemorações das festas do santo São João Batista5, nascido na data de início do solstício. Sobre o santo católico São João, primo de Jesus, e os símbolos presentes ainda hoje nos festejos juninos, a história da bíblia cristã conta que Maria e Isabel ficaram grávidas no mesmo ano. A mãe de Jesus se propôs a ajudar Isabel, mas, para as duas se comunicarem, combinaram que, se o filho de Isabel nascesse à noite, ela deveria acender uma fogueira no alto do morro. Caso nascesse durante o dia, deveria colocar um mastro com uma bandeira branca como sinal, para que Maria soubesse. Quando São João nasceu, no dia 24 de junho, era noite. A fogueira foi acesa nas montanhas da Judeia, e Maria foi visitá-lo. Levou de presente uma capelinha, um feixe de palha, folhas de manjericão e flores perfumadas. Com o tempo, surgiu o hábito de fazer-se a

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O aniversário de São João Batista ou dia da Festa de São João são comemorados no dia 24 de junho.

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fogueira, cantar ao seu entorno e levantar-se o mastro em homenagem ao santo.


Dossiê Figura 01: Estandartes levantados em mastro dos Santos Juninos (São João, São Pedro e Santo Antônio) confeccionados pela Guarda de Congo da Urca, na Pampulha – BH/MG.

Fonte: Rede social Facebook da Guarda de Congo da Urca.6

Já no Brasil, localizado no hemisfério sul do globo terrestre, o mês de junho presenteia o solo com a chegada do período de colheita do alimento principal dos pratos típicos e da ornamentação das festas juninas, o milho. A partir dessa matéria prima são elaboradas comidas típicas como a pamonha, a canjica, o mungunzá, a pipoca, o milho cozido, o cuscuz, dentre outros. Sobre a relação da festa com o alimento, encontramos o calendário de plantio e colheita descritos na música “Festa do Milho”, composição de Rosil Cavalcanti (1963), interpretada pelo pernambucano Luiz Gonzaga7 (1912 – 1989) no seu CD Triplo, intitulado “Aboios e vaquejadas / Nos caminhos da fé / São João na

Disponível em: <https://www.facebook.com/congadourca/photos/2991097640986401>. Acesso em 17 out. 2020. A música pode ser escutada através do link, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v =HWmXiw4zQmE>. Acesso em: 26 jun. 2020. 7

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Roça” (2014):


Dossiê O sertanejo festeja A grande festa do milho Alegre igual a mamãe Que ver voltar o seu filho Em março queima o roçado A dezenove ele planta A terra já está molhada Ligeiro o milho levanta Dá uma limpa em abril Em maio solta o pendão Já todo embonecado Prontinho para São João No dia de Santo Antônio Já tem fogueira queimando O milho já está maduro Na palha vai se assando No São João e São Pedro A festa tem maior brilho Porque pamonha e canjica Completam a festa do milho (GONZAGA, LUIZ. 2014).

Como parte integrante da festa, o alimento é um forte marco da tradição, adquirindo uma importância significativa. O ato de comer, dançar, beber, os momentos de lazer, sociabilidade, afetividade, trabalho e organização de preparação das atividades, marcam símbolos e ações de coletividade e ajuda mútua. Em Belo Horizonte, até os dias atuais, ainda é comum encontrar ações entre paróquias pelos bairros, iniciativas de ações populares e das próprias quadrilhas juninas na qual há a organização de comemorações de festejos, construções de barraquinhas de comida para distribuição ou venda de alimentos, jogos, brincadeiras, dentre outras práticas que serão abordadas mais à frente. O caráter coletivo e solidário associado ao universo rural nos remete aos mutirões8 de trabalho pelo interior do Brasil, nos quais, após a colheita, são regados pela fartura do alimento, bebidas, acompanhados por diversas práticas expressivas como a música, a dança, o canto, o improviso e brincadeiras, promovidos pela família que está

Mutirão é o nome dado ao ato de adjutório, a prática de ajuda mútua. Neste caso refere-se ao auxílio prestado entre trabalhadores do campo, seja no momento do plantio, colheita ou afazeres do cotidiano. Para melhor compreensão indica-se a leitura do livro “Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural” (1956) de Clóvis Caldeira. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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sendo beneficiada. Segundo Souza:


Dossiê Nos trabalhos por mutirão, há o trabalho coletivo, seguido da refeição. O comer não é um ato da vida privada, nem um ato meramente biológico, mas um acontecimento social. Há um significado fundamental: devora-se a parte do mundo que se acabou de conquistar. (SOUZA apud BAKHTIN (2004, p. 338).

A festa de São João e as quadrilhas juninas apresentam uma relação muito significativa com o universo rural, articulando imagens e símbolos através da relação entre elementos históricos, socioculturais e memórias presentes pelas práticas e experiências através da festa, como destacado acima na música interpretada por Luiz Gonzaga. Os símbolos que as compõem, como o alimento, as bebidas, o quentão, a vestimenta e indumentária dos e das dançarinas9 de quadrilha, a palha - presente nos chapéus e na ornamentação -, os balões que voam ao céu, as bandeirinhas, as fogueiras, os foguetes e fogos de artifício, a encenação do casamento na roça, os passos da dança, dentre outros elementos, evidenciam a característica interiorana pertencente ao imaginário da tradição. Ainda na perspectiva dos elementos ligados ao campo e à interiorianidade, Belo Horizonte, apesar de ser uma das principais metrópoles brasileiras, ainda conserva em sua paisagem urbana inúmeros elementos que remetem a uma não tão distante ruralidade em grande parte de seus bairros. Segundo Alessandro Borsagli, autor da pesquisa e do livro Arraial de Belo Horizonte: A ruralidade da nova capital de Minas: Quando se imagina que até pouco tempo atrás existiam propriedades rurais na capital de Minas Gerais, teoricamente e oficialmente 100% urbano há décadas, a ideia de ainda existirem reminiscências rurais não tão distantes da região central soa de forma estranha aos ouvidos de uma cidade adensada, asfaltada, concretada e ao mesmo tempo de raízes provincianas e notavelmente rurais, características de uma cidade de apenas quatro gerações, resguardadas pelas barreiras naturais que acabaram por contribuir para a interioridade da sociedade belo-horizontina. (BORSAGLI, 2018, p. 23).

Não é o foco deste artigo nos debruçarmos sobre o debate entre urbanidade e ruralidade, mas sim ressaltar a importância que a mistura desses elementos tem para as manifestações culturais das comemorações e festejos de São João e principalmente das

Como o figurino que assimila a representação da vida camponesa pobre, associada a imagem de caipira ou sertanejo, trajes costurados com remendo de peças envelhecidas, o tecido floral, a chita ou quadriculados com proposições de novos tecidos mais caros e finos, a exemplo o uso da seda, cetim, organza e materiais brilhosos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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quadrilhas juninas pelo Brasil e, em específico, para Belo Horizonte.


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As quadrilhas juninas O ato de dançar quadrilha é um momento que vem sendo construído na memória coletiva de várias gerações de diferentes regiões brasileiras. A quadrilha é um dos principais símbolos da festa junina, dançada em escolas de rede pública ou particular, clubes, associações, ginásios populares, associações de bairro, centros culturais como também promovidas por órgãos públicos como a realização de apresentações, competições e premiações das quadrilhas belo-horizontinas e mineiras, a exemplo do Arraial de Belo Horizonte e o Festival Estadual de Quadrilhas Juninas. Sobre as quadrilhas, Barroso destaca que elas:

(...) são encenações coletivas e com estruturação. [Que] incluem, em seus espetáculos, música, dança e dramatizações. São executados por um grupo determinado de brincantes, liderados por um mestre, obedecendo a uma hierarquia e organizados segundo uma estrutura complexa de personagens, (...) Em suas apresentações organizam-se como cortejos e encenam seus espetáculos em plena rua, em praças ou terreiros, por ocasião de festejos populares públicos ou familiares, como festas de padroeira, natalinas ou juninas, aniversários, casamentos, batizados, renovações, etc. (BARROSO, s/d, p. 116).

Em seu contexto histórico, as quadrilhas juninas são apontadas tendo herança francesa, provinda dos salões da corte e oriunda de manifestações culturais típicas portuguesas. A “quadrille” surgiu em Paris, no século XVIII, denominada como dança de salão e era composta por cavalheiros e damas que formando quatro casais que interagiam por meio aos movimentos e passos da dança. Era considerada uma prática habitual da elite europeia. O termo “quadrille”, traduzido para o português, significa “quadrado” e representava os movimentos na dança. Nos séculos seguintes, a dança se popularizou para além da elite como “quadrilha”. Podemos encontrar elementos sobre a sua popularização, em referência a contextualização

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A quadrilha é uma dança de origem europeia, trazida ao Brasil no início do século 19 pela corte portuguesa em formato palaciano, inicialmente praticada pela elite nobre, no período imperial. Aos poucos popularizou-se, passando a ser praticada também em regiões interioranas. Com a mudança para o regime republicano, essa dança, associada ao regime monárquico, teria sido abolida das festas dos citadinos ricos, mas mantida principalmente nas zonas rurais, passando ao longo do tempo a ser considerada uma das manifestações representativas do interior, da roça, do sertão, quando de seu retorno ao contexto urbano, em momento posterior, associada a festejos do catolicismo popular. A quadrilha é, portanto, uma dança de origem nobre e palaciana que se tornou uma das manifestações das culturas populares brasileiras (CHIANCA, 2007, p. 50-51).

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histórica em CHIANCA (2007):


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Sendo assim, as quadrilhas juninas, ao se popularizarem entre as classes menos abastardas economicamente, e ganhando forte expansão em todas as regiões brasileiras, especialmente no nordeste, mas não só, se conforma enquanto manifestação diversa, potente e extremamente rica culturalmente, tornando-se parte do cenário contemporâneo da cultura e da dança popular brasileira, compondo as festas dos santos de junho, mas também atrelando traços, elementos e simbologias regionais, rurais, incrementadas também no contexto urbano.

Quadrilhas juninas em belo horizonte: a São Gererê Atualmente, Belo Horizonte conta com mais de 40 grupos de quadrilhas juninas, espalhados pelas 09 regiões da cidade10. O Grêmio Recreativo São Gererê, responsável pela quadrilha junina de mesmo nome, é originário do Bairro São Geraldo e foi fundado no ano de 1979 pelo atual presidente do grupo, Rogério Gomes. Em entrevista realizada com Jadison Nantes, de 38 anos, integrante do grupo desde 1994, diretor e coordenador artístico da quadrilha São Gererê e atual presidente da União Junina Mineira, ele relata que o grupo se formou com o apoio dos moradores do bairro, com o intuito de alegrar a festa de São João na comunidade. A quadrilha São Gererê desde sua fundação, mantém há 41 anos, suas atividades ininterruptas. Para maior compreensão dos depoimentos coletados durante a

entrevista com Jadison, faz-se necessária uma breve

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Barreiro, Centro-sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova.

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contextualização sobre o bairro.


Dossiê Figura 02: Apresentação da quadrilha São Gererê no Arraial de Belo Horizonte de 2018 em homenagem as pessoas e comunidades atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Mariana/MG.

Legenda: Na imagem dançarinos/as emocionam o público na encenação/coreografia quando ressurgem da lama que destruiu o subdistrito de Bento Rodrigues. Fonte: Daniel Stone. Divulgação oficial do Arraial de Belo Horizonte.11

De acordo com informações do Arquivo Público de Belo Horizonte12, o bairro São Geraldo possui área de 136.072 hectares, e população estimada em 19.743 habitantes. Está localizado na região leste da cidade de Belo Horizonte, e foi originado pelo povoado que se formou ao redor da paróquia de São Geraldo, criada em 1º de janeiro de 1952, em frente à praça que leva o mesmo nome. Anteriormente conhecida como Vila Mariano de Abreu, o povoamento do bairro também ocorreu devido ao início de sua ocupação por volta de 1950, quando a prefeitura realizava obras de captação de água no local. A partir do decreto 3.049 de 22 de abril de 1977, a vila passou a ser denominada Bairro Mariano de Abreu. Posteriormente, tornou-se oficialmente, enfim, bairro São Geraldo (APCBH, 2008). Sobre o processo de ocupação da vila, encontramos o seguinte registro no mesmo documento, publicado pela prefeitura:

Disponível em: <https://jornalsaogeraldo.com.br/parabens-a-quadrilha-sao-gerere-por-mais-uma-vitoria-no-arraial-de-belohorizonte/>. Acesso em: 19 out. 2020. 12 Histórias de Bairros. Belo Horizonte, Regional Leste. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. 2008. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Para melhorar sua condição de habitação e sair das áreas com risco de desmoronamento de casas, a população do Conjunto Mariano de Abreu (vila entre os bairros São Geraldo e Casa Branca) também teve que se organizar e demonstrar união. Eles foram responsáveis pela construção em mutirão das primeiras casas do lugar. Para construir suas moradias, homens e mulheres quebraram pedras na pedreira com marretas que pesavam entre oito e doze quilos. (APCBH, 2008).


Dossiê

É interessante ressaltar que neste documento referente à história e à memória do bairro, encontramos novamente a palavra mutirão em ações de coletividade. Desta vez, evidenciando um ato material e simbólico que diz respeito à solidariedade, a partir da ocupação para a construção de condições de moradia mínima para pessoas em situação de vulnerabilidade social. A atuação das quadrilhas juninas em geral, mas, especificamente a São Gererê, como será descrita adiante a partir do relato do entrevistado, traz consigo através da potência da manifestação cultural, diversos aspectos que evidenciam o envolvimento comunitário por meio da participação, afetividades e sociabilidade. São estes alguns dos elementos centrais que permeiam a realização das festas, o envolvimento dos participantes nos grupos bem como as práticas de trabalho, geração de renda, lazer e subjetividades nos quais nos debruçamos adiante. Segundo Jadison, a quadrilha São Gererê não possui fins lucrativos nem sede própria, desta forma o grupo precisa realizar diversas atividades em busca de apoio junto à comunidade para arrecadarem recursos financeiros que cubram os custos de suas demandas internas e a manutenção do próprio grupo. Suas demandas incluem, como exemplo, a feitura do figurino, e do cenário; o deslocamento dos/as integrantes da quadrilha e da equipe de apoio para as apresentações; as locações de estúdio para a gravação sonora/musical para suas apresentações; alimentação da equipe e das/dos dançarinos, dentre outras necessidades da quadrilha. Para angariar fundos, a São Gererê realiza bingos e rifas pelo bairro, contam com pequenos patrocínios de empresas e pequenos comércios locais, recebem contribuições de parceiros, arrecadam mantimentos feitos por doações, dialogam com alguns espaços como escolas e o centro cultural do bairro, para realização dos ensaios com o uso de seus espaços físicos, dentre outras articulações necessárias. A quadrilha tem criado historicamente uma relação de cooperação mútua no bairro e na região, no sentido de que sua existência se mantém através das relações de laços e apoio entre pessoas que participam efetivamente e afetivamente de suas atividades. Em contrapartida que o bairro e as regiões ao entorno se beneficiam com ela, através de ações, necessidades e demanda que o grupo realiza para se manter, que direta

para materializar as criações do grupo, como as costureiras para a concepção de seus REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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local. Jadison cita alguns exemplos como a contratação de serviços de trabalhadores/as

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e indiretamente contribuem para a geração de renda, a economia e o desenvolvimento


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figurinos, marceneiros, serralheiros e eletricistas para a criação dos cenários, o aluguel de transporte para a locomoção das/dos dançarinos e equipe, em parceria com outros trabalhos que forem necessários para a proposta do tema da apresentação do grupo naquele ano13. A promoção da geração de renda local, seja no bairro ou na cidade, também acontece durante a realização das festas de São João organizadas pela São Gererê junto à paróquia14 e às apresentações da quadrilha no bairro São Geraldo nos meses de junho e julho. Essas atividades permitem que pequenos e médios comerciantes locais15, artesãos/ãs, vendedores ambulantes e moradores da região possam comercializar seus produtos e serviços, gerando renda para si e suas famílias através de seus trabalhos. As barraquinhas presentes nas festas com mercadorias, muitas vezes com comidas e bebidas típicas, alimentam por sua vez os cheiros, os símbolos e os sabores construindo e reconstruindo as simbologias da festa. A São Gererê se constitui em sua história enquanto uma quadrilha de caráter profissional16 e, por esse motivo, além de realizar suas atividades no bairro, possui uma vasta agenda de apresentações na cidade e participa de competições inclusive em nível estadual e nacional. A quadrilha em âmbito municipal compete enquanto grupo especial17, tendo os títulos de pentacampeã do Arraial de Belo Horizonte, campeã nacional do concurso nacional de quadrilhas (CONFEBRAQ) em 2018 - única vencedora da região sudeste -, bicampeã do concurso interestadual de quadrilhas de Angra dos Reis/RJ - 2018 e 2019 e classificada 10 vezes como vice campeã do Arraial de Belo Horizonte. Nesses concursos as quadrilhas ganhadoras recebem uma premiação em dinheiro pela conquista, porém o valor é irrisório comparado aos gastos que elas demandam para manterem suas atividades18. O valor arrecadado é utilizado pela São Gererê para a manutenção das atividades do próprio grupo. “As pessoas que trabalham com a

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A cada ano os grupos profissionais ensaiam coreografias e criam apresentações temáticas para as competições da cultura junina. As festas juninas do bairro, desde a fundação da São Gererê, sempre aconteceram com parceria da paróquia da comunidade, diz Jadison. Essa afirmação reitera a importância da presença da igreja desde a formação do bairro, até o contexto histórico da realização das festas dos santos juninos, mencionado no terceiro capítulo deste trabalho. 15 Jadison ainda comenta, a título de curiosidade, que o Mercado Central de Belo Horizonte recebe uma gigantesca encomenda de chapéus de palha anualmente, dentre outros ornamentos, devido a quantidade de grupos de quadrilhas profissionais ou não que se apresentam nos festejos juninos de Belo Horizonte. 16 As quadrilhas profissionais são grupos que participam de campeonatos e competições da cultura junina. 17 Os grupos especiais são quadrilhas que já tem consolidadas um histórico de premiações. 18 A título de curiosidade, no ano de 2019 a premiação concedida pelo Arraial de Belo Horizonte para 1º, 2º, 3º e 4º colocados era de R$ 14 mil, R$ 12 mil, R$ 10 mil e R$ 8 mil, respectivamente.

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quadrilha fazem porque buscam felicidade” conta Jadison, falando da dificuldade de se manter economicamente apenas com o ofício de quadrilheiro. Ele relata:

Se eu te contar, cê não acredita. Já trabalhei em tanta coisa! Já vendi chup chup, lavei carro, fui office boy, trabalhei em muitos bingos quando era febre na cidade, mas cê nem deve lembrar disso, porque cê é muito nova. Já fui conselheiro tutelar, e agora trabalho na fundação municipal de cultura, nas gerências de culturas populares e urbanas da cidade. Na minha vida toda eu tentei conciliar a paixão pela quadrilha com o emprego, mas nem sempre dá certo. Já fui até demitido por isso. A quadrilha sempre veio em primeiro lugar. Graças a Deus consigo ter um emprego hoje em dia que dá pra juntar os dois. Mas a minha atuação tanto na São Gererê como na União Junina mineira é voluntária, por paixão. (JADISON, 2020).

O envolvimento de Jadison com o grupo demonstra, através de sua memória individual e afetiva, como a quadrilha junina tem para ele uma relação, em suas palavras, de imensa “paixão” e “entrega”. Na entrevista tive a oportunidade de escutar um pouco de sua trajetória, em um relato emocionante, no qual ele diz do local em que a o São João e a festa ocupam em sua construção de história de vida a partir de seu envolvimento com o movimento de quadrilha São Gererê em seu bairro:

sobre o período de sua infância e juventude:

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Sobre a atuação e presença das quadrilhas na região, Jadison relata o seguinte,

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Pra você poder entender esse meu falatório todo, é o seguinte: eu, com 13 anos de idade eu perdi pai e mãe. Eles morreram no mesmo ano assim. Minha mãe morreu, 4 meses depois meu pai morreu. Eu tinha 13 anos de idade, alí, entrando no pique da adolescência, morando no bairro São Geraldo, numa região de periferia. É… assediado pela criminalidade, uso de drogas… e dos 13 aos 15 eu não cheguei a entrar nesse mundo, nem das drogas nem do crime, mas eu tava perdido, né. Perdi os dois pilares da minha vida, pai e mãe. Eu tava ali meio que sem rumo. E aí encontro a quadrilha, na verdade a quadrilha já existia no bairro, já era renomada da região e eu entro pra esse grupo, né, com 15 anos e alí que eu me reencontro. Então é dentro da quadrilha junina que eu começo a me reencontrar e a partir daí eu me interesso por outras danças, faço teatro e começo sempre com olhar voltado para dentro do grupo também, é... Pego esse conhecimento adquirido e tento compartilhar com a comunidade. É… oferecendo oficinas. O trabalho com criança e adolescente me credencia a ser candidato a conselheiro tutelar então eu fui candidato a conselheiro tutelar, fui eleito, depois reeleito. É… dentro da quadrilha eu começo, dentro de 4 anos, eu sou noivo e caso com a noiva, a gente tem uma filha e por ironia do destino ela nasce no dia de São João. E… e é isso. Depois em 2012 eu entro, o movimento junino, né, me indicou pra ser presidente da união junina mineira pra representar o movimento inteiro e todos os grupos. Eu aceito, já tô aqui também no terceiro mandato como presidente dessa entidade, então é isso. Hoje eu não tô mais com a noiva, a gente não tá mais casado, mas continua no mesmo grupo, continua respirando a mesma cultura. Então to te falando assim, pra você entender porque esse falatório e porque essa entrega pra esse movimento. Acredito que eu tenho uma dívida e que pretendo pagar enquanto tiver vida pra isso. (JADISON, 2020).


Dossiê Todas as igrejas faziam festas juninas. Todas. Sem exceção. Inclusive dos bairros vizinhos aqui da região. Existem outros grupos de quadrilha na região leste. Líderes comunitários faziam festa nas suas respectivas ruas, naquela época a gente chamava de pequenas barraquinhas, nas ruas do bairro. Às vezes no mesmo final de semana tava acontecendo duas, três festas no bairro. (JADISON, 2020).

As quadrilhas juninas mobilizam muitas pessoas em suas ações, que não se restringem ao calendário de festejos juninos. Os ensaios desses grupos têm início nos primeiros meses do ano, como preparação para apresentações e concursos que ocorrem entre maio e julho. Para além disso, ao longo do ano, ocorrem outras atividades internas a cada quadrilha ou integrando os diversos grupos, como encontros, formações e festas. Além das viagens e competições pelo Brasil, que as apresentações proporcionam aos participantes. Além disso, cada grupo possui uma realidade específica em questão de geração e recorte etário dos participantes. Jadison afirma que a São Gererê é composta desde integrantes jovens a pessoas idosas, e que o envolvimento dos participantes é tão intenso, que eles acabam “conquistando” e aproximando amigos e familiares para participarem de sua vivência. Destas pessoas envolvidas, que se tornam “pertencentes” do grupo, algumas se encontram como dançarinos/as, outras como integrantes da equipe de apoio, torcedores ou ainda, “apaixonados” pela vivência da quadrilha junina19. Essa relação aparece presente tanto nos relatos de Jadison como na sua própria experiência de vida, como relatado acima. Esses momentos permitem que os participantes reafirmem seus laços de parentesco, amizade e vizinhança, num ambiente de confraternização. As portas se abrem e, com isso, a possibilidade de consolidar os laços de família, a afeição para com os amigos e os nexos interpessoais, além de se criar oportunidade para novos contatos sociais, ampliando as relações entre grupos de pessoas que não se conheciam ou se conheciam pouco anteriormente. Além de compor a direção do grupo, Jadison também faz parte da coordenação artística, é um dos dançarinos e um desses “apaixonados” pelos encantos dos festejos juninos. Durante a entrevista, destaquei algumas frases sobre o envolvimento dos

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De acordo com Jadison essa aproximação acontece naturalmente.

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quadrilha é pertencer a um espaço de felicidade”. Os participantes “levam muito a

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participantes do grupo, entre elas ele afirma que o “objetivo de todo componente da


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sério, mas com alegria o tempo inteiro”. “É uma realização e uma alegria”. Nós temos “compromisso de horário, com os ensaios, mas a intenção é levar a alegria para as pessoas”. "É um patrimônio nosso”. “É lúdico, é um lazer”. Esses elementos são interessantes para este estudo ao investigar como as frases citadas por Jadison associam os sentimento de afetividade através das relações do grupo, à característica “brincante”, prazerosa e lúdica através da vivência da quadrilha junina enquanto uma prática social e cultural que atribui significado a sentimentos de “alegria”, “felicidade”, “compromisso” e “pertencimento” a partir das experiências do grupo. Os ensaios, os encontros, as atividades, as festas e as apresentações possibilitam, desde o início ao fim dos seus processos, o envolvimento comunitário por meio das afetividades, participação e sociabilidades. Sobre a ludicidade, Christianne Luce Gomes (2011, p. 18)20 destaca que:

Essa interpretação pode ser ampliada a partir da compreensão de ludicidade como linguagem humana, pois, as práticas culturais não são lúdicas por si mesmas: elas são construídas na interação do sujeito com a experiência vivida. A ludicidade se refere à capacidade do homo ludens – em sua essência cultural brincante – de elaborar, aprender e expressar significados. Segundo Debortoli a linguagem vai além da fala: trata-se de expressão, da capacidade de tornar-se narrador. Neste sentido, a ludicidade é uma possibilidade de expressão do sujeito criador, que se torna capaz de dar significado à sua existência, ressignificar e transformar o mundo. (GOMES, 2011).

Sendo assim, as quadrilhas juninas se configuram enquanto uma manifestação cultural e prática social que possibilitam e necessitam para sua manutenção o envolvimento entre os seus participantes, dos encontros, dos espaços de sociabilidade e interação, bem como o envolvimento comunitário para assim, expressar-se e significar a sua existência. Porém, no momento em que vivemos, isso não está sendo possível como antes. Estamos passando por uma realidade mundial de isolamento social, em enfrentamento à pandemia da COVID-19, no qual o Brasil se encontra inserido. É nesse cenário que este estudo foi realizado, conforme a metodologia descrita anteriormente. Desta forma, perguntei a Jadison, quais os impactos causados pela COVID-19 que o

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Na citação destacada, Christianne Luce Gomes dialoga com “As crianças e brincadeiras - livro Desenvolvimento e Aprendizagem”, publicado pela editora UFMG no ano de 2002, com autoria do professor José Alfredo Oliveira Debortoli e organização de MASSOT, SALLES; GUIMARÃES. 20

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grupo havia percebido. Ele respondeu:


Dossiê Os impactos são gigantescos, porque não é só uma questão financeira, digo isso porque grupos já empenharam recursos desde 2019 para o projeto 2020, né. E com relação aos grupos de Belo Horizonte, esses grupos já contam com o apoio financeiro que a prefeitura sempre oferece com a nossa articulação da União Junina em Parceria com a Belo Tur. E aí até esse ano a gente não teve uma sinalização nesse sentido, então os grupos tão com necessidade. Essa é uma coisa, é… eu considero que as quadrilhas juninas são um movimento sociocultural, sabe? Então essa atividade social que cada grupo realiza, ainda que inconscientemente, ela faz muita falta. Estamos falando de pessoas que vivem essa cultura e uma cultura que é por natureza, de aglomeração. Então os ensaios aglomeram muita gente, as apresentações, as festas, não é (…) É claro que quase todas as manifestações culturais demandam certa aglomeração, mas umas mais e outras menos. A cultura junina não tem como ser menos. Não tem como fazer um ensaio de quadrilha com menos 10 pares, não tem jeito. E essa convivência no dia a dia dos ensaios, da preparação do grupo, da construção do cenário, do figurino, da composição coreográfica, isso faz muita falta pro indivíduo. Pra esse ser quadrilheiro que respira essa cultura. E aí os impactos extrapolam as linhas do grupo, como te falei. Esse impacto econômico alcança a comunidade. Como eu te falei, a costureira não vai receber esse ano, porque não teve trabalho. Ou teve um trabalho reduzido até o início da pandemia. O serralheiro também não vai ter o recurso que ele receberia do grupo. O pessoal do Mercado Central não vai vender chapéu de palha esse ano. Então… os ônibus. As quadrilhas juninas geram uma despesa enorme nesse período com o aluguel de ônibus para transporte dos grupos. Então todos os grupos fazem dezenas de apresentações durante o período, né. Nessa temporada, e todas elas são com a contratação de um transporte. Ou por quem tá convidando a quadrilha, ou pelo próprio grupo. Então cê imagina o que é isso aí no estado inteiro só de transporte. (JADISON, 2020, grifo nosso).

No relato de Jadison, bem como outros estudos21, tem-se apontado que o setor cultural e criativo tem sido o mais impactado pela pandemia da COVID – 19, afetando não apenas as relações sociais pela necessidade do isolamento, mas principalmente no aspecto econômico, no qual o trabalho e a renda - agora impossibilitados desempenham papel primordial para a manutenção da vida das pessoas que participam diretamente ou indiretamente de atividades da cultura junina.

Considerações finais Os “quadrilheiros”, como os pertencentes à cultura junina se denominam, constituem um forte movimento cultural na cidade de Belo Horizonte. A interlocução com políticas públicas estaduais e municipais e a interação com o movimento junino

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Como não é o foco deste estudo se debruçar sobre a análise da economia da cultura na pandemia, indico a leitura complementar de CALABRE, Lia. “A arte e a cultura em tempos de pandemia”. Revista Extraprensa, v. 13, n. 2, p. 7-21, 2020. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/170903>. Acesso em: 22 out. 2020. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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coordenadores/as e diretores/as dos grupos. Sua força ocorre tanto no contexto de

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nacional são focos de atenção de uma parcela de seus participantes, sobretudo os/as


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articulação com as políticas públicas para a cultura quanto em suas comunidades de origem, onde os grupos ocupam espaços públicos e constituem ambientes de sociabilidade e geração de renda. Desta forma, as quadrilhas juninas em Belo Horizonte se constituem enquanto um fenômeno social, político, cultural, econômico, educativo e historicamente situado na constituição de identidade e memória da própria cidade e de seus habitantes. Sendo assim, a quadrilha junina, bem como a cultura junina de forma mais ampla, se configura enquanto patrimônio cultural, simbólico e material para a cidade de Belo Horizonte a partir das relações, afetividades e do reconhecimento de seus participantes com a prática, mesmo que ainda de forma não institucionalizada. Por fim, este estudo e seus limites apontam a necessidade de produções e pesquisas, acadêmicas ou não, que abarquem a cultura junina e a amplitude de seus desdobramentos e impactos sociais, principalmente no estado de Minas Gerais e na cidade de Belo Horizonte. Localiza-se vasto material de pesquisas e investigações sobre as quadrilhas e festas juninas principalmente no Nordeste e no Norte - a exemplo do bumba meu boi - do país, mas quase nada se encontra sobre Minas Gerais. Percebendose ainda uma desvalorização da temática no meio científico de uma prática sociocultural que leva milhares de pessoas às ruas de Belo Horizonte todos os anos e é extremamente presente na região metropolitana e no interior do estado.

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PATRIMÔNIO E SUAS COMUNIDADES: a história da Basílica Santo Cura d’Ars no município de Belo Horizonte1 Heritage and its communities: the history of the Basilica Santo Cura d’Ars in the city of Belo Horizonte

Ivana Morais Silva de Carvalho* 2 . RESUMO: Em junho de 1949, a partir da criação da Paróquia do Santo Cura d’Ars, no bairro Prado, na cidade de Belo Horizonte, iniciou-se uma movimentação da comunidade do bairro para a construção da sua Igreja Matriz. Da antiga capela dos idos dos anos 1913 à atual Basílica há uma rica história de envolvimento, pertencimento, simbolismo de uma comunidade para com a sua igreja. Assim, tem-se como proposta principal analisar e problematizar esse envolvimento, e através dessa análise compreender o sentimento de patrimonialidade presente na comunidade até os dias atuais, destacando também a importância do título de Basílica Menor recebido, tanto para a comunidade quanto para a cidade de Belo Horizonte. A pesquisa envolveu diversas fontes primárias como jornais, documentos paroquiais, notas fiscais, anotações pessoais, sendo imprescindível, dentro de todo esse contexto, pontuar sobre os conceitos de patrimônio, tradição, religiosidade, identidade, explorando também a história de Belo Horizonte. Palavras-chave: Basílica; Patrimônio; Paróquia

ABSTRACT: In June 1949, following the creation of the Parish of Santo Cura d'Ars, in the Prado neighborhood, in the city of Belo Horizonte, a movement began in the neighborhood community to build its Parish Church (Mother Church). From the old chapel of the 1913s to the present Basilica there is a rich history of involvement, belonging, and symbolism of a community towards its church. Thus, the main proposal is to analyze and problematize this involvement, and through this analysis, to understand the feeling of heritage present in the community until nowadays, also highlighting the importance of the title of the minor basilica received, both for the community and for the city of Belo Horizonte. The research involved several primary sources such as newspapers, parish documents, invoices and personal notes. It is essential, within this context, to point out the concepts of heritage, tradition, religiosity, identity, also exploring the history of Belo Horizonte. Keywords: Basilica; Patrimony; Parish

Introdução No coração do bairro Prado, em Belo Horizonte, entre as ruas Safira, Turquesa e Cura d’Ars, está situada a Basílica Santo Cura d’Ars cuja história inicia-se em 1949 quando da construção da Igreja Matriz, da Paróquia recém instituída do Santo Cura d’Ars. Analisar essa história faz-se instigante porque além da construção do templo,

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Este artigo foi feito a partir da monografia referente à Pós-graduação em Memória e Historiografia: identidade e patrimônio cultural em Minas Gerais (PUC Minas), orientada pelo Prof. Dr. Mário Cléber Lanna Júnior. * Historiadora – Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte; Pós- graduanda em Teologia - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia; Pós-graduada em Memória e Historiografia: identidades e patrimônio cultural em Minas Gerais – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Professora de História. E-mail: ivanamoraiss@gmail.com 2 À comunidade do bairro Prado pelo envolvimento, dedicação e amor à sua Igreja.

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para a finalidade dessa pesquisa, foi imprescindível voltar o olhar para o estudo das pessoas que estiveram envolvidas nessa construção. Assim, dentro deste contexto, se tornou inevitável uma abordagem do envolvimento tanto emocional quanto material para se compreender a luta dessa comunidade por um ideal de uma Igreja e, anos mais tarde a consagração, com o recebimento pela mesma do título de Basílica Menor, sendo a segunda Igreja, até hoje, a ser contemplada com este título em Belo Horizonte. Portanto este artigo tem a finalidade de analisar o envolvimento da comunidade do bairro Prado com a Basílica Santo Cura d’Ars, no período que compreende a sua construção, iniciada em 23 de dezembro de 1949 até os dias atuais, problematizando o sentimento de pertencimento, reconhecimento e valorização simbólica do patrimônio por parte da comunidade para com a sua Igreja. Essa análise se debruçou sobre os costumes, a religiosidade e o empreendedorismo de uma comunidade que se viu envolvida tanto financeiramente quanto emocionalmente nessa construção. A pesquisa se debruçou sobre o surgimento do bairro Prado, sua relevância nos primórdios da nova capital e seu crescimento. Abordou a construção da Igreja Matriz da Paróquia Santo Cura d’Ars, a sua arquitetura e interior diferenciados das demais igrejas, e a sua consagração em Basílica Menor, em 1986, pelo Papa João Paulo II (1920 2005) - pontificado de 1978 a 2005. Enfocando a temática de Patrimônio Cultural na atualidade problematizou-se o fato do tombamento do Conjunto Urbano Bairros Prado e Calafate3 não contemplar a área onde a Basílica está situada, buscando-se corroborar a ideia de que, mesmo não sendo tombada pelas autoridades, a Basílica Menor Santo Cura d’Ars é constituída como patrimônio pela comunidade. Foi empreendido um estudo bibliográfico/historiográfico sobre a construção de Belo Horizonte, sobre Patrimônio, Memória, o surgimento e o crescimento do bairro Prado, a constituição de Basílicas, pontuando-se sobre os conceitos de patrimônio, tradição, religiosidade, identidade. Ao mesmo tempo foi de suma importância a pesquisa documental a partir do levantamento e análise de fontes primárias como

Ver sobre o tombamento em BELO HORIZONTE (2011).

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jornais, revistas, dossiês de tombamentos e documentos presentes no Memorial da


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Basílica, dentro do recorte feito da época da construção e da época da elevação da Igreja à Basílica Menor.

O Prado, um bairro de grande potencial A implantação da República no Brasil em 1889 trazia consigo propósitos de mudanças em todas as áreas, e a construção e implementação de uma nova capital em Minas Gerais se inseriu totalmente nesse contexto. Além da mudança política havia também a intenção de se colocar o país no rumo da modernidade e Belo Horizonte se encaixava dentro desse perfil, uma vez que a sua construção seria a implantação de um novo padrão civilizatório (JULIÃO, 1996). Analisando a Planta Geral da capital mineira, observa-se que a cidade era inicialmente composta por três zonas concêntricas: a zona urbana central, delimitada pela Avenida do Contorno; uma zona suburbana para casas de campo; e uma zona rural com cinco núcleos agrícolas que deveriam abastecer a cidade (Carlos Prates, Córrego da Mata, Bias Fortes, Afonso Pena e Adalberto Ferraz). Havia, inicialmente, uma grande preocupação com a produção de alimentos, que foi suplantada pela necessidade de povoamento. Por isso os núcleos tiveram que ser incorporados à zona suburbana da cidade se transformando posteriormente em bairros como o Carlos Prates, Lagoinha, Horto, Santa Efigênia, entre outros (GUIMARÃES, 1991). É importante ressaltar aqui que as camadas populares foram empurradas para as zonas rurais e suburbanas, porque o perímetro da Avenida do Contorno era destinado a funções específicas, o que demonstra que o crescimento da cidade acabou por acontecer da periferia para o centro (PASSOS, 2016). As colônias agrícolas apresentaram então, no início da década de 1910, um crescimento considerável o que levou a Prefeitura a anexá-las à Zona Suburbana da capital com o objetivo de regularizar e tentar ordenar esse crescimento (BORSAGLI, 2010). É importante ressaltar que desde antes da construção da cidade a Fazenda do Calafate já fazia parte da região e, como era próxima das áreas suburbana e urbana,

o hipódromo Prado Mineiro foi ali construído, dando nome ao atual bairro Prado. (RIBEIRO, 2011). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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ser habitada por operários removidos da área urbana pela Prefeitura e, quando, em 1906,

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passou a ter um novo perfil, abandonando as características rurais, quando começou a


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Com a chegada de vários prestadores de serviço na nova capital, ocorreu uma grande demanda por moradias, e a Prefeitura da cidade viu-se obrigada a agraciar esses trabalhadores com o título provisório do lote (OLIVEIRA, 2013). Foi assim que muitas zonas agrícolas começaram a ser loteadas, e a Colônia Carlos Prates acabou por dar origem aos bairros Carlos Prates, Prado e Calafate. É importante ressaltar que já no período inicial da nova capital, o setor oeste se tornou uma das áreas de maior população, sendo que em 1905 a região que mais vendia imóveis era o local onde atualmente estão localizados os bairros Prado e Calafate. Assim, em 1930, este era o espaço da cidade mais adensado mesmo com o insatisfatório abastecimento de água, luz e os problemas de trânsito já presentes no local (FERREIRA, 2011). Dessa forma, as décadas de 1920 e 1930 presenciaram um “boom” imobiliário na capital que proporcionou um surpreendente crescimento da ex-colônia Carlos Prates. Dois fatores foram preponderantes: a permissão do Estado para a venda dos lotes pelos colonos, e a localização próxima à zona urbana com o fato adicional da presença da Rua Platina (localizada na região do bairro Prado, já prevista na planta original da cidade) que era de grande atividade comercial (BORGES, 2006). Ademais, os antigos colonos preferiam parcelar o lote colonial e vendê-los, do que manter suas terras cultivando-as. Assim, “o mercado imobiliário ditou os termos de transformação do espaço rural do antigo núcleo colonial Carlos Prates em espaço urbano, abrindo caminho para a ocupação do bairro [...] ao longo dos anos 1920 e 1930” (AGUIAR, 2006, p.327). O surgimento do bairro Prado deu-se então pelo loteamento da ex-colônia Carlos Prates. Esses lotes atraíram pessoas que buscavam moradia, despertando o interesse principalmente de funcionários públicos e empreendedores das elites locais. O bairro sofreu uma grande transformação se tornando muito povoado por conta da proximidade com o Centro e o acesso ao bonde, o que propiciava uma vida urbana mais satisfatória, sendo também o primeiro bairro a se urbanizar na Região Oeste (FERREIRA, 2011). Outro fator importante diz respeito ao Prado Mineiro, já mencionado, o primeiro hipódromo da cidade que foi também um importante indutor de formação e crescimento do bairro (FERREIRA, 2011), uma vez que no início do século XX o esporte e o lazer se tornaram atividades valorizadas, e Belo Horizonte precisava criar esse hábito novo na

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espaços de lazer foram pensados pela CCNC (Comissão Construtora da Nova Capital):

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sua população (SOUZA NETO e MAYOR, 2017). É importante ressaltar que dois

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o Parque Municipal, na área central, e o hipódromo, fora dos limites da Avenida do Contorno que veio a se tornar o Prado Mineiro (SOUSA, 2017). Além do hipismo, o Prado Mineiro foi também um campo de futebol que funcionou de 1914 até a década de 1920 (SOUZA NETO e MAYOR, 2017), abrigou exposições agropecuárias que intensificaram o turismo e os negócios na capital, e também foi palco do primeiro voo de um aeroplano na cidade em 1912 (RIBEIRO, 2012). Mais tarde foi instalado no local o Departamento de Instrução para a formação de recrutas da Polícia Militar e, posteriormente, a Academia da Polícia Militar que funciona no local até os dias atuais. Figura 1 - Planta Geral de BH - espaço para um hipódromo

Figura 2 - Pavilhão do Prado lotado

Fonte: Campos Invisíveis, 2017 – Coleção Otávio Dias Filho Figura 3 - Hipódromo Prado Mineiro, 1928

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Fonte: BH 110 anos, 1997.

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A religiosidade também se fazia presente no novo bairro, pois, desde 1913, mesmo antes da capital ter a sua Diocese, o local já contava com uma pequena Capela que atendia aos apelos religiosos dos moradores. Importante frisar que a Diocese de Belo Horizonte foi criada em 11 de fevereiro de 1921 pelo papa Bento XV (1854-1922) sendo elevada a Arquidiocese em 1924, tendo como primeiro titular D. Antônio dos Santos Cabral (1884-1967), empossado no dia 30 de abril de 1922 (BOSCHI e RACHI, 2014). Atualmente, o território da Arquidiocese de Belo Horizonte compreende 28 municípios em torno da capital mineira, tem uma superfície de 7.222 Km2, uma população de 4.705.181 habitantes, sendo 2.176.372 católicos (IBGE, 2012 apud PINHEIRO, 2013 p. 33).

Uma nova paróquia, uma nova matriz Apesar do grande crescimento do bairro Prado, até o ano de 1949 o mesmo não possuía ainda uma paróquia própria; a sua área estava dividida entre as Paróquias de São José do Calafate e São Sebastião do Barro Preto. A Capella (sic) do Bom Jesus do Amor Divino que atendia religiosamente aos moradores do bairro situava no lote 17, quarteirão 181, na confluência das ruas Safira e Turquesa. Anos mais tarde, com o crescimento do bairro, a sociedade dos moradores que respondia à Capela resolveu adquirir os lotes 16 e 18 visto que havia a necessidade de ampliação e transformação da mesma. Ratifica-se que entre 1920 e 1930 houve um “boom” imobiliário na área correspondente à Colônia Carlos Prates que tinha os seus lotes vendidos em várias parcelas. Tal fato pode ser observado em um recibo de Terreno Giovanni Camillo Schiara – Lotes a prestação – Prado Mineiro Ex-Colônia Carlos Prates, dado à Sociedade “N/ Snr. Bom Jesus Amor Divino” por ocasião do pagamento de 8 prestações no valor de 1 conto de reis provenientes da venda dos lotes 16 e 18, do quarteirão 181 das ruas Saphyra (sic) e Turqueza (sic) (no valor de 8 contos de reis divididos em 20 prestações), documento datado do dia 21 de março de 19314. Analisou-se

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Recibo: pagamento de 8 prestações dos lotes 16 e 18 - Terreno Giovanni Camilo Schiara. 21 de março de 1931.

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relata o recebimento da “meza (sic) administrativa da Capella do Bom Jesus do Amor

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complementarmente um documento do Cartório Ferraz, do 2.º Ofício de Notas que


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Divino, sita (sic) a Rua Saphyra (sic) esquina com Turqueza (sic), lotes nºs (sic) 16 e 18 quarteirão 181, 400:000 quatrocentos mil reis, saldo das últimas prestações”, documento validado por estampilhas federais e datado no dia 02 de junho de 19445.

Figura 4 - Recibo prestação lotes, 1931

Figura 5 - Recibo saldo últimas prestações lote

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Recibo: pagamento das últimas prestações dos lotes 16 e 18 – Cartório Ferraz. 2 de junho de 1944.

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Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars (1944).


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Como o bairro continuava crescendo, não se justificava mais o mesmo não ter uma paróquia própria, e assim, atendendo a pedidos dos moradores, no dia 29 de junho de 1949, o Arcebispo de Belo Horizonte, D. Antônio dos Santos Cabral, criou por decreto a Paróquia do Prado (desmembrada das paróquias São José do Calafate e de São Sebastião do Barro Preto). A mesma foi dedicada a São João Maria Vianney (17861859), sacerdote francês canonizado pela Igreja Católica em 1928, que se tornou padroeiro de todos os padres ficando conhecido como Santo Cura d’Ars por ter sido pároco da cidade de Ars na França onde ganhou notoriedade (AQUINO, 2019). A Paróquia foi denominada então Paróquia Santo Cura d’Ars e foi designado, como pároco, o cônego João Olímpio Pitaluga. O novo pároco foi empossado em 10 de julho do mesmo ano e, assim que tomou posse, iniciou os trabalhos para a construção de uma nova matriz para o bairro, que seria dedicada ao santo padroeiro, o Santo Cura d’Ars. Curiosamente, esse seria o primeiro templo que se ergueria no Brasil em honra ao padroeiro do clero de todo o mundo.6 A bênção da pedra fundamental da nova igreja contou com uma cerimônia solene à qual compareceu grande número de fiéis e autoridades. Em um convite assinado pelo Pároco e datado de 11 de agosto de 1949, há menção à solenidade:

6 7

Nova casa de Deus surgirá no Prado. Jornal Estado de Minas, jul.1949. Reportagem de Silveira Neto. Convite feito pelo Cônego Pitaluga datado de 11 de agosto de 1949.

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Temos a satisfação e a honra de comunicar a V. Excm. (sic) a sua escolha como paraninfo da Benção Litúrgica da Pedra Fundamental da Igreja Matriz do Bairro do Prado, sob a invocação do Santo Cura d’Ars (São João Maria Vianney). A ceremônia (sic) solene realizar-se-á a 14 de agosto, às 16 horas, com a presença do S. Excia. Revma. O Snr. Arcebispo Metropolitano, nos altos da Rua Safira, onde está situada a antiga Capelinha do Prado.7


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Figura 6 - Inauguração da Paróquia Santo Cura d'Ars, solenidade em frente à capela.

Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars (1949).

No dia 23 de setembro de 1949, as obras da nova Matriz tiveram início. Reportagens da época dão indícios de que a construção do novo templo foi um esforço tanto do vigário quanto da comunidade local. O Jornal Estado de Minas, em uma reportagem de 1949, sobre a construção da igreja, relata que o cônego era agradecido à ajuda e generosidade dos paroquianos: tenho encontrado por parte do povo a melhor boa vontade, (...) e também por parte da Comissão Executiva das obras da Matriz, cujos elementos cheios de entusiasmo e otimismo, vêm-se esforçando para a concretização daquele ideal8.

Em março de 1951, o mesmo jornal traz mais uma reportagem sobre a construção fazendo também uma descrição do pároco: “trabalhador dedicado e incansável, tem lutado naturalmente com muitas dificuldades por ser a paróquia pobre, de pequeno número de habitantes e em fase de organização”9. Em outro trecho, o pároco faz um “apelo caloroso à população católica da capital, (...) aos meus caríssimos paroquianos do Prado, no sentido de realizarmos, quanto antes, êste (sic) objetivo: dotar

Nova casa de Deus surgirá no Prado. ESTADO DE MINAS julho de 1949 – Reportagem de Silveira Neto. Dentro de seis meses, será inaugurada a nova matriz do bairro do Prado. ESTADO DE MINAS quinta-feira, 22 de março de 1951. Reportagem de Silveira Neto. 10 Idem. 9

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Belo Horizonte de um novo templo católico digno de seu progresso”10.


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Figura 7 - Jornal Estado de Minas, jul. 1949

Figura 8 - Jornal Estado de Minas, quinta-feira, 22 mar., 1951

Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.

A investigação dos diversos documentos que constam no Memorial da Basílica Santo Cura d’Ars sugere que a realização de barraquinhas e festas para angariar fundos para a construção da Matriz já aconteciam no início de agosto, alguns dias após a posse do novo pároco, como mostra o despacho enviado à Arquidiocese no dia 02 de agosto de 1949: Desejando iniciar, o quanto antes, as obras de construção da nova Matriz desta paróquia do Santo Cura d’Ars (Prado), nesta capital venho solicitar de V.Excia.Revma., em nome da Perspectiva Comissão, a necessária licença para promover ‘barraquinhas’, ao ensejo das festividades religiosas do Sto. Padroeiro em benefício das referidas obras11.

Provavelmente aprovado o despacho, verificou-se diversas notas fiscais alusivas a compras de itens para a realização das barraquinhas, como de bebidas na Fábrica de

11 12

Despacho – Arquidiocese de Belo Horizonte – Protocolo 2854 02/08/1949. Reg. N. 213 do 18 do livro N. 625. Nota Fiscal: Fábrica de Bebidas Paraguay. 5 de agosto de 1949.

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Bebidas Paraguay12 e a contratação da instalação de alto falantes na empresa Italo


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Andrade Radiotecnicos, para 9 dias de festa13. No dia 26 de outubro do mesmo ano há uma prestação de contas do dinheiro arrecadado das barraquinhas ao cargo de uma paroquiana no valor de Cr$ 3.926,0014. No ano de 1950 foram também realizados dois festivais no Teatro Francisco Nunes, conforme autorizações verificadas da Delegacia de Jogos e Costumes, com rendas em benefícios das obras da nova Matriz do Prado.

Figura 9 - Nota fiscal, 1949

Figura 10 - Prestação de contas, barraquinhas 1949

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Nota Fiscal: Italo Andrade Radiotecnicos. 14 de agosto de 1949. Prestação de contas: Barraquinhas. 26 de outubro de 1949.

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Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.


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Figura 11- Licença para o Festival Francisco Nunes, 1950

Figura 12 - Abertura do Livro do Ouro, 1949

Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.

No Livro do Ouro de 1949, há uma intensa movimentação de doações tanto de paroquianos quanto de autoridades, empresas e órgãos públicos. No termo de abertura do referido livro, datado de 15 de agosto de 1949, fica clara a destinação das doações: “destina-se o Livro de Ouro para construção da Igreja Matriz de S. João Maria Vianney, do Prado, desta Capital”. Neste livro há uma lista de nomes de pessoas da comunidade, empresas, órgãos públicos, que contribuíram de alguma forma, com destaque para Banco de Minas Geraes (sic), Banco do Brasil S/A, Irmãos Gatti, auxílio em materiais de construção da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, dentre outros. Há que se destacar o “auxílio do Exmo. Snr. Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 - 1976)

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enviado do palácio ao Cônego, onde o ilustre governador se dizia sensibilizado com os

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dd. Governador do Estado” de Cr$ 50.000,00, doação que foi alvo de um radiograma

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agradecimentos tanto do Cônego quanto da comunidade completando que “foi motivo maior prazer poder colaborar feliz êxito obras sociais dessa importante paróquia”15. Figura 13 - Doação Juscelino Kubitschek, Livro do Ouro.

Figura 14 - Radiograma Juscelino Kubitschek.

15

Radiograma Juscelino Kubitschek. 5 de maio de 1952.

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Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars (1952).


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O novo templo tinha uma arquitetura diferenciada das outras igrejas da época, sendo esse fator apontado em reportagem do Estado de Minas: “o novo templo [...] de linhas modernas e elegantes, que terá capacidade para seiscentas pessoas confortavelmente assentadas” 16. Acrescentando ainda que “a planta, que já foi aprovada pelo sr. arcebispo (sic), depois de ouvir, competente engenheiro liturgista, foi um trabalho executado gratuitamente pelo dr. João Porto de Meneses [engenheiro arquiteto responsável pelo projeto arquitetônico], e obedece ao estilo clássico da Igreja, adaptado aos tempos modernos e necessidades locais”.17 A inauguração parcial da igreja se daria em seis meses (1951), onde seriam apresentadas a Capela-Mor, um pedaço da Nave principal com a “majestosa cupola” (sic), a sacristia e “salas espaçosas” para o expediente paroquial. Tudo isso “contando e conclamando com a ajuda de todas as famílias católicas” da Paróquia e de comerciantes.18

Figura 15 - Detalhes da construção da igreja, 1950

Figura 16 - Igreja em construção, 1951

Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.

Após dois anos de obras, em 1951, começaram a aparecer grandes rachaduras nas colunas de sustentação da cúpula, a obra foi abandonada, e começou então um sério desentendimento entre o pároco e a construtora contratada (Companhia de Engenharia e

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Dentro de seis meses, será inaugurada a nova matriz do bairro do Prado. ESTADO DE MINAS quinta-feira, 22 de março de 1951 – Reportagem de Silveira Neto. 17 Nova casa de Deus surgirá no Prado. ESTADO DE MINAS julho de 1949. Reportagem de Silveira Neto. 18 Dentro de seis meses, será inaugurada a nova matriz do bairro do Prado. ESTADO DE MINAS quinta-feira, 22 de março de 1951. Reportagem de Silveira Neto.

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Arquitetura Assel). Em fevereiro de 1956, a Igreja fechou contrato com a Empresa Pantheón de Engenharia ltda. que retomou as obras que estavam paralisadas. Aconteceu então a sagração do Altar-Mor, oficiada por Dom Cabral, mas, poucos meses depois, novamente, a obra foi interrompida ficando por sete anos parada. No início de 1963, os trabalhos foram reiniciados e, um ano e oito meses depois, em setembro de 1964, enfim, a Matriz foi inaugurada. Analisando primeiramente todo esse contexto da inauguração da Paróquia e posterior construção da Matriz, pode-se dizer que a bela matriz foi erguida tijolo a tijolo com a contribuição de pessoas da comunidade e isso hoje se traduz na ideia de pertencimento, e na apropriação tanto da construção de “pedra” quanto da construção no sentido afetivo por parte dessa comunidade. Numa analogia possível, pode-se dizer que a comunidade pareceu abraçar a sua igreja, mas é interessante relatar que a própria construção, do modo como foi feita, também se debruça sobre a comunidade e parece também abraçá-la. Diferente da maioria das igrejas que estão assentadas num diferencial (com adros, escadas, praças para se chegar até elas) e de certa forma afastadas do público e da vida cotidiana, a Igreja do Santo Cura d’Ars, parece encaixada no meio das ruas. Em uma das entradas, da rua Turquesa, sobe-se três degraus e já se está dentro da igreja em frente ao altar; quem passa pela rua, da janela de um ônibus, em um carro, a pé, de repente se entrosa com o religioso explícito de dentro da igreja. Assim podemos pensar que a própria construção foi um convite a esse entrosamento, a essa participação, fato que continua até os dias atuais. O Cônego José Olímpio Pitaluga foi o primeiro e grande responsável pela construção da igreja, mas os vários padres que o substituíram também se empenharam para a manutenção e melhoramentos da Igreja do Prado, sempre com um envolvimento constante da comunidade. Em um Livro de Ouro primeiramente usado pelo Padre Vicente Pinho Guimarães que esteve à frente da Igreja do Prado de 1963 a 1969, há um registro, sem data, na primeira folha: “Campanha do Piso da Igreja Cura d’Ars (sic) Cr$ 2000,00 o m2”, porém sem nenhuma anotação posterior. Este livro foi depois usado pelo Padre Antônio Sérgio Palombo de Magalhães (1938-2003), pároco de 1978 a 2003, primeiramente com uma relação de nomes de doadores para os vitrais da igreja e, nas

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torre que seria ainda construída, datado de 1º de dezembro de 1979. Dentre os vários

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páginas seguintes, registro das pessoas doadoras para os sinos que seriam instalados na

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nomes listados, percebe-se o nome de várias famílias, com um destaque importante para Irmã Benigna (1907 - 1981) - atualmente em processo de beatificação.19 Em sua gestão, Padre Sérgio se empenhou em transformar a Igreja, sempre com o envolvimento e ajuda financeira da comunidade, fazendo importantes reformas, e ainda adquirindo um terreno próximo, com intuito de fazer ali um “Minishopping” que daria à Paróquia uma renda fixa (este espaço hoje abriga a secretaria da Igreja e salas para reuniões pastorais). Para coroar a sua gestão, conseguiu também um dos maiores feitos que foi a elevação da igreja com a distinção de Basílica Menor do Santo Cura d’Ars em 1986, dada pelo Papa João Paulo II. Toda essa movimentação foi registrada no Jornal Entre Nós, um informativo criado pelo próprio Padre Sérgio, que era distribuído para a comunidade. Ao longo de todas as edições, o pároco enaltece o comprometimento e a ajuda da comunidade para com as diversas reformas pretendidas e realizadas na sua gestão. Já em fevereiro de 1980 a edição n.º 2 menciona a elaboração de um plano de restauração da igreja onde estariam incluídas a reforma da parte externa e do sistema de iluminação, a construção do Campanário, a compra dos sinos contendo uma lista com 113 doadores, e a campanha de doação para os 15 painéis da Via-Sacra. Sobre essa campanha há a seguinte conclamação do padre: “se os recursos do material e a justa remuneração do trabalho artístico puderem ser assumidos por 15 pessoas, será um raro e precioso presente”20. Na edição n.º 3, de março de 1980, o pároco agradece aos paroquianos pela reforma concluída do sistema elétrico dizendo que “... a ajuda da comunidade tornou possível mais essa realização e justifica nossa gratidão”. Em junho de 1980 (edição n.º 6) relatando sobre a provável inauguração do Campanário se alegra dizendo que “com fé e grande generosidade, a comunidade ergueu um belo Campanário e lhe doou um Carrilhão de Sinos”21. Na edição de n.º 7 (julho de 1980), ao comemorar a Festa do Padroeiro, no artigo intitulado “A Casa do meu Pai”, há mais um agradecimento ao se referir ao Santo Cura d’Ars dizendo: “Ele que soube zelar pela Igreja Paroquial de Ars, acompanha, no Céu, o carinho com que se cuida também da Igreja do Prado - por

Livro de Ouro: Pe. Vicente, Pe. Antônio Sérgio Palombo Magalhães. 1978. JORNAL ENTRE NÓS, Ano 2 n.º 2, fevereiro 1980, p.2. 21 JORNAL ENTRE NÓS, n.º 6, junho 1980, p. 1. 20

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respeito ao patrimônio onde tanto se deu, de tanta gente, nesses 32 anos de vida da


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Paróquia”22. Ainda em 1980, em dezembro, relembra os seus feitos mais uma vez agradecendo à comunidade: “a cada pessoa que, dízimo a dízimo, campanha a campanha, tem ajudado, de coração, muito obrigado!”23. Em março de 1981 ao relatar as obras feitas, novamente mais um agradecimento aos paroquianos, pois, “não fossem as Campanhas, não teríamos recursos para realizar tanta coisa. Desse jeito vai sempre entrando alguma colaboração e se consegue caminhar...”24. Já no ano de 1982, no n.º 38 do jornal, há um editorial intitulado “A Igreja Paroquial do Santo Cura d’Ars” onde Pe. Sérgio discorre sobre o sentido da Igreja, dizendo que:

Esta Igreja, que nós somos [...], está presente no Prado, é a comunidade da Paróquia do Santo Cura d’Ars. Igreja de gente, presente no mundo, concreta, ela se expressa também no seu templo de pedra, edificado para os encontros da Celebração da Fé e da Oração. [...] Da Casa do Pai, a comunidade tem cuidado carinhosamente, transformando nesses últimos anos, através de uma ‘plástica’ realizada na beleza e na simplicidade25. Figura 17 - Jornal Entre Nós, fev., 1981, p. 1

Figura 18 - Jornal Entre Nós. Lista dos doadores dos sinos, fev., 1980

JORNAL ENTRE NÓS, n.º 7, julho 1980, p. 1. JORNAL ENTRE NÓS, n.º 12, dezembro 1980, p. 4. 24 JORNAL ENTRE NÓS, n.º 27, março 1981, p.4. 25 JORNAL ENTRE NÓS, n.º 38, março/abril 1982, p.1. 23

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Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.


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Percebe-se que através de todos esses feitos foi possível observar um movimento ativo da comunidade na construção da sua igreja, seja por meio de doações, ou envolvimento em barraquinhas e eventos, evidenciando uma ideia de parceria e pertencimento.

De igreja matriz a basílica Foi ainda na gestão do padre Antônio Sérgio Palombo de Magalhães, que a Igreja do Santo Cura d’Ars, em 1º de fevereiro de 1986, foi elevada ao status de Basílica Menor, dado pelo Papa João Paulo II, trazendo uma distinção à Igreja propriamente dita, à comunidade católica da Paróquia, ao bairro, e também à cidade de Belo Horizonte. Esse título é um reconhecimento pontifício que parte do próprio papa, a um determinado templo católico relevando a vida pastoral e a devoção dos fiéis (TEMPESTA, 2015). Há que se pontuar que a distinção de Basílica é dada a Igrejas maiores que possuem relíquias de santos e que exercem influência sobre um país ou região pelo seu caráter espiritual. No mundo todo existem somente quatro: São Pedro, São Paulo, Santa Maria Maior e São João de Latrão, em Roma. Já Basílica Menor é um título dado pelo Papa a Igrejas que são consideradas importantes por motivos diversos como veneração, excelência histórica, beleza artística de sua arquitetura, dentre outros (AQUINO, 2018). Pertinente acrescentar que Minas Gerais, atualmente, conta com quinze Basílicas sendo duas em Belo Horizonte: Basílica de Lourdes e Basílica do Santo Cura d’Ars. No documento que concede o título à Igreja Santo Cura d’Ars, o Papa João

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Paulo II refere-se assim à Igreja em questão:

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Embora não se distinga por um longo passado, pois foi consagrada há menos de vinte e seis anos, desenvolveu-se, contudo em pouco tempo, e de tal modo floresceu em obras e iniciativas pastorais que é com razão considerada de muita importância sob o aspecto religioso e dá grandes esperanças para o futuro. [...] É natural que semelhantes lugares de culto tornando-se mais conhecidos por alguma honraria a eles concedida, sejam também mais frequentados e aumentem sua atração. [...] E Nós, esperando que, por essa concessão, a piedade, a fé e a pureza de costumes dos fiéis da paróquia e de toda a região circunvizinha muito aumentarão, e tendo em vista o parecer favorável da Congregação para o Culto Divino, de bom grado anuímos ao pedido. Assim sendo, conferimos à igreja paroquial dedicada a São João Maria Vianney, localizada na Arquidiocese de Belo Horizonte, o título e a dignidade de Basílica Menor. Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 1.º do mês de fevereiro, do ano de 1986, oitavo ano do Nosso Pontificado 26.

Figura 19 - Documento do Papa João Paulo II concedendo à Igreja a distinção de Basílica Menor.

Figura 20 - Documento do Culto Divino

Fonte: Acervo Memorial Basílica Santo Cura d’Ars.

Diversas reportagens foram publicadas nos jornais da capital fazendo alusão ao título recebido. O Jornal Edição do Brasil trouxe uma reportagem onde o pároco diz ser a concessão muito especial, “pois na maioria dos casos só se eleva uma igreja à

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Para Perpétua Memória. Papa João Paulo II, 1986.

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Santo Cura d’Ars, que de beleza sóbria, sem grandes ostentações, ainda com poucos

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condição de Basílica se ela for muito antiga e muito suntuosa, o que não é o caso do


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anos de existência”27. O Estado de Minas do dia 07/05/1986, noticia a chegada do cardeal primaz do Brasil, dom Avelar Brandão Vilella (1912-1986) que viria para presidir a missa solene onde seria lido o Breve Apostólico (documento pontifício assinado pelo papa). A reportagem segue relatando sobre barraquinhas que foram realizadas com o intuito de arrecadar fundos para a futura imagem do Santo Cura d’Ars28, como também das comemorações do dia anterior à missa solene iniciadas com uma missa às 10h, celebrada por Dom Serafim Fernandes de Araújo (1924-2019) Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte de 1986 a 2004 - , Dom João de Resende Costa (1910 – 2007), e Padre Sérgio, “assistida por centenas de fiéis e por mais de 80 sacerdotes que representavam todas as paróquias de Belo Horizonte”29. A propósito, se faz pertinente acrescentar algumas particularidades do interior da Basílica: o conjunto do Sacrário todo trabalhado em pedra sabão; o Altar composto de um bloco de pedra-sabão onde está esculpida em alto relevo a Santa Ceia (obra da artista plástica, formada pela UFMG, Virgínia Ferreira); o Cristo crucificado esculpido em madeira em estilo barroco, que na parede do fundo da Basílica envolve a visão do conjunto da Igreja; as esculturas, do padroeiro - São João Maria Vianney - em madeira com 2,30 metros de altura e cerca de 300 kg (obra do artista Gianfranco Cavedoni Cerri – 1928 - 2008), e de Nossa Senhora do Prado (obra do mesmo autor, com 2,30 metros e 300 kg) com o menino Jesus, e o manto caído (um diferencial nas imagens de Nossa Senhora); e a Via Sacra composta de 15 painéis que têm cerca de 2,20m por 1,3m, de autoria de Antônio Geraldo Cantarela. (PARÓQUIA SANTO CURA D’ARS, Blog EJC/CD). A ideia para o projeto da Via Sacra surgiu em 1979, e tinha o intuito de se criar uma “Via Sacra de valor artístico, onde cada quadro inspirasse a meditação dos Mistérios Dolorosos da Vida de Jesus, e sua vivência em nossa caminhada na Vida de hoje”30. Pode-se dizer que o conjunto chega a ser ousado e desafiante, pois não há quem entre na Basílica e não admire, e volte seus olhos para as estações que, imponentes, se perfilam ao longo do corpo da Igreja instigando as pessoas à reflexão sobre o martírio

Prado comemora basílica com seu santo protetor. EDIÇAO DO BRASIL, ano IV n.º 196. Semanário 05 a 11 de maio de 1986. Cardeal primaz do Brasil chega hoje a Belo Horizonte. ESTADO DE MINAS, quarta-feira, 7 de maio de 1986, p.8. 29 Cura d’Ars é elevada a Basílica. ESTADO DE MINAS, sexta-feira, 9 de maio de 1986, p.6. 30 ENTRE NÓS, Ano 2, fevereiro 1980, p.2. 28

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de Jesus e suas implicações na atualidade.


Dossiê Figura 21 - Detalhes do interior da Basílica

Figura 22 - Painel da II Estação na Basílica Santo Cura d'Ars

Fonte: Acervo pessoal da autora (s.d.).

No ano de 2003, com o falecimento do Padre Sérgio, acometido por grave enfermidade, assumiu o cargo seu antigo diácono, Padre José Fernando de Mello. Na gestão do novo pároco, que ficou à frente da Paróquia de 2003 a 2014, a Basílica viveu uma época de grandes aquisições e transformações, dentre elas a compra do terreno e casa situados na rua Safira ao lado da Igreja, sendo o novo imóvel incorporado ao patrimônio paroquial, e a construção do Memorial Basílica Santo Cura d’Ars com o intuito de guardar, preservar e expor diversos objetos da história da Basílica em um local com livre acesso da comunidade. Diante de todo esse contexto é possível questionar o motivo do não tombamento da Igreja e a possibilidade de incluí-la como um patrimônio simbólico da comunidade. Se levarmos em conta que o que se preserva como patrimônio de um grupo social só vai existir se assim o classificarmos nos discursos, e que estes discursos se associam às

possibilidade de ser tratada como patrimônio. É preciso ainda levar em conta que essas memórias e identidades são materialmente representadas pelo patrimônio, mesmo sendo REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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objetos que assistiram e que demonstram esses acontecimentos), a Basílica tem real

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narrativas de histórias de grupos e aos acontecimentos dessas histórias, (lugares e


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ele simbólico (GONÇALVES, 2002). De fato, “ao serem construídos para sempre, como sinais duradouros de eternidade, os monumentos misturam uma criação artística do passado com a sua memorialização simbólica do presente e o desejo de um testemunho para o futuro” (VELOSO, 2009, p. 12). E assim, pode-se dizer também que mesmo de uma forma talvez inconsciente, a construção da Matriz da Paróquia Santo Cura d’Ars, no bairro Prado, foi uma forma da sua comunidade perpetuar aquele momento para o futuro. Portanto, É comum que se assuma como um dado que os patrimônios materiais ouimateriais expressam ou representam a “identidade” de grupos e segmentos sociais. Um tipo de arquitetura, assim como uma culinária, uma atividade festiva, uma forma de artesanato ou um tipo de música, pode ser identificado como “patrimônio cultural” na medida em que é reconhecido por um grupo (e eventualmente pelo Estado) como algo que lhe é próprio, associado à sua história e, portanto, capaz de definir sua “identidade”. Defender, preservar e lutar pelo reconhecimento público desse patrimônio significa lutar pela própria existência e permanência social e cultural do grupo. (GONÇALVES, 2015, p.213).

Dentro dessa discussão sobre patrimônio simbólico para uma comunidade, se faz pertinente acrescentar que os patrimônios possuem um simbolismo derivante de procedimentos coletivos abrigando também valores e interesses (VELOSO, 2009). Ademais, nas cidades-capitais os monumentos acabam tendo um sentido do tempo ambíguo, pois se globalizam tornando-se símbolos comunitários (FORTUNA, 1997), ou seja, se tornam a alma dessas cidades, lhe dão personalidade própria sendo testemunhos do seu passado e respeitados por seu valor histórico ou sentimental, não importando aí que sejam grandes ou modestas criações, bastando que “tenham adquirido com o tempo uma significação cultural” (ARANTES, 2009, p. 13). É interessante refletir também, que os motivos que levaram a elevação da igreja do Prado à Basílica, cabem dentro do conceito de patrimônio, uma vez que os valores estéticos, arquitetônicos e socioculturais foram determinantes para o tombamento do Conjunto Urbano Bairros Prado e Calafate. Reitera-se inclusive que as situações vividas por comunidades são distinguidas pelo patrimônio cultural tendo o mesmo uma relação peculiar com a experiência coletiva (VELOSO, 2009).

“três critérios para a indicação dos graus de proteção dos bens culturais identificados” REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Os documentos do processo se debruçaram sob

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Na verdade, uma parte do bairro Prado e do bairro Calafate foi tombada pelo


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sendo o primeiro referente aos modos de vida em bairros, o segundo considerando os principais trajetos (envolvendo os dois bairros) e o terceiro apontando para “o registro imaterial de manifestações culturais locais”. O estudo realizado dentro dos critérios estabelecidos não incluiu a Basílica e a atuação da comunidade local, mesmo porque a área onde a Basílica situa está distante da Rua Platina que é a rua através da qual o processo se desenrolou. (BELO HORIZONTE, 2011).

Certamente é relevante e

importante os estudos e os critérios adotados para o tombamento do conjunto dos dois bairros, no entanto, seria pertinente empreender novos estudos para se entender a importância de uma igreja que de Matriz se tornou Basílica sendo atualmente um símbolo vivo da sua comunidade. Percebe-se, inclusive, que a história da Basílica é permeada por um cuidado sempre presente tanto dos párocos como da comunidade, que, ao longo dos anos, visaram sempre adequá-la às novas exigências sem, no entanto, descaracterizá-la o que corrobora o valor patrimonial que a igreja tem para a comunidade. Por certo, “o que parece garantir a densidade simbólica do patrimônio cultural é estar ele ancorado na profundidade das reações sociais que tecem a armadura das manifestações patrimoniais” (VELOSO, 2009, p.452). Tudo isso posto, se faz pertinente complementar que a Igreja do Prado, como ainda é carinhosamente chamada, traz em suas pedras a história de uma comunidade, lembrando, claro, que essa história se faz extremamente importante, uma vez que história não se faz somente com os grandes feitos, se faz também com os feitos das margens, e que patrimônios não são somente os laureados e tombados pela lei, são também, e muitas vezes até mais significativos, o que “a vontade dos homens ou o trabalho do tempo converteu em elemento simbólico do patrimônio memorial de uma comunidade qualquer” (NORA, 1993 p.20). Por isso é tão importante contar e dar ouvidos, à memória de uma população, particularmente à comunidade do Prado, a homens, mulheres, crianças que se envolveram e caminharam junto com a sua Igreja, e assim se tornaram parte de uma história coletiva. De uma pequena capela a uma Basílica, é o resultado de uma construção conjunta onde o título recebido atesta tanto a

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construção de pedra quanto a construção simbólica dos fiéis em sua Igreja.

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Considerações finais Conhecer a história é uma necessidade intrínseca do ser humano. É fascinante enveredar pelos caminhos da história para tentar entender a construção de uma Igreja, sua relação com a comunidade, o bairro, a cidade, e o porquê da consagração como Basílica. Talvez por isso o tema da presente pesquisa tenha se tornado tão instigante. Mais que um estudo bibliográfico, a pesquisa com fontes primárias nos oportuna enveredar por passados às vezes escondidos prontos a serem redescobertos, recontados, reavaliados. No caso da Basílica do Santo Cura d’Ars foi muito importante para a pesquisa, o acervo que consta no Memorial montado pelo Padre José Fernando de Mello em sua gestão como pároco desta Igreja. Através deste trabalho de preservação estão hoje guardados vários documentos que contam ou tentam contar uma história tanto religiosa quanto social. No entanto há ainda inúmeros documentos no local necessitando de um armazenamento mais adequado com grande risco de se perderem. É válido ressaltar também a constatação de que o Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte não possui nenhum documento sobre a Basílica, estranhamente, pois, como já foi relatado, há somente duas igrejas com essa distinção na cidade, daí a relevância da atual pesquisa que conta um pouco dessa história. Mais que estudar a história da Basílica Santo Cura d’Ars esta pesquisa se debruçou inclusive sobre o surgimento do bairro Prado, sua relevância, crescimento e desenvolvimento, fazendo uma análise com os conceitos de patrimônio, religiosidade, identidade, o que tornou a problematização muito mais rica e embasada. Uma vez definido o tema a ser estudado, o mesmo se mostrou relevante, tanto para este estudo quanto para estudos posteriores, onde seria essencial fazer uso da História Oral uma vez que estamos tratando de uma história contemporânea e de memórias ainda vivas, presentes em vários moradores do bairro, como também de pessoas que de alguma forma contribuíram para a Basílica ser o que é hoje. Desta forma se teceria um olhar crítico sobre a situação mostrando de outra forma o posicionamento da comunidade, o seu crescimento junto à Igreja e o sentimento de envolvimento e afeto

comunidade com sua igreja torna a construção patrimônio simbólico do bairro e da cidade pela comunidade, tal o envolvimento desta comunidade com a Igreja desde a REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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A presente pesquisa permitiu concluir que esse sentimento de afeto da

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com a mesma.


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construção da mesma. Esse discurso está alinhado com a fundamentação teórica de diversos autores que atualmente tratam o patrimônio cultural como algo que represente de uma forma ou de outra o indivíduo, um domicílio, a comunidade local, a sociedade, a nação e não somente os grandes monumentos ou os monumentos de grandes nomes. Assim, procuramos analisar todos estes aspectos dentro de um contexto histórico, social e econômico e os reflexos na contemporaneidade, podendo ter um olhar em alguns trechos até emocional, mas nunca deixando de se chegar o mais próximo da verdade.

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PAISAGENS EM UM BAIRRO PATRIMONIAL: ambiente construído e mercado imobiliário no conjunto urbano bairro Floresta, em Belo Horizonte Landscapes in a heritage neighborhood: built environment and real estate in Floresta urban complex in Belo Horizonte

Clarissa dos Santos Veloso

RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar desdobramentos da proteção patrimonial para a paisagem do bairro Floresta em duas de suas dimensões: ambiente construído e dinâmica imobiliária. Utilizo dados de duas fontes distintas: o cadastro de imóveis da Prefeitura de Belo Horizonte, que é utilizado para fins de cobrança do IPTU na cidade, e entrevistas com agentes do mercado imobiliário e com uma representante do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural da Cidade de Belo Horizonte (CDPCM-BH). O bairro Floresta é protegido como Conjunto Urbano pelo Conselho desde 1996. No início dos anos 1990, uma mobilização de moradores culminou na designação do bairro como patrimônio municipal. Passados pouco mais de 20 anos desde a criação da política patrimonial observa-se que a criação do Conjunto Urbano colaborou para frear a verticalização e funciona como fator de manutenção do ambiente construído e do tecido social do Floresta. Palavras-chave: Bairro Floresta; Patrimônio; Política de proteção patrimonial.

ABSTRACT: This paper aims at analyzing effects of heritage protection policies for Floresta neighborhood considering two dimensions of its landscape: built environment and real estate dynamics. I use data from two different sources: the real estate registry from the Belo Horizonte City Hall which is used for collecting taxes on private property and interviews with real estate agents and with a representative of the Deliberative Council for the Cultural Heritage of the City (CDPCM-BH). Floresta neighborhood has been protected as an Urban Heritage by the Council since 1996. In the early 1990s, a mobilization of residents led to the designation of Floresta as municipal heritage. Around twenty years have passed since then and it is observed that the creation of the Urban Complex helped to control the verticalization of the neighborhood and works as a factor for maintaining the built environment and the neighborhood’s social tissue. Keywords: Floresta neighborhood; Heritage; Heritage protection policy.

Introdução O objetivo deste artigo é analisar desdobramentos da proteção patrimonial para a paisagem do bairro Floresta em duas de suas dimensões: ambiente construído e dinâmica imobiliária.1 A categoria paisagem tem sido utilizada de forma abrangente e polissêmica por

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Mestra e doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas. E-mail: clarissaveloso25@gmail.com. Esta pesquisa foi financiada pela CAPES. 1 Uma versão deste artigo foi apresentada no XXIII Congresso de Escolas e Faculdades Públicas de Arquitetura da América do Sul (ARQUISUR) realizado em Belo Horizonte (MG), em outubro de 2019. Este paper é parte da pesquisa de tese “Um bairro patrimonial: dinâmicas residenciais e comerciais do Floresta, em Belo Horizonte”, que integra uma investigação mais ampla sobre processos urbanos nas grandes cidades: Renovação Urbana e Gentrificação. A Pesquisa é financiada pelo CNPq e coordenada pela Prof. Luciana Teixeira de Andrade.

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estudos de diversas áreas do conhecimento como arquitetura, sociologia, geografia e urbanismo. Os conceitos empregados não superpõem uns aos outros e, em alguns casos, se articulam, de modo que não é possível objetivar uma única definição do termo (BESSE, 2014). A noção de paisagem aqui adotada parte de uma das cinco acepções dessa categoria descritas por Besse (2014), para quem a paisagem pode ser compreendida como um território fabricado e habitado, onde sociedades se inscrevem concretamente no espaço e determinam usos por motivos econômicos, políticos e culturais. Ela é uma construção dada pelo processo de intervenção social e cultural num dado território, um espaço transformado e organizado pelas sociedades. Trata-se de uma construção coletiva que integra histórias e memórias como expressão do esforço humano para habitar o mundo. Nesse sentido, paisagem inclui o ambiente físico, construído, que carrega valores e sentidos adquiridos pela sociedade ao longo do tempo (ZUKIN, 2000). Paisagem, quando compreendida amplamente, inclui materialidade – o que está fixo no espaço – e imaterialidade, abarcando fluxos e movimentos de um espaço urbano, as interações sociais que nele se dão e o universo das representações subjetivas sobre ele. O espaço é considerado meio dinâmico que, simultaneamente, exerce influência sobre a história e é moldado pelas ações humanas (GREGORY; URRY, 1985). Localizado na região Leste de Belo Horizonte, o bairro Floresta é limítrofe ao Centro da cidade e surgiu no final do século XIX, junto com a construção e fundação da capital mineira. Trata-se de um bairro antigo e de classe média, que foi protegido como Conjunto Urbano. No início dos anos 1990, uma mobilização de moradores culminou na designação do bairro Floresta como patrimônio municipal. O Conjunto Urbano Bairro Floresta (CUBF) foi criado em 1996 pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural da Cidade de Belo Horizonte (CDPCM-BH). A iniciativa partiu de moradores e membros da Associação de Moradores e Amigos da Floresta (Amaflor) e objetivou preservar a qualidade de vida no bairro, seu patrimônio histórico e cultural, bem como suas memórias, identidades e modos de vida. Além do tombamento de edificações, a política inclui regras e restrições para novas construções e para manutenção de espaços e mobiliários públicos. Passados pouco mais de 20 anos desde a criação do CUBF, analiso dados de duas

dados do cadastro de imóveis da Prefeitura de Belo Horizonte, que são utilizados para fins de

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permanências no ambiente construído do Floresta e em sua dinâmica imobiliária. A partir de

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fontes para compreender como o status de bairro patrimonial influencia mudanças e


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cobrança do IPTU na cidade, contrasto períodos anteriores e posteriores à criação do Conjunto Urbano quanto ao número de construções de apartamentos e quanto aos seus padrões de acabamento. Os dados do cadastro do IPTU também permitem análises sobre o tecido social do Floresta e sobre as dinâmicas imobiliárias de bairros vizinhos. Ademais, utilizo para análise dados coletados em entrevistas com corretores imobiliários que atuam no Floresta e com uma representante da Diretoria de Patrimônio Municipal de Belo Horizonte. Os corretores imobiliários entrevistados atuam no mercado de aluguel, compra e venda de imóveis residenciais e comerciais no Floresta e em outros bairros da porção Leste da cidade. Eles descreveram as dinâmicas de oferta e demanda e de valorização e desvalorização de imóveis no bairro ao longo do tempo, forneceram informações sobre os perfis de seus clientes e opinaram sobre os desdobramentos da política de proteção patrimonial para as atividades do mercado imobiliário no Floresta. Já a entrevista com a diretora de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte objetivou conhecer a atuação dos órgãos de proteção patrimonial da cidade em casos que envolvem o Conjunto Urbano Bairro Floresta passados pouco mais de vinte anos desde sua criação. Três seções compõem este artigo. Na primeira parte apresento o bairro Floresta e a criação do Conjunto Urbano, destacando o papel estratégico do patrimônio cultural e arquitetônico no seu processo de criação. Trato também da evolução urbana de Belo Horizonte e do seu mercado imobiliário, bem como da trajetória das políticas de proteção patrimonial na cidade. A segunda parte consiste na apresentação e análise dos dados supracitados e, por fim, apresento algumas considerações finais na terceira seção.

O bairro Floresta e o processo de criação do Conjunto Urbano: uso estratégico do patrimônio cultural arquitetônico Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 e construída conforme o plano de Aarão Reis e sua equipe, a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC). A cidade foi dividida em 3 porções: urbana, suburbana e rural. A primeira, delimitada pela Av. do Contorno, caracterizou-se por ruas e avenidas largas e pelo traçado geométrico e regular dos lotes e quarteirões. Bem equipada, seu planejamento incluía infraestrutura de calçamento,

separações nítidas e de terreno acidentado. Ela apresentava quarteirões irregulares, lotes de REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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centro comercial, parques, hospitais etc. A área suburbana era composta por seções sem

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saneamento e transportes, bem como o centro administrativo do estado de Minas Gerais, o


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tamanhos variados e ruas com traçados que se adequavam à topografia. Diferente da parte interior à Av. do Contorno, os subúrbios não receberam tanta atenção por parte da Comissão Construtora, carecendo de infraestrutura urbana e de serviços. Todavia, a zona suburbana abrigou o cemitério, o matadouro, reservatórios de água, estações para tratamento de esgoto, o hipódromo e oficinas ferroviárias. Esses equipamentos demandavam grandes áreas e alguns provocavam impactos desfavoráveis nas suas vizinhanças imediatas. Já a porção rural da cidade foi pensada para a instalação de sítios de pequena lavoura. As colônias agrícolas tinham como função principal o abastecimento da nova capital com gêneros alimentícios e outros produtos (ADELMAN, 1976; AGUIAR, 2006; MAGALHÃES, 1989; ANDRADE, 2004; SALGUEIRO, 1987). Localizado majoritariamente na zona suburbana mais adensada da nova capital, o Floresta teve sua ocupação iniciada no século XIX, junto com Belo Horizonte. Os primeiros habitantes foram brasileiros e imigrantes que se dedicavam à produção de alimentos. Por outro lado, a construção de grandes chácaras serviu de residência para famílias mais abastadas e o bairro foi também o local de residência de operários que participaram da construção da cidade e de outros grupos de baixa renda da população. Esses últimos moradores se fixaram em pequenas residências, em vilas e no local onde surgiu a primeira favela de Belo Horizonte (MAGNI, 2012; TEIXEIRA, 1996; AGUIAR, 2006; GÓES, 2008). Atualmente, o Floresta é habitado, sobretudo, por grupos de classes médias. Em termos socioeconômicos, de acordo com dados do Censo 2010, 75,67% dos responsáveis pelos domicílios possuíam renda até 10 salários mínimos (SM), assim divididos: 17,94% até 2 SM, 29,75% de 2 a 5 SM e 27,98% de 5 a 10 SM. Apenas 17,4% dos chefes de domicílios tinham renda superior a 10 SM. Ou seja, trata-se de um bairro com preponderância dos estratos médios e médios baixos (Censo IBGE, 2010). Representações de moradores sobre o Floresta trazem, dentre outros atributos do bairro, referências à sua localização central na cidade e historicidade. Relações de vizinhança duradouras marcadas por proximidade e pessoalidade também são enfatizadas pelos moradores quando descrevem e caracterizam o bairro onde vivem, assim como menções à autonomia, para se referir à infraestrutura de serviços, instituições e transportes do bairro. Os

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aconchegante, bonito, tranquilo, agradável, familiar, histórico e excelente (MAGNI, 2012;

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moradores também o associam a boa qualidade de vida e se valem de adjetivos como bom,

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TEIXEIRA, 1996).2 Essas categorias são decorrentes das relações sociais vibrantes no bairro e de especificidades das suas ambiências. O Floresta se diferencia tanto pela horizontalidade do ambiente construído, em contraponto com a verticalização em outras partes centrais da cidade, quanto pela presença e preservação de edificações antigas, bens culturais e arquitetônicos tombados principalmente em decorrência das transformações e processos que descrevo a seguir. Ao longo da segunda metade do século XX, com a acentuação do crescimento de Belo Horizonte, a construção de vias urbanas nos arredores do Floresta promoveu a ligação entre a área central e localidades periféricas, assim como aconteceu em outras partes da cidade. Grandes avenidas no entorno do bairro colaboraram para que suas ruas se tornassem um caminho de ligação entre o Centro e localidades a noroeste e nordeste. A prioridade dada ao tráfego rodoviário somada à localização do Floresta, entre o Centro e a periferia, criou corredores de trânsito contínuos no bairro, o que veio a configurar um de seus maiores problemas. Entre 1960 e 1970, a paisagem construída da área central de Belo Horizonte, até então marcada por horizontalidade, começou a apresentar sinais de um processo de verticalização que culminou na atual superioridade de apartamentos como forma residencial, em detrimento de casas e outros tipos construtivos nessa região. A área física central da capital já apresentava níveis de saturação em termos de ocupação horizontal e seu ambiente construído passou por mudanças nesse período. Por influência direta da legislação vigente, a LUSOLO de 1976, foram permitidas e motivadas no Centro e em áreas adjacentes, como o Floresta, a instalação de equipamentos comerciais e de serviços e a construção de prédios de grande porte para residências multifamiliares, com consequente adensamento (MOL, 2004; CALDAS et al., 2008). O aumento do número de residências verticais foi acompanhado pela ampliação das atividades comerciais e de serviços. Grande parte dos imóveis, antes utilizados como residências, se tornaram pontos comerciais, de clínicas, escritórios, imobiliárias, entre outros (GÓES, 2008). A partir dessas transformações e de seus desdobramentos, no início dos anos 1990,

O volume de trabalhos acadêmicos sobre o Floresta é amplo. As pesquisas de Teixeira (1996) e Magni (2012) merecem destaque por se tratarem, respectivamente, do contexto do bairro o processo de criação do Conjunto Urbano Bairro Floresta. Teixeira (1996) analisou a percepção da paisagem e da vida no bairro por meio das narrativas de moradores antigos, entrevistados em 1993. A investigação de Magni (2012) também abarcou representações do Floresta por meio de entrevistas com moradores. Os 142 questionários da amostra foram aplicados em cinco porções do bairro, onde mais da metade dos entrevistados já havia completado 20 anos de residência. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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uma mobilização de moradores deu origem ao processo que culminou na proteção do Floresta


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como Conjunto Urbano pelo CDPCM/BH em 1996. A iniciativa de proteger o bairro partiu de seus moradores, sobretudo de integrantes da Amaflor e fundamentou-se na busca pela preservação da sua qualidade de vida, do seu patrimônio histórico e cultural e das suas memórias, identidade e modo de vida. Com a criação do Conjunto, imóveis foram tombados e foi delimitada uma área de abrangência com diretrizes que limitaram a altura de novos edifícios: de 9,0 a 13,0 metros, basicamente. Em alguns lotes, optou-se por permitir a verticalização, mas era significativa a restrição aos novos empreendimentos. Esse engajamento de pessoas e associações civis que clamaram por ações mais incisivas do poder público quanto às políticas de proteção patrimonial em Belo Horizonte teve início em meados dos anos 1980. Em outras cidades brasileiras, como São Paulo, esse também foi o período de iniciativas semelhantes. A primeira questão a respeito da preservação e proteção patrimonial foi levantada no início dos anos 1970 na capital mineira. Ela envolveu o meio ambiente e um símbolo da cidade: a Serra do Curral, que margeia o limite sul de Belo Horizonte, de onde pode ser avistada. A Serra estava sob ameaça dupla: pela crescente construção de prédios altos, que galgavam a visada a partir dos espaços urbanos e pela exploração de ferro na montanha, o que poderia afetar a permanência do seu perfil natural a partir da retirada de grande quantidade de material mineral. Políticas relativas ao patrimônio arquitetônico e histórico começaram a ser discutidas no final dos anos 1970, assumindo contornos mais nítidos a partir de 1980. Um grupo de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de membros do Instituto de Arquitetos do Brasil foram os responsáveis por articular a criação da lei municipal de proteção patrimonial e de um Conselho de Patrimônio para Belo Horizonte. Nesse contexto, a demolição do cinema de rua, Cine Metrópole, para construção do prédio sede de um banco em 1983 foi um acontecimento emblemático. O episódio ensejou ampla mobilização social e visibilidade na imprensa (MAGNI, 2012; BOTELHO, 2005). No caso da proteção do bairro Floresta, o discurso para patrimonialização considerou elementos da arquitetura, da memória e da identidade como seus pilares fundamentais. Havia, entretanto, outra questão central: a preservação da qualidade de vida no bairro, por meio do controle do processo de verticalização, da densidade populacional e do trânsito. Como vimos,

andamento em Belo Horizonte. O objetivo de proteger os bens culturais, para além de estar

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componentes de processos mais amplos de verticalização e crescimento populacional em

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essas eram as consequências diretas de mudanças na legislação de uso e ocupação do solo e as


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embasado no argumento da perda dos exemplares, acoplava-se à finalidade de conservar a qualidade de vida, denotando assim uma visão da patrimonialização como ação estratégica (ABREU, 2015). O papel dos moradores do bairro enquanto agentes participantes e responsáveis pela patrimonialização faz parte de um conjunto de novidades no campo do patrimônio, que teve medidas de reconhecimento e proteção de bens culturais significativamente alteradas a partir de 1980. Instituições estatais dominantes e autorizadas a atribuir o caráter de patrimônio perderam sua exclusividade e deram lugar a novos agentes3, que tomaram a cena pública expressando interesses variados e, por vezes, muito específicos, como aqueles ligados aos temas do patrimônio intangível (ABREU, 2015). Esse foi o caso das pessoas envolvidas na salvaguarda dos bens culturais do Floresta. A Amaflor operou como porta-voz dos sujeitos que reivindicaram o tombamento de imóveis, argumentando o risco de demolição desses exemplares pela ação de um mercado imobiliário interessado nas áreas centrais de Belo Horizonte. O processo que levou à criação do Conjunto Urbano Bairro Floresta em 1996 foi conturbado e envolveu disputas entre representantes da Amaflor, agentes do mercado imobiliário, membros do CDPCM/BH e moradores, cujas visões sobre o tombamento variavam. Algumas edificações tiveram tombamentos cancelados ou impugnações acatadas, o que possibilitaria sua demolição (MAGNI, 2012). A Figura 1 mostra o perímetro do Conjunto Urbano pelo traçado da linha vermelha. Ele extrapola os limites formais do Floresta se tomarmos como referência as designações da Prefeitura de Belo Horizonte. O Conjunto Urbano abarca pequenas porções territoriais de dois outros bairros (Colégio Batista e Santa Tereza). As áreas circuladas em verde pertencem ao Floresta, mas foram excluídas do perímetro do Conjunto. Tratarei dessas regiões mais adiante. Utilizo as expressões Floresta e Conjunto Urbano para me referir ao CUBF. A Figura 1 mostra também os bens culturais tombados. Atualmente o Conjunto Urbano Bairro Floresta inclui 137, com edificações ecléticas, art déco, protomoderna e modernista. Incluem-se nesse conjunto casas e prédios de igrejas, escolas, museus e bens urbanísticos como o Beco São Geraldo, a Praça Comendador Negrão de Lima e os viadutos

Representantes de agências locais, nacionais e internacionais e, sobretudo, movimentos sociais, organizações não governamentais, coletivos de indivíduos de camadas populares e variantes de sujeitos que trouxeram novos elementos e dinamismo para a patrimonialização (ABREU, 2015). 4 Levantamento realizado pelo site Guia do Bem, da Prefeitura de Belo Horizonte (https://guiadobem.org/). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Floresta e Santa Tereza.4


Dossiê Figura 1: Perímetro do Conjunto Urbano do Bairro Floresta e bens culturais tombados.

Fonte: Elaborado pela Autora (2019).

Efeitos da proteção patrimonial no Floresta O cadastro de imóveis para fins de IPTU em Belo Horizonte é utilizado neste artigo para avaliar transformações no ambiente construído do Floresta comparando momentos anteriores e posteriores à criação do Conjunto Urbano. Comparo dinâmicas do bairro com aquelas de porções territoriais vizinhas, isentas ou não de políticas patrimoniais. O intuito é compreender como o status de espaço urbano patrimonial afeta o conjunto imobiliário do bairro, considerando nesta análise fatores contextuais macroeconômicos e da cidade. Além disso, os dados permitem ponderações sobre o tecido social do Floresta. No cadastro do IPTU estão registradas as principais características dos imóveis, sendo que os seguintes são utilizados neste artigo: endereço; tipo de ocupação (residencial, não

A designação do padrão de acabamento das unidades residenciais é feita de acordo com o Decreto 13.824, de 28 de dezembro de 2009, da Prefeitura de Belo Horizonte, disponível no link https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=172637. Basicamente, para atribuição do padrão de acabamento, são consideradas características externas dos imóveis, como revestimento de fachada e piso, tipos de janelas, entre outros aspectos. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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residencial e territorial); data de construção; e padrão de acabamento, do P1 ao P55. Os dados


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aqui utilizados correspondem aos cadastros dos anos de 2009 a 2018 e foram cedidos pela Prefeitura de Belo Horizonte para esta investigação. De acordo com a base cadastral de IPTU de 2018, um total de 7.108 imóveis compõe o bairro Floresta. Os tipos de ocupação variam entre residencial (77,15%), não residencial (22,2%) e territorial ou lotes vagos (0,65%). A Tabela 1 apresenta os tipos construtivos, associando-os aos seus respectivos tipos de ocupação. Tabela 1: Tipos construtivos no bairro Floresta – 2018 Tipo de Ocupação

Tipo Construtivo

3999

% 56,26

40

0,56

Casa

1081

15,21

Vaga garagem residencial

364

5,12

Apartamento comercial

1

0,01

Barracão comercial

2

0,02

Casa comercial

93

1,31

Galpão

104

1,46

Loja

789

11,12

Sala

296

4,16

Vaga garagem comercial

293

4,12

Lote vago Total

46

0,65

Residencial

N

Apartamento Barracão

Comercial

Territorial

7.108 100 Fonte: Elaborada pela autora, a partir de dados da PBH (2019).

A Tabela 2 apresenta a quantidade de apartamentos residenciais construídos no Floresta até 2018. Os apartamentos residenciais são maioria entre os tipos construtivos (56,26%), seguidos das casas (15,21%) e de lojas (11,12%). Observa-se que o número de apartamentos aumenta a partir de 1970, alcançando seu auge durante a década de 1980. Isso condiz com o boom de construção de prédios e a verticalização da paisagem em Belo Horizonte nesse período (CALDAS et al., 2008).

Período

Até 1949

1950/59

1960/69

1970/79

1990/99

2000/09

2010/18

1.221

677

379

413

Página

N. de Aptos. 38 115 388 768 Fonte: Elaborada pela autora, a partir de dados da PBH (2019).

1980/89

244

Tabela 2: Apartamentos construídos no Floresta por década

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Ainda com base na Tabela 2, nota-se que entre 1990 e 2009 houve queda no número de apartamentos construídos, o que pode ser explicado por dois motivos. O primeiro deles liga-se a fatores contextuais mais amplos, macroeconômicos e relativos a Belo Horizonte e seu mercado imobiliário. A expansão imobiliária residencial ocorreu até meados dos anos de 1980, quando se instaurou a crise econômica. As quedas na oferta e na demanda de apartamentos foram diretamente influenciadas pela crise do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), com posterior extinção do Banco Nacional de Habitação em 1988. A recessão econômica dessa década teve efeitos imediatos sobre a renda e o emprego dos grupos sociais médios e populares (CALDAS et al., 2008). Ao longo da década de 1990, o mercado imobiliário apresentou uma retomada em Belo Horizonte e atingiu, nos anos 2000, níveis próximos ao boom imobiliário dos anos de 1970 e 1980. Contudo, isso se deu principalmente com a construção de imóveis situados na porção Centro-Sul da cidade e voltados para pessoas com maior poder aquisitivo (CALDAS et al., 2008; MENDONÇA et al., 2019). O segundo motivo que pode explicar a queda no número de apartamentos construídos entre 1990 e 2018, no Floresta, diz respeito, especificamente, à política de proteção patrimonial do bairro. A criação do Conjunto Urbano em 1996, com regras para altura de novos edifícios e com o tombamento de bens culturais, impossibilitou às incorporadoras erguer prédios de muitos andares nos lotes vagos ou no lugar de casas, que não poderiam ser demolidas depois de tombadas. O mercado imobiliário teve suas atividades freadas. Por outro lado, a diminuição do número de lotes vagos disponíveis para novas construções também é uma variável a ser considerada em um bairro central e de ocupação antiga como o Floresta. Essa escassez de lotes vagos foi apontada por corretores de imóveis entrevistados como fator que limita a expansão do estoque de imóveis (entrevistas realizadas entre os dias 21 e 25 de novembro de 2017, com cinco corretores que atuam no bairro). Ainda com base na Tabela 2, observa-se que 677 apartamentos foram construídos ao longo da década em que o Conjunto foi criado, isto é, entre 1990 e 1999. Desse total, 61,74% (ou 418 apartamentos) têm seus registros de “ano de construção” entre 1997 e 1999, ou seja, após a proteção do bairro, que aconteceu em dezembro de 1996. Os demais apartamentos,

apartamentos cujos anos de construção são posteriores à criação do Conjunto Urbano Bairro

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Dois argumentos inter-relacionados podem explicar a maior quantidade de

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38,26% (ou 259 unidades residenciais), foram construídos entre 1990 e 1996.


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Floresta. Primeiramente, é necessário considerar que a produção de mercadorias na indústria da construção civil é de média ou longa maturação, isto é, imóveis levam tempo para serem construídos, em processos que envolvem análise do mercado, projeto, planejamento, aprovação, execução e colocação do produto (CALDAS et al., 2008). Em segundo lugar, o ano de construção da unidade residencial representa uma proxy para o ano no qual a obra foi encerrada, ou seja, o imóvel está pronto e os responsáveis pela construção solicitaram na prefeitura a criação do índice cadastral (IC) do bem produzido, para sua posterior comercialização. O IC gerado integrará a base de dados cadastrais do IPTU, substituindo, por exemplo, o índice do terreno vago que fora ocupado. No caso de prédios, é criado um índice cadastral por apartamento construído, e o tempo do processo entre a aprovação das obras e a criação do IC pode ser longo e variável (CALDAS et al., 2008). Desse modo, a criação do Conjunto não teve efeitos imediatos sobre as dinâmicas imobiliárias do Floresta na década de 1990 quando contrastados os números de apartamentos construídos até 1996 e entre 1997 e 1999. Isso se explica pelos timings entre conclusão das construções das unidades residenciais e seus registros no banco de dados do IPTU, bem como pelo tempo de maturação da produção imobiliária de bens e sua comercialização. Como mostrei anteriormente, a queda no número dos apartamentos pós-criação da política de proteção do patrimônio revela-se a partir da década de 2000 (ver Tabela 2). O Conjunto Urbano Bairro Floresta é classificado como “estável” por Françoise Jean de Oliveira Souza, diretora de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (entrevista concedida no dia 24 de abril de 2019), na medida em que são poucas as demandas que o envolvem na Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Ao retomar a trajetória da proteção do Floresta, ela comenta que essa estabilidade se concretizou aos poucos, comparando a atual situação à da época da criação do Conjunto, quando uma porção do bairro, limítrofe ao bairro Sagrada Família, foi propositalmente excluída do perímetro protegido, ficando disponível para a atuação do mercado imobiliário (ver áreas demarcadas em verde na Figura 1). Denominada de “área de respiro” por Françoise, a região “era um local para onde as empreiteiras poderiam se direcionar”. Tratava-se de criar, no conturbado contexto de proteção do bairro, que envolvia moradores, investidores e poder público, uma espécie de “moeda de

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(entrevista realizada no dia 24 de abril de 2019).

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negociação” dadas as restrições que o Conjunto geraria para o setor das construções

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O mapeamento das ruas e lotes que constituem essa área de respiro foi seguido do levantamento dos dados cadastrais do IPTU de 2018 a ela correspondentes. Ao contrastar momentos anteriores e posteriores à criação do Conjunto Urbano, pude verificar que, do total de 210 apartamentos nessa porção territorial, 58,57% foram construídos entre 1997 e julho de 2019, isto é, num intervalo de 22 anos e após a criação do Conjunto, cujas regras não se aplicam àquela parte do bairro. Os outros 41,46% dos apartamentos foram construídos entre 1936 e 1996, ou seja, num período que abarca 60 anos. Os apartamentos representam 58,85% do total de 375 imóveis na área de respiro. Ao analisar a quantidade de casas, constatei que sua representatividade caiu de 28%, até 1996, para 0,48%, entre 1997 e 2019. Esses dados sinalizam que o objetivo da área de respiro tem se concretizado desde a criação do Conjunto Urbano. Vale refletir sobre o que teria acontecido com a paisagem construída da área protegida pelo Conjunto Urbano caso ele não tivesse se concretizado, dado que a dinâmica imobiliária da área de respiro sugere a diminuição da horizontalidade das habitações para a sua verticalização. A frenagem da verticalização – com consequente manutenção da horizontalidade da paisagem construída – via criação de diretrizes de proteção patrimonial também se evidencia por meio de paralelos entre o Floresta e dois bairros vizinhos: Santa Tereza e Sagrada Família. O Mapa 1 mostra a localização desses dois bairros e do Centro:

Fonte: Elaborado pela autora (2019). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Mapa 1: Bairros vizinhos ao Floresta


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O bairro de Santa Tereza6 foi protegido como Área de Diretrizes Especiais (ADE), em 1996, por iniciativa dos moradores do bairro e com objetivo de preservar o seu patrimônio cultural e arquitetônico. Se a criação da ADE foi eficiente para a preservação do caráter residencial do bairro, ela não impediu que as antigas casas fossem substituídas por edifícios residenciais (CAJAZEIRO; SOUZA; SOARES, 2012). Por essa razão, em 2015, o Santa Tereza foi tombado como conjunto urbano. A Tabela 3 apresenta as quantidades de apartamentos construídos no bairro entre 1949 e 2017. Eles somam 3.381 unidades residenciais. Observa-se um aumento do número de unidades residenciais a partir de 1970, época do boom imobiliário na cidade, e queda a partir da década de 2000, quando foi criado o grau de proteção citado.

Tabela 3: Apartamentos construídos em Santa Tereza Período

Até 1949

1950/59

1960/69

1970/79

N de 10 9 104 647 Aptos Fonte: Elaborada pela autora, a partir de dados da PBH (2017).

1980/89

1990/99

2000/09

2010/17

729

992

581

309

O Sagrada Família7 localiza-se na porção leste de Belo Horizonte e é limítrofe ao Floresta, sendo que a Avenida Silviano Brandão funciona como limite entre esses dois bairros. Ao contrário da Floresta e de Santa Tereza, o Sagrada Família não tem grau de proteção patrimonial. Trata-se do bairro mais populoso de Belo Horizonte, segundo dados do Censo de 2010, com 34.386 moradores. É também um dos maiores em extensão territorial. A Tabela 4 mostra as quantidades de apartamentos construídos no bairro entre 1949 e 2017, somando 9.454 unidades residenciais.

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Assim como o Floresta, Santa Tereza é um dos bairros mais antigos de Belo Horizonte. Ele teve origem na VII seção suburbana da cidade planejada e está situado na porção leste da cidade, próximo do Centro. Sua ocupação teve início no final do século XIX, pelos imigrantes atraídos pela oferta de empregos para a construção da nova capital. Posteriormente, foi também ocupado, por iniciativa do Estado, por funcionários públicos de baixo escalão e militares (SOUZA; CAJAZEIRO, 2012). 7 O Sagrada Família surgiu no início do século XX, com a formação de três vilas loteadas em uma antiga fazenda, ocupadas pelas famílias dos operários que trabalhavam em indústrias locais (ARREGUY; RIBEIRO, 2008).

248

6


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Tabela 4: Apartamentos construídos no bairro Sagrada Família Período N de Aptos

Até 1949 1

1950/59

1960/69

1970/79

1980/89

1990/99

2000/09

2010/17

32

156

1.089

2.370

2.295

1.949

1.562

Fonte: Elaborada pela autora, a partir de dados da PBH (2017).

Observa-se um aumento do número de apartamentos construídos a partir de 1970, em consonância com o boom de construção de prédios e verticalização da paisagem em Belo Horizonte nesse período. Entretanto, diferentemente dos bairros Floresta e Santa Tereza, entre 1990 e 2017, a alta produção de unidades residenciais no Sagrada Família foi mantida dada a intensa atividade do setor de produção imobiliária. Isento de restrições geradas por políticas patrimoniais, o Sagrada Família é o quinto bairro com o maior número de apartamentos em Belo Horizonte: 9.454 unidades residenciais.8 Além das análises sobre o ambiente construído do bairro Floresta, os dados cadastrais do IPTU permitem ponderações sobre o tecido social do bairro a partir dos padrões de acabamento dos apartamentos. As interpretações reforçam o argumento da seção anterior sobre a predominância de estratos sociais médios entre os residentes do bairro. Entre os atributos socialmente reconhecidos como distintivos da classe média brasileira estão a casa própria de tamanho e padrão de acabamento bons e, como característica que denota um padrão de vida estável, a posse do automóvel (O’DOUGHERTY, 1998; KERSTENETZKY et al., 2013). Nesse sentido, o espaço físico habitado por um sujeito é símbolo do espaço social que ele ocupa na hierarquia de grupos sociais (BOURDIEU, 2008). Numa hierarquia de padrões de acabamento de P1 a P59, em que cinco é o padrão mais alto, predominam no Floresta imóveis de nível médio, o P3 (58,95%), seguido pelo P2 (24,27%). Apenas 13,63% dos imóveis são dos níveis superiores P4 e P5, e 2,5% deles são do nível mais baixo, P1. Nos 1.253 apartamentos e casas de uso residencial, construídos após a criação do Conjunto Urbano, observa-se a distribuição mostrada na Tabela 5:

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De acordo com a base cadastral do IPTU de 2017, entre os 323 bairros do município de Belo Horizonte, o Buritis, localizado na região Oeste, possui o maior número de apartamentos (16.777), construídos principalmente entre 2000 e 2017. O bairro Castelo, na Pampulha, é o segundo colocado, com 10.627 apartamentos erigidos no mesmo período. Lourdes (10.527) e Santo Antônio (10.132) são o terceiro e o quarto colocados. Esses bairros se localizam na região Centro-Sul, e suas unidades residenciais foram construídas gradativamente ao longo das décadas, sobretudo a partir de 1970. 9 A designação do padrão de acabamento das unidades residenciais é feita de acordo com o Decreto 13.824, de 28 de dezembro de 2009, da Prefeitura de Belo Horizonte, disponível no link https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=172637. Basicamente, para atribuição do padrão de acabamento, são consideradas características externas dos imóveis, como revestimento de fachada e piso, tipos de janelas, entre outros aspectos.

249

8


Dossiê

Tabela 5: Padrões construtivos de casas e apartamentos no Floresta (imóveis construídos após a criação do Conjunto Urbano) Padrão Construtivo

N

%

P1

2

0,16

P2

12

0,96

P3

999

79,73

P4

239

19,07

P5

1

0,08

Total

1253

100

Fonte: Elaborado pela autora, a partir de dados da PBH (2019).

Apartamentos e casas construídos durante a vigência do Conjunto Urbano são principalmente de padrão médio (P3) e correspondem a 79,73% do total de imóveis residenciais. Eles atendem aos padrões de consumo dos grupos que atualmente já vivem no bairro e de outros com igual padrão. Foram construídos 19,07% de imóveis de padrão P4, o que possibilita a atração de grupos com nível socioeconômico superior. Quanto aos imóveis mais antigos do bairro, uma observação é relevante. O Floresta dispõe de um estoque de casas amplas, que poderiam atrair estratos sociais mais altos, conforme ilustram as Figuras 2 e 3. Contudo, a maior parte desses imóveis teve seus usos modificados, pois passaram a desempenhar funções comerciais para funcionamento de clínicas, escritórios e outros negócios (GÓES, 2008). São casas espaçosas, com muitos cômodos, ou seja, imóveis grandes para núcleos familiares pequenos que buscam moradia no Floresta, conforme corretores imobiliários que atuam no bairro (entrevistas realizadas entre os dias 21 e 25 de novembro de 2017). Como imóveis tombados, os custos para sua manutenção e/ou reforma é outro fator que colabora

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para o desinteresse dos potenciais residentes de classe média, segundo esses entrevistados.

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Dossiê

Figura 2: Casa tombada que abriga um estabelecimento com fins comerciais na Av. Assis Chateaubriand, 194

Fonte: Fotografia da autora (2017).

A atração de grupos médios para o bairro foi reforçada nas entrevistas com os corretores. Para eles, o bairro "não está se transformando", ou quando muito, dizem que está mudando pouco. Ao classificarem as pessoas que procuram imóveis para compra ou aluguel, as seguintes categorias e características foram elencadas: profissionais com curso superior; profissionais liberais; pessoas de classe média; casais recém-casados e sem filhos, iniciando a formação do núcleo familiar; estudantes que optam por formar repúblicas ou morar sozinhos e médicos recém-formados e residentes, dada a proximidade entre o Floresta e a área hospitalar

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(entrevistas realizadas entre os dias 21 e 25 de novembro de 2017).

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Figura 3: Casa tombada na Rua Silva Jardim.

Fonte: Fotografia da autora (2017).

Os agentes do mercado imobiliário entrevistados compreendem a existência do Conjunto Urbano Bairro Floresta como “restrição à atuação das empreiteiras na região”. Segundo eles, há poucos imóveis novos e “o bairro não se renova, mantendo muitas casas que são antigas e velhas”. Os tombamentos do Conjunto Urbano são colocados como “entraves para a comercialização” (entrevistas realizadas entre os dias 21 e 25 de novembro de 2017). Ao contrastarem as atividades do mercado imobiliário e o tombamento de imóveis, esses entrevistados relataram que, muitas vezes, o fato de um imóvel ser tombado o torna menos atrativo para compra ou aluguel. Segundo eles, clientes temem a desvalorização desses imóveis tanto para uso residencial quanto comercial. A clientela pondera sobre complicações caso queira ou precise fazer reformas e intervenções em edificações tombadas (entrevistas

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realizadas entre os dias 21 e 25 de novembro de 2017).

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Considerações finais O objetivo deste artigo consistiu em compreender em que medida o status de bairro patrimonial atua para a manutenção do ambiente construído do Floresta e de seu tecido social. No que diz respeito a esse último, constatou-se que a criação do Conjunto Urbano colaborou para frear a verticalização do bairro, que atualmente combina a horizontalidade de casas e prédios de poucos andares com edifícios mais altos, construídos principalmente ao longo das décadas de 1970 e 1980, no contexto do boom imobiliário em Belo Horizonte. No processo de criação do Conjunto Urbano, o patrimônio arquitetônico e histórico foi estratégico para frear verticalização e adensamento em curso no bairro, como parte de transformações mais amplas da cidade de Belo Horizonte. A criação do Conjunto Urbano Bairro Floresta colabora, portanto, para a manutenção da paisagem construída do bairro, tanto por possibilitar a conservação das edificações horizontais pelo tombamento quanto por não permitir a verticalização via construção de prédios multifamiliares. Observa-se também uma manutenção do padrão de construção do estoque imobiliário do bairro, de modo que o padrão das novas moradias construídas reforça a atração de grupos médios para o Floresta. Nesse sentido, a política do Conjunto Urbano, com seus tombamentos, tem contribuído para que o bairro pouco se modifique principalmente no sentido de produção de habitações maiores e mais sofisticadas, o que poderia levar a expulsão dos moradores de grupos sociais mais baixos. Os dados de entrevistas apresentados reforçam esse argumento. O Conjunto funciona, portanto, como fator de manutenção da paisagem construída e do quadro social do bairro.

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Dossiê

PROCESSO DE PRODUÇÃO DA CARTILHA “PATRIMÔNIO CULTURAL DO BAIRRO FLORESTA - BELO HORIZONTE”: desafios e potencialidades Development process of the booklet “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte”: challenges and potentialities

Alda Maria Luiza Moura de Queiroz Sá dos Santos* Sarah Dreger Oliveira**

RESUMO: O presente trabalho nasceu do processo de desenvolvimento da cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte”, produzida através de uma parceria entre discentes do curso de Arquitetura e Urbanismo, do IFMG - campus Santa Luzia, e do curso de Arquivologia, da UFMG. Este artigo traça um breve histórico do Floresta e busca entender, a partir da experiência de produção da cartilha, os motivos da carência de visibilidade sobre patrimônio. Bem como, a dificuldade de acesso à informação sobre o bairro, sua história e memória, por meio de documentos fiscais, fotografias antigas, plantas técnicas e outros, exponenciada pelo contexto de pandemia do COVID-19. O intuito também é fazer uma reflexão sobre a importância da educação patrimonial e seus impactos na vivência e no registro da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural; Bairro Floresta; Memória. ABSTRACT: This paper is a result of the development process of the booklet "Patrimônio Cultural do Bairro Floresta -Belo Horizonte¹”, which was originally created through a partnership between an Architecture and Urbanism student, from IFMG - Santa Luzia campus, and an Archival Science student, from UFMG. This article introduces a brief historic view of Floresta and outlines why there is a lack of visibility over the patrimony, as well as the difficulties to find neighborhood information, such as: its history and memory, tax data, old photographs, floor plans, and etc., and how this process was hindered by the current context of COVID-19 pandemic. This article proposes a reflection on the importance of Cultural Heritage education and its impacts on the city’s living and memory. KEYWORDS: Cultural Heritage; Floresta Neighborhood; Memory.

Introdução A preservação do patrimônio cultural é muito importante e necessária para a humanidade, sobretudo para as comunidades que o produziram. Isso mantém viva a

* **

Graduanda de Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto Federal de Minas Gerais - IFMG - E-mail: aldaluiza.moura@gmail.com Graduanda de Arquivologia pela Escola de Ciência da Informação da UFMG - E-mail: sarahdreger.o@gmail.com

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manutenção da identidade e da história de uma sociedade. Tendo isso como base e

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história de um povo, já que a memória e o seu resgate são de suma importância para a


também a Carta de Atenas (CIAM, 1933), que afirma que a história é escrita através da arquitetura e tudo que deriva disso proporciona a visualização do passado, evidencia-se a importância do patrimônio cultural para a sociedade. Ainda nessa questão, precisamos ressaltar o valor da memória no processo de construção e proteção do patrimônio cultural. Dentro do campo da historiografia, a memória social (memória coletiva) é que irá permear a construção do conhecimento histórico de um lugar, de um povo. (LEROI-GOURHAN apud LE GOFF, 1990, p. 427) afirma que a memória coletiva se divide em cinco períodos: “o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica". Percebe-se nessa afirmativa que a memória coletiva é composta tanto de registros orais passados de geração em geração, como de registros escritos, sejam em tábuas, papiros, impressos ou eletrônicos. Nesse sentido, Le Goff explicita dois importantes elementos da memória coletiva: o monumento e o documento. O monumento é definido pelo autor como algo que evoca o passado, sendo esse uma “herança do passado”. É um elemento que se conecta “ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 1990, p. 536). Já o documento, de acordo com Le Goff, são os testemunhos escritos da história, selecionados à escolha do historiador”, ou seja, o historiador que irá decidir qual documento será utilizado ou não como prova dos fatos ocorridos em determinado período, retirando daqueles “tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm. (LE GOFF, 1990, p. 536).

Os documentos são, portanto, partes de um passado e necessitam de um trabalho minucioso de análise, construção de sentido e reconstrução dessa história. Logo, fica evidente a importância da comunidade na reconstrução da memória, seja ela histórica ou social, e do patrimônio cultural, no processo de preservação da história do bairro Floresta, objeto de estudo deste artigo. Deste modo, e também de acordo com o site da Secretaria Especial de Cultura1, o patrimônio cultural “diz respeito aos conjuntos de conhecimentos e realizações de uma comunidade, acumulados ao longo de sua história,

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Site da Secretaria Especial de Cultura: http://cultura.gov.br/patrimonio-cultural/

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que lhe conferem os traços de sua identidade”. Resumidamente, a preservação do


patrimônio cultural permite que a sociedade se identifique com o mesmo, reconhecendo a si mesma naquela história ali criada e desenvolvida. Com isso em mente, no contexto da disciplina de “Técnicas Retrospectivas” da graduação em Arquitetura e Urbanismo do IFMG - Santa Luzia, durante uma proposta de produção de material para educação patrimonial, desenvolveu-se uma primeira versão de cartilha sobre o bairro Floresta. Essa edição precisou ser elaborada em apenas duas semanas para que cumprisse o prazo de entrega da atividade, o que a deixou mais sucinta. No entanto, ciente da potencialidade do material e da necessidade de expansão do conteúdo, uma segunda versão foi produzida, agora através de uma parceria entre as autoras deste artigo, estudantes de Arquitetura e Urbanismo e Arquivologia. Com a integração entre a Arquitetura e a Arquivologia, que são duas áreas tão importantes e significativas na questão da preservação patrimonial, surge a nova versão da cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta – Belo Horizonte”2, a primeira a ser publicada. O principal objetivo deste projeto é de garantir o acesso democrático às informações importantes acerca do Floresta, mantendo, assim, a lembrança viva e enaltecida. A cartilha também tem a função de ser um meio de educação patrimonial, criando reflexões sobre a importância do patrimônio. Além disso, apresenta grande potencial para auxílio turístico, com indicação de um roteiro diurno e um noturno, apontando desde locais culturais e tradicionais, como a loja Bombons Lalka, até lugares mais novos, como o Mirante da Sapucaí. Ademais, ao buscar a interdisciplinaridade entre a Arquitetura e a Arquivologia durante o processo de produção da cartilha, foi possível refletir sobre as implicações positivas da preservação patrimonial e as negativas do esquecimento da história, visando resguardar a memória. A escolha do bairro Floresta como objeto de estudo da cartilha deriva da grande importância histórica e urbana que o bairro possui para a cidade de Belo Horizonte, desde seu surgimento até os dias atuais. Hoje, apesar de ser um bairro tradicional e majoritariamente residencial, incorporou-se ao longo dos anos uma gama de

Primeira versão que foi publicada da cartilha, usada para a produção deste artigo. Disponível em: <https://www.ifmg.edu.br/portal/noticias/cartilha-desenvolvida-por-aluna-do-ifmg-retrata-o-patrimonio-cultural-do-bairro-floresta> Acesso em: 14 set. 2020. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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estabelecimentos comerciais e bares, indicando potencial turístico.


Outro motivo para a escolha do Floresta dentre os demais bairros da cidade foi o laço afetivo construído por nós, que moramos na região desde a infância. Logo, vivenciamos o dia a dia no bairro: estudamos na Escola Estadual Barão de Macaúbas durante todo o ensino fundamental, que é um prédio tombado pelo IEPHA, além de termos presenciado a reforma desse edifício que ocorreu entre 2012 e 2017; bem como frequentamos a Praça Comendador Negrão de Lima e os encontros de cães que ocorrem nela. Também visitamos a Rua Sapucaí para nos divertirmos e os comércios que fazem parte dos roteiros diurno e noturno da cartilha, além de passarmos diariamente por vários dos locais das fotos presentes na mesma. Portanto, crescer nesse bairro traz a necessidade de manter sua história resguardada. A cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte”, ademais dos pontos citados, pretende, dentre as mais diversas formas, ser uma maneira de agregar na educação patrimonial da população em geral, que é o público alvo da cartilha. Isso porque reúne diversas informações importantes acerca do tema, ao mesmo tempo em que utiliza uma linguagem de fácil entendimento. Além disso, apresenta diversos infográficos, de maneira que facilita a compreensão de informações que são discutidas majoritariamente na academia. A partir dos desafios encontrados para a produção da segunda versão da cartilha, viu-se a oportunidade de escrever sobre esse processo, mostrando como foi toda a construção desse projeto, além de abordar as dificuldades enfrentadas e apontar sugestões para essas.

Contextualização histórica

Projetada por Aarão Reis, Belo Horizonte foi uma das primeiras cidades planejadas do país. O projeto da capital teve influência da ordem positivista, (LACERDA, 2009), cuja filosofia deriva do filósofo francês Auguste Comte: “O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim”. Essa referência é vista em outras cidades no mesmo período, como Paris e Washington (FREITAS, 2007). Diante

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como era a antiga capital do estado, Ouro Preto, que era, e é, até os dias de hoje, uma

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disso, os republicanos queriam construir uma cidade divergente do passado barroco,

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cidade sinuosa (FREITAS, 2007, p. 138), o que reflete uma ausência de planejamento e organização do espaço urbano, além de ecoar os ares da antiga colônia. De acordo com Eduardo França, “Belo Horizonte foi erguida para, mais que simbolizar, marcar o projeto de modernidade republicana” (FRANÇA apud CALVO, 2013, p. 81)3, ou seja, a cidade foi traçada em uma malha urbana precisa, de ruas paralelas e quarteirões de medidas iguais, contornada pela Avenida do Contorno. Iglesias aponta que foi o traçado radiocêntrico que caracterizou o projeto da capital (FRANÇA apud FREITAS, 2007, p.139). Além disso, fazendo uma análise da influência progressista, o arquiteto e urbanista Rodrigo Andrade, em depoimento para uma matéria da Folha de São de Paulo, diz que o Parque Municipal representaria o amor; o traçado urbano geométrico a ordem; e a região suburbana, o progresso (SANTIAGO, 1997). Reis não queria que a cidade se expandisse muito e, com isso, foi dividida em três partes: área urbana, suburbana e rural. E, contrariando o senso comum de que a cidade foi projetada dentro dessa avenida, as regiões de fora desse perímetro já constavam em planta (SOUZA & CAJAZEIRO, 2009, p. 10). A área urbana seria a região central, que foi delimitada pela Avenida do Contorno. A suburbana e a rural eram, respectivamente, as proximidades da avenida e as regiões das chácaras, responsáveis por alimentar a cidade. Entretanto, o entorno da cidade não contava com uma infraestrutura adequada, uma vez que não seria ocupada naquele momento e, portanto, poderia ser desenvolvida posteriormente de acordo com a expansão da cidade (PASSOS, 2016). Diante do projeto, o bairro Floresta foi dividido pela Avenida do Contorno, transitando entre a área urbana e suburbana e, portanto, abrigando as mais diversas classes, desde a elite ouro-pretana, até os operários que construíram a cidade de fato, fazendo com que o bairro tivesse uma participação significativa no processo de construção desse município. Gustavo Starling4 reforça essa heterogeneidade de

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Devido a pandemia, não foi possível ter acesso às fontes primárias.

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moradores do bairro no início do século XX no trecho abaixo:


Assim, do outro lado do Ribeirão Arrudas, surge a Floresta [...] abrigando primeiro operários envolvidos na construção da nova Capital. Depois, vieram os funcionários da Rede, os profissionais liberais, enfim toda a gente que se mudava para a Capital e se via atraída pela possibilidade de morar barato, estrategicamente próximo ao centro da cidade e em lotes com características de chácara (STARLING, 1990 apud SOUZA & CAJAZEIRO, 2009, p. 10).

Além disso, vários imigrantes vieram para a cidade a fim de trabalhar na construção de Belo Horizonte, sendo a maioria composta por italianos. A região suburbana foi a escolhida para abrigar esses funcionários, especialmente o bairro Floresta. Esse processo de imigração foi resultado de vários acontecimentos da época, dentre eles a grande oferta de trabalho nas grandes indústrias de Belo Horizonte e a enorme crise econômica que a Europa enfrentava no início do século XX (FREITAS, 2007). Devido à imigração de povos europeus, a arquitetura do bairro teve presença dessas culturas, assim como a região central da cidade. É possível observar vários edifícios do bairro com influência do movimento artístico art decó, por exemplo. Esse movimento surgiu na Europa, principalmente na região da Itália, tendo características como arquitetura angular em V, além de simetria e entrada central (FREITAS, 2007). O casarão no início da Rua Sapucaí (figura 1) e o prédio situado na Rua Bueno Brandão (figura 2) são bons exemplos dessa arquitetura de influência europeia. Outra construção com esse mesmo estilo é a Residência Leandro da Silva Perdigão (1915) (figura 3), que foi construída pelo arquiteto Luiz Olivieri. Olivieri participou da Comissão Construtora da Nova Capital e foi quem fundou o primeiro escritório particular de arquitetura e desenho da capital, além de ter sido um dos

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pioneiros ao implantar o art decó em Belo Horizonte (FREITAS, 2007).

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Figura 1: Edifício Chagas Doria

Fonte: Alda Santos, 2020.

Figura 2: Prédio da Rua Bueno Brandão

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Fonte: Alda Santos, 2020.

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Figura 3: Residência Leandro da Silva Perdigão

Fonte: Alda Santos, 2020.

Graças a essa rica diversidade arquitetônica do bairro Floresta, em 1996, foi determinada a proteção do Conjunto Urbano Bairro Floresta pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte - CDPCM/BH, visando proteger a beleza e a história deste (SOUZA J & CAJAZEIRO, 2009). Hoje, o bairro possui mais de cento e dez bens tombados pelo IEPHA e IPHAN e uma gama de manifestações culturais, como os diversos eventos que acontecem na Praça Comendador Negrão de Lima e na rua Sapucaí. A história do bairro é muito rica e possui muitos bens culturais. Isso confirma a necessidade que temos de trabalhar a memória dessa região.

Processo de produção da cartilha O processo de produção da cartilha - e também do artigo - foi bem desafiador, principalmente devido ao período em que foi produzida: a Pandemia da COVID-19, que

olhar nas coisas que já conhecíamos sobre o Floresta. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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interessante. Fomos desafiadas a ver o bairro por outras perspectivas e aprofundar nosso

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atingiu o mundo todo. Houve muitas dificuldades, mas que deixaram a construção mais


Em primeiro momento, foi desenvolvida uma versão da cartilha para a atividade final da disciplina “Técnicas Retrospectivas” do quarto período do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFMG - Santa Luzia. No entanto, o prazo para entrega desse projeto era muito curto, então não foi possível colocar tudo o que foi estudado e que seria interessante de conter nela, como, por exemplo, a página da Praça Comendador Negrão de Lima, os roteiros turísticos e o acervo de fotografias. Por sermos moradoras do Floresta e estudantes de áreas relacionadas ao patrimônio cultural, conversamos diversas vezes sobre os bens culturais do bairro e a importância da preservação de sua memória. Durante a produção da primeira versão da cartilha, trocamos conhecimentos, textos e discutimos sobre o desenvolver dessa atividade. Foi nessa ocasião que surgiu a ideia de expandir essa cartilha para além de um trabalho acadêmico, firmando uma parceria. Com o resultado positivo da experiência no desenvolver da atividade da disciplina, além do claro potencial de aprimoramento e uso do material, em março de 2020 decidimos concretizar esse projeto e escrever sobre esse processo. Durante cerca de quase dois meses desenvolveu-se a segunda versão da cartilha com estudos mais aprofundados, identificando os desafios e potencialidades. Devido à pandemia da COVID-19 e, consequentemente, ao distanciamento social na tentativa de contenção da propagação do vírus, o meio de encontro para isso foi através de reuniões semanais por vídeo chamada. Nesses encontros, eram traçados os próximos passos e as tarefas eram divididas para cada uma, levando em conta as familiaridades, conhecimentos ou acesso às referências para estudar sobre. Além disso, a cada duas semanas, aproximadamente, um novo arquivo atualizado era enviado por e-mail à professora-orientadora Isadora Monteiro5. Para a nova versão da cartilha, foi possível aproveitar todo o material de estudo da primeira. Também se aprimorou os infográficos e acrescentaram-se outras informações, como, por exemplo, a página dedicada à Praça Comendador Negrão de Lima. Além disso, foi desenvolvida uma linha do tempo através de fotografias do bairro, criando um vasto acervo, bem como acrescentado os roteiros turísticos com algumas categorias para os estabelecimentos que fazem parte deles, como “música ao

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Agradecimentos à Isadora Monteiro e à Rebecca Lodoli pelo suporte neste trabalho.

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vivo” e “comida vegetariana”.


Foram apresentadas figuras importantíssimas para a cultura e história brasileira que moravam no bairro: Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava. Drummond, inclusive, escreveu o poema “A Casa sem Raiz”6, sobre a casa em que morou no Floresta, que está ao final da cartilha junto com um retrato do poeta mineiro. Essa casa foi demolida e não foi possível encontrar fotografias dela, o que poderia ter sido evitado caso existisse um site colaborativo sobre o bairro Floresta, de forma que todos os moradores pudessem reconhecer com mais clareza a importância da região em que moram (falaremos mais disso adiante). Devido às políticas sanitárias que restringiram o acesso às ruas e aos estabelecimentos não essenciais, grande parte dos locais foi fechada por certo período, incluindo arquivos, museus e outras instituições que seriam fundamentais para as pesquisas, o que limitou as fontes de consulta. Inclusive, algumas das referências bibliográficas precisaram ser APUD (citação de citação) devido à falta de acesso direto a elas, por se encontrarem em arquivos da cidade ou bibliotecas de instituições. Durante os meses de trabalho, as pesquisas precisaram ser feitas apenas na internet, por meio de sites de arquivos, além de artigos sobre Belo Horizonte, o bairro Floresta e sobre a questão de patrimônio e de como ela é abordada no Brasil. Além disso, foram feitas entrevistas com moradores, ex-moradores e estabelecimentos do bairro, a fim de coletar informações que pudessem agregar valor ao projeto. A parte mais difícil do desenvolvimento da cartilha e do artigo foi ter criatividade para buscar todo tipo de informação que fosse pertinente usando majoritariamente a internet. Com a impossibilidade de sair às ruas, o acesso a informações que estariam em arquivos e museus foi impossibilitado. Claro que documentos como alguns decretos, mapas, imagens e grande parte da história da região ainda foram possíveis de encontrar nos sites das instituições e outras páginas, mas uma pesquisa bastante aprofundada como havia sido planejada de início não foi possível. Para tornar a cartilha mais atrativa e lúdica, as fotografias do bairro estão em ordem cronológica, contando sua história por meio de imagens e mostrando as alterações do espaço ao longo do tempo. Foram usadas imagens das construções dos viadutos Santa Tereza e Floresta, da Igreja Nossa Senhora das Dores e de outros pontos

JONAL DA FLORESTA BH. Morador mais ilustre do bairro Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: <http://jornaldaflorestabh.com.br/morador-mais-ilustre-do-bairro-carlos-drummond-de-andrade-completaria-110-anos-neste-mes/> Acesso em: 20 jun. 2020. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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famosos da região, além de imagens atuais que apresentam a essência do Floresta. A


maioria das fotografias foi retirada de páginas do Facebook que contam a história de Belo Horizonte. Encontrá-las foi uma caça ao tesouro, principalmente em boa qualidade, ainda mais se tratando de imagens antigas. Foi ainda mais difícil encontrar as datas e as pessoas responsáveis por algumas fotos. Logo, essa busca pelas fotografias retrata bem a real dificuldade de acessá-las, além de suas fontes. A cartilha foi construída de forma direta e didática, de maneira a incentivar o leitor, seja ele morador ou visitante, a conhecer mais profundamente o bairro e indiretamente seu patrimônio cultural. Sabe-se que informações como essas são predominantemente apresentadas em linguagem científica e, portanto, não são trabalhadas de forma que uma pessoa leiga consiga entender. Diante disso, o patrimônio cultural e suas abrangências são abordados de forma prática e clara na cartilha, fazendo uso de imagens, desenhos e infográficos com intuito de facilitar a compreensão e cativar o leitor e, ao mesmo tempo, despertar nele o interesse de buscar mais sobre o assunto. Assim, sensibilizar o leitor a olhar o bairro com sentimentos de proteção e preservação de seu patrimônio. Todos esses recursos são maneiras de conectar o leitor com a memória do bairro e seu patrimônio cultural. Como apontado por Michael Pollak (1989, p. 9), a memória é “uma operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar”. Nesse sentido, quando a pessoa se conecta com o bairro como um todo, os traços identitários do bairro são preservados. Logo, a memória é essencial na construção identitária das próximas gerações de moradores do bairro Floresta, já que a identidade é o sentimento coletivo de se sentir pertencente a uma determinada comunidade, um sentimento de vínculo coletivo e que permite o reconhecimento da parte com o todo. Pollak (1989) indica que as identidades se constroem a partir de visões do passado, funcionando como pontos de referência para grupos específicos, fornecendo coerência. A memória é a preservação, evocação e atualização de informações do passado, convidando a comunidade à reflexão, com a possibilidade de observar por um viés pedagógico. Esse é o exercício proposto na cartilha: reviver e reconhecer a cultura e a história daquele espaço, tratando o patrimônio cultural de forma democrática e

e a história. O objetivo é fazer com que o leitor se interesse pela memória do Floresta e REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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A cartilha considera a possibilidade de identificação do indivíduo com a cultura

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simples.


por seu patrimônio cultural. Portanto, apresentam-se roteiros que indicam locais muito frequentados por moradores e visitantes, como o Mirante da Sapucaí, seus bares e restaurantes, a Igreja Nossa Senhora das Dores, o Viaduto Santa Tereza e outros pontos comerciais que fazem parte da história do local. Le Goff mostra que “a memória como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1981, p. 419). Consequentemente, quando a pessoa reconhece o nome desses lugares, citados nos roteiros, ela automaticamente se interessa e se identifica com aquele espaço, trazendo à tona possíveis momentos já vividos ali e retomando sua memória, mantendoa viva. Como exemplo disso, após a publicação desse material, vários moradores do bairro comentaram com as autoras e/ou nas postagens nas redes sociais sobre como eles se sentiram reconhecidos ao ver a história do lugar em que vivem sendo estudada, bem como terem descoberto informações que nunca imaginaram sobre o bairro. Além disso, a cartilha despertou curiosidade em algumas pessoas que não residem na região, deixando-as interessadas em visitar os locais apresentados no projeto. Como o objetivo é democratizar o acesso a esse assunto, a cartilha aponta maneiras de suavizar a linguagem e tornar a comunicação mais atrativa. Para isso, uma das estratégias foi o uso do infográfico. Valdenise Schmitt (2006, p. 15) diz que a “infografia possibilita uma apresentação atraente de informações consideradas difíceis de compreensão, utilizando imagem e informação, conjugadas de forma harmoniosa”. Milheiro (2013, p. 10) complementa dizendo que esse recurso “expõe um potencial que contribui para a democratização do conhecimento científico”. A partir das definições apresentadas, pode-se dizer que esse método é excelente para disseminar uma informação complexa e técnica - como é o caso das questões envolvendo o patrimônio cultural - de uma forma simples, com o intuito de cativar o público leigo. Outro ponto importante dessa produção foi a oportunidade de conhecer mais acerca do bairro em que crescemos. Isso nos fez enxergar com outros olhos os locais que frequentamos diariamente, podendo então entender as razões desses lugares serem como são ou visualizar como já foram cultivando a nossa memória relativa ao bairro.

como quais seriam as mais interessantes para serem incluídas. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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informações que estão na cartilha chegassem para nós, como moradoras do bairro, bem

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Isso nos guiou o tempo todo, já que podíamos nos questionar como gostaríamos que as


Apesar dos pontos positivos retratados, a busca por informações ficou muito limitada ao meio digital, devido à pandemia do coronavírus. Outras deficiências foram apontadas, como: o acesso à memória do bairro, a falta de investimento no meio virtual, que comprometeu o acesso às informações mais específicas sobre o bairro, e principalmente sobre seu patrimônio cultural. Tudo isso somado, dificultou o nosso trabalho.

Patrimônio cultural do bairro floresta – acesso e visibilidade Com todas as situações que ocorreram durante o processo de produção da cartilha, como a dificuldade de encontrar fotografias e partes da história do bairro Floresta, ficou muito clara a necessidade de uma organização que dispusesse da maior quantidade de dados centralizados sobre a região. Essa poderia ser uma entidade formada por moradores para compartilhar arquivos pessoais sobre o patrimônio cultural do bairro em um repositório digital, um arquivo compartilhado, uma atualização ou uma nova coleção de registros sobre os bairros da cidade no site da PBH. Repositório digital é uma “coleção” de informações digitais, que pode ser construído de forma colaborativa e com certo controle sobre o conteúdo disponibilizado, como o Wikipédia, por exemplo (MARTINS; NUNES; RODRIGUES, 2008). O conteúdo pode ser atualizado pelo autor, proprietário ou por terceiros. Essa opção é ideal para deixar essas informações disponibilizadas para todo o público interessado e não só os moradores. O uso de uma rede de arquivo compartilhado seria interessante, principalmente, para a troca de arquivos pessoais entre os moradores e ex-moradores do bairro. Esse sistema, de forma resumida, possibilita disponibilizar arquivos para outros usuários pela internet. Há alguns tipos de compartilhamento de arquivos, por exemplo, o peer to peer (ponto a ponto), que serve para compartilhar arquivos entre computadores conectados por meio de softwares (ROCHA; BONA, 2009). Entretanto, uma indicação para informações e documentos como do bairro Floresta seria o compartilhamento de arquivos por meio de serviços de hospedagem, na qual esses arquivos ficam

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nuvem.

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armazenados em um servidor privado, como drives e sistemas para armazenamento em

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O conceito de nuvem é explicado por Andrade (2015) como um formato de armazenamento em um servidor que está sempre disponível para acesso via qualquer dispositivo. No entanto, o armazenamento em nuvem não seria ideal porque nem todos conseguem acessar devido às limitações de uso, como a quantidade de usuários que podem acessar a pasta e a quantidade de megabytes disponíveis. Além disso, ainda há algumas desavenças, como a perda desses dados caso o servidor saia do ar, ou então por algum motivo a informação seja deletada por alguém e não haja um backup. Considerando a importância do bairro para Belo Horizonte, e para que mais pessoas tivessem acesso a essas informações e não somente os moradores, uma sugestão interessante seria a produção de um website que compile a maior quantidade de dados sobre o bairro e sua cultura, assim como a cartilha apresentada. Os responsáveis por fazer esse projeto acontecer poderiam ser instituições como museus, arquivos, a Fundação Municipal de Cultura (FMC) e outros órgãos públicos, unidos com um corpo de moradores do Floresta. Todas essas informações (documentos e imagens) ficariam sob a responsabilidade de alguma dessas instituições públicas, garantindo a segurança de que esses dados não seriam perdidos por alguma falha de servidor ou afins. Essa ação seria uma forma de reunir informações do bairro de maneira a conectar as histórias dos moradores, além de apresentar fatos históricos do Floresta para quem tivesse interesse. Além disso, o site poderia ser atualizado periodicamente com informações sobre seus movimentos culturais atuais. O website pode ser interativo, como um repositório digital, de modo que usuários possam comentar as publicações e apresentar e/ou sugerir algum fato que possa fazer parte dessa coletânea. A participação da comunidade na construção da memória do bairro é fundamental. Quando a comunidade é convidada a pensar e a construir esses registros de memória, aliada a essas novas plataformas de democratização, como o website, o apagamento das narrativas sobre o bairro, assim como das informações sobre seu patrimônio cultural, começam a ser revertidos e as vozes dessas pessoas ganham espaço para contar as histórias que foram silenciadas no passado. Um exemplo disso ocorreu quando foi feito contato com algumas pessoas para autorização de uso das fotos publicadas por elas nas redes sociais, além das entrevistas

participarem desse projeto. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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lisonjeadas, pertencentes, reconhecidas como parte do bairro e importantes por

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realizadas com alguns moradores. Essas pessoas se sentiram, de certa maneira,


Durante as pesquisas foram localizados alguns sites de moradores ou exmoradores7 que contam um pouco a história do Floresta, mas a maioria trata da Regional Leste de BH, abrindo brechas para abordar os bairros separadamente. Foi difícil encontrar algo exclusivo sobre o bairro Floresta. Mesmo assim, continua sendo uma forma de a comunidade tentar se sentir pertencente e ajudar os outros a se identificarem com o local e com sua história, mesmo que, em um âmbito geral, trate-se da região Leste de Belo Horizonte como um todo.

Conclusão Considera-se que o acesso à cultura é um direito garantido pelo artigo 215 da Constituição Federal, no qual se lê: § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - Defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - Produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - Democratização do acesso aos bens de cultura; V - Valorização da diversidade étnica e regional. (BRASIL, 1988, art. 215)

Logo, podemos afirmar que é necessária a preservação do patrimônio cultural, além do acesso a discussões sobre esse. Além disso, tendo em conta o patrimônio como representação da memória e que esta vincula os indivíduos à experiências de vivências individuais e coletivas, que caracterizam a trajetória de vida, fica evidente a importância de alguma ação de educação patrimonial e preservação do mesmo vindo da esfera pública, de maneira a impedir o silenciamento das narrativas vindas dos moradores. Tendo isso em vista, a cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte” espera ajudar a comunidade no acesso às discussões sobre a preservação do patrimônio cultural do bairro de uma forma democrática, discutindo assuntos científicos de forma que o público leigo entenda. Também pretende ser um instrumento de reflexão sobre educação patrimonial. Além disso, por ser um compilado de informações

FOTOS ANTIGAS DE BELO HORIZONTE. Belo Horizonte, 25 maio de 2020. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/FotosAntigasDeBeloHorizonte/photos/> Acesso em: 25 maio 2020. BAIRROS DE BELO HORIZONTE. Disponivel em: <https://bairrosdebelohorizonte.webnode.com.br/bairros%20da%20regi%C3%A3o%20leste-/> Acesso em: 25 maio 2020. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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importantes, o leitor é instigado a refletir sobre a significância do bairro.


A cartilha ainda apresenta recursos que despertam familiaridade com o espaço, como fotografias e roteiros turísticos que possibilitam que o leitor conheça de fato o bairro. Isso ocorre, pois, o patrimônio cultural implica sentidos de pertencimento e permanência, e preservá-lo é preservar o próprio valor do indivíduo. Todavia, a falta do acesso democrático a ele dificulta a identificação com o ambiente, o social e também com a memória. Esta cartilha espera ajudar a comunidade no acesso às discussões sobre a preservação do patrimônio cultural do bairro de uma forma democrática, discutindo assuntos científicos de forma que o público leigo entenda. Também pretende ser um instrumento de reflexão sobre Educação Patrimonial. Além disso, por ser um compilado de informações importantes, o leitor é instigado a refletir sobre a significância do bairro. Portanto, seria essencial o incentivo e apoio do Estado e das organizações envolvidas com a cultura e o patrimônio para criação de um website ou outros materiais que dispusesse dessa mesma intenção, como a cartilha “Patrimônio Cultural do Bairro Floresta - Belo Horizonte”, para a preservação do patrimônio cultural do bairro Floresta.

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PATRIMÔNIO CULTURAL DE BELO HORIZONTE NA FORMAÇÃO DA ATITUDE HISTORIADORA Patrimonio cultural de Belo Horizonte en la formación de la actitud historiadora

Marco Antônio Silva* RESUMO: Este artigo discute o Patrimônio Cultural enquanto objeto gerador de conhecimento, reflexões e sua importância para formação e desenvolvimento de uma Atitude Historiadora. Aponta sua importância para o cumprimento das obrigações de uma cidade educadora como Belo Horizonte. Discute o conceito de Atitude Historiadora, uma das principais competências que os estudantes da Educação Básica devem desenvolver por meio do Ensino de História segundo a BNCC. Demonstra a sintonia entre os conceitos de Atitude Historiadora, Letramento em História e Consciência Histórica. Apresenta a Praça da Estação e seu potencial pedagógico para ser explorado na perspectiva de objeto gerador. Apesar dos processos de resistência e investidas na desvalorização da História e do Ensino de História, demonstra a importância e o significado da disciplina na formação identitária, cidadã, crítica e criativa de estudantes da Educação Básica. Formação que está sintonizada com a legislação, as diretrizes educacionais vigentes e a epistemologia produzida no campo acadêmico. Palavras-chave: Ensino de História; Atitude Historiadora; Patrimônio Cultural.

RESUMEN: El artículo discute el Patrimonio Cultural como objeto generador de conocimiento, de reflexiones y su importancia para la formación y el desarrollo de una Actitud Historiadora. Apunta su importancia para el cumplimiento de las obligaciones de una ciudad educadora como Belo Horizonte. Discute el concepto de Actitud Historiadora, una de las principales competencias que los estudiantes de la Educación Básica deben desarrollar por medio de la Enseñanza de Historia según la BNCC. Demuestra la sintonía entre los conceptos de Actitud Historiadora, Alfabetización en Historia y Consciencia Histórica. Presenta la “Praça da Estação” y su potencial pedagógico a ser explotado en la perspectiva del objeto generador. A pesar de los procesos de resistencia e intentos en la desvalorización de la Historia y de la Enseñanza de Historia, demuestra la importancia y el significado de las clases de Historia en la formación de identidades, en la ciudadanía, en la crítica y en la creatividad de estudiantes de la Educación Básica. La formación está en sintonía con la legislación, las directrices educacionales vigentes y la epistemología producida en el campo académico. Palabras clave: Enseñanza de Historia; Actitud Historiadora; Patrimonio Cultural.

Introdução Atualmente existem 491 Cidades Educadoras espalhadas por 37 países. Belo Horizonte é um dos 14 municípios brasileiros que porta esse título. O primeiro princípio

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Historiador da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público de Belo Horizonte, Bacharel, Mestre e Doutor em Educação pela UFMG. E-mail: marco.a.silva@pbh.gov.br REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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da Declaração de Barcelona, ou Carta das Cidades Educadoras, aponta que:


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Todos os habitantes de uma cidade terão o direito de desfrutar, em condições de liberdade e igualdade, os meios e oportunidades de formação, entretenimento e desenvolvimento pessoal que ela lhes oferece. O direito a uma cidade educadora é proposto como uma extensão do direito fundamental de todos os indivíduos à educação. A cidade educadora renova permanentemente o seu compromisso em formar nos aspectos, os mais diversos, os seus habitantes ao longo da vida. E para que isto seja possível, deverá ter em conta todos os grupos, com suas necessidades particulares (CIDADES EDUCADORAS, 2004).

A compreensão da cidade em sua complexidade, diversidade, harmonia e conflitos está bastante associada ao conhecimento, fruição e leitura crítica de seu patrimônio cultural. Formado pelas manifestações mais significativas da cultura de um povo, de qualquer posição social, política e econômica, região, crença e valores, o Patrimônio Cultural está materializado em objetos como construções, monumentos e sítios arqueológicos ou nos bens imateriais como tradições, festejos e práticas culturais. Cabe registrar, mesmo não sendo este o objeto central deste artigo, que o próprio conceito de Patrimônio Cultural é alvo de disputas e ressemantizações. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), uma agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), maior órgão regulador do Patrimônio em nível mundial, por exemplo, desde a década de 1950 sofre inúmeras pressões de países orientais e em desenvolvimento para alargar os parâmetros conceituais e as políticas patrimoniais que se alicerçavam em uma concepção bastante eurocêntrica. Somente em 1989, com o documento Recomendação para a salvaguarda da cultura tradicional e popular, a Unesco passou a considerar que a cultura tradicional e popular integra o patrimônio universal da humanidade e é um poderoso meio de aproximação entre os diferentes povos/grupos sociais e de afirmação da sua identidade cultural. Além disso, que a extrema fragilidade da cultura tradicional e popular, particularmente quando ligada às tradições orais, possui um risco iminente de se perder e, por isso, merece políticas eficazes de salvaguarda. E foi somente em 2003 que foram apresentados pela agência órgão de forma mais sistemática na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial uma conceituação que abarca a

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(VELASCO, 2012).

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complexidade e a incidência de múltiplos processos que formam esse patrimônio

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No Brasil, a partir da década de 1970, a luta de movimentos sociais organizados de trabalhadores, mulheres, negros e índios pela redemocratização do país pressionaram também pelo “resgate” das memórias oficialmente silenciadas em nossa história. Nesse contexto, forjaram a construção da expressão patrimônio cultural não consagrado para designar bens culturais que, até então, não integravam o universo do patrimônio histórico e artístico nacional como as produções indígenas, afro-brasileiras e de populações rurais e imigrantes (ORIÁ; PEREIRA, 2012). Nesse sentido, ao trabalhar com o conceito de Patrimônio Cultural o professor deve saber que este não é um conceito pacificado nas discussões. As cidades, por sua vez, são palcos de vivências, realizações, manifestações humanas em sua diversidade e conflitos, espaços da construção da história e, consequentemente, de vestígios de memória. Mais do que isso, são um misto de passado e presente que se entrelaçam de forma imbricada e “sub-reptícia” diante de seus observadores. Como bem sintetizado por Ítalo Calvino: a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990, p. 14).

A educação formal e, sobretudo por meio do ensino de História, é um recurso bastante potente para permitir que o indivíduo aprenda a usufruir e a ler criticamente a cidade por meio de seu patrimônio cultural. Em particular, a escola brasileira que praticamente alcançou nas últimas décadas a universalização do Ensino Fundamental e ampliou significativamente o número de estudantes com acesso ao Ensino Médio. Em 2012, 96,4% dos brasileiros entre 7 e 14 anos frequentavam o Ensino Fundamental, enquanto 83% dos jovens entre 15 e 17 anos cursavam o Ensino Médio (OLIVEIRA, 2012). Ricardo Pátaro (2018) afirma que a democratização da escola básica, que promoveu abertura a parcelas da população antes excluídas, também ressignificou o papel

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da escola:

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Se, até então, o objetivo era ensinar conteúdos a estudantes de uma elite selecionada, a democratização levou à escola crianças pouco habituadas a esse universo, dando visibilidade à necessidade de repensar os objetivos da escola e responsabilizar-se pela aprendizagem de um novo perfil de estudantes – tarefa diferente daquela desenvolvida anteriormente pelas escolas. (PATARO, 2018, p. 27).

Nesse novo contexto, possibilitar a vivência da cidade em suas múltiplas dimensões torna-se uma tarefa fundamental da escola. Acessar os espaços até então restritos a determinadas parcelas da sociedade é um direito que se efetiva de forma mais intensa com o processo de democratização do acesso à educação. Como afirma Renato Cordeiro (1994) a cidade se constitui por um conjunto de coisas vistas ou ouvidas que formam um catálogo de emblemas. O ensino de História, que não é o único responsável pelo trabalho com o patrimônio, é uma peça essencial nessa engrenagem. A História pode oferecer uma gama de possibilidades de conhecimento, acesso, fruição e leitura crítica destes emblemas citadinos. Nesta perspectiva, serão discutidos neste artigo algumas possibilidades de utilização do Patrimônio Cultural em Belo Horizonte como recurso pedagógico para formação de uma atitude historiadora, competência apontada como um dos objetivos da disciplina na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento oficial mais importante na referência para desenvolvimento do currículo da disciplina. Para tanto, necessário se faz uma reflexão sobre o contexto social e político no qual este documento foi construído e o Ensino de História se insere. Nos últimos anos, assistiu-se a um avanço inconteste e intenso da onda neoconservadora em várias esferas no cenário educacional brasileiro. Os inúmeros projetos de leis municipais, estaduais e federais sintonizados com o movimento Escola Sem Partido, as pressões intensas durante os processos de elaboração e definições no Plano Nacional de Educação e da Base Nacional Comum Curricular, que foram complementados por ações localizadas, demonstram uma investida sistemática dos neoconservadores visando uma maior participação na definição e nos rumos da política educacional do país (LIMA; HYPOLITO, 2019). Na esteira deste movimento, o veto presidencial que retardou a regulamentação

Legislativo Federal há pelo menos cinquenta anos. A primeira iniciativa para

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regulamentar a profissão foi apresentada à Câmara Federal em 1968 e, como tantas outras

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da profissão de historiador merece registro. Essa reivindicação tramita no Poder

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que a sucederam, foi preterida, sucumbindo nos trâmites burocráticos do Poder Legislativo e engavetada. A aprovação na Câmara e Senado do Projeto de Lei 368/2009, acrescido do texto substitutivo 3/2015, de forma intensa e justa, foi bastante comemorada pelos profissionais da área e entidades de classe. Entretanto, o veto da Presidência da República em abril de 2020 à proposta advinda do Congresso Nacional, tornou o caminho um pouco mais longo. No campo do Ensino de História, sem alicerce epistemológico, a defesa de um suposto papel de neutralidade de professores, livros e materiais didáticos também ocupou um espaço significativo na agenda neoconservadora. Esta não é também uma prática política recente. Os processos de intervenção autoritária e censura da última ditadura militar brasileira, por exemplo, atingiram em cheio o ensino da disciplina. A introdução das disciplinas de Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política Brasileira e a criação dos chamados Estudos Sociais (com seus currículos definidos a partir dos ditames do Ministério da Educação) reduziram significativamente a autonomia e um trabalho mais crítico dos professores. Entretanto, mesmo colocado em xeque em diversos momentos da história, o ensino de história continua sendo um recurso fundamental para garantia de uma educação que contemple a leitura de mundo para além do senso comum. Esse talvez seja um dos pilares que garantiram a sua permanência de forma crítica e criativa nos currículos escolares, mesmo em períodos em que a democracia esteve sufocada em nossa história republicana. Além disso, as reações às investidas neoconservadoras obtiveram avanços significativos. O recente posicionamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal pela inconstitucionalidade da Escola Sem Partido parece ter arrefecido o movimento em busca de uma suposta escola ideologicamente neutra. Acrescenta-se a este contexto, as pressões vitoriosas de historiadores e suas entidades de classe que convenceram os parlamentares do Congresso Nacional a derrubar o veto presidencial à regulamentação da profissão. Enfim, depois de 52 anos de espera, a profissão foi regulamentada no dia 18 de agosto de 2020 por meio da lei nº 14.038, publicada no Diário Oficial da União. Cabe ressaltar também que dentro do jogo de forças políticas e sociais que atuam no campo da educação, as pressões de pesquisadores, professores e entidades da

ensino laico, plural e livre, deixou registros incontestes no documento final da Base

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Nacional Comum Curricular (BNCC). Mas não se pode negar que em diversos aspectos

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sociedade civil comprometidas com as conquistas democráticas e a construção de um

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o documento não encontrou uma sintonia plena com as perspectivas historicamente defendidas e construídas por estes setores e em diversos aspectos tornou-se alvo de polêmicas e descontentamento (SILVA, 2017; SILVA, 2015; FERREIRA, 2015; CRUZ, 2017). A proposta de uma organização de conteúdo em uma perspectiva bastante linear, evolutiva e eurocêntrica talvez seja o ponto de maior discordância entre os pesquisadores e os estudiosos do ensino de História em relação ao texto final homologado em 2017. Por outro lado, existem inúmeras perspectivas que apontam possibilidades de um trabalho pedagógico visando uma educação emancipadora. Em seu bojo, o texto da BNCC possui um caráter polifônico, ou seja, apresenta elementos que contemplam diversas perspectivas. A polifonia é um conceito produzido por Mikhail Bakhtin, originalmente a partir das observações sobre os romances de Dostoievski e que, posteriormente, tornou-se categoria de análise do discurso na produção acadêmica. Um texto polifônico expressa diversas vozes que nem sempre se sujeitam, por meio de diferentes subterfúgios, a um centro do qual emanariam a palavra final. Se levarmos em conta apenas o número de pessoas envolvidas na produção da BNCC e as discussões e embates produzidos por ocasião da sua construção, já é de se esperar uma polifonia textual. Nesse contexto, é importante registrar que em diversos aspectos o professor de História encontra na BNCC referências para um trabalho crítico e criativo: (...) espera-se que o conhecimento histórico seja tratado como uma forma de pensar, entre várias; uma forma de indagar sobre as coisas do passado e do presente, de construir explicações, desvendar significados, compor e decompor interpretações, em movimento contínuo ao longo do tempo e do espaço. Enfim, trata-se de transformar a história em ferramenta a serviço de um discernimento maior sobre as experiências humanas e as sociedades em que se vive. Retornando ao ambiente escolar, a BNCC pretende estimular ações nas quais professores e alunos sejam sujeitos do processo de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, eles próprios devem assumir uma atitude historiadora diante dos conteúdos propostos no âmbito do Ensino Fundamental. (BNCC, 2017. p. 401. grifos nossos)

Conhecimento histórico, Ensino de História, Atitude historiadora e letramento em História

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interpretação e análise de documentos. Os debates sobre documento histórico produziram

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O processo de construção do conhecimento histórico se assenta na seleção,

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uma conceituação dotada de uma grande amplitude no século XX. Para Lucien Febvre, por exemplo, a historiografia se faz não apenas com os documentos escritos, mas: com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem... (FEBVRE, 1989, p. 249).

As diversas formas de registros produzidas ou deixadas pelo homem recebem também outras denominações na historiografia: fonte histórica, documento, registro, vestígio são todos termos correlatos para definir tudo aquilo produzido pela humanidade no tempo e no espaço; a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve de base para a construção do conhecimento histórico. (...) Vestígio é a palavra atualmente preferida pelos historiadores que defendem que a fonte histórica é mais do que o documento oficial: os mitos, a fala, o cinema, a literatura, tudo isso, como produtos humanos, torna-se fonte para o conhecimento da história. (SILVA; SILVA, 2009, p. 158).

Um objeto produzido pelo homem em seu processo de vivência não é, por si só, um documento histórico. Este tornar-se documento se for alvo das análises produzidas pelo historiador, ou seja, o uso enquanto recurso historiográfico é que imprime um caráter de documento histórico ao objeto. Os documentos históricos, por sua vez, não são códigos probatórios de um processo de vivência a serem desvendados a posteriori. Eles não trazem uma “verdade” velada ou mais explícita a ser descoberta pelo historiador. O historiador, munido de conhecimentos advindos da epistemologia da História, seleciona os documentos e o que analisa em cada um deles. “O historiador não faz o documento falar: é o historiador quem fala e a explicitação de seus critérios e procedimentos é fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda operação com documentos, portanto, é de natureza retórica.” (MENEZES, 1998, p. 95). Nesse sentido, não existe uma única narrativa para descrever um processo histórico. Cada processo pode contar com narrativas plurais alicerçadas nos trabalhos de diversos historiadores. A retórica construída a partir da visão dos historiadores, porém,

em um conjunto extremamente estruturado de conhecimentos historiográficos que

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possibilitam interpretações consistentes de uma dada realidade.

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não é uma pura ficção ou uma produção imaginária. Esta construção discursiva se alicerça

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O ensino de História, por sua vez, não deve apresentar também uma versão única, pronta e acabada para o processo histórico. Tal qual a produção do conhecimento pelos historiadores, a produção do conhecimento na sala de aula deve pautar-se pela “(re)construção” dos processos que levam à produção do conhecimento histórico. Nesse sentido, o estudante apreende uma “metodologia de leitura consistente da história” exercitada em contextos sócio-históricos diversos e que poderá ser aplicada em diversas situações. Cabe registrar que o Ensino de História na Educação Básica não tem por objetivo levar os estudantes a produzirem uma narrativa historiográfica tal qual a construída pelos historiadores. Nem tampouco transformar os estudantes em “mini historiadores”. A Base Nacional Comum Curricular chama a atenção para a importância do conhecimento historiográfico oferecer ao sujeito suporte para a leitura das relações passado/presente. Quanto maior for o domínio do sistema de significações ou relações lógicas constituídas pela historiografia, maior será a consistência dessa leitura. “A relação passado/presente não se processa de forma automática, pois exige o conhecimento de referências teóricas capazes de trazer inteligibilidade aos objetos históricos selecionados.” (BNCC, p. 397). Em outras palavras, o estudante deve aprender uma metodologia que dialoga com as técnicas da historiografia profissional e que lhe permite uma leitura de mundo que supera o senso comum. Nesse sentido, este aporte historiográfico contribui para a ancoragem das análises empreendidas pelo sujeito, mesmo que este não seja um especialista na área. Como apontam as proposições e orientações advindas da BNCC, a construção e o desenvolvimento de uma atitude historiadora de estudantes e professores diante da gama de conteúdos propostos para Educação Básica é um objetivo central do Ensino de História. É essa atitude historiadora que os “não-historiadores” podem adotar para a leitura sócio histórica do mundo. Mas o que seria essa atitude historiadora? A atitude historiadora pode ser compreendida como um conjunto de competências a serem adquiridas por meio do ensino de história e que possibilitam uma leitura mais sistemática, fundamentada e crítica da História. O desenvolvimento destas competências, por sua vez, se dá a partir da

históricos, sociais e culturais.” (BNCC, 2017, p. 401). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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“realidade social e o universo da comunidade escolar, bem como seus referenciais

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experiência de alunos e professores. Experiência esta que está diretamente relacionada à


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A BNCC sugere que se adote uma metodologia de exploração didático/pedagógica de objetos selecionados para compor os estudos propostos no conteúdo curricular que possa contribuir para o desenvolvimento de uma série de operações mentais. Operações estas que devem ir dos níveis de menor complexidade cognitiva aos mais elaborados. Quando a seleção destes objetos, contextos e situações se dá a partir da realidade cultural dos sujeitos envolvidos no processo de ensino aprendizagem a dinâmica de construção do conhecimento se torna bastante promissora. Existe uma sintonia fina entre a chamada atitude historiadora proposta na BNCC e a produção acadêmica no campo do Ensino de História. Jörn Rüsen (2006) afirma que o aprendizado da História não deve se limitar à aquisição do conhecimento histórico como uma série de fatos objetivos. Para além dessa perspectiva, o conhecimento histórico deve contribuir para a formação da chamada Consciência Histórica, ou seja, atuar como regra nos arranjos mentais tornando-se, de forma dinâmica, parte integrante da vida do sujeito. Na perspectiva de Rüsen, o conhecimento histórico não significa simplesmente o acúmulo de uma quantidade de informações relacionadas a fatos do passado. Este conhecimento deve servir como uma ferramenta de orientação temporal que levaria a uma leitura do mundo no presente e embasaria uma avaliação quanto às perspectivas de futuro. Essa leitura do presente e a construção teórica de perspectivas para o futuro, por sua vez, estariam alicerçadas nas experiências humanas do passado. Desse modo, aqueles que desenvolveram uma consciência histórica não conheceriam apenas o passado, mas utilizariam esse conhecimento como meio para auxiliar a compreensão do presente e/ou “antecipar” no plano mental o futuro em forma de previsão pertinente (Barca, 2004; 2010). Essa estrutura mental seria aplicada em diversas situações sociais que demandam um conhecimento histórico para sua compreensão. Para citar eventos mais conhecidos, vamos fazer referências a algumas cerimônias e festividades cívicas e políticas. No caso brasileiro, poderíamos falar das comemorações pela independência política no dia 7 de setembro (que completará seu bicentenário em 2022), em datas como os quinhentos anos da chegada dos portugueses ao Brasil, os duzentos anos da chegada da Família Real, o 20 de novembro (dia da Consciência Negra) e nos eventos do dia do trabalhador, dentre

O conhecimento histórico também é relevante na compreensão de exposições em

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museus ou filmes do gênero histórico e sociocultural. Poderíamos ainda citar, dentre

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outros.

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outros, os álbuns familiares de fotografia, a literatura, os jogos eletrônicos com enredos e tramas de caráter histórico e sociocultural. E, por fim, cabe registrar a importância basilar do conhecimento histórico na compreensão e interpretação crítica do Patrimônio Cultural que é, em última instância, uma narrativa histórica. Em suma, as narrativas históricas estão presentes por toda a parte. O conhecimento histórico, na perspectiva da consciência histórica, possibilita ao sujeito estabelecer uma interação mental durante as leituras das narrativas históricas com o conhecimento histórico já acumulado estabelecendo, assim, uma orientação temporal e permitindo a construção de novos significados. O sujeito que possui consciência histórica não se limita apenas a somar um novo conhecimento a outros tantos que já possui quando se depara com uma nova realidade. Mais do que isso, compreende, interpreta e interage com a realidade na qual está inserido, a partir de seu conhecimento histórico que, por sua vez, é ampliado diante de um novo conhecimento que lhe é apresentado. É importante ressaltar que os conhecimentos históricos não são utilizados para melhor compreender o mundo apenas nas situações em que as narrativas históricas são mais explícitas. O conhecimento histórico é mobilizado em outros contextos como, por exemplo, nas interpretações mais elaboradas de muitos noticiários veiculados pela imprensa escrita e midiática (jornais, revistas, televisão), da historicidade presente nos gêneros musicais como samba, tropicalismo, bossa-nova, hip-hop, forró, música erudita e em outros, tanto nas letras, quanto nos ritmos, nas melodias e instrumentos musicais utilizados. Além disso, o conhecimento histórico possibilita ao sujeito analisar a sua própria história de forma contextualizada. Nesse sentido, torna-se uma importante ferramenta de compreensão da própria história de vida, com seus importantes marcos de construção e referência identitária. Ainda é necessário registrar que, se o conhecimento do passado oferece perspectiva para a compreensão do presente, a compreensão do presente também auxilia na compreensão do passado. Como afirmava o historiador Fernand Braudel, “o presente e o passado esclarecem-se mutuamente, com uma luz recíproca” (1990, p. 21). O conceito de consciência histórica embasou as discussões sobre letramento em História produzidas por autores como Peter Lee (2001; 2003; 2006) e Isabel Barca (2004;

para executar a leitura e a escrita de forma proficiente e autônoma nos diversos contextos

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sociais em que essa capacidade é solicitada (SOARES 2002; 2005). Na Matemática,

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2012; 2013). No campo da linguística, o letramento é a condição adquirida pelo sujeito

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conhecido também como numeramento, o letramento é a capacidade de utilizar nas diversas situações sociais nas quais esse conhecimento matemático torna-se necessário como, por exemplo, para compreensão dos juros praticados em um financiamento, na análise do consumo apresentada em uma conta de energia elétrica ou de fornecimento de água, no cálculo de material necessário para construção de uma determinada edificação. O letramento em História, por sua vez, é a condição adquirida pelo sujeito para utilizar-se do conhecimento histórico para ler, interpretar e analisar de forma crítica e consistente o presente, fazendo projeções pertinentes e consistentes de futuro e/ou redefinindo conhecimentos do passado nas diversas situações sociais nas quais as narrativas históricas estão presentes de formas mais evidentes ou implícitas. Cabe registrar que o processo de letramento é uma competência que pode ser mais ou menos profunda de acordo com o nível de formação do sujeito. Fatores como a idade, a dedicação, as oportunidades encontradas e o contexto de formação dos estudantes são fatores muito importantes no desenvolvimento desta competência.

A cultura nos objetos A atitude historiadora está relacionada ao processo de leitura de mundo. Esse termo já se tornou clichê nas citações da máxima do mestre Paulo Freire - “A leitura de mundo antecede a leitura da palavra” – que nem por isso deixa de ser necessária como referencial nos processos educacionais. Um professor de História ou de outras disciplinas que pretenda trabalhar nesta perspectiva precisa compreender como se dão os processos de aprendizagem. Para Vygotsky (1988; 1989) a aprendizagem é fruto do conhecimento adquirido nas relações humanas que se estabelecem nos mais variados espaços sociais. Os conhecimentos são construídos e reconstruídos por cada sujeito a partir de interações culturais com o outro. Assim, pode-se dizer que aprendemos com e na cultura. No espaço escolar, por exemplo, os processos de interação entre professor/aluno, aluno/professor, aluno/aluno, aluno e outras pessoas podem propiciar situações bastante ricas para a

de metodologias ativas tão em voga na atualidade (OLIVEIRA, 2011; VALENTE et al

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2017). Estas, por sua vez, não apresentam uma ruptura com os processos de discussão no

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construção do conhecimento. Este é, inclusive, um dos pilares que sustentam a proposta

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campo da educação há algumas décadas como parecem acreditar muitos de seus entusiastas. Entretanto, esses processos de interação ou de “trocas culturais” não precisam necessariamente do contato direto entre os homens. Essa relação pode ser mediada por variados objetos. Os objetos são artefatos que incorporam traços da cultura na qual foram criados e na sua historicidade. Assim, filmes, jogos eletrônicos, esculturas, pinturas, brinquedos, livros, objetos artesanais, o patrimônio cultural nas versões material e imaterial (distinção feita apenas para efeitos didáticos, já que todo ente patrimonial carrega em si a “matéria e seu espírito”) e uma infinidade de objetos que nos rodeiam são produtos culturais. Neles estão expressos os interesses, necessidades e formas como os homens, no presente e/ou no passado, viveram, enxergaram e imaginaram o mundo. Expressões da cultura de determinadas sociedades, os objetos utilizados como fontes históricas podem ser recursos para o processo de aprendizagem. No ensino de diversas disciplinas e, em particular a História, compreender parte da cultura por meio dos artefatos é um recurso bastante potente para o conhecimento de povos que viveram em outros tempos e espaços (SILVA e PORTO, 2012; LACERDA et al, 2015). As esculturas e as edificações presentes no Cemitério do Bonfim, inaugurado em 1897 e tombado no ano de seu centenário pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), podem demonstrar muito da visão religiosa e do conceito sobre a morte da população belo-horizontina entre o final do século XIX e início do século XX. Não é sem motivo que a preservação do patrimônio se torna fundamental para garantir às futuras gerações o direito de observar e analisar por meio de objetos materiais e/ou imateriais um determinado contexto. O patrimônio cultural e a memória estão intimamente associados. Por isso, o ensino de História não pode prescindir do patrimônio cultural como recurso pedagógico. Os objetos patrimonializados são instrumentos potentes para alavancar o processo de conhecimento da História. Como o processo de preservação patrimonial não é neutro, a história da construção do patrimônio cultural no Brasil é marcada por inúmeros embates, disputas e silenciamentos. A partir do final da década de 1970, por exemplo, esses embates ficaram bastante evidenciados diante das ações de movimentos sociais populares representativos de

dispositivos legais e políticas públicas voltadas para a identificação, o reconhecimento, a

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valorização e a preservação de entes patrimoniais que expressassem a pluralidade

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trabalhadores, mulheres, negros, índios que, dentre outros, forçaram a criação de

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sociocultural brasileira e garantissem o direito à preservação de múltiplas memórias. Nesse contexto, surgiu a expressão patrimônio cultural não consagrado para designar aqueles bens culturais que, até então, não integravam o universo do patrimônio histórico e artístico nacional como as produções indígenas, afro-brasileiras e de populações rurais e imigrantes (FONSECA, 2008). Oficializado ou não, esse patrimônio está nos mais variados lugares: uma igreja barroca de Minas Gerais; o mercado Ver-o-Peso no Pará; um terreiro de candomblé na Bahia; as pinturas corporais de povos indígenas como os Wajãpi no Amapá; o Mercado Central, as Festas de Iemanjá e Pretos Velhos e os fotógrafos lambe-lambes em Belo Horizonte; os estádios de futebol nas grandes cidades, dentre outros. Existem também locais privilegiados para salvaguarda, apreciação e educação por meio do patrimônio cultural, ou seja, os museus.

Objetos geradores e o ensino de história Uma concepção bastante rica de abordagem do patrimônio cultural musealizado voltada para o ensino de história - e que serve como referência para o trabalho educativo com o patrimônio em geral - foi defendida pelo professor de História da Universidade Federal do Ceará e ex-diretor do Museu do Ceará Francisco Régis Lopes Ramos. O autor propõe uma educação pelo patrimônio por meio de objetos geradores, espelhada na palavra “geradora” de Paulo Freire. Como afirma Mário Chagas, a utilização das proposições de Paulo Freire na exploração dos objetos museais surgiu no final da década de 1980 e início dos anos 1990 em palestras e textos de Iara Madeira, Stella Fonseca, Waldisa Russio e Maria Luíza Quirini. Ramos, entretanto, aprofundou e sistematizou esse debate (RAMOS, 2004, p.10). Assim, o estudo da “história do objeto” revelaria a “história no objeto”. Para Freire, a palavra geradora é o ponto de partida do processo de alfabetização: “Assim, se a palavra favela, no caso brasileiro e a palavra ‘callampa’ no chileno, são palavras geradoras em áreas faveladas ou ‘callamperas’ nesses países, é óbvio que as codificações

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1975, p. 68.). O objeto gerador, por sua vez, é ponto de partida das proposições de Ramos:

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em que devem estar postas devam representar aspectos da realidade favelada” (FREIRE,

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É plausível defender que uma das possibilidades para o início de uma alfabetização museológica pode ser o trabalho com objetos geradores. Em sala de aula, no museu, ou em outros espaços educativos, o professor ou o orientador faria uma pesquisa e escolheria objetivos significativos para os alunos, ou participantes de certo grupo, e a partir daí realizaria exercícios sobre a leitura do mundo através dos objetos. (RAMOS, 2004, p 32.)

A experiência cotidiana é adotada como ponto de partida. A partir do vivido é gerado o “debate de situações desafiadoras”. Nas próprias “situações existenciais” são germinadas “situações-problema” (RAMOS, 2004. p. 38). Ramos continua trafegando em conceitos caros à Pedagogia freireana, como a Educação Problematizadora concebida como alternativa necessária à Educação Bancária. Essa metodologia de avaliação dos objetos, patrimonializados ou não, materiais e/ou imateriais, musealizados ou não, na perspectiva de objetos geradores pode ser aplicada como recurso no ensino de história na análise das mais variadas modalidades de fontes históricas do passado e/ou do presente e na observação mais crítica dos objetos do cotidiano mais próximo do estudante. A análise de um copo descartável pode ser um bom exemplo. Este produto pode ser percebido como uma mercadoria típica do modelo de produção inaugurado a partir da Revolução Industrial. Nele estão embutidos interesses econômicos elementares do sistema capitalista como a baixa durabilidade, a necessidade de rápida reposição, a ausência de compromisso com a sustentabilidade e a busca da lucratividade como fim maior. Em suma, como já visto, a melhor compreensão de sociedades do passado pelos indivíduos, auxilia na compreensão da própria sociedade na qual se está inserido. Estabelecer relações de semelhança e/ou diferenças, continuidade ou ruptura entre passado e presente amplia as referências para compreensão no mundo à sua volta. Além disso, a análise das fontes históricas pertencentes à sua própria sociedade auxilia na compreensão mais sistemática e complexa desta. Os objetos que fazem parte do cotidiano, em suas variadas formas, são partes do acervo cultural de uma determinada comunidade ou grupo social.

representatividade como forma de expressão legítima de uma determinada sociedade ou REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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representam um processo eletivo no qual o Estado que reconheceu a sua

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Cabe registrar que esses objetos quando recebem o título de patrimônio cultural


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comunidade. Quando uma determinada sociedade elege quais bens serão registrados ou tombados emite uma mensagem por meio desses às gerações do presente e do futuro: conheçam e reflitam sobre isso que é importante em nossa cultura, expressão do que somos, a nossa identidade. Além dos sujeitos que produzem e/ou utilizam estes objetos, os que entram em contato com eles, podem compreender melhor o tempo e o lugar no qual foram concebidos e utilizados ao observá-los criticamente.

Praça da Estação em Belo Horizonte: um objeto gerador A educação problematizadora é constituída pela autonomia criativa dos sujeitos envolvidos no processo de construção do conhecimento (professoras, professores e estudantes). Estes definem, a partir do contexto no qual estão inseridos e de suas expectativas e interesses, os caminhos que devem ser trilhados. Nesse sentido, não é compatível com essa concepção a apresentação de roteiros de trabalho com etapas e passos pré-definidos. Cabe ressaltar que os objetos do patrimônio cultural não são explorados na educação como um fim em si mesmos. No ato educativo tornam-se referências para construção do conhecimento. Diante de um bem do patrimônio cultural, ao perceber o que há de identificação ou não com as suas vivências, o estudante – orientado pelo professor – pode conhecer melhor a si mesmo e diluir preconceitos e estereótipos a partir de reflexões sobre essas relações de identificação e de “diferença”. Cabe ressaltar que a não identificação dos estudantes com um bem patrimonial não reduz o potencial educativo deste. Conhecer outros universos amplia a visão e as possibilidades de leitura de mundo. Conhecer diferenças contribui para a construção de valores como empatia e alteridade. Nesse sentido, permitir aos estudantes que possuem pouca familiaridade com o Patrimônio Cultural “consagrado”, o acesso a estes bens – além de um direito – pode ser uma ação educativa potencialmente relevante. Discutiremos o potencial e as possibilidades educativas de um bem do patrimônio cultural bastante representativo da História de Belo Horizonte, a Praça da Estação, como exemplificação das questões levantadas neste artigo. Entretanto, professoras, professores

outros espaços. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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devem construir seu próprio processo e percurso de exploração pedagógica deste e de

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e estudantes a partir das suas expectativas, interesses, perspectivas e conhecimento prévio


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A visita in loco é um recurso fundamental para o desfrutar da cidade, a observação e o diálogo com as fontes históricas que na perspectiva freireana tornam-se um objeto gerador. Em um único bem patrimonializado da cidade é possível a realização de um trabalho de campo bastante promissor para o ensino de história. Nele estudantes, professoras e professores podem viver uma experiência imersiva em diversas temporalidades e perspectivas da História de Belo Horizonte.

Na curta história de Belo Horizonte, capital mineira inaugurada em fins do século XIX, as referências à Rua da Bahia e à Praça da Estação aparecem como uma constante no imaginário da cidade. É possível perceber ainda hoje a reverência a essa importância ecoada em livros, memórias, projetos, na mídia e mesmo através de monumentos. (RIVERO; VEIGA, 2016. p. 2).

Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Praça Rui Barbosa – popularmente conhecida como Praça da Estação – é tombado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPM-BH) e pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). A Estação Ferroviária que inspirou o nome popular da Praça foi construída antes mesmo da inauguração da capital mineira em 1897. Por meio da ferrovia chegaram os materiais utilizados na construção da cidade, os funcionários públicos com suas mudanças e os trabalhadores que construíram as primeiras edificações. Até o começo da década de 1950 a Praça da Estação era o principal portal de chegada e partida das pessoas, entrada e saída de alimentos e produtos comercializados. O Conjunto Paisagístico e Arquitetônico é constituído pela Praça, seus jardins e esculturas, os prédios da Estação Central (antiga Estação Ferroviária Oeste de Minas), Casa do Conde de Santa Marinha, Edifício Chagas Dória, antiga Serraria Souza Pinto, Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (antigo Instituto de Eletrotécnica), antigo Instituto de Química e Pavilhão Mário Werneck.

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Conhecida popularmente como Praça da Estação, a área em questão teve em 4 de setembro de 1914 sua denominação alterada para Praça Cristiano Otoni, em homenagem às atividades empreendidas por este político mineiro no setor ferroviário, sofrendo nova alteração em abril de 1923, quando então passou a chamar-se Praça Rui Barbosa. Mantendo em parte seu aspecto original, o referido conjunto constitui exemplar de grande importância históricoarquitetônica, valorizado por remanescentes da época de construção e instalação da nova capital. (IEPHA, 2014, p. 255).

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O conjunto da Praça da Estação é extremamente potente como objeto gerador de investigações didático-pedagógicas. A própria arquitetura em estilo eclético é fonte para o conhecimento de técnicas apuradas e das formas como o espaço público era concebido em outros tempos. Além de proporcionar ao visitante encantamento, usufruto e reflexão. Não menos importante é o Museu de Artes e Ofícios, instalado na edificação desde 2005, e que traduz, por meio de objetos, as técnicas, saberes e ofícios de uma Minas préindustrial. A importância do transporte ferroviário para a construção e desenvolvimento da capital pode ser explorada como contraponto ao atual modelo de transporte predominantemente rodoviário em Belo Horizonte e no país. As vantagens e desvantagens de cada modelo, sendo que a Praça da Estação, se bem explorada, materializa registros de outros tempos nos quais a ferrovia era um pilar estruturante da economia municipal. Curiosamente, foi por meio do transporte ferroviário que chegou à Estação da cidade o primeiro veículo automotor, de propriedade de um comerciante do Rio de Janeiro, em 1907. Cabe registrar que a expansão da cidade e o crescimento do trânsito levou a várias intervenções que reduziram o tamanho original da Praça. Na década de 60, com a abertura de mais uma pista na avenida dos Andradas, de uma única vez lhe fora subtraída uma faixa de quinze metros. Com a indústria automobilística em franca expansão no país, a cidade foi se adequando a esta modalidade de transporte que hoje é predominante. A Praça da Estação, um espaço para grandes concentrações populares na atualidade, também foi abrigo para essas aglomerações em períodos marcantes da história da capital, sobretudo nas três primeiras décadas do século XX. Discutir as motivações para geração destas grandes aglomerações nos mais diversos períodos da história belohorizontina pode ser uma importante referência para compreensão das mudanças e permanências no imaginário coletivo, nos valores da população e principais anseios sociais durante o tempo. Portal de entrada na capital, a Praça abrigou no começo do século passado inúmeras manifestações populares. Uma multidão, por exemplo, saudou ali Santos Dumont que veio a Belo Horizonte visitar um tio. Por ter contornado com um sobrevoo

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era famoso mesmo antes da invenção do 14 Bis.

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de balão a Torre Eiffel, vencendo um concurso em 1901 na capital francesa, o mineiro já

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Cinco mil pessoas foram à Praça da Estação, promovendo uma das mais calorosas recepções feitas a um visitante. Após as boas-vindas, Santos Dumont percorreu a cidade no Landau presidencial, puxado por quatro cavalos de raça. Era intensamente aplaudido por onde passava. (SILVA, 1998).

Em 1907 João Pinheiro - Presidente de Minas Gerais (à época essa era a expressão que designava o governante estadual) – faleceu. Uma multidão seguiu o cortejo fúnebre até a Praça da Estação de onde o corpo do político foi transportado por um trem especial rumo a Caeté, sua terra natal, onde foi sepultado. Em 1909, outra grande concentração de belo-horizontinos recebeu Rui Barbosa, candidato apoiado pelos chamados civilistas à Presidência da República. Mesmo derrotado - em uma eleição extremamente controversa, diga-se de passagem - Rui Barbosa não deixou de ser uma personalidade bastante popular. Em 1922, a Praça da Estação (até então conhecida como Praça Cristiano Otoni) foi rebatizada com o nome do jurista baiano. Uma multidão também se aglomerou na então Praça Cristiano Otoni para recepcionar o rei e a rainha da Bélgica - Alberto I e Elisabeth - que em visita ao Brasil passaram por Belo Horizonte. A vinda da realeza foi um grande acontecimento no país, já que era a primeira vez que o Brasil, como república, recebia representantes de uma monarquia europeia. No dia 2 de outubro de 1920, acompanhados do presidente da república Epitácio Pessoa, os reis belgas desembarcaram na Praça da Estação, em BH, em vagões fabricados especialmente para os ilustres turistas. Muitos belo-horizontinos foram à estação de trem ver de perto e, pela primeira vez, representantes de uma realeza1.

As edições do jornal O PAIZ do dia 03 de outubro de 1920 afirmava que a chegada dos soberanos a Belo Horizonte no dia anterior foi marcada pela aclamação popular. Recebidos pelo governador de Minas Gerais, Artur Bernardes, ficaram hospedados no Palácio da Liberdade, para onde foram após o cortejo pela cidade. Esse episódio demonstra a permanência no imaginário coletivo do culto e admiração pela monarquia, mesmo em um regime Republicano e em uma cidade que foi planejada e construída com o espírito de superação do Período Imperial. No campo da moral, ou seja, os valores, normas e costumes da população nas primeiras décadas do século XX, o Monumento à Terra Mineira, uma obra em bronze do

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http://belgianclub.com.br/pt-br/visita-do-rei-albert-i-e-da-rainha-elisabeth-da-b%C3%A9lgica-em-belo-horizonte-em-1920

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escultor e arquiteto italiano Júlio Starace, inaugurada em 1930, é uma potente referência.


Dossiê O monumento retrata a conquista de Minas Gerais pelos bandeirantes e homenageia os mártires de Inconfidência - principal movimento contra a Coroa portuguesa. No alto, um homem com a bandeira de Minas Gerais representa o Estado. Ele está de frente para a estação, como a dar as boas-vindas a quem desembarca. Abaixo, há uma inscrição em latim, Montani Semper Liberti (a montanha sempre está livre, na tradução). No bloco de sustentação, quatro painéis em bronze completam a obra. À frente, representa-se o expedicionário Bruzzo Spinosa. À direita, está o martírio do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira e executado na forca, em 1792, no Rio de Janeiro. À esquerda, fica o martírio do minerador Filipe dos Santos, líder de uma revolta contra a Coroa em Ouro Preto, em 1720, também condenado à morte. Na parte de trás, vê-se o bandeirante Fernão Dias Paes, que ajudou a desbravar as terras de Minas Gerais2.

Cabe registrar a concepção eurocêntrica e o silenciamento da história afroindígena que se materializa na obra em questão. Há um destaque para o heroísmo dos personagens adotados como ícones da identidade nacional pelos republicanos. Voltando ao campo da moral, há também um elemento de contestação aos valores vigentes à época presente na obra. Como afirma a historiadora Clotildes Avellar Teixeira o Monumento à Terra Mineira foi: Erguido em homenagem aos heróis e mártires mineiros, em bronze e granito, foi criado pelo artista italiano Giulio Starace e pesa cerca de 500 toneladas. A obra foi censurada antes mesmo de sua fundição, quando ainda estava no papel. Na ocasião, foi sugerido a Starace que prolongasse a bandeira levantada pela figura masculina (concebida originalmente nua) e colocada ao alto do monumento, dando as boas vindas a quem desembarcava na Estação Central, de modo a encobrir a região pélvica. (BRANT, 2015).

Não era incomum que, sobretudo mulheres e crianças, ao passarem na região, evitassem transitar próximos ao monumento. Além disso, muitos efetivamente evitassem olhar em direção ao monumento para não ver as partes íntimas masculinas retratadas na escultura (SILVA, 1998). Atualmente a praça é palco de manifestações populares como o carnaval, grandes concentrações promovidas por eventos religiosos, manifestações artísticas (como duelos de MCs), grandes shows de música popular e diversas manifestações políticas e sociais das mais variadas motivações. Mais recentemente, a Praça da Estação abrigou um grande movimento chamado Praia da Estação que denunciava o cerceamento do uso do espaço

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https://www.mg.gov.br/conteudo/conheca-minas/turismo/praca-da-estacao

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pela população da cidade. A Praia da Estação foi uma manifestação popular organizada e


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que questionava de forma sistemática as limitações impostas ao uso da praça pela administração municipal em 2010. A esplanada foi transformada em balneário pela primeira vez em janeiro de 2010. A manifestação foi uma reação a um decreto do prefeito Marcio Lacerda proibindo a realização de eventos de qualquer natureza no local, depois de reclamações de barulho e bagunça feitas por moradores da região e por representantes de um museu situado na praça. Para justificar a interdição, alegou-se “a dificuldade em limitar o número de pessoas e garantir a segurança pública” e “a depredação do patrimônio público verificada em decorrência dos últimos eventos realizados na Praça”. A medida suscitou reações indignadas na internet e não demorou até que um blog convocasse os descontentes a ocupar a rebatizada Praia da Estação. (NUNO MANNA, 2012).

Enfim, a Praça da Estação como lugar de memória, abordado na perspectiva de objeto gerador, pode ser um instrumento didático/pedagógico na construção da atitude historiadora. Para isso, a intervenção do professor torna-se fundamental, já que: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais (NORA, 1993, p. 13).

Algumas considerações Dentre as referências teóricas mais promissoras sobre a intervenção dos professores durante o processo ensino/aprendizagem, o chamado Sistema de Andaimes é ainda bastante atual. A proposta foi criada por Wood, Bruner e Ross (1976), baseados no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky, demonstrando a importância da atuação do professor para levar o estudante a descobrir caminhos e novas possibilidades de aprendizado. Para os autores, o papel do professor se assemelha ao dos andaimes na construção civil. Os andaimes são ferramentas utilizadas para facilitar o acesso do operário a determinadas alturas. Assim que as tarefas foram desenvolvidas em um determinado andar, o andaime pode ser elevado, facilitando o acesso do operário a um nível mais alto para realizar nova atividade no andar superior. No ambiente escolar, o professor também atua para aumentar a abrangência da utilização de determinados conhecimentos apresentando novos desafios para ampliação

que possam redirecionar, ampliar ou desenvolver novos enfoques sobre o conhecimento. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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estudantes, o professor desafia, encoraja, esclarece e oferece novas possibilidades para

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e/ou aquisição de novas aprendizagens. Com base no contexto vivenciado pelos


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De forma dialógica, o professor pode oferecer dicas e orientações especiais para atuações individuais e coletivas. Nesse processo, os alunos são levados a buscar, selecionar informações, construir hipóteses e tomar decisões reorganizando e dando sentido e significado ao conhecimento. É importante que sejam incentivados e orientados a refletir criticamente sobre o que lhes é apresentado e a transcender, isto é, ir além das informações obtidas, distinguindo os dados mais importantes dos secundários, buscando relacionar o apreendido com outras informações e situações. Nesse ponto, o aporte da teoria dos andaimes, em associação com as propostas freirianas, torna-se uma referência teórica potente para o desenvolvimento da aprendizagem. A partir do contexto cultural do sujeito e no trabalho com o patrimônio cultural na perspectiva de objeto gerador, o professor de História pode lançar questões, desafios e criar situações para que o processo de ensino aprendizagem se desenvolva. Essa metodologia contribui para impulsionar o estudante a superar de forma progressiva desafios compatíveis com seu estágio de conhecimento e compreensão. Essa dinâmica contínua de produção do conhecimento leva à construção de métodos cada vez mais sofisticados de busca, manipulação, seleção das informações e elaboração de hipóteses por parte dos estudantes e do próprio professor, que também se torna aprendiz nesse processo de interação. Nesse sentido, o patrimônio cultural não é considerado um fim em si mesmo no processo educativo. Além de expressão legítima da cultura de um povo, uma sociedade, uma comunidade ou um grupo, é também um recurso pedagógico potente para a formação educacional e que se bem utilizado contribui para a formação de competências necessárias ao desenvolvimento da atitude historiadora. Uma discussão clássica na historiografia aponta, há bastante tempo, que as fontes históricas não são elementos neutros. Como defende Jacques Le Goff (1984) foram produzidas por alguém, endereçadas a outrem e representam determinados interesses. Ainda segundo o autor, devem ser lidas e desvendadas em seu contexto de produção porque trazem em si conceitos e concepções. Se não são peças probatórias de um processo, ou seja, não apresentam uma verdade a ser descoberta, trazem possibilidades que podem ser compreendidas a partir das ferramentas conceituais da historiografia.

contexto educacional, podem oferecer subsídios potentes para que o estudante faça uma

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leitura crítica do Patrimônio Cultural. A análise mais criteriosa de um espaço, dentre

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Nesse sentido, as ferramentas metodológicas da historiografia, adaptadas ao

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outros em Belo Horizonte, como a Praça da Estação pode contribuir de modo significativo para que o estudante exerça uma leitura crítica de mundo a partir de equipamentos urbanos tão presentes no cotidiano e nas práticas vivenciais da população em grandes cidades espalhadas pelo mundo na atualidade. As atividades educativas ligadas ao Patrimônio Cultural edificado ou imaterial da cidade, por sua vez, estão em sintonia com diversas competências gerais para Educação Básica e as específicas para o Ensino de História no Ensino Fundamental. Além disso, estão em plena sintonia com a missão de uma cidade educadora - aquela que converte o seu espaço urbano em uma escola, uma escola sem paredes e sem teto e no qual todos os espaços como ruas, praças, prédios residenciais e comerciais, monumentos e bens patrimonializados transformam-se em sala de aula ampliada.

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A COLEÇÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA The collection of comics from the Pampulha Art Museum

Dalba Roberta Costa de Deus

RESUMO: Através de um recorte da produção artística da década de 1970, a pesquisa investiga a Coleção de história em quadrinhos do Museu de Arte da Pampulha (MAP); os artistas que estão representados; e se a coleção teria algum reflexo de movimento artístico de época em Belo Horizonte. A metodologia adotada foi a de levantamento bibliográfico e documental, buscando compreender e contextualizar períodos, eventos e situações de política de aquisição do MAP. Foi verificado que as aquisições de obras desta Coleção se concentraram na década de 70, por meio dos salões de arte que se constituíram, nos primeiros anos de existência do Museu, na principal ferramenta de aquisição e ampliação do acervo. A exposição Histórias em quadrinhos e comunicação de massa foi a que deu origem à aquisição da maioria das obras da Coleção. Palavras – Chave: Histórias em quadrinhos; Acervo; Museu de Arte da Pampulha. ABSTRACT: The research investigates the Collection of Comics from the Pampulha Art Museum (MAP) by following an approach of the artistic production of the 1970s. It also investigates the artists who are represented; and whether the collection would have any reflection from the artistic movement from that time in Belo Horizonte. The adopted methodology was a bibliographic and documentary survey, in order to understand and contextualize MAP acquisition periods, events and policy situations. It was verified that, in this Collection, the acquisitions of works were concentrated in the 70's, through art salons that were, in the first years of the Museum's existence, the main tool for acquiring and expanding the collection. The exhibition Histórias em quadrinhos e comunicação de massa gave rise to the acquisition of most of the works in the Collection. keywords: Comics; Collection; Pampulha Art Museum.

Introdução O Museu de Arte da Pampulha (MAP), localizado em Belo Horizonte (MG), foi projetado por Oscar Niemeyer, inicialmente, para ser um Cassino, no ano de 1943, a pedido do então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubistchek. O prédio recebeu outros usos, quando os jogos de azar foram proibidos no Brasil em 1946 (BRASIL,

Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciada em Artes visuais pelo Centro Universitário Internacional UNINTER. Especialista em Organização da Informação pela UFMG. Bibliotecária do Museu de Arte da Pampulha, Fundação Municipal de Cultura – Belo Horizonte, MG. E-mail: dalba@pbh.gov.br. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513.

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1946). Desta forma, sua trajetória como Museu foi iniciada apenas em 1957.


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Observando o Inventário do acervo do MAP (MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA, 2010), via-se que a Instituição possuía obras que abrangiam da década de 50 à década de 80. Analisando, foi possível perceber um número significativo de obras de Histórias em quadrinhos, adquiridas na década de 70. Surgiram assim hipóteses de porque este acervo foi adquirido; quem seriam os artistas representados nesta coleção; haveria algum indício de movimento artístico em prol da história em quadrinhos como obra de arte naquele momento em Belo Horizonte? Apesar do MAP ter uma importância nacional (o Museu faz parte do conjunto que recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, em 2016, pela UNESCO), ele é gerido pela esfera municipal desde sua criação. Assim se pressupõe que a aquisição destas obras tenha se dado em função de alguma representatividade da arte em Belo Horizonte naquele momento. O objetivo desta pesquisa, que originou este artigo, foi investigar a Coleção de Histórias em quadrinhos do Museu de Arte da Pampulha, buscando compreender como ela foi formada e qual a sua contribuição histórico-artística para a cidade de Belo Horizonte (DEUS, 2019).1 Para tanto, traço, a seguir, um breve histórico das Histórias em quadrinhos no Brasil até a década de 1970, período em que foram levantadas as aquisições de acervo do MAP. Pretendo ainda abordar o contexto em que tais obras foram produzidas, e, finalmente, apresentar os Salões de Arte de Belo Horizonte como instrumento para a formação do acervo do referido Museu.

Fundamentação teórica Não há um consenso estabelecido entre os teóricos sobre uma definição de História em quadrinhos (HQ) e nem sua provável origem. Em seu livro Desenhando quadrinhos, Mccloud utiliza a seguinte definição para conceituar Histórias em quadrinhos como as conhecemos hoje:

Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em Artes Visuais do Centro Universitário Internacional UNINTER, sob orientação da Prof. Dr. Tania da Silva Raizer Nunes, para a obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais.

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Imagens pictóricas e outras, justapostas (colocadas lado a lado) em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador. (MCCLOUD, 2004, p.9).


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No Brasil, As aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte, de Angelo Agostini, são consideradas como a primeira HQ nacional, publicada pela primeira vez em 30 de janeiro de 1869, na revista Vida Fluminense do Rio de Janeiro. Angelo Agostini foi um italiano radicado no Brasil e é atribuído a ele as primeiras historietas em quadrinhos, termo apropriado da língua espanhola. Vergueiro (2007, p.4) escreve sobre o humor gráfico como espaço privilegiado para a divulgação da linguagem gráfica sequencial no Brasil, observando que desde 1831, com a publicação O Corcundão, do estado de Pernambuco, verificou-se uma precoce participação do humor gráfico na discussão da realidade política e social brasileira, mostrando uma história de artistas combativos, cujas obras tiveram um grande impacto social. Segundo Santos e Horn (2011, p.7), em 1951, numa iniciativa da chamada turma da La Selva, nasceu a primeira Exposição de Histórias em quadrinhos do mundo, uma iniciativa brasileira, chamada Primeira Exposição Didática Internacional de Histórias em Quadrinhos, na qual os responsáveis foram Jayme Cortez, Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya. Em 31 de março de 1964, como relata Bezerra (2018, p.1), com a deposição do presidente da República, João Goulart, teve início o golpe militar, um regime autoritário que durou 21 anos (1964- 1985) no Brasil. Neste período, foi estabelecido a censura à imprensa, restrição aos direitos políticos e perseguição policial aos opositores do regime. A censura teve impacto nas Histórias em quadrinhos, tirando personagens de Ziraldo de circulação. Queiroz (2008 apud SANTOS e HORN, 2011, p.9) escreve que desde então o underground brasileiro se desenvolveu com o mesmo Ziraldo, Miguel Paiva, Jaguar, Cláudio Paiva, Henfil e muitos outros que, de forma subjetiva ou não, procuravam criticar o subdesenvolvimento militar do país. Em 1969 foi criado O Pasquim, uma publicação de oposição à ditadura que utilizava de quadrinhos de entretenimento e humor para abordar assuntos bastante sérios. O Pasquim e artistas como Henfil, durante o período militar, realizaram intensa atividade de crítica social e política, uma atividade que teve prosseguimento mesmo depois do término do período

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HORN, 2011, p.7).

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de exceção e que encontrou seguidores em artistas como Angeli e Laerte. (SANTOS;

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Na trajetória das Histórias em quadrinhos, existem percalços enfrentados em muitos países, porque era vista como uma linguagem desacreditada pela maioria dos educadores e intelectuais. Vergueiro, no entanto, diz que:

apesar da atmosfera desfavorável predominante em grandes parcelas da sociedade, as histórias em quadrinhos no Brasil conseguiram atrair a atenção de grandes artistas, muitos dos quais não se satisfizeram em produzir apenas para o entretenimento das crianças, mas buscaram utilizar a linguagem gráfica sequencial como um instrumento de contestação e denúncia das mazelas sociais. (VERGUEIRO, 2007, p.7).

Em Belo Horizonte, até a década de 70, a cidade foi marcada por manifestações coletivas de caráter neovanguardistas, como afirma Ribeiro (1997, p.260), na qual, entre os pioneiros da neovanguarda, estavam os que lutavam por uma mudança estilística, iconográfica e comportamental. Nesta conjuntura, temas como a História em quadrinhos, vão inaugurar a era das grandes mostras temáticas, fruto de pesquisa e reflexão em torno desses temas. Ribeiro (1997, p.266) relata que a primeira exposição temática, realizada no Museu de Arte da Pampulha em 1972, abordou a questão das histórias em quadrinhos e da comunicação de massa. Esta exposição, apresentada por Ziraldo, resgatou a história das histórias em quadrinhos e teve como foco os desenhistas mineiros que exploravam a temática, como o próprio Ziraldo, Borjalo e novos artistas: José Avelino de Paula, Manoel Serpa, José Ronaldo Lima, Marcos Benjamim, Mário Vale, dentre outros. Devido ao “milagre brasileiro2”, neste período houve um breve aquecimento do mercado de arte em Belo Horizonte, na análise feita por Ribeiro (1997, p.281). Conforme a autora citada, tal aquecimento foi propiciado pelo aumento do poder aquisitivo da classe média na época, durante o governo Médici. Surgiram espaços como a Galeria Guignard e Chez Bastião, espaços comerciais interessados em vender ou leiloar obras de arte, entre eles o Palácio dos Leilões, dirigido por Antônio Ferreira. Durante os anos 70 foram implantados novos salões de arte em Belo Horizonte, além dos que já existiam, como o próprio Salão de Belas Artes, promovido pela Prefeitura da cidade. Ribeiro (1997) aponta como o mais significativo neste período, o

Entre os anos de 1968 e 1973, o Brasil viveu um expressivo crescimento econômico que contribuiu para o fortalecimento do regime militar. Chamado de "milagre econômico", esse crescimento esteve relacionado a políticas econômicas do Governo Castelo Branco e suas repercussões nos anos seguintes. Fonte: CORRÊA, Michelle V.G. Milagre econômico. Disponível em:< https://www.infoescola.com/historia-do-brasil/milagre-economico/>. Acesso em: 21 dez. 2018 REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513.

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Salão Global de Inverno, patrocinado pela Rede Globo e pela Prefeitura Municipal de


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Belo Horizonte. O objetivo do projeto era a valorização do artista plástico mineiro, fosse incentivando os novos talentos ou homenageando artistas consagrados com salas especiais nestes salões. Nesse primeiro salão, o júri, composto por Gilberto Chateaubriand, Madeleine Archer, Augusto Rodrigues, Glauco Rodrigues e Rubem Braga, premiou artistas que elaboravam um desenho conceitual primoroso, apontando uma nova tendência na arte mineira, representada por José Alberto Nemer, Ângelo Pignataro, Jarbas Juarez, Arlindo Daibert, Fernando Velloso, José Avelino de Paula, Márcio Sampaio, Marcos Benjamin, Manfredo de Souzanetto, Mário Vale, Madu, Roberto Vieira e Uziel Rosenwajn, entre outros. Por meio de uma figuração muitas vezes narrativa, como a das histórias em quadrinhos, esses desenhos faziam uma releitura alegórica da destruição do meio ambiente, do erotismo e da repressão. (RIBEIRO, 1997, p. 273).

As exposições e salões temáticos dos anos 70 vão se tornar modelos para iniciativas semelhantes que ocorreram ao longo das décadas seguintes em Belo Horizonte, apontando novos temas, novas linguagens, novos artistas e novas curadorias. O Salão de Arte de Belo Horizonte, criado nos anos 30, passou por diversos formatos e denominações, mantendo, contudo, sua importância como instrumento de estímulo à criação artística na capital mineira, nos anos 70. Em 2003, o MAP reformulou os Salões, criando o projeto de residência artística Bolsa Pampulha. É neste contexto que a Coleção de Histórias em Quadrinhos do MAP vai ser formada, fruto da Exposição de 1972 e dos Salões de Arte que aconteceram em Belo Horizonte na mesma década.

Metodologia Em relação aos procedimentos técnicos utilizados, a pesquisa foi bibliográfica e documental, desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos, jornais. Sendo assim, as fontes pesquisadas tiveram o intuito de comprovar informações e dados disponíveis no Inventário do Museu (MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA, 2010) além de fornecer conteúdos para a contextualização e entendimento dos processos

documentos de registro museológico, reportagens de jornais, atas dos Salões.

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Centro de Documentação do MAP. Foram consultados catálogos, fotografias, fichas e

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de aquisição das obras pesquisadas. A documentação consultada está vinculada ao


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Para a fundamentação teórica deste trabalho, foram utilizados livros e artigos de periódicos. Ainda foi realizada uma busca de orientação com a Conservadora do MAP, para tentar compreender a aquisição da obra de Virgílio Veloso, que não possui informações sobre sua origem no Museu. Os aspectos sociais também foram averiguados. Eles dizem respeito ao espaçotempo em que se insere o artista no momento da produção de sua obra. A trajetória do artista, composta por informações sobre sua formação, seus vínculos a outros artistas e espaços dialogam com suas propostas, com o momento político do país e suas transformações. No caso da Coleção de História em quadrinhos do MAP, um dos aspectos sociais primordiais à pesquisa foi a premiação nos Salões de Arte de Belo Horizonte e a Exposição em 1972. O método da indução, caracterizado como uma generalização, partindo de fatos particulares conhecidos e chegando a conclusões gerais, até determinado ponto, não conhecidas, também foi utilizado na pesquisa. Como afirma Razuk:

A indução é um processo mental por meio do qual, partindo-se de fatos particulares, suficientemente aceitos e constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida nos fatos examinados. Portanto, o objetivo da inferência indutiva é levar a conclusões cujo conteúdo é muito mais amplo do que as premissas nas quais foram baseadas. (RAZUK, 2010, p.18).

Assim, a intenção foi reunir informações e dados que servissem de base para a construção da investigação proposta neste trabalho, proporcionando um maior conhecimento sobre a coleção de obra de arte de Histórias em quadrinhos do Museu de Arte da Pampulha.

Resultados e discussão Na cidade de Belo Horizonte, desde a década de 20, ocorriam Exposições Gerais de Belas Artes, de caráter mais acadêmico. Em 1936 aconteceu a primeira manifestação coletiva de pretensões modernistas na capital, chamado Salão Bar Brasil, reunindo alguns dos artistas ativos naquela época na cidade: Renato de Lima, Érico de Paula,

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Delpino Junior (Alberto André Delpino Junior), Genesco Murta, Jeanne Milde e outros.

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No ano de 1937, o prefeito Otacílio Negrão de Lima cria, por meio de decreto3, o Salão de Belas - Artes, muito em função do grande sucesso obtido pelo Salão Bar Brasil, do ano anterior. Este Salão permitia, ainda, sem restrição, a participação de estrangeiros, abrindo espaço para a apresentação de obras nas sessões de pintura, escultura, arquitetura e arte ilustrativa. O Salão de Belas Artes foi realizado regularmente, com esta denominação, no saguão da Prefeitura de Belo Horizonte, como um evento cultural de maior expressão nas festividades do aniversário da cidade, que é 12 de dezembro. Somente em 1957, após 20 anos de sua criação, os Salões foram transferidos para o então recente Museu de Arte da Pampulha4, tendo como sede o antigo Cassino da Pampulha, fechado em 1946. O Salão de Arte de Belo Horizonte passou por diversos formatos e denominações, mantendo, contudo, sua importância como instrumento de estímulo à criação artística na capital mineira. Na tabela abaixo, apresenta-se os períodos de existência dos Salões e suas denominações. Atualmente, o Programa Bolsa Pampulha, um programa de residência artística, produzido pelo MAP desde o ano de 2003, substituiu e ao mesmo tempo deu sequência à história dos Salões de Arte em Belo Horizonte. TABELA 1 – Denominações dos Salões de Arte de Belo Horizonte ao longo dos anos Denominações dos Salões de Arte 1937 – 1945 Salão de Belas – Artes 1946 - 1968 Salão Municipal de Belas Artes 1969 - 1971 Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte 1971 - 2000 Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte 2003 - Bolsa Pampulha Fonte: A autora, 2018.

Os Salões de Arte foram o principal mecanismo utilizado para a constituição do acervo de arte brasileira e mineira do Museu de Arte da Pampulha. E é nesta conjuntura do Salão que algumas obras da coleção em Histórias em Quadrinhos do MAP foram

3 Decreto 4

n° 130, de 23 de agosto de 1937. Na época de sua criação, o nome do Museu era Museu de Arte de Belo Horizonte.

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adquiridas. Foram 26 edições dos Salões realizadas ao longo dos anos.


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A origem da exposição Histórias em quadrinhos e comunicação de massa no Museu de Arte da Pampulha está ligada à Societé d’Estudes et de Recherches des Litteratures Dessignees e a Gerald G. Talabot, quando organizaram e apresentaram no Museu de Arts Decoratifs, Palais de Louvre, Paris 1967, a mostra designada Bande Dessineé et Figuration Narrative, baseada no livro publicado em edição francesa com o mesmo nome. Como relata Chinen (2007): Naquela época, os europeus, principalmente italianos e franceses, iniciavam os pioneiros estudos sobre a arte e a linguagem dos quadrinhos e começavam a surgir algumas entidades voltadas à promoção das HQs como arte e fenômeno cultural. Elas eram formadas por intelectuais, cineastas, artistas e editores. (CHINEN, 2007, p.1).

Uma dessas associações, a Socerlid, foi a responsável por organizar esta primeira exposição no Louvre. Junto com a mostra do Louvre, foi lançado um livro, em forma de catálogo, que acabou se tornando uma referência em publicações do gênero. Em 1970, esta exposição que aconteceu no Louvre foi trazida para o Brasil com o nome de História em quadrinhos e comunicação de massa, exposta no MASP (Museu de Arte de São Paulo) com esforços de Enrique Lipsick e Pietro Maria Bardi. O livro lançado na França também foi traduzido no Brasil com o mesmo nome da exposição, com capa e símbolo de Ziraldo. Em 1972, como narra Ziraldo, de forma muito humorística e descontraída, na apresentação escrita para o catálogo da exposição que aconteceu em Belo Horizonte, a então Diretora do Museu de Arte da Pampulha, Conceição Piló, o procurou informando de que iria trazer a exposição que estava em São Paulo para Belo Horizonte, mas queria que ele organizasse a “sala mineira”. Analisando o Inventário do Museu (MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA, 2010), foi possível contabilizar 114 obras da Coleção de Histórias em quadrinhos, oriundas dos seguintes artistas: Antônio Eustáquio Lima, Nilson Azevedo, Marcos Coelho Benjamim, GUMA, Fábio Borges Horta, Eduardo Luppi, Mangabeira (Fernando Pierucetti), José Avelino de Paula, Sérgio de Paula, Marco Antonio Guimaraes, RUJOS, Manuel de Andrade Serpa, Pedro Antonio de Souza, Mário Vale (Mário Ricardo Reis

25 delas tiveram como procedência os Salões de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513.

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Averiguando a ficha técnica das obras, é possível concluir que destas 114 obras,

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do Vale), Virgílio Veloso.


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como mostra a TABELA 2, especificamente obras que foram premiadas nos salões de 1969, 1970, 1971, 1972, 1973 e 1975. O restante das obras da coleção participou da exposição História em quadrinhos e comunicação de massa, no ano de 1972 (MUSEU DE ARTE DE BELO HORIZONTE, 1972). Dois artistas, Mário Vale e José Avelino de Paula, doaram uma obra cada, além das que foram adquiridas através do Salão e da Exposição. TABELA 2 – Artistas e obras premiadas nos Salões de Arte de Belo Horizonte (SNA/PBH)

Artista BENJAMIM, Marcos Coelho

PAULA, José Avelino de PAULA, Sérgio de SERPA de Andrade, Manuel

VALE, MÁRIO Ricardo Reis do VELOSO, Virgílio

Título da obra e ano Por que rasgou meu retrato, Pato Donald?, 1972 Agente Disney, 1975 Tentativa, 1971 Sem título, 1972 Gastrópodes IX, X e XI Homenagem a Ana Bela, 1970 Homenagem ao personagem Jaldo, 1971 Uma paisagem, 1972 Na procura do nome paisagem, 1974 Série Histórias em quadrinhos, 1973 (composto por 3 obras). Biririu, s.d. (composto por 13 obras).

Salão IV SNA/ PBH – 1972 VII SNA/PBH – 1975

III SNA/PBH - 1971 IV SNA/PBH- 1972 I Salão Nacional de Arte Contemporânea/MABH/PBH – 1969 II SNA/PBH- 1970 III SNA/PBH – 1971 IV SNA/PBH- 1972 VII SNA/PBH – 1975 V SNA/PBH 1973 VII SNA/PBH 1975

Fonte: A autora, 2018.

Considerações finais O Brasil, na década de 1970, vivenciava os primeiros anos de seu regime ditatorial que perdurou por 21 anos, até 1985. Neste período, os artistas iniciaram um processo de questionamento da arte estabelecida e propuseram alternativas voltadas para o experimentalismo e a nova figuração. Em Belo Horizonte, os salões foram um espaço aberto para a discussão de questões artísticas e se tornaram um incentivo para os jovens artistas premiados. Artistas como Sérgio de Paula utilizaram a linguagem do desenho para

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papel jornal, ecoline. Os quadrinhos vão aparecer como linguagem de expressão e

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experimentar novos materiais e novas formas de representação, como plástico vinil,

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comunicação do artista, para manifestações de liberdade, reafirmando as profundas transformações de comportamento que se processavam naquele momento. Como escreve Sampaio (2009, p. 48), em Belo Horizonte, nos anos 70, e com a repressão e a censura atingindo manifestações culturais, houve necessidade de criar espaços que pudessem servir de instrumentos para a arte e sua sobrevivência. Neste contexto, muitas obras premiadas nos Salões, na categoria Desenho, entraram para o acervo do MAP e dentre elas artistas que faziam uso das Histórias em quadrinhos para expressarem sua arte: Mário Vale, José Avelino de Paula, Manoel Serpa e muitos outros. A exposição Histórias em quadrinhos e comunicação de massa (MUSEU DE ARTE DE BELO HORIZONTE, 1972) foi importante para mostrar os artistas mineiros que estavam produzindo e fazendo uso, naquele momento, da linguagem dos quadrinhos como veículo de comunicação e levantando questões sobre os quadrinhos serem obra de arte ou não. O Museu trouxe para seu espaço, uma arte que até aquele momento era questionada como status de arte, institucionalizando de certa forma, seu reconhecimento como obra. Em análise do Inventário da Instituição (MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA, 2010) e pesquisando documentos referentes aos salões da década de 70, no Centro de Documentação do Museu de Arte da Pampulha, foi possível resgatar a origem das obras que entraram para a Coleção de Histórias em quadrinhos. O catálogo da exposição Histórias em quadrinhos e comunicação de massa (MUSEU DE ARTE DE BELO HORIZONTE, 1972) foi um registro fundamental para compreender grande parte de obras da coleção, pois, mais da metade das obras (78%) foram oriundas desta exposição. Em relação ao objetivo de conhecer quem são os artistas representados na Coleção, é necessário um estudo complementar, que caracteriza uma pesquisa mais aprofundada, pois cada artista tem uma representatividade no tempo junto a sua própria obra. O mesmo se refere ao que diz respeito sobre a importância desta Coleção em nível nacional. Desta forma, é indicativo que novas pesquisas sobre este tema abordado sejam

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trabalhadas no futuro.

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Referências ATA DE ELEIÇÃO DOS MEMBROS DA COMISSÃO JULGADORA DO VII SALÃO NACIONAL DE ARTES DA PBH, 1975. In: Caderno de atas dos Salões Nacionais de Artes da Prefeitura de Belo Horizonte (1969-1980). Museu de Arte da Pampulha. Acervo documental. BEZERRA, Juliana. Ditadura militar no Brasil. Disponível em:<www.todamateria.com.br>. Acesso em: 10 dez. 2018. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto-lei n.9215, de 30 de abril de 1946. Proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo território nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 30 abr. 1946. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/CCivil_03>. Acesso em: 18 ago. 2018. CHINEN, Nobu. Histórias em quadrinhos e comunicação de massa. In: Universo HQ, 2007. Disponível em:< http://www.universohq.com/reviews/historia-em-quadrinhos-comunicacao-de-massa/>. Acesso em: 08 nov. 2018. MCCLOUD, Scott. Desenhando quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2007. MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA-MAP. Inventário: Museu de Arte da Pampulha. Belo Horizonte, 2010. MUSEU DE ARTE DE BELO HORIZONTE. Histórias em quadrinhos e comunicação de massa. Belo Horizonte: Museu de Arte de Belo Horizonte, 21 de agosto a 31 de setembro de 1972. (Catálogo de exposição) RAZUK, Paulo. C. Metodologia científica. São Paulo: Unesp, 2010. Disponível em:< http://wwwp.feb.unesp.br/jcandido/metodologia/>. Acesso em: 19 dez. 2018. RIBEIRO, Marilia Andrés. Formação da Arte Contemporânea. In: RIBEIRO, Marilia Andrés; SILVA, Fernando Pedro da (Org.). Um século de História das Artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte, 1997. p. 242-316. SALÃO NACIONAL DE ARTE DA PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 7., 1975, Belo Horizonte. Belo Horizonte: Museu de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, 1975. (Catálogo de salão). SAMPAIO, Márcio. Salão Salões. In MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA. Entre Salões – Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte: 1969-2000. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2009, p. 21-168. SANTOS, I.G.R.B.A; CRUZ, T.A. da; HORN, M.L.V. O desenvolvimento das histórias em quadrinhos no Brasil. E-Revista LOGO, Santa Catarina, v.2, 2011. Disponível em:< http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/eRevistaLOGO>. Acesso em: 18 ago. 2018.

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VERGUEIRO, Waldomiro. A atualidade das histórias em quadrinhos no Brasil: a busca de um novo público. História, imagem e narrativas, Rio de Janeiro, a. 3, n.5, set.2007. Disponível em:< www.historiaimagem.com.br>. Acesso em: 02 set. 2018.

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Entrevista

Débora Raíza Carolina Rocha Silva

Foto: Acervo Pessoal.

Graduada em História, com especialização e mestrado em História e Culturas Políticas pela UFMG. Suas pesquisas são voltadas para os temas da memória, lugares, gênero, direitos humanos e patrimônio cultural. Atualmente é Gerente de Patrimônio Cultural Imaterial do IEPHA-MG, onde atua na proteção e

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salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial do estado de Minas Gerais.

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Entrevista

1 - Comente sobre sua trajetória como profissional do Patrimônio cultural. Minha trajetória é recente. Profissional e academicamente, trabalho na área de patrimônio cultural há cerca de dez anos, tendo tido os primeiros contatos com o tema durante a graduação em História no Centro Universitário Estácio, de Belo Horizonte, iniciada em 2009, por meio das disciplinas de Educação Patrimonial, História da Arte e da Cultura e História de Minas. Foi no contexto dessas formações que o interesse pelo Patrimônio Cultural ganhou sentido e a busca pela experiência prática na área encontrou lugar no meu primeiro estágio, iniciado em 2011. Nesse ano, tive a feliz oportunidade de estagiar na Casa de Cultura Nair Mendes Moreira/Museu Histórico de Contagem, que também abrigava a Diretoria de Patrimônio Cultural de Contagem. Na instituição, as atividades perpassavam tanto a mediação entre o Museu e seus visitantes, como a produção de conteúdos históricos necessários para os processos de patrimonialização dos bens culturais do município. Já formada, trabalhei como educadora no Memorial Minas Gerais – Vale, localizado em Belo Horizonte, no Circuito Liberdade, entre os anos de 2012 e 2013. Nesse período, paralelamente, também executei trabalhos para consultorias que desenvolvem trabalhos na área de patrimônio cultural.

Em novembro de 2013, comecei a trabalhar no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha/MG. Atuei como técnica da área de História na Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial (GPCI) do Iepha/MG até dezembro de 2017, desenvolvendo pesquisas, análises técnicas, peças técnicas dos processos de registro de bens imateriais, trabalhos de campo, materiais de promoção e difusão e, assim, consolidando, junto com a equipe da Gerência, a metodologia de reconhecimento do patrimônio imaterial na esfera estadual. Em janeiro de 2018, fui convidada a assumir o cargo de Gerente da GPCI, no qual me encontro ainda hoje,

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lidando com os desafios e as alegrias desse trabalho.

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conduzindo os processos de reconhecimento e gestão do patrimônio cultural imaterial e

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No âmbito acadêmico, no ano de 2016 ingressei no mestrado no Programa de Pósgraduação em História da UFMG, onde desenvolvi a dissertação intitulada Disputas em torno do Dops/MG: Guerra de narrativas, memorialização e patrimonialização (1989 – 2018). Defendida em dezembro de 2018, a dissertação se ateve aos processos de reconhecimento de um lugar de memória sensível localizado em Belo Horizonte, tendo como um dos eixos centrais os tombamentos municipal e estadual da edificação e as

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disputas que envolveram sua patrimonialização.

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2 - Quais são as reflexões que você pode fazer como profissional dessa área sobre as diferentes formas de reconhecimento do Patrimônio Cultural em suas dimensões material e imaterial? A política pública de patrimônio cultural, durante muitos anos, se pautou no reconhecimento de bens vinculados a processos históricos e arquitetônicos muito similares, passando ao largo da diversidade que compõe as identidades nacionais. Conforme já muito estudado e dito por diversos pesquisadores do campo, num primeiro momento, o tombamento, foi a única ferramenta de proteção do patrimônio cultural e se colocou como uma relevante forma de preservar os bens culturais. Com o tempo, importantes reflexões advindas de diferentes grupos sociais aconteceram e se fizeram presentes na atuação dos trabalhadores da área do patrimônio e nas instituições de memória. A partir disso, a aplicação do instituto do tombamento, direcionado aos elementos de natureza material, dilatou seu olhar e hoje é reivindicada para diversas finalidades, dentre elas, posso citar a de reparação das violações dos direitos humanos, como foi no caso da proteção do edifício que abrigou o Dops/MG.

Já o patrimônio imaterial, cuja ferramenta de proteção é o registro, tem uma trajetória recente, mas com uma reflexão bastante avançada no que se refere ao reconhecimento das diversidades identitárias. Instituído na esfera federal durante os anos 2000, a política do imaterial prevê a anuência como elemento estruturante, a participação das comunidades detentoras no processo, bem como uma salvaguarda mais ampliada, que articule ações que visem garantir qualidade de vida e sustentabilidade dos grupos reconhecidos.

Na minha perspectiva, instrumentos de proteção distintos e segmentações de conceitos para definir o patrimônio cultural foram importantes para compreensão e adoção de

salvaguarda, que as demandas das comunidades não são segmentadas. Os detentores

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entanto, percebo, a partir dos trabalhos que desenvolvo de reconhecimento e

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medidas que fossem apropriadas para as diferentes naturezas dos bens culturais. No


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não distinguem seus modos de vida e práticas culturais entre material e imaterial. Muitas das demandas que recebemos articulam essas duas categorias, como é o caso das solicitações de restauração de imaginárias devocionais associadas às celebrações religiosas e de regularização fundiária de territórios tradicionais. Da mesma forma, a sociedade não compreende os espaços somente pelos seus elementos arquitetônicos, pois os lugares são carregados de significados e representações. Nesse sentido, compreendo que as materialidades e imaterialidades são incontrolavelmente associadas e, assim, acredito que devemos caminhar para uma articulação entre as formas e

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instrumentos de proteção em ambos.

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3 - Comente as metodologias utilizadas no seu trabalho. De acordo com sua experiência, quais os desafios em trabalhar com reconhecimento do Patrimônio Cultural? Falo de um lugar bastante específico para comentar sobre metodologias e desafios: o trabalho desenvolvido no Iepha/MG na Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial. Assim, para falar da metodologia utilizada atualmente e para compreender os desafios que se colocam na sua execução, vou traçar uma breve trajetória do tema na instituição. Do mesmo modo que na esfera federal, no estado de Minas Gerais a política de reconhecimento do patrimônio cultural de natureza imaterial é bastante recente, tendo sido instituída em 2002, com a publicação do Decreto Estadual nº 42.505, de 15 abril, que discorre sobre as formas de Registro. Já marcado por uma caminhada de envolvimento com as comunidades, o Iepha/MG efetivou seu primeiro registro no mesmo ano, com o reconhecimento do Modo de Fazer o Queijo Artesanal da região do Serro. O processo, executado em diálogo com a academia, com os detentores e com outras instituições do governo, inaugurou a aplicação do instrumento. Porém, uma gerência específica para lidar com o Patrimônio Cultural Imaterial somente foi inserida de forma organizada e estrutural na instituição no final de 2008, quando começou a se desenhar uma metodologia própria de trabalho. Manteve-se como método algo já existente na instituição: o envolvimento das comunidades, o trabalho de campo, o Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Minas Gerais – IPAC/MG - desenvolvido na década de 1980 – e a elaboração de pesquisas minuciosas para produção dos dossiês. Por outro lado, os desafios que a novidade colocou para o Iepha/MG foram tantos, que o segundo registro ocorreu somente em 2013, quando o título foi concedido à Festa de Nossa Senhora dos Homens Pretos de Chapada do Norte.

Desde então, a Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial vem construindo formas de

estudos para o reconhecimento dos grupos se dá em três etapas: 1) Identificação; 2) Pesquisa; 3) Elaboração de peças técnicas. A etapa de identificação é composta por REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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consolidar metodologias participativas. Atualmente, pode-se dizer que a elaboração dos

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ampliar sua atuação juntos aos grupos detentores, de aprimorar os processos e de


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ações de mobilização e de mapeamento dos detentores e de suas práticas culturais, pelo levantamento de referências e pela articulação com grupos e gestores locais. Esse momento configura-se como um primeiro esforço de compreensão dos bens culturais e de promoção de canais de participação, de forma que os detentores sejam parte ativa do processo. Uma ferramenta exitosa dessa etapa são os cadastros do patrimônio cultural, iniciados em 2016 e que consistem no preenchimento de formulários específicos pelos detentores e gestores municipais de forma voluntária e incentivada. Os cadastros, atualmente, se tornaram uma das principais formas de comunicação e de gestão do patrimônio imaterial no Iepha/MG, servindo a diversas finalidades.

Concomitantemente, vem a segunda etapa, que compreende a pesquisa documental e o trabalho de campo, que, por sua vez, se colocam como ações fundamentais, sendo marcadas por metodologias diversas, tais como a etnografia, a história oral, os mapas de percepção, os seminários, dentre outras que possam ser compreendidas como mais adequadas para o tema estudado.

Em seguida, a etapa três, na qual são elaboradas as peças técnicas fundamentais para a composição do processo, sendo indispensáveis a produção das fichas de inventário (IPAC), dos registros audiovisuais e do dossiê de registro que é composto, entre outros itens, pelo Plano de Salvaguarda. Como metodologia para a produção dos planos de salvaguarda e para a execução de ações, temos experimentado a elaboração dos Fóruns de Escuta para Salvaguarda e dos Comitês Gestores. Entendo essas duas ferramentas como instrumentos de gestão do Patrimônio Cultural Imaterial, sobretudo porque se dá ouvidos aos grupos que foram historicamente marginalizados das políticas de reconhecimento e de salvaguarda.

Ao discorrer sobre a metodologia, respondo também à questão sobre os desafios, pois, embora compreenda que estes são vários, percebo que a maior parte deles se coloca na participação efetiva das comunidades detentoras em todo o processo. Porém, observo

metodologias participativas; mais a política pública de patrimônio cultural gera REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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apropriam do título de patrimônio; quanto mais são ouvidos; quanto mais criamos

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que quanto mais os grupos são envolvidos na execução da pesquisa; quanto mais se


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impactos positivos para os bens culturais. Acrescento, por fim, que acredito em uma metodologia do afeto. Pois considero que um trabalho sensível, feito de afetos e de admiração mútua conduz a resultados eficazes, já que aproxima as comunidades de um lugar que muitas vezes lhes é negado. Tal aproximação, consequentemente, gera vínculos com o Estado e os grupos veem as portas abertas para suas demandas. Esse

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tem sido o meu lugar no patrimônio cultural imaterial, o das relações afetivas.

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Entrevista

4 - No atual contexto brasileiro, quais sãos as perspectivas para continuidade e implantação de novas políticas públicas no campo do Patrimônio Cultural? Entendo que, atualmente, o campo do patrimônio cultural vem se estabelecendo como uma das principais políticas públicas da área da cultura. Na minha perspectiva, o patrimônio imaterial e as ações de salvaguarda decorrentes da proteção pelo registro, se consolidam cada vez mais e ampliam sua capacidade de articular medidas que visam a sustentabilidade dos bens culturais protegidos. No que se refere aos processos de reconhecimento: amadurecimento das metodologias, implantação de novas formas de identificação

e

ampliação

da

participação;

nos

processos

de

salvaguarda:

aprimoramentos dos materiais de promoção e difusão e articulação com outras políticas públicas tais como fundiárias, culturais, de desenvolvimento econômico, para citar algumas. Hoje, na política estadual, conseguimos dialogar com grupos e detentores em mais de 80% dos municípios e é possível observar, a partir de levantamentos, expressivos investimentos municipais em bens culturais registrados na esfera estadual. Entendo que há muito no que avançar, mas acredito que, embora vivamos um tempo com significativos retrocessos, descasos e escassos orçamentos, as instituições de memória e patrimônio, seus técnicos e, principalmente, os coletivos culturais envolvidos estão trilhando uma trajetória de fortalecimento das políticas patrimoniais. Às vezes nas margens, contando muito mais com a vontade política do que com recursos financeiros e de pessoal, outras vezes com parcerias e negociações, a preservação do patrimônio cultural tem se efetivado, mas não na potência em que poderia ocorrer. Sendo assim, penso que sua continuidade e capacidade de inovação permanecerão no tempo, assim como tem sido ao longo dos anos, porém, pressuponho que a partir de novos arranjos e

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enfrentando os diferentes desafios que se impõem no contexto atual.

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PERCEPÇÕES ENTRE O LUGAR DO PÚBLICO E O ESPAÇO DO PRIVADO: na construção política da nova capital mineira, para os coronéis Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado Perceptions between the public place and the private space: in the political construction of the new capital of Minas Gerais, for colonels Mariano Ribeiro de Abreu and Virgílio Christiano Machado1

Natália Cristina Dias Mártir*

RESUMO: O desenvolvimento deste artigo parte da ampliação e do aprimoramento das discussões pertinentes ao campo da História Política. Especificamente, no que diz respeito à relação público e privado em fins do século XIX, quando da construção da Nova Capital Mineira, e sua relação com os coronéis Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado. Tomando como ponto de partida as releituras que os autores, sobretudo, da década de 1980 a 1990 fazem da atual Belo Horizonte. Palavras-chave: Nova Capital Mineira; Público x Privado; História Política.

ABSTRACT: The development of this article starts from the expansion and improvement of the discussions pertinent to the field of Political History. Specifically, with regard to the public and private relationship at the end of the 19th century, when the construction of the New Capital Mineira, and its relationship with the colonels Mariano Ribeiro de Abreu and Virgílio Christiano Machado. Taking as a starting point the reinterpretations that the authors, especially, from the 1980s to the 1990s make of the current Belo Horizonte. Keywords: Nova Capital Mineira; Public vs. Private; Political History

Introdução Os resultados obtidos de algumas pesquisas2, realizadas entre 2017 e 2019, sobre o tema Belo Horizonte, provocaram novos estudos, focados em outras questões, que não mais delimitadas ao recorte: urbanização, modernidade e República. É sabido que as primeiras produções acadêmicas sobre a cidade se relacionaram às causas e efeitos de sua construção, emergindo conhecidos clichês, que se debruçam nas doces e amargas expressões dos poemas mineiros. Nesse intuito, também outros estudos foram elaborados sob as atribuições da 1

Resultado do Relatório Final Política na Nova Capital mineira: limites entre o público e o privado na prática dos favorecimentos para os Coronéis Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado, de 1889 a 1920 apresentado à Pró-Reitora de Pesquisa e de PósGraduação da PUC Minas. Programa de Iniciação Científica Edital /2019. Fevereiro de 2020.

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Monografia apresentada à PUC Minas: O Processo de urbanização da Nova Capital mineira: Na prática dos favorecimentos para os Coronéis, Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado, durante a especulação imobiliária de 1894 a 1910 (MÁRTIR, 2018) e Relatório Final para o PROBIC/2019 PUC Minas. Política na Nova Capital mineira: limites entre o público e o privado na prática dos favorecimentos para os Coronéis Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado, de 1889 a 1920 (MÁRTIR, 2020). Ver Referências. * Bacharel em História (PUC Minas-2019) Formação Pedagógica, em História (2020-UNOPAR). E-mail: natalia.martir@sga.pucminas.br.

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Geográfica (habitação, crescimento populacional, ocupação) delimitando a discussão às implicações da Urbs. Desse modo, o artigo condiz com uma proposta historiográfica só há pouco explorada e que situa na dinâmica do desenvolvimento sociocultural da cidade a questão econômica. São autores já familiarizados com o tema, redescobrindo o fazer historiográfico em novos apontamentos. Esse tipo de abordagem tem como ponto de partida as condições urbanas e sociais da Belo Horizonte contemporânea e que desencadeiam observações críticas diante da realidade das ocupações privadas em território público; ou ainda, da transferência de administrações públicas para a responsabilidade privada. O interessante é que o conjunto dessas observações não é perceptível somente na cidade do século XXI, na verdade também compreendido quando do nascimento da Nova Capital em Minas Gerais. E que, pela Constituição Estadual de 1891, possibilitou o rearranjo dos interesses privados por meio das atividades públicas. O caminho traçado para se chegar a essa conclusão perpassa pelo entendimento do lugar do público e do espaço do privado na construção da política mineira. Prática de um regime recém-implantado, a República, que vislumbrou na ideologia política a concepção democrática, e na esfera econômica o desenvolvimento liberalista. O uso das fontes foi imprescindível para a construção de nossa narrativa. A consulta aos arquivos se ateve ao conjunto de registros produzidos pela Comissão Construtora da Nova Capital, disponíveis no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, nos jornais do Estado de Minas Gerais, compreendidos entre 1889 a 1920, disponibilizados pela Biblioteca Nacional; e também nos fundos do Arquivo Público Mineiro.

O tema na bibliografia De modo genérico, os estudos sobre a cidade de Belo Horizonte podem ser divididos em dois tempos, o primeiro3, de 1989 à década de 1990, período em que se evidenciam os autores interessados pelo estudo da relação entre o homem e as cidades e, consequentemente, do fenômeno da urbanização. Nas bibliografias, o ponto fundamental de discussão perpassa pela compreensão dos conceitos: modernidade, urbanização e república.

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De acordo com o levantamento bibliográfico, ver lista de Referência: Planejamento urbano e legislação urbanística: o caso de Belo Horizonte (MATOS, 1988); Belo Horizonte: um espaço para a República (MAGALHAES; ANDRADE, 1989); Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna 1891-1920 (JULIÃO; ANASTASIA, 1992) Belo Horizonte: espaços e tempos em construção (MONTE MÓR, 1994); O tema da cidade e da experiência urbana na literatura modernista (ANDRADE, 1994); Memórias, identidades e utopia: a um passo da modernidade na Belo Horizonte do final do século (LIMA, 1994); Belo Horizonte: memória histórica e descritiva (BARRETO, 1995); A noiva do trabalho: uma capital para a República (MELLO; DUTRA, 1996). Imagens de Belo Horizonte de Pedro Nava (PEREIRA; XAVIER, 1996).

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São também atenuantes para o desenvolvimento das pesquisas a revisitação às crônicas, fotografias e poemas que descrevem a NC (Nova Capital). Os textos têm por objetivo a percepção sócio-geográfica da cidade, vistas às propostas arguidas pelo projeto republicano, que revelavam as condições necessárias de urbanização para a cidade, “o povoamento acanhado do Curral foi completamente demolido, em seu lugar a cidade que deveria inaugurar uma nova era” (JULIÃO, 1992, p. 54). Por aqueles autores (década de 1990), a cidade é compreendida como: “espaço que não fora maculado por rastros humanos”, e que, portanto, não se caracterizou pelo ambiente de sociabilidade, nem tão pouco de apropriação dos diversos grupos que ali transitavam (JULIÃO, 1992). E também as contraposições oferecidas pela cidade; a modernização e a modernidade como símbolos atenuantes na criação dos imaginários. O nascimento da cidade em meio às adversidades sociais, causadas pelo fenômeno da industrialização (MONTEMÓR, 1994). Ou ainda, o olhar dos contemporâneos, no caso os modernistas, em relação às expectativas criadas diante da cidade “prometida”, bem como das influências nela sofridas, causadas pelo movimento modernista (ANDRADE, 1994). Já o segundo momento4, iniciado nos anos 2000, reconduz o estudo sobre Belo Horizonte a partir de concepções críticas não apenas históricas, mas também sociais. O desenvolvimento dessa reflexão observa as condições da realidade à época, e suas implicações na esfera social. Remaneja para o conhecimento atual, o entendimento das propostas do passado, relacionando fatos, objetivos e interpretações. Parte dessas contribuições se aprofunda no estudo das apropriações dos espaços, público ou privado, dos conflitos entre a comunidade e o Estado, das novas construções, das habitações, dos sujeitos e instituições responsáveis pela dinâmica de sustentação da vida, por assim dizer, da cidade. Para tanto, consideramos que contribuiu significativamente para a publicação de todos os trabalhos, a pesquisa sistemática e paciente às fontes (jornais, cartas, correspondências, crônicas, fotografias, relatórios, ofícios, entre outros). Em 1990, devido à necessária e urgente revisão dos currículos universitários,

De acordo com o levantamento bibliográfico, ver lista de referências: A Belo Horizonte dos modernistas: representações ambivalentes da cidade moderna (ANDRADE, 2004); Belo Horizonte, uma economia de serviços (PARREIRA, 2006); O problema da habitação popular em Belo Horizonte: 1894-1960 (SANTIAG: O, 2007); A Igreja Católica e a construção do espaço urbano em Belo Horizonte (SANTIAGO, 2001) Belo Horizonte das primeiras décadas do século XX entre a cidade da imaginação à cidade das múltiplas realidades (CALVO, 2013); A República (RIBEIRO. 2018). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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(BOSCHI; PINHEIRO, 2019), transformação provocada, sobretudo, pela abertura


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democrática, foi criado o Programa de Pós Graduação em História (PPGH)5 da UFMG, inicialmente com mestrado e, em 2000, inaugurando o pós-doutorado. O investimento no desenvolvimento e ampliação dos programas de pós-graduação serviu como elemento fundamental na difusão dos trabalhos vindouros. Desde então, as linhas de pesquisa oferecidas pelo PPGH-UFMG conferiram no atendimento da: Ciência e Cultura Política, História e Culturas Políticas e História Social da Cultura. Nelas se destacando os fundamentos historiográficos diretamente relacionados à Modernidade e Tecnologia 6. O Programa privilegiou o aumento de pesquisas específicas sobre Belo Horizonte, o de dialogar com a cidade, expressão peculiar às relações do homem do século XX, possibilitando aos autores mineiros, sobretudo, inspirados pela Nova História Cultural a escolha de Belo Horizonte como recorte excepcional. Na dedicação às pesquisas, tanto dos registros arquitetônicos (1894 a 1990), e vale ressaltar: edificações construídas e demolidas, quanto para os registros culturais, de apropriação dos grupos sociais (artistas de rua, grupos de dança, eventos comunitários, jogos de xadrez), transfiguravam-se em elementos que compunham a representação da história da cidade (PEREIRA; XAVIER, 1997). Entre os anos 2000 aos dias atuais, a importância dada à cidade está, sobretudo, no seu 1° centenário, na percepção mais ampla sobre o século XIX, e na condição permanente entre “a cidade da imaginação à cidade das múltiplas realidades” (CALVO, 2013). A historiografia revela indagações que recorre ao passado, de 1897-1920, para nossa memória, e particularmente para a memória da atual Belo Horizonte. Ainda que aprimoradas ao desenvolvimento acadêmico de cada autor, até a metade dos anos 2000, as obras não deixaram, contudo, de reforçar e repetir os discursos da: República, Modernidade e Urbanização. Ao que tudo indica, a sombra do passado parece sempre rondar qualquer expectativa de discussão sobre Belo Horizonte, seja ela do passado, presente ou futuro; é como se aqueles três fundamentos, político, cultural e social, tivessem estabelecido o poder maior de influência histórica sobre a cidade. O Destaque da Coletânea Estudos sobre Belo Horizonte e Minas Gerais nos trinta anos do BDMG Cultural, de organização dos professores Eliana Dutra e Caio Boschi (2018), apresenta a perspectiva daqueles mesmos autores (1990 a 2000) sobre as mudanças e

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA. Apresentação e Histórico. Disponível em: <http://historia.fafich.ufmg.br/apres.php>. Acesso em: 30 jul. 2019. 6 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA. Linhas de Pesquisa. Disponível em: <http://historia.fafich.ufmg.br/linhas.php>. Acesso em: 30 jul. 2019. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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transformações sofridas pela atual Belo Horizonte. São tomados como pontos de exemplos: a


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situação de nosso sistema metroviário e, consequentemente, os desafios da mobilização urbana. A organização geográfica involuntariamente formada e também a “fragmentação da urbs, perdem-se os espaços públicos reforçam a privatização espacial e social” (BRANDÃO, 2018, p. 33). A influência de todos os trabalhos corrobora para a sustentação teórica acerca do objeto estudado, contribuem significativamente para a produção do conhecimento. Das discussões políticas, culturais e sociais acerca não apenas da cidade de Belo Horizonte, mas também de todas as criações advindas da modernidade. Na proposta deste artigo é possível elaborar os seguintes questionamentos: o que definimos por público e privado? Existem limites entre o público e o privado? Ambos dividindo o mesmo espaço, qual tem maior direito sobre o outro? Estes apontamentos surgem quando percebemos na arquitetura da cidade o predomínio das construções privadas, em espaços anteriormente cedidos à sociabilidade das comunidades regionais (bairros tradicionais, praças); ou ainda, na apropriação de estabelecimentos históricos, sobretudo, erguidos a partir de 1895, para o alojamento de estacionamentos, lojas, bancos, drogarias, engenhocas eletrônicas e igrejas (BRANDÃO, 2018, p.30). A discussão sobre as práticas político-econômicas dispostas nos dois extremos não se limita às representações concretas da cidade, quer dizer, em suas construções ou apropriações, mas também, na dinâmica das relações interpessoais. Esse exemplo pode estar disposto nas situações em que acordos comunitários são firmados em prol do bem estar social, quando uma empresa é retirada deste espaço (o da comunidade) pelos moradores, por causar algum prejuízo social; e também em contratos firmados entre interesse particular e o Estado. Enfim, são contextos que exigem aproximação entre as várias manifestações de interesse público de um lado, e privado de outro. Carlos Brandão (2018) tende a considerar que experimentamos na presente conjuntura o esfacelamento do público e o fortalecimento, cada vez maior, do privado.

História e cultura política da nova capital mineira

A respeito da concepção de cultura política no Brasil, José Murilo de Carvalho (1990)

elas: o liberalismo à americana, o jacobinismo à Revolução Francesa, e o Positivismo.

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que acabou resultando numa singela disputa para a implantação de uma República; foram

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considera que três linhas ideológicas estiveram à frente do pensamento intelectual à época,


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Todas numa “batalha pela criação do imaginário popular”: O indivíduo autônomo, capaz de superar o próprio Estado, articulando-se nas questões econômicas e sociais (liberalismo), a democracia direta idealizada na democracia clássica (jacobinismo), e a ideia da reorganização da sociedade baseada num contínuo progresso (Positivismo). O discurso republicano, como pensado e idealizado por uma elite, deveria atender a um discurso acessível, que alcançasse aqueles (classe), que não pertenciam ao círculo dos privilégios sociais, de modo claro, um público que não tinha educação formal. Logo, este discurso só poderia se realizar mediante “sinais universais”, símbolos, bandeira e mito. Este ensaio dos grupos resume o que podemos dizer da necessidade de legitimação política, “uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular dentro dos valores republicanos” (CARVALHO, 1990, p.10). Sabemos, contudo, que apenas uma corrente foi viável, pois, duas delas não cabiam, nem mesmo se encaixavam dentro do cenário histórico e social brasileiro. A princípio a maior influência ocidental foi a dos franceses, porém, o jacobinismo não venceu, não ganhou muita força nem mesmo tantos adeptos, a explicação estava nas permanências de um Brasil autoritário, e que sempre concentrou o poder nas mãos dos senhores, eliminava de certo modo a participação popular. Outra, a filosofia positiva, apresentava três aspectos primordiais que se encaixavam nos “desejos” da nova classe emergente no Brasil, e que por assim dizer, era vantajoso para seus interesses comerciais: 1- condenação à monarquia, 2- separação entre Igreja e Estado, 3a ideia de uma sociedade em progresso “progresso e ditadura, o progresso pela ditadura, pela ação do Estado, eis um ideal de despotismo ilustrado que tinha longas raízes na tradição lusobrasileira desde os tempos pombalinos do século XVIII” (CARVALHO, 1990, p. 27). E o liberalismo à americana? O autor ressalta que, essa “não estava interessada em promover uma república popular”, e partilhava de ações e repreensões que caracterizavam o darwinismo social. É possível então saber como as coisas se encaminharam nas propostas do Novo Regime, e talvez, nem mesmo pela maior força de um, ou menor força de outro, mas, a própria estrutura histórica do país já predestinava o seu rumo de pensamento político para a implantação da República. República e Liberalismo por outro lado, podem não demonstrar, mas guardam nos

“republicanismo enfatiza os deveres e a participação política dos cidadãos, enquanto o liberalismo salienta os direitos e se baseia nas liberdades negativas dos cidadãos, motivados REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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(BRESSER, 2004). Esses fundamentos provocam desgastes, sobretudo, nas sociedades. Se

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registros da história disparidades provocadas pelos fundamentos ideológicos que os definem


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por interesse próprio” (BRESSER, 2004, p. 135), como é construído um Estado delegado neste caso? Envolta aos discursos políticos que se apresentavam no Brasil a partir de 1870, a Cidade de Minas (primeiro nome adotado para a capital), representou para o contexto de mudanças e transformações à época, uma cidade portadora de novos ideais para o desenvolvimento político-econômico de Minas Gerais. Esse desenvolvimento esteve condicionado à cultura política que acabara de se estabelecer, um quadro administrativo de servidores públicos7, que entendiam estar no exercício das atividades de expansão industrial, investimento e especulações, a mola propulsora para o real crescimento econômico da NC. Nessa conjuntura, a implementação dos interesses “públicos”, muitas vezes se desviavam para as práticas de interesses privados. É necessário considerar que, como atesta Luís Carlos Bresser (2005), as atribuições de público e privado partem de suas concepções clássicas, público (aquilo que diz respeito ou pertence ao povo), e privado (aquilo feito para benefício próprio). No entanto, ainda que entendidos como conceitos advindos das sociedades de nossa História Clássica, a República é o modelo político que só pode ser entendido a partir de suas experiências reais, ou seja, também dos componentes político, econômico e social que integram o cenário. No caso do Brasil do século XIX, culturalmente, as permanências dos privilégios da classe política e elitista, remanescentes do período imperial. Na economia a questão internacional, que mostrava o crescimento da classe burguesa no desenvolvimento do capitalismo industrial (COSTA, 1979, p. 20). O Brasil, como último país das Américas a se tornar República, resistia às mudanças e transformações econômicas e principalmente políticas, pelo receio de perder o controle e poder haver muito restritos; desta feita o Império era de certo modo, pressionado a reformular sua política monopolista e escravista. Ainda que representado por um único partido, o Partido Republicano Mineiro, a constituição da base política mineira só foi possível graças à conciliação entre: republicanos históricos, evolucionistas e progressistas. Essa dinâmica demonstra quais foram as medidas necessárias para a convocação daqueles que comporiam o grupo dos Constituintes, representantes responsáveis no final de 1890 pela construção dos textos da Constituição

A ocupação de servidor público deve ser aqui entendida obedecendo às limitações do contexto à época, ou seja, apenas como: funcionário do Estado, e não servidor dos interesses públicos.

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Federal e Constituição Mineira de 1891.


Artigos Livres Republicanos históricos, que se autodenominavam históricos, buscando com isso recortar não apenas o grupo daqueles que assinavam o Manifesto de 1870, mas ainda, demarcar entre esses os que desde os tempos da Campanha, timbravam por uma postura de ruptura radical com a ordem imperial. Evolucionistas, aparece, sobretudo, no sentimento de que o processo histórico é essencialmente espontâneo, e a ação dos homens não deve contrariar a evolução natural. Não se deve apressa lá como querem os revolucionários. Deve sim adaptar as instituições e as leis às realidades novas, facilitando a evolução e antecipando as rupturas indesejadas. Progressistas, ex-conservadores, monarquistas. (MINAS GERAIS, 1989, p. 18-19)

A história das conciliações partidárias, bem como do próprio nascimento dos partidos políticos no Brasil, surge da “abertura” necessária à participação representativa de outras correntes ideológicas. Vistas as condições conturbadas que se encontrava o reino de Portugal na segunda metade do século XIX, a emancipação política “conquistada” em 1822, revela o esfacelamento da estrutura administrativa monárquica (FAORO, 1997). A conciliação, por vezes, na história republicana, apresentou-se como melhor caminho na tomada das decisões, sem essa condição maiores obstáculos surgiriam, causando impedimento na firmação dos acordos. Representações partidárias que sempre se mostraram muito radicais tenderam a encontrar maiores dificuldades, fosse ele no cenário antecedente a 1870 ou mesmo em 1889. Esse entendimento parte da conjuntura encontrada ao longo do contexto das Revoltas8 e contestações ideológicas, pois, não se caracterizavam pela união ou solidariedade entre os pares, quer dizer, funcionavam como movimentos "sociais" e ou políticos isolados, buscando a conquista dos interesses específicos às suas regionalidades. Esses movimentos apresentavam na formação a centralidade das características étnicoculturais, quer dizer, sua integração ou era só de paulistas, ou só de mineiros, ou só de negros. E mesmo quando reunidos em mesmo grupo, o faziam por motivos que atendiam em parte às suas necessidades (CARVALHO, 2007). Ao contrário da tradição encontrada na Europa em fins do século XIX, o surgimento, no Brasil, dos partidos que se identificavam com as questões de cunho social só aparecem no início do século XX, e ainda é, claro, muito acanhado. A sombra dos movimentos radicais, mais propriamente os de esquerda, na condução dos interesses políticos foram mal vistos, pois, ameaçavam o equilíbrio há muito “conquistado” pelas hegemonias. O autor Guilherme Avelar (2010), procurador da Câmara Municipal de BH,

Em referência às revoltas e motins ocorridos no Período Regencial, a saber: 1831-Noite das Garrafadas (RJ); Revolta dos Mata Marotos (Salvador BA)/1832-1836- Cabanada (PE, AL)/ 1833- Revolta da Fumaça; Revolta da Carranca (MG)/ 1835-1836; Cabanagem (PA)/ 18351845 Farroupilha (RS); Revolta os Malês (Salvador BA)/ 1837-1838 Sabinada (BA)/ 1838 Revolta de Manoel Congo (RJ)/ 1838-1842 Balaiada (MA; PI)/ 1842- Revoltas Liberais (MG; SP)/ 1848- Revolta Praieira (PE). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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responsável pelo Programa Pró-Memória Legislativa e pela organização da Revista Lei


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Orgânica - 20 Anos, apresenta em Ciclones e macaréus: o parlamento na história de Belo Horizonte, o olhar da cidade sobre sua própria história, em 928 páginas dedicadas ao entendimento dos trabalhos, obstáculos e conquistas do Congresso Mineiro. Também a Assembleia Legislativa (MINAS GERAIS, 1989) retoma ao passado da elaboração e promulgação das Constituintes Mineiras de 1891, 1935 e 1947. A trajetória dos principais marcos históricos do Congresso Mineiro, tendo por objetivo sintetizar a relação entre elas, observando as conjunturas: política, econômica e cultural na qual estavam inseridas. Analisa, contudo, as perspectivas republicanas em relação à reestruturação dos parlamentos, os erros e acertos das redações, e por fim a distância entre idealização e realidade. Outro ponto interessante de As Constituintes Mineiras de 1891, 1935 e 1947: uma analise histórica (MINAS GERAIS, 1989) é a explicação de termos e conceitos partidários utilizados à época; a relevância da bibliografia é evidenciada pelo contexto no qual foi publicada, 1989. O ano de publicação do trabalho surgiu em momento oportuno, já que, provocou em seus leitores o ensaio de reflexões para a compreensão da Constituição de 1988.

O lugar do público e o espaço do privado na construção política da nova capital mineira Na intenção de colaborarmos para a construção de um pensamento crítico- social, fazse necessário refletir sobre: quais foram os elementos históricos que contribuíram para a formação de nossa cultura política? Parte dessa fração está no alojamento de uma estrutura enraizada desde a 1ª República, tendo a mesma, com algumas transformações, conduzido à organização da sociedade atual (VISCARDI, 2014). O desenvolvimento desse entendimento parte da apresentação dos fatos, que ilustram a prática, não isolada, das atividades pública e privada, bem como a percepção de seus limites. Nessa conjuntura, a Constituição Federal e Mineira serve de base para a defesa daquilo que, podemos considerar público, não obstante, na redação do mesmo texto as especificações do privado. Podemos considerar que as contrapartidas da República no Brasil, historicamente são percebidas tanto pelas permanências político-culturais do Antigo Regime, quanto pelo

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empreiteiros e comerciantes (FAORO, 1997).

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fortalecimento das novas classes sociais, especificamente, no caso de Belo Horizonte, pelos

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Esse cenário, um tanto que controverso, esclarece que a concepção da (Res) pública (MACHADO, 1995) soou como elemento meramente ideológico, ou seja, para a criação de um mecanismo discursivo convincente. Logo, não cedeu espaço para a coisa pública; nem no Regime político que a representou, nem na sociedade que, naquele contexto, ganhava espaço para a consolidação dos interesses privados. Deste modo, a defesa para a condução política do país por meio da “liberdade e participação popular”, não consiste no entendimento da dominação pública sobre as decisões das atividades econômicas. O que a sociedade burguesa deseja é a abertura, no que tange aos trâmites burocráticos, para a tomada das decisões que interessam as vantagens de suas implementações empresariais (RÉMONDE, 1990).

O movimento liberal é a primeira onda de movimentos que se desencadeia sobre o que subsiste do Antigo Regime, ou sobre o que acaba de ser restaurado em 1815 (....). O liberalismo é, portanto, o disfarce do domínio de uma classe, do açambarcamento do poder pela burguesia capitalista: é a doutrina de uma sociedade burguesa, que impõe seus interesses, seus valores, suas crenças. Força subversiva da oposição ao Antigo Regime, ao absolutismo, à autoridade, ele tem também uma tendência conservadora. O liberalismo tomará todo o cuidado para não entregar a povo o poder de que o povo privou o monarca. (RÉMOND,1990, p. 25-32).

Os personagens desse recorte ganham destaque por representarem não apenas o grupo de interesse, mas também, por estarem no centro dos trabalhos que diziam respeito à Constituinte Estadual de 1891, bem como os diversos assuntos referentes à esfera pública que compunham os debates no Congresso Mineiro - Mariano Ribeiro de Abreu na Câmara dos deputados e Virgílio Christiano Machado na Câmara dos vereadores9. Mariano R.A10 militar, político e empresário mineiro, nasceu em 1859. No período compreendido entre 1890 a 1899, percorreu no Estado os municípios de: São Miguel de Guanhães (Guanhães), Ouro Preto, Bom Sucesso, Capella Nova, e Belo Horizonte11. Ganhou ascensão na NC conquistando a patente de Coronel Chefe do Estado12, faleceu em 17 de abril de 1901. Aproximou-se das mesmas Comarcas no início dos anos de 1890, quando em concorrência para o cargo de deputado no Congresso Mineiro. E, em 1893, tornando-se vicepresidente da Câmara dos deputados. Seus trabalhos no exercício dos interesses privados

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ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Câmara dos Deputados, Assembleia Provincial e Congresso Mineiro. Subtítulo: 1ª Legislatura-Sessões de junho de 1891 a abril de 1892. Anais dos trabalhos da Câmara dos deputados do Estado de Minas Gerais. Ouro Preto. Ouro Preto. 1892. Disponível em < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fundos_colecoes/brtacervo.php?cid=3> Acesso em: 02 maio 2019. 10 Abreviatura para Mariano Ribeiro de Abreu. 11 Sobre todas as atividades de Mariano Ribeiro de Abreu, ver Referências, de 1890 a 1895. 12 ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Biografia. Plataforma Hélio Gravata. ABREU, Mariano Ribeiro de. Coronel Mariano Ribeiro de Abreu. Periódico. Pequeno Comentário de Hélio Gravata sobre a Obra. Ouro Preto. 1901. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/gravata/brtacervo.php?cid=21862&op=1> Acesso em: abril 2017.

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tiveram início em 1892, na ocasião tendo como objetivo a atuação empresarial no ramo farmacêutico. A descoberta da Vegetalina13, tintura [composto de vegetais, therapéutico] produzida na cidade de Bom Sucesso-MG pelo [fharmacêutico] Antônio Teixeira da Silva, além do auxílio no tratamento do [rheumatismo] também atuava como solução aos pacientes da [syphylis], e em todas as [moléstias da pelle e originadas da impureza do sangue]. Dalí a diante foram publicados, entre os anos de 1895 a 1908, pela mesma cidade, os “reconhecimentos de firma” requeridos desde 1892. O deputado também se empenhou na prática de serviços que lhe proporcionassem a consolidação de investimentos concretos, e que, sem sombra de dúvidas, abriria expectativas para o desenvolvimento econômico em múltiplos outros serviços. Foi o que começou a acontecer a partir de 1893, quando propôs à prefeitura da Cidade de Minas o fornecimento de matérias para a construção da via férrea; E em 1895 se associando à Companhia Agrícola e Industrial Oeste de Minas. Vendo o leque de oportunidades financeiras, disponíveis nas empreitadas para construção da Nova Capital se apropriou de alguns terrenos entre 1895 a 1898, realizando assim movimentos de compra, venda e permuta de lotes e imóveis. Já Virgílio C.M.14 iniciou sua carreira nas Minas por meio da imigração, nascido em 27 de fevereiro de 1853, na cidade de São Francisco do Sul (Santa Catarina); filho do também Col. José Nicolau Machado Júnior. Militar, político e empresário, esteve presente nas regiões de Congonhas do Campo (Congonhas); General Carneiro (Sabará) onde investiu em terras e serviços de empreitadas (diversos ramos); também em Nova Granja (Vespasiano), região rica na extração de matérias primas para construção civil; e em Belo Horizonte, na aquisição e venda de lotes. Faleceu em 10 de setembro de 193715. Quando do início da história republicana na NC, exatamente no ano de 1889, Virgílio C. M manifestou interesse em ocupar cargo político, momento em que participou do processo de prova eleitoral na então capital Ouro Preto16. No ano de 1894, já exercendo o cargo

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FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL/HEMEROTECA DIGITAL. A união. Ano 1895, Edições 00033, 00037, 00038, 00418/ Ano 1897. Edição 00531. A Vegetalina na cura da Morphea - Mariano Ribeiro A. citado como vice-presidente da câmara. (reconhecimento de firma, solicitação cidade de Bom Sucesso). Bom Sucesso. 1895- 1897. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=873268&pasta=ano%20189&pesq=&pagfis=0> Acesso em: abril, de 2017 14 Abreviatura para Virgílio Christiano Machado 15 Sobre todas as atividades de Virgílio Christiano Machado ver Lista de Referências, de 1889 a 1894. 16 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL/HEMEROTECA DIGITAL. Jornais de Ouro Preto: Órgão do Partido Conservador 1884 a 1947. Edição 00619. Relação De Ouro Preto, Julgamentos (prova de renda eleitoral; Rio das Velhas, recorrente, o juízo; recorrido, Virgílio C.M.) Ouro Preto. Ano 1899. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=222747&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=1738> Acesso em: maio de 2017.

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público, foi indicado como “candidato a ocupar o lugar de vereador Geral17”, e em 1896 almejou a carreira na esfera federal, alistando-se para as eleições pelo município de Sabará. A posição de Virgílio em cargo público também se estendia ao serviço militar, como capitão até 1894, após, sendo nomeado Tenente Coronel Comandante da Milícia Cívica da mesma Comarca; responsável pela condução de um, dos dois batalhões de Infantaria. A permanência no cenário político viria em 1902, quando se submeteu novamente ao alistamento eleitoral18. Virgílio C.M.19 que se casara em Congonhas do Campo em 1889, se aproxima da Comarca de Ouro Preto e, em meados de 1894, da Comarca de Sabará. O descolamento ocorreu justamente pelo envolvimento com a vida política e econômica, cada vez mais desenvolvida no polo urbano. O exercício nas atividades de cunho privado começou a se expandir a partir de 1892, quando trabalhou para conseguir, por meio da obtenção de “favorecimento e garantia de juros” a construção para o estabelecimento de um Engenho Central. Ainda naquele ano, inaugura para o Rio Das Velhas, em Sabará, um vapor (navio movido por máquina de vapor) o Hangreaves e, em 1893, o Amaro Cavalcanti. Esse ramo econômico o fez ser reconhecido como empresário dos trabalhos de navegação. Dalí em diante, esteve ligado às empresas da Companhia Fabril Cachoeira Grande e Companhia Aurífera de Minas Gerais, ambas como sócio e acionista. O capital no Brasil, a partir de 1850, devido a múltiplas complicações com o mercado externo, sobretudo, encontrando prejuízos nas exportações e estagnação no tráfico negreiro, encara como possibilidade para o desenvolvimento econômico: A política de urbanização, em que, a cidade, até então mero posto de arrecadação fiscal ou porto, transforma se em mercado (....). A ação dissolvente do capital, mercantilizando relações sociais, organicamente hierarquizadas se instala nas cidades pela ação da própria Coroa que, as objetivar a preservação e a expansão, em novos moldes, dos monopólios ou privilégios que caracterizam a classe senhorial, buscou difundir uma civilização. (MINAS GERAIS, 1989. p. 24).

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FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL/HEMEROTECA DIGITAL. O contemporâneo. Edição 00022.Virgilio Machado (indicação para o cargo de vereador geral) Sabará. Ano 1894. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=225509x&pesq=Virgilio%20Christiano%20Machado&pagfis=250 >Acesso em: maio 2017. 18 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL/HEMEROTECA DIGITAL. O contemporâneo. Edição 00005. Guarda Nacional (nomeações feitas; formação da milícia cívica, dois batalhões, batalhão de infantaria Tenente Coronel Comandante Virgilio C.M) Sabará. Ano 1894. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=225509x&pesq=Virgilio%20Christiano%20Machado&pagfis=258. Acesso em: maio 2017. ____. O contemporâneo. Edição 00011. Editaes. (alistamento eleitoral; Virgilio C.M) Sabará. Ano 1902. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=225509x&pesq=Virgilio%20Christiano%20Machado&pagfis=567> Acesso em: maio 2017. 19 VIRGÍLIO CHRISTIANO MACHADO. Geni. Disponível em:<https://www.geni.com/people/Virg%C3%ADlio-CristianoMachado/6000000055820883853>. Acesso em: setembro 2019. VIRGÍLIO CHRISTIANO MACHADO. Wikitree onde os genealogistas colaboram [tradução] Disponível em:<https://www.wikitree.com/wiki/Machado 1937>. Acesso em: setembro 2019.

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A partir dessa compreensão é possível estabelecer quais foram, ao longo da história política republicana mineira, as condições que permitiram a sedição do espaço, cada vez maior, para o fortalecimento dos interesses privados. A dinâmica que envolve a construção da NC, defendida sob o ímpeto dos interesses “públicos”, revela, também, o gerenciamento de suas edificações, sob o domínio das associações anônimas e empreiteiras20. Uma característica da integralização de outros serviços à economia mineira, na segunda metade do século XIX, especificamente em 1852, se qualifica pela criação das Companhias Fabris (algodão). Foram as pioneiras: Companhia Manufatureira, em Conceição do Serro, e outra no Sul de Minas. Em 1883 era fundada a Companhia Cedro e Cachoeira, constituindo a primeira sociedade anônima no Brasil (LUCAS, 1991). Os investimentos depositados nas indústrias de tecido podem ser explicados pelo sucesso e desenvolvimento das atividades agrícolas, principalmente no ramo da plantação e fornecimento do algodão. A siderurgia alcançaria espaço em 1861, quando da construção da estrada União e Indústria, que ligava Juiz de Fora ao Rio de Janeiro, a ligação com os trilhos ouro-pretanos viria em 1888 e, em 1895, a Nova Capital recebia sua extensão por meio da Estrada de Ferro Central do Brasil (LUCAS, 1991, p. 17-24). Estiveram entre 1890 e 1900 à frente das relações de poder, fosse ele político ou econômico, os mesmos senhores, representantes da classe média. Em decorrência das múltiplas transações empresariais, fica evidente que o privilégio conquistado por ambos não fora fruto da implantação do regime republicano, mas da cultura patriarcalista. De todo modo, sustentada pela autonomia e destreza liberalista (DOMINGUES, 2008). A permanência do mesmo grupo, coronéis (neste caso, cargo militar e posição social) na representação dos interesses políticos21 no município mineiro, explica de certo modo as condições em que estivera colocada a base de nossa cultura política. Saímos da centralização política após 1822, entretanto, permanecendo sob o jugo da dominação patriarcal. A autonomia dos Estados surge como primeira e importante mudança de nossa estrutura política, a partir dela a organização das chapas para eleição de 25 de janeiro de 1891 aguçam os interesses dos homens socialmente privilegiados. Sabiam que a integração ao

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Neste caso referindo se à "Sociedade Anônyma" denominada: Companhia Fabril Cachoeira Grande, que composta entre outros, o acionista: coronel Virgílio C.M, também as empreiteiras de Mariano e Virgílio. Ver Referências. 21 Interesses políticos: coronelismo. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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político e econômico (MINAS GERAIS, 1989).

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círculo do novo regime possibilitaria, sem dúvidas, a consolidação das permanências de poder


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O congresso mineiro na constituinte de 1891: representantes e representados

Oficialmente, o lugar do público na história da NC mineira surge quando dos trabalhos iniciados no Congresso mineiro. Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, nos Estados coube às organizações partidárias o cumprimento da indicação aos nomes, cujas listas ajudariam na composição das chapas para as eleições dos Congressos estaduais de 1891. No Estado de Minas Gerais, em concomitância à cultura e regime políticos há muito experimentados, aliaram-se conservadores e republicanos, no objetivo comum de dar ensejo à votação de Deputados e Senadores; bem como da construção das Constituintes federal e municipal. De 1889 a 1890, os coronéis se submetiam à prova de renda eleitoral, critério herdado da Constituinte de 1824, que possibilitava inclusive a condição ao alistamento eleitoral até aquele momento. Como já citado, estiveram à frente, para o desenvolvimento das “novas” discussões nacionais, os grupos partidários formados por: republicanos históricos (cujas afinidades se afirmavam tão somente aos fundadores do Movimento Republicano de 1870); evolucionistas (defensores da transição natural dos regimes e ideias político-partidárias, cujo processo, no seu entendimento, deve consistir na transformação espontânea); e progressistas (exconservadores, no caso os monarquistas). De modo geral, havia duas correntes partidárias: a Chapa Official do Partido Republicano em Juiz de Fora, e a Chapa de Ouro Preto em Ouro Preto, cujas tradições conglomerava as novas alianças: liberais e conservadores22. Em 25 de janeiro de 1891, estavam eleitos 32 deputados, dos quais os S Adaberto Ferraz, Alexandre Barbosa, Aristisdes Caldeira, Arthur Itabirano, Bernadino de Lima, Camillo Prates, Carlos Marques, David Campista, Eduardo Pimentel, Eloy Reis, Ernesto Braga, Eugênio Salles, Henrique Diniz, Idelfonso Alvin, Ignácio Murta, João Luiz, Josino de Brito, Leopoldino dos Passos, Levindo, Lindolpho Caetano, Manoel Alves, Mariano Ribeiro de Abreu, Monte Rase, Nelson, Nogueira, Olegário Maciel, Otavio Ottoni, Rodrigues Chaves, Sabino Barroso Junior, Severino de Rezende, Simão da Cunha, Teixeira da Costa.

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Hemeroteca Digital. O Serro. Edição 00015. Congresso Mineiro – (Chapa organizada para a eleição de 25 de janeiro, entre outros, Mariano R.A) Serro. Ano 1891. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=849898&pesq=mariano%20ribeiro%20de%20abreu&pagfis=58>. Acesso em: agosto 2017. ____. O Serro. Edição 00018. Congresso Mineiro Eleição de 25 de janeiro (deputados, candidatos das chapas eleitos, 1° de fevereiro de 1891, deputado Mariano R.A) Serro. Ano 1891. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=849898&pesq=mariano%20ribeiro%20de%20abreu&pagfis=69>. Acesso em: agosto 2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Entre estes, também 24 senadores, que junto à Câmara dos deputados (extinta Assembleia Provincial) compunha o Congresso Mineiro. Este, por sua vez, e de acordo com a Constituição Republicana, adotando o bicameralismo, cuja característica concedia às Casas autonomia para gestão administrativa e legislativa do Estado. O funcionamento da República Federalista se apresentava como desafio às velhas estruturas políticas, no entanto:

Saia se do unitarismo do Império e das limitações das Províncias para o Federalismo da República e das maiores possibilidades dos Estados. Federalismo cauteloso. A moderação foi a tônica dominante, como não era de se surpreender, em um conjunto legislativo no qual muitos dos expoentes emanavam dos velhos quadros imperiais, alguns como deputados, senadores, ministros, presidentes de Províncias. Os republicanos históricos eram em menor número que os adesistas, que aceitaram a República como fato consumado ou aderiram à causa nos últimos instantes. (MINAS GERAIS, 1989. p.19).

Realizada as eleições para composição do Congresso, o próximo passo seria a “organização federal dos Estados para a construção e votação da Constituinte”. Em Minas Gerais ela fora promulgada em 15 de junho de 1891; no dia seguinte, 16 de junho, começando os trabalhos para a criação de novo Regimento Interno e Projetos de Leis, que passariam à responsabilidade das Comissões assim nomeadas: Regimento Municipal, Lei Eleitoral; Organização judiciária, Terras e Colonização, Regimento Tributário, Instrução Pública, Secretarias23. Mesmo consolidado o amparo legislativo para a liberdade dos escravos, liberdade do comércio, e representatividade política democrática, a apropriação da representação e participação eram restritas ao mesmo grupo. Elegiam-se apenas aqueles que, em juízo, comprovassem renda, e no interesse particular de cada grupo “os elementos politicamente ativos eram em pequeno número, a representatividade dos constituintes era bastante limitada” (MINAS GERAIS, 1989, p. 19).

ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo: Público. Câmara dos Deputados, Assembleia Provincial e Congresso Mineiro. Subtítulo: 1ª Legislatura-Sessões de junho de 1891 a abril de 1892. Anais dos trabalhos da Câmara dos deputados do Estado de Minas Gerais. Ouro Preto. Ouro Preto. 1892. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/assembleia/brtacervo.php?cid=665&op=1> Acesso em: abril. 2017. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Não eram os eleitores os supostos representados, independentemente do critério censitário ou de alfabetização adotado, que elegiam os representantes; ao contrário, eram os representantes que produziam, na sua exata medida os representados necessários a se forjar a prova de legitimidade do predomínio da facção política no governo. Os responsáveis pela proposta, conservadores, não viam contradição na busca do sufrágio universal com a exclusão do analfabeto, pois, acreditavam que a alfabetização seria uma condição realizável, dependente unicamente da vontade dos indivíduos, quando a realidade do país, à época, sobejamente atestava o contrário. (MINAS GERAIS, 1989, p. 33-34).


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Diante das características geográficas e políticas que norteavam o andamento das disputas eleitorais, um pequeno grupo, representado por: comerciantes, senhores de terra, clérigos, funcionários públicos e industriais, “eram reduzidos e dividiam-se por interesses menores, meramente localistas” (MINAS GERAIS, 1989, p. 19). Nessa prática, a particularidade dos interesses privados abarcou a concentração das pautas que deveriam ser do interesse público, como, por exemplo, a destinação dos recursos para a melhoria das cidades. O privilégio da “participação política” quanto à elegibilidade envolvia, de acordo com o Título III Do Regimento Eleitoral da Constituição de 1891, a obrigação de: Art 82 “ser maior de 21 anos, saber ler e escrever”. Já sobre os eleitores o texto se limita apenas à condição daqueles que, na abordagem, estavam excluídos: Art.83 “os mendigos, os analphabetos, e religiosos ou congregacções” (MINAS GERAIS, 1989. p 103104).

Considerações finais Na leitura dos Artigos que compõem o Regimento Eleitoral é espantosa a verificação de que, quase toda a abordagem se atém aos elegíveis; não há ressalvas explícitas sobre os eleitores. Contudo, a compreensão para a reformulação das considerações se pauta nas lacunas e restrições apresentadas pela Constituição Federal Republicana. Quer dizer, ao afirmar que “mendigos e analphabetos” estão exclusos da eleição, pela contextualização também se eliminam: pobres, negros e mulheres, ou, numa melhor definição, a maior parte da sociedade (MINAS GERAIS, 1989, p. 104). O Art 84 conclui que: “são elegíveis todos os que podem ser eleitores, salvas as restricções estabelecidas nas Constituições”. Sabemos quem eram os cidadãos alfabetizados; e ainda, não podendo ser mendigos, obviamente deveriam gozar de alguma renda. Os apontamentos acabam por nos levar ao ponto de partida: os privilegiados nas votações até 1889 (MINAS GERAIS, 1989, p. 103-105). A partir dessa compreensão são conhecidas as especificidades do desenvolvimento das relações econômicas pós 1889. Assim como a condução dos conluios políticos se faziam pela orientação do poder local, também se estabeleciam os “acordos” para a aquisição de privilégios e ou vantagens de cunho privado.

Regime, ou privilégios das vindouras Repúblicas. Contudo, na Constituinte de 1891, vistas as condições, naturais do processo de transição, essa permanência se fez bem mais presente. Por REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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revela entre outras questões: a permanência do patriarcado; fosse ele nos resquícios do Antigo

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Uma das marcas mais profundas, deixadas pela cultura política na história do Brasil,


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essa Constituição limitamos a compreensão acerca daquilo que, em virtude das transformações de regimes políticos, definimos como [público], e tal definição como também já explicado, parte mais do contexto experimentado e projetado, do que pela significação à primeira vista criada.

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Artigos Livres ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00053. Secretaria Do Interior (requerimento de Virgilio pedindo garantia de juros e outros favores para um engenho central na Capella Nova). Ouro Preto, 1892. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00129. Revista Do Interior (inauguração do vapor Hargreaves cujo proprietário o senhor Virgilio Christiano Machado, empresário dos trabalhos de navegação) Ouro Preto, 1892. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00082. Navegação Fluvial (empreiteiro Virgilio Christiano Machado envolvido em construção de navegação fluvial). Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00132. Faculdade Livre De Direito (Virgilio C. M, concorrência para o patrimônio da Faculdade Livre de Direito) Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00149. Obras Públicas (Virgílio Christiano Machado, requerimento para o privilégio e favorecimento no estabelecimento de engenho) Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição? Acta da constituição de uma sociedade anonyma (onde consta a relação nominal dos sócios envolvidos na Companhia Fabril Cachoeira Grande, estão descritos com o número de ações tomadas, estes sócios fornecem o capital social para o desenvolvimento de uma fábrica de lá. Ouro Preto. [s.d.] ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. (art. 1 Instituído os proprietários das ações de uma Sociedade Anonyma). Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00279. Projecto de Estatuto da Companhia, sua Sede e Direcção. Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Estatutos da Companhia: dos fins da Sociedade. Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00279. Congresso Mineiro (relação nominal dos sócios da Companhia Fabril) Ouro Preto. Ano 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Ano 1895/ Edição 00186. Companhia Agrícola Industrial (reunião de acionistas, incluindo o deputado Mariano Ribeiro de Abreu). Ouro Preto, 1893. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00263. Comarca De Santa Luzia Do Rio Das Velhas (pregão de vendas dos bens pertencentes à herança) Cidade de Minas/ Ouro Preto,1896. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00201 p-8 Relatório Da Companhia Aurifera (balanço; Virgilio C.M 194ss 100) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1897. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00093. Nova Capital- (plantas das casas aprovadas para construção-Capitão Mariano Ribeiro de Abreu). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1897.

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____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00263. Comarca De Santa Luzia Do Rio Das Velhas- (pregão de venda em praça publica dos bens pertencentes a um capitão, requerido por Virgilio Christiano e João Augusto Moreira) Ouro Preto/ Cidade de Minas, 1896.

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____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00172. Nova Capital (expedidos títulos de posse de lotes e terrenos-Capitão Mariano Ribeiro de Abreu). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1897.


Artigos Livres ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00201. Relatório Da Companhia Aurífera De Minas Gerais. Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1897. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00062. Prefeitura Da Cidade De Minas, (requerimentos despachados; Mariano prejudicado e depois sofre um acordo, sobre processo de venda e compra, entre este e o Estado) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00093. Prefeitura Da Cidade De Minas, (Requerimentos despachados; o senhor Mariano propõe o fornecimento, venda, de madeiras para a construção da linha férrea e também de toda a linha urbana). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00102. Prefeitura Da Cidade De Minas, (Requerimentos despachados; Mariano propõe a permuta dos lotes 12,14,4,5 e 21 do quarteirão 29 pelos lotes 14,16 e 18 do quarteirão 27). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00106. Casa De Caridade - Mariano Ribeiro de Abreu e outros nomeado como um dos membros do Conselho de Vogaes (poder de voto) para a construção de um Hospital de caridade) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00128. Prefeitura Da Cidade De Minas-Lançamento dos impostos industriais, com os nomes dos contribuintes que, achando divergências nos valores podem reclamar (categoria da empresa de Mariano Ribeiro de Abreumadeiras). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00195. Adiantamento (adiantamento de pagamento para Mariano Ribeiro de Abreu referente ao fornecimento de lenha para a construção do ramal férreo). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00196. Prefeitura da Cidade de Minas-Expediente da Secretaria (Mariano pede prazo para apresentar a planta de barracão a construir no lote 5, quarteirão 9) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00251. Directoria da Viação-( o engenheiro chefe da fiscalização da rede Leopoldina requisitou da Secretaria das Finanças o pagamento para Mariano Ribeiro de Abreu e outros em função da dispensa do pessoal desnecessário ao serviço do ramal férreo da Capital) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1899. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. Edição 00274. Prefeitura da Cidade de Minas- (Comunicado para que os Coronéis Virgilio Machado, Mariano Ribeiro e outros comparecerem à mesma para legalização dos lotes comprados.). Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900./ Edição 00281. Agricultura, Comércio de Obras Públicas- Directoria da Viação (requisição para que a Secretaria de Finanças conceda pagamento a Mariano e outros referente ao fornecimento de lenha) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1898. ____. Hemeroteca Digital. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado (MG) 1892 a 1900. /Edição 00022. Comarca de Bello Horizonte- Lista Geral dos jurados-Organização da composição dos jurados da Comarca de Bello Horizonte para o ano de 1899- (Mariano Ribeiro entre outros) Cidade de Minas/ Ouro Preto, 1899.

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____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00002. Assembleia Municipal (edital de convocações dos vereadores, conselheiros, distritais e contribuintes que devem fazer parte da assembleia). Sabará, 1894.

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____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00018. Festejos do Divino (Capitão Virgílio Christiano Machado, Imperador do festejo) Sabará, 1893.


Artigos Livres ____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00025; 00026. Editaes (reunião do Tribunal Correcional, e que serão vogaes, Virgilio C.M) Sabará, 1894. ____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00024. Eleição Municipal (eleição para vereadores geraes, apresentada ao eleitorado pelo club único sabarense, para eleição de 7 de setembro). Sabará, 1894. ____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00005. Guarda Nacional (assinada as patentes, o alto patriotismo dos nossos conterrâneos) Sabará, 1894. ____. Hemeroteca Digital. O contemporâneo Edição 00017. Editaes (presidente da Commissão revisora de alistamento de eleitores federaes do município de Sabará). Sabará, 1896. ____. Hemeroteca Digital. O Estado de Minas Geraes: Orgam Official. Edição 00194. Sem Título- Extrato do expediente feito na Secretaria do Governo de estado (requerimentos: Virgílio de ordem do Sr. Governador, informe o thesouro de estado. Ouro Preto, 1891. ____. Hemeroteca Digital. O Estado de Minas Geraes: Orgam Official. Edição 000120. Congresso Mineiro (lista dos candidatos ao congresso mineiro, entre outros, para deputado Mariano R.A) Ouro Preto, 1891. ____. Hemeroteca Digital. O Estado de Minas Geraes: Orgam Official. Edições 00119; 00121; 00122; 00124. Congresso Mineiro. Candidatos ao Congresso Mineiro. Ouro Preto, 1891. ____. Hemeroteca Digital. O Jornal de Minas Congresso Mineiro - (carta redigida e publicada aos deputados e senadores, falando sobre a nova conjuntura política e a obrigação de honrar o empenho nas votações referentes à Constituição Brasileira e Mineira). Ouro Preto, 1890. ____. Hemeroteca Digital. O Pharol. Edições 00317; 00319; 00320; 00002 a 00004; 00008; 00016 a 00022. Ao Eleitorado Mineiro; Congresso Mineiro. Juiz de Fora. 1890-1891. ____. Hemeroteca Digital. O Pharol. Edições 00041; 00079; 00086 a 88; 00096; 00122; 00123; 00134; 00148 e 00149; 00151; 00155 e 00156; 00158 e 00159. A Vegetalina: Na cura da Morphéa. Juiz de Fora, 1893. ____. Hemeroteca Digital. O Serro. Edição 00019. Congresso Mineiro (resultado do município de S. Miguel de Guanhães- Chapa do Centro de Ouro Preto, deputado Mariano R.A) Serro, 1891. ____. Hemeroteca Digital. Revista Industrial de Minas Geraes-1893 a 1897. Edição 00020. Fornecimento ao Pessoal (Virgilio; Escritório da Companhia Aurífera em Honorio Bicalho, 194.100). Minas Gerais, 1896. ____. Hemeroteca Digital. Revista do Interior. Edição 00129. Sabará (inauguração do Vapor Hangreaves), 1892. ____. Hemeroteca Digital. Revista do Interior. Edição 00051. (esteve na cidade o Col. Mariano Ribeiro de Abreu) Minas Gerais, 1894. ____. Hemeroteca Digital. Revista dos Trabalhos. Comissão Construtora da nova capital (Estação General Carneiro, aberta concorrência para a construção da linha, estações e dependências, aceitas as seguintes proposta e firmados os contratos; Virgílio C.M) MG. Comissão Construtora da Nova Capital, Belo Horizonte, 1895.

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____. Hemeroteca Digital. Revista dos Trabalhos. Edição? Comissão Construtora da Nova Capital (contratos celebrados até 30 de abril de 1895) MG. Comissão Construtora da Nova Capital, Belo Horizonte, 1895.


Artigos Livres JULIÃO, Letícia; ANASTASIA, Carla Maria Junho. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (18911920). In: BH Horizontes Históricos, Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciência Política, 1992. 199 p. LUCAS, Fábio. Economia Mineira. In: Mineiranças. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991. 336 p. MACHADO, H. G. (1995). De res pública e de república: o significado histórico de um conceito. Cadernos de História, v.1, n.1, p. 7-15. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1641> Acesso em: jan. 2020. MAGALHÃES, Beatriz de Almeida; ANDRADE, Rodrigo Ferreira. Belo Horizonte: um espaço para a República. Belo Horizonte: UFMG, 1989. 216 p. MÁRTIR, Natália C.D. O processo de urbanização da Nova Capital mineira: na prática dos favorecimentos para os coronéis, Mariano Ribeiro de Abreu e Virgílio Christiano Machado durante a especulação imobiliária de 1894 a 1910. 2018. 86 p. Trabalhos Acadêmicos (Conclusão de Curso). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Instituto de Ciências Humanas. Belo Horizonte. Disponível em: <http://bib.pucminas.br:8080/pergamumweb/vinculos/00005c/00005c26.pdf> Acesso em: jan. 2020. MATOS, Ralfo Edmundo da Silva. Planejamento urbano e legislação urbanística: o caso de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Instituto de Geociências. Departamento de Geografia, 1988. 87p. MATTOSO, José de (Direção) HESPANHA, Antônio Manuel (coord.). A economia do Dom, Amizades e Clientelas na Acção Política. p. 382-392. In: História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). V. IV; 1998. (Coleção História de Portugal). MINAS GERAIS. As constituintes mineiras de 1891, 1935 e 1947: uma análise histórica. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa, 1989. 313 p. MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Belo Horizonte: espaços e tempos em construção. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte. CEDEPLAR. 1994. 93 p. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 3ª Edição. São Paulo. Editora Autentica. 2007, p. 134. PEREIRA, Elizabeth G. P. B; XAVIER, Herbe. Imagens de Belo Horizonte de Pedro Nava. Cadernos de História. v. 2. n. 3. 1997. p. 86-100. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1686>. Acesso em: maio 2020. PEREIRA, E. G. P. B. (2006). Belo Horizonte: uma economia de serviços. Cadernos de História, 8(10), 110121. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1765>. Acesso em: maio 2020. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. BOSCHI, Caio César; PINHEIRO, Luiz Antônio (Coord.). A Arquidiocese de Belo Horizonte e as instituições vinculadas. Editora PUC Minas. 2019. 494p. (Projeto História da Arquidiocese de Belo Horizonte. REIS, Fábio Wanderley. Corrupção, Cultura e Ideologia. In: Corrupção: ensaios e críticas. AVRITZER L, BINHOTO N, GUIMARÃES J, STARLING H (orgs.). Belo Horizonte: Editora UFMG; 2008. p. 391-397.

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Artigos Livres

EDUCAÇÃO E CULTURA POPULAR NA EDUCAÇÃO PÚBLICA DE BELO HORIZONTE: um debate sobre educação de jovens e adultos Educación y cultura popular en la educación pública de Belo Horizonte: un debate sobre la educación para jóvenes y adultos

Clarice Wilken de Pinho* “Estarei preparando a tua chegada Como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera” Paulo Freire

Resumo: Este artigo analisa o envolvimento dos estudantes da EJA - Educação de Jovens e Adultos - em atividades artísticas de diversas naturezas, vinculadas aos seus saberes e às suas culturas. Para tanto, foi realizada pesquisa de campo em uma escola que oferece EJA, pertencente à RMEBH - Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. As visitas e as escutas aos professores e gestores envolvidos com o tema da Educação e da Cultura Popular e o acompanhamento dos estudantes em suas práticas culturais, dentro e fora da escola, foram de fundamental importância para a compreensão das riquezas das experiências culturais que formam as múltiplas identidades dos estudantes da EJA. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Educação e Cultura Popular; Educação Pública. Resumen: Este artículo analiza la participación de estudiantes de la EPJA - Educación para Jóvenes y Adultos - en actividades artísticas de diferentes naturalezas, vinculados a sus conocimientos y culturas. Para ello, se realizó una investigación de campo en una escuela que ofrece la EPJA, perteneciente a RMEBH - Red de Educación Municipal de Belo Horizonte. Visitas y escucha a profesores y directivos involucrado con el tema de Educación y Cultura Popular y el seguimiento de los estudiantes en sus prácticas culturales, dentro y fuera de la escuela, eran de importancia fundamental para comprender la riqueza de las experiencias culturales que forman las identidades múltiples de los estudiantes de la EPJA. Palabras clave: Educación para Jóvenes y Adultos; Educación y Cultura Popular; Educación Pública.

Introdução O envolvimento dos estudantes da EJA - Educação de Jovens e Adultos - em atividades artísticas de diversas naturezas, vinculadas aos seus saberes e às suas culturas, é um debate de fundamental importância para a compreensão das riquezas das experiências culturais que formam suas múltiplas identidades.

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Mestra em educação pela UFMG; professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. E-mail: clarice_fae@yahoo.com.br. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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os seus saberes. Dessa maneira, consideramos a Educação e a Cultura Popular, temas

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Observar atentamente esse sujeito exige um exercício constante de diálogo com


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chaves de um trabalho estendido a sujeitos protagonistas emergentes de um processo, um tema que necessita estar presente nos debates acerca da qualidade da Educação Pública. Os olhares sobre a diversidade de seu público e as particularidades de seus tempos e espaços estão presentes em debates de várias instâncias, no país e no mundo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB nº 9394/96, apresenta sinais de preocupação a essas especificidades, estabelecendo, no inciso VII do art. 4º, a necessidade de uma atenção às características específicas dos trabalhadores matriculados nos cursos noturnos (BRASIL, 1996). A Declaração de Hamburgo, documento final da V Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA), realizada na Alemanha, em 1997, vincula a EJA ao desenvolvimento da autonomia e do senso de responsabilidade das pessoas e das comunidades. Para tanto, afirma:

É essencial que as abordagens referentes à educação de adultos estejam baseadas no patrimônio cultural comum, nos valores e nas experiências anteriores de cada comunidade, e que estimulem o engajamento ativo e as expressões dos cidadãos nas sociedades em que vivem (UNESCO; MEC, 2004, p. 43).

O Marco de Ação de Belém, documento resultante da VI CONFINTEA, realizada no Brasil em 2009, reconhece que a educação de adultos representa um componente significativo do processo de aprendizagem ao longo da vida, “envolvendo um ‘continuum’ que passa da aprendizagem formal para a não formal e para a informal” (UNESCO; MEC, 2010, p. 6). De acordo com Soares (2002), tais dispositivos legais rompem com o modelo padronizador, centralizador e tecnicista da Lei anterior, nº 5692/71, que regulamentava o ensino supletivo e ignorava experiências anteriores existentes no Brasil. A riqueza de experiências históricas de grupos populares que formam as múltiplas identidades dos jovens e adultos da EJA responde às inquietudes referentes à

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escolha do tema deste artigo. As experiências culturais presenciadas ao longo da vida,

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pertencentes aos sujeitos espalhados por diferentes espaços, merecem visibilidade no trabalho que apresentamos1. Como nos sugere Freire (1979), o ser humano guarda em si sua pluralidade e sua criticidade. Somente ele é capaz de transcender, de travar relações incorpóreas, consciente de sua temporalidade, obtida precisamente quando “atravessando o tempo, de certa forma até então unidimensional, alcança o ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã” (FREIRE, 1979, p. 63). Devemos considerar que a escola é, por si mesma, um espaço de experiências culturais. Com base nessas considerações, destacamos o interesse em buscar o terreno da escola pública, do currículo, do fazer pedagógico-escolar, interessando-nos observar e destacar como está sendo possível abrir espaços para as experiências culturais no interior desse espaço educativo, garantido pela Constituição Federal vigente como “direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988, p. 94). Em outras palavras, como é permitido o envolvimento dos estudantes jovens e adultos em atividades de diversas naturezas, que estejam vinculadas aos seus saberes e às suas culturas? Como as escolas descortinam o mundo de falas, valores e imagens dos educandos jovens e adultos? Eles têm espaço para falar de seus saberes, de suas culturas, de suas trajetórias de vida? Eles conseguem dialogar com os educadores e com os colegas sobre suas experiências, o que fazem, o que já fizeram ou o que gostariam de fazer?

O legado da Educação Popular A busca pelo envolvimento dos estudantes jovens e adultos em atividades artísticas vinculadas aos seus saberes e às suas culturas partiu do pressuposto de que há um legado da Educação Popular na história da EJA, conforme nos indicam vários autores2. Desta maneira, acreditamos que as características da Educação Popular estão presentes em um amplo conjunto de iniciativas, à sua maneira, estabelecendo diálogos

O presente estudo tem como base as observações feitas de fevereiro a agosto de 2015, com a média de dois dias de visitas semanais. 2 Arroyo (2005), Brandão (2002), Fávero (2006), Giovanetti (2005), Paiva (2003), Soares (2002), dentre outros. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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formadores de consciências e motivadores de transformação:


Artigos Livres (...) Um trabalho de educação de jovens e adultos, com um claro e assumido perfil de educação popular em seus pressupostos e em suas práticas didáticas, continua sendo realizado por um número bastante grande de entidades e de pessoas, de Norte a Sul do Brasil (BRANDÃO, 2002, p. 155).

Ressaltamos que Estebam; Tavares (2013) também têm se comprometido a investigar o cotidiano da escola pública na perspectiva da Educação Popular, buscando fortalecer os sentidos dialógico e de encontro de sujeitos propostos por Paulo Freire:

Nos interstícios da história oficial, nos diferentes cotidianos que se constroem à margem das práticas hegemônicas e uniformizantes, longe do controle e da regulamentação da inclusão degradada, desenham-se projetos escolares potentes e afirmativos, em tensão com aquilo que vimos considerando como uma ‘escola pobre para pobres’, mesmo que de forma insurgente e ainda pouco visível (ESTEBAM; TAVARES, 2013, p. 299).

As situações-limites que enfrentam as escolas, ameaçadas por obstáculos, barreiras, problemas à espera de soluções, exigem ações transformadoras da realidade. Neste sentido, Freire (1987) destaca a necessidade de refletir sobre o inédito-viável: (...) os temas se encontram encobertos pelas ‘situações-limite’ que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face as quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptarse. Desta forma, os homens não chegam a transcender as ‘situações-limites’ e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o ‘inédito viável’ (FREIRE, 1987, p. 110).

O sonho, a crença, a utopia de Freire na transformação das pessoas e do mundo, é o que acreditamos buscar na investigação das possibilidades e dos desafios com que as escolas vêm enfrentando suas situações-limites. Ou como sugere Nita Freire no verbete inédito-viável do dicionário organizado por STRECK, D. R. et. al. (2010):

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(...) Paulo Freire, tendo captado por intuição, sensibilidade e razão as situações-limite de nossa sociedade, o modo pelo qual vimos nos organizando socialmente, portanto, pela leitura que ele fez sobre as seculares condições de opressão, alimentadas, entre outras, pela nossa educação de práticas elitistas e autoritárias, retrógrada, teoricamente falando, por isso mesmo ‘bancária’, desvelou os inéditos-viáveis fundamentais de nossa sociedade, denunciandoos, contraditoriamente anunciando o anúncio esperançosamente viável (FREIRE apud STRECK, D. R. et. al. 2010, p. 226).

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Destacamos que na história da EJA há a presença de um ideário da Educação Popular, sendo considerado uma postura de escuta e de valorização da cultura de seus estudantes. O empenho de muitos autores em reconstruir essa história ajuda-nos a fortalecer o presente da EJA: “Um pouco de atenção ao passado pode devolver ao presente compreensões e evidências acerca da singularidade da educação de jovens e adultos” (SILVA, 2013, p. 273).

A EJA na Rede Municipal de Belo Horizonte: a Escola Municipal Zacarias3 Em outubro de 2014, no momento que fazíamos a sondagem das escolas que poderiam contribuir com o tema proposto, realizamos uma visita à Escola Municipal Zacarias no período da manhã e conversamos com uma das educadoras que compõem seu quadro profissional. Na ocasião, conhecemos um pouco das propostas desenvolvidas, com atenção especial a duas atividades que pudemos presenciar: oficinas de fotografia e de teatro. Assistimos duas cenas de improvisação e um jogo de concentração acontecendo dentro de uma das salas da escola e, nos corredores, os estudantes realizavam o exercício de fotografia de objetos. Destacamos, ainda, a abertura e o interesse demonstrado já nesse primeiro momento, encontrando facilidade para que a pesquisa acontecesse no seu interior. Para iniciarmos a descrição da Escola Zacarias, utilizaremos o panfleto que recebemos contendo as informações básicas de sua organização, certos de que o material de divulgação é a apresentação inicial e a porta de entrada para todos os interessados:

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Nome fictício, inspirado no conceito de “alegria” defendido por Paulo Freire, que afirma: “a escola com que eu sonhava era uma escola de alegria, de festa (...)” (FREIRE, 2003, p. 333). 4 Errata: onde se lê Ensino, leia-se Educação. 3

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A Escola Municipal Zacarias (EMZ) é a única escola da Rede Municipal de Ensino4 de Belo Horizonte que atua exclusivamente na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos), com turmas do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, nos turnos da manhã, tarde e noite. Como escola de EJA, a EMZ possui uma organização pedagógica que procura atender às características e necessidades de formação de seus alunos, sendo os mesmos trabalhadores ou não (PANFLETO DE DIVULGAÇÃO/EMZ, s.d.).


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Segundo o coordenador Luiz5, a oferta de três turnos de aulas faz parte da opção inclusiva da escola:

A demanda mostrava que você tem vários turnos, você tem pessoas que trabalham só de manhã, tem pessoas que trabalham tarde e noite, pessoas que trabalham manhã e tarde, então você tinha que trabalhar o contra turno deles. Então acabou naturalmente. Tem até uma discussão legal aqui na escola que tem alguns professores que propõe abrir de madrugada, porque tem muitos alunos que têm dificuldade de sair no final do dia, meia noite, por exemplo, sair para chegar em casa. Então seria mais interessante ele sair para assistir a aula de madrugada e depois voltasse pra casa, dormisse, para sair para trabalhar depois. As autoridades municipais nunca levaram isso a sério não, mas eu acho que é uma colocação pertinente, sabe? (LUIZ, 2015).

Realizamos visita aos três turnos da escola para melhor entendimento das particularidades de cada um. Em seguida, optamos em concentrarmos a investigação nos turnos da manhã e da tarde, sendo esses horários vistos com pouca frequência na EJA. A Escola Municipal Zacarias pertence à Regional Centro-Sul6 da Prefeitura de Belo Horizonte, na qual prevalecem residências de classe média-alta e demais comércios da região. Possui também a característica de circular grande número de ônibus, o que facilita o deslocamento dos estudantes. Sua localização espacial se dá de forma vertical, contemplando dois andares de um prédio antigo do bairro. No primeiro mês de observação, destacamos a predominância do público jovem no período da manhã, a mistura de jovens e adultos no horário noturno e a particularidade do turno da tarde que mais nos chamou a atenção: além de jovens e adultos, um maior número de idosos e pessoas com necessidades especiais7. A idade mínima para matrícula na EMZ segue a legislação da RMEBH: 15 anos completos para o Ensino Fundamental e 18 anos completos para o Ensino Médio. O horário de funcionamento das aulas é de segunda a quinta8, incluindo o recreio de trinta minutos.

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Nome fictício, em homenagem a Luiz Gonzaga, referência na música nordestina de raiz. Além da Regional Centro-Sul a Prefeitura de Belo Horizonte subdivide-se em: Regional Barreiro; Regional Leste; Regional Nordeste; Regional Noroeste; Regional Norte; Regional Oeste; Regional Pampulha e Regional Venda Nova. 7 Em uma turma do Ensino Médio encontramos quatro deficientes visuais e um deficiente mental, ambos adultos. Em uma turma do Ensino Fundamental encontramos um deficiente mental adolescente. 8 A carga horária semanal é pautada na regulamentação da EJA pelo Parecer CME 093/2002: “a escola poderá optar por um tempo coletivo, correspondente a pelo menos um dia por semana, para a formação, avaliação do trabalho, planejamento etc. dos trabalhadores em educação daquela escola envolvidos com a EJA, sem a presença dos alunos na escola” (BELO HORIZONTE, 2002, p. 17). REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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À carga horária semanal do corpo docente soma-se quatro horas de formação9, que acontecem às sextas-feiras, e quatro horas de ACPATE (Atividade Coletiva de Planejamento e Avaliação do Trabalho Escolar), que acontecem diariamente. De acordo com o Projeto Político Pedagógico - PPP - da EMZ:

A constituição da jornada de trabalho do professor observa as definições legais, bem como as demandas da escola definidas coletivamente. É de fundamental importância a formação de coletivos de trabalho que permitam a realização do planejamento e o desenvolvimento adequado das propostas e projetos pedagógicos (PPP/EMZ, 2012, p. 24).

O calendário escolar anual prevê 160 dias letivos, totalizando 480 horas/ano. De acordo com o PPP, o tempo de referência para a conclusão no Ensino Fundamental é de 1920 horas (correspondendo a quatro anos) e no Ensino Médio 960 horas (correspondendo a 2 anos). Destaca-se, também, que ao tempo de duração do curso poderá ser considerada a escolaridade anterior do aluno, diminuindo, assim, o tempo mínimo para a conclusão.

Breve história da EJA na RMEBH Para aprofundarmos na organização da EMZ faz-se necessário resgatarmos um pouco da história da EJA na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte – RMEBH. De acordo com Soares; Venâncio (2007) a EJA na rede surgiu em 1971, quando foi implantado o primeiro curso regular de suplência em uma de suas escolas 10. Desta maneira, até 1990 a oferta de escolarização de jovens e adultos no âmbito Municipal acontecia através dos cursos supletivos, da mesma forma que o Governo Estadual e a Rede Particular organizavam seus trabalhos para este público11 (SOARES, 1995). A partir de 1990, mesma década de criação do Fórum Mineiro de EJA12 e seu importante movimento de articulação da sociedade civil, o município passa a repensar uma reestruturação de suas bases legais (BELO HORIZONTE, 2000).

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Sobre os impactos destes momentos de formação destinados aos educadores da EJA na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, ver Pedroso (2015). 10 Escola Municipal Maria das Neves (Soares; Venâncio, 2007). 11 Nesse período, vigorava no país o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL -, como programa do Governo Federal em seu Regime Militar. 12 Sobre o Fórum Mineiro de EJA ver Ferreira (2008).

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O Parecer 093/2002 do Conselho Municipal de Educação – CME – regulamenta a EJA nas escolas de Belo Horizonte, afirmando:

O processo de discussão na rede municipal tem se pautado pelo direito à educação e na definição do papel do município na efetivação desse direito. Ações importantes advindas das escolas, da Secretaria Municipal de Educação - SMED, desde a implantação do Programa Escola Plural; do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação/Subsede Rede Municipal de BH - Sind-UTE BH, na busca de uma política para a EJA em Belo Horizonte, foram concretizadas (BELO HORIZONTE, 2002, p. 10).

Sobre o Programa Escola Plural, o parecer afirma ainda: Um marco significativo na história da EJA nas escolas municipais foi a implantação do programa Escola Plural. A I Conferência Municipal de Educação, realizada no final de 1994, com o objetivo de apresentar o Programa Escola Plural à cidade, viabilizou, nos horários noturnos, espaços de discussões acerca da EJA. As reflexões coletivas produzidas durante a I Conferência evidenciaram a necessidade de se articular uma proposta educacional para essa modalidade da educação básica (Ibidem, p. 10).

Segundo o PPP da EMZ, no item que corresponde à caracterização de seus estudantes, são considerados:

Sujeitos sociais concretos, com uma história de vida tecida nas relações familiares, nos grupos mais amplos de convivência e relação, nas condições de acesso aos bens culturais, sociais e materiais, que ajudam a dar forma e conteúdo à sociedade. São também sujeitos de cognição e corporeidade, portadores de culturas, valores, competências, conhecimentos, vivências e expectativas em relação à sociedade a qual se vinculam (PPP/EMZ, 2012, p. 7, grifo do autor).

As pistas da educação e da cultura popular Primeiramente, destacamos três atividades que acompanhamos em espaços educativos externos: visita ao Museu de Artes e Ofícios; visita a três exposições no Shopping Boulevard: “70 anos do fim da 2ª Guerra Mundial”, “Sentidos do Nascer” e “Estação Natureza”; por último, visita à 9ª Feira de Agricultura Familiar de Minas

com o intuito de refletir sobre o Dia Internacional da Mulher e disparar o debate para o REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Em seu espaço interno, presenciamos a exibição do filme “Histórias Cruzadas”,

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Gerais, ambos na região central da cidade.


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Projeto Identidade. Acompanhamos também a realização de duas palestras para os estudantes: “Comissão de Anistia do Ministério da Justiça” e “Administrando finanças pessoais – Fecomércio/Sesc/Senac”. Luiz destacou esses momentos como interesse principal da escola:

Eu acho que muito é a questão patrimonial. É a gente se apropriar dos espaços culturais da cidade. Então, com isso, a gente faz muita visita a museu, a gente faz muita discussão e apresentação dos espaços, né? E tenta explicar para os alunos que eles têm direito a frequentar aqueles espaços. Que é um espaço que eles nunca pararam para observar, são meio cegos a este recurso, que o equipamento existe lá para nosso uso. Então a gente trabalha muito nesse sentido, de levar o aluno ao espaço cultural (LUIZ, 2015).

Em uma investigação que buscou a relação de professores da EJA da Rede Municipal do Rio de Janeiro com os museus da cidade, Vianna (2015) afirma que o acesso ao patrimônio e aos recursos culturais da cidade fazem parte da perspectiva democrática de cidadania:

Em geral, os direitos culturais protegem os demais direitos de cada pessoa individualmente, em comunidade com outros e como grupos, para que possam desenvolver e expressar sua humanidade e visão de mundo (...). No campo dos direitos culturais, portanto, inclui-se o direito à memória, essencial à constituição da identidade social, do sentimento de pertencimento. Enfim, direitos culturais incluem o direito à produção cultural, o direito de acesso à cultura e o direito à memória (VIANNA, 2015, p. 06).

Realizamos, também, pesquisa nos cadernos disponibilizados com as “atas das reuniões de projetos” da Escola Zacarias, do ano de 2008 a 2010, no qual observamos a forte presença de atividades externas vinculadas a diferentes tipos de projetos

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1. Projeto Educação Patrimonial e socioambiental (2008): visita à Bienal do Livro no Expominas e Combio (Congresso Mineiro de Biodiversidade); visita ao Museu Histórico Abílio Barreto; visita ao Aglomerado da Barragem Santa Lúcia; 2. Projeto Trabalho (2009): visita ao Museu de Artes e Ofícios; visita ao Palácio das Artes, exposição “Um olhar sobre o universo”; visita à Feira de Agricultura Familiar, na Serraria Souza Pinto; visita à Casa Fiat de Cultura, exposição “Rodin, do ateliê ao Museu”; visita do turno da manhã à cidade Ouro Preto; visita ao Palácio das Artes, exposição “Mulheres da Realeza; Mulheres da Realidade; O passado no presente”;

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pedagógicos, como por exemplo:


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3. Projeto Sustentabilidade (2010): visita ao Aquário do Rio São Francisco, Fundação Zoobotânica de BH; visita ao Parque das Mangabeiras; visita ao Museu das Minas e Metal; visita ao Museu de História Natural da UFMG; visita ao Museu Inimá de Paula; visita ao Museu de Morfologia da UFMG. Discutida e levantada pelo coletivo de professores no referido ano de nossa pesquisa, 2015, Luiz destaca a oficina de Contação de Histórias e sua importância para a formação dos educandos:

A gente sempre valorizou muito a contação de história. Houve uma época que a gente trabalhou histórias dos alunos, teve uma questão oral e teve uma questão de registro escrito. Então a gente acabava construindo alguns livrinhozinhos com as histórias dos alunos. A contação de história este ano acontece como um curso extra dentro da grade daqui do turno da tarde. Então a primeira ideia era valorizar a questão da cultura. Entender que a habilidade, a competência de contar uma história, é uma competência interessante, que valoriza o indivíduo. Mas nada que fosse obrigatório não, na realidade é um conceito que a gente acha que por si só já basta (LUIZ, 2015).

Para as coordenadoras da oficina, Rosa e Andrade13, o objetivo da Oficina de Contação de Histórias com foco em Narrativas de Vida faz parte de um projeto maior de resgate de identidades. Rosa afirmou: Quando eu fui convidada pelo Luiz para fazer a oficina de contação de histórias, ele queria exatamente que os meninos adquirissem uma desenvoltura para poder falar, para poder contar fatos ligados às próprias histórias, como um resgate das suas identidades. Para que eles pudessem dar valor ao que eles são. E a partir do momento que nós, através da oficina, fizermos com que eles se desinibem, adquiram desenvoltura para se colocar, para falar, para que eles possam transmitir isso para alguém, isso vai ser uma forma de valorização, de se auto valorizar. E não somente histórias de vida também, na medida em que eles possam também contar histórias da tradição oral, eventualmente histórias da literatura, isso é uma forma de valorizar o conhecimento, valorizar o outro, de ampliar o universo de conhecimento deles, de acabar com determinados preconceitos, com determinados limites que as pessoas se impõem com relação ao diferente, com relação ao outro, com relação ao desconhecido (ROSA, 2015).

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Nomes fictícios, em homenagem a Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, referências na literatura brasileira.

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Ao meu ver é um privilégio. É a primeira vez que se está juntando uma psicanalista com contação de histórias. Eu não conheço outra equipe com esta característica. A minha proposta não é só a contação das histórias, eu quero trabalhar com arte, com cultura, com patrimônio cultural imaterial, para transformar vidas. Eu quero ajudar muito mais pessoas a resgatarem as suas histórias, os seus fazeres, celebrações, como uma forma de construção coletiva (ANDRADE, 2015).

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Andrade acrescenta:


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Através de alguns arquivos oficiais que nos chegaram às mãos, conhecemos a logística da organização das oficinas oferecidas anualmente pela EMZ. O arquivo é o Projeto de Ação Pedagógica – PAP – que todas as escolas da rede detalham e encaminham para aprovação: É um dinheiro que vem pra que a escola aplique da maneira que ela quiser, dentro de determinados parâmetros que são especificados, que tem mais a ver com controle de recurso. A discussão não é tanto pedagógica, tem o parecer sobre a pertinência daquele projeto, mas, assim, é raro você ser questionado a respeito. Então ali a gente tem o recurso, esse recurso é depositado pela Prefeitura, normalmente, no início do ano, e com esse recurso a gente faz ações de formação dos professores, cursos de formação dos alunos e também subsidiar alguns tipos de eventos, como, por exemplo, viagens, compra de determinados equipamentos (LUIZ, 2015).

O coordenador destacou ainda que o PAP reflete o interesse dos professores, sendo aprovado somente após discussão em assembleia, com a presença também dos estudantes. Para ele, esta é uma importante porta de entrada da cultura na Escola Zacarias: “É bastante privilegiada a questão cultural. A questão das festas, das viagens, das oficinas e até da nossa formação também, nós já tivemos vários processos de formação que é voltado para a área cultural” (LUIZ, 2015). No primeiro item do arquivo do PAP, Panorama Geral da Escola, verificamos a caracterização dos estudantes da EMZ:

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Esse público tem como principal característica a diversidade: idade, experiências escolares anteriores, significados atribuídos à escola, vivências sociais, relação com o mundo do trabalho, ritmos de aprendizagem, vulnerabilidade social, envolvimento em situações de conflito com a lei etc. Esta diversidade exige profundas alterações na cultura e trabalho escolar, além da formação do professor, buscando garantir atendimento às questões específicas dos educandos, sua permanência na escola e aprendizagem com qualidade (PAP/EMZ, 2015).

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Desta maneira, o projeto apresenta as ações a serem desenvolvidas no ano, justificando a necessidade do repasse da verba pela Prefeitura:

As propostas de ação pedagógica aprovadas coletivamente pela escola são as seguintes: (a) formação docente em alfabetização e letramento; contratação de assessoria voltada às demandas específicas do Ensino Fundamental e Ensino Médio, com o objetivo de avaliar as práticas de trabalho desenvolvidas na escola, bem como acompanhar o grupo docente na organização de projetos de intervenção relacionadas a alfabetização, letramento e numeramento na EJA; (b) articulação da formação escolar com espaços de cidadania, cultura e lazer de Belo Horizonte e Minas Gerais; (c) organização de oficinas pedagógicas voltadas a demandas coletivas dos educandos (PAP/EMZ, 2015).

Segundo o documento, essas ações têm como objetivo ampliar o universo cultural dos estudantes, explorando a cidade, o patrimônio histórico, cultural e natural e incorporando novas dimensões ao processo de formação, possibilitando inclusive, a geração de renda. Vale destacar outra ação importante oferecida aos estudantes da EJA de toda a RMEBH que é o Programa de Qualificação Profissional em Gastronomia14. Acompanhamos também o desenvolvimento do projeto Frutos da EJA, idealizado e realizado pelas educadoras de Química e Artes. Segundo elas, o projeto foi inspirado no interesse dos estudantes de incrementarem seus rendimentos e profissionalizarem-se. Ministrado em dez aulas, as educadoras ensinam a fazer produtos de limpeza e cosméticos, conectando os conteúdos de Química, Biologia, Matemática, História e Arte. Além dos produtos, os estudantes aprendem a fazer caixas pintadas à mão, no intuito de valorizar o trabalho no momento da venda e aprenderem mais uma fonte de renda artesanal. A turma observada corresponde ao último ano do Ensino Médio, uma vez que não é possível ministrar o projeto para toda a escola devido à organização da grade curricular. Essa foi uma maneira, segundo as educadoras, de todos os estudantes participarem da atividade antes de se formarem. Percebemos o incômodo da coordenação quanto à suposta falta de interesse nas

Este programa teve início no ano de 2003, com subsídios aos estudantes da EJA para custeio das passagens em transporte público municipal. Os cursos são realizados no equipamento da Prefeitura de Belo Horizonte conhecido como Mercado da Lagoinha, dispondo de completo instrumental e utensílios para diferentes modalidades da gastronomia. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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atividades culturais por parte de alguns estudantes:


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Nós temos muitos alunos que vêm com uma questão da cultura escolar de conteúdo, conteúdo, conteúdo, de trabalhar algumas atividades de algoritmos mais de fazer, do que entendendo, percebendo, valorizando, né? E às vezes a gente trabalha isso e a pessoa tem uma certa resistência, acha que ir ao museu não é aula, que ver um filme não é aula, então a gente tem que trabalhar essa questão de quebrar paradigmas, desse aluno que estava afastado da escola e acha que escola é memorização de tabuada, é aprender conjugação de verbo. Muito aluno acha que se eu não estou sofrendo o processo desgastante de aprendizagem, talvez aquela aprendizagem então não é relevante (LUIZ, 2015).

Rosa, porém, destaca algumas tensões que giram em torno da oficina, que não estão interligados apenas ao interesse dos estudantes: Eu acho que é um ato de ousadia de uma escola fazer isso, mas, infelizmente, a mentalidade dos alunos não acompanha isso. A gente vê que isso aí cria uma série de dificuldades para nós que estamos fazendo esse trabalho, porque os alunos deixam de vir porque eles são cobrados e, é claro, eles têm razão, eu não tiro a razão deles em nenhum momento. Eles são cobrados, eles fazem provas, eles têm que ter notas. E como é que eles vão fazer isso se eles deixam de assistir a matéria para virem para a oficina? (ROSA,2015).

Percebemos na fala de Rosa que a organização da oficina tornou-se uma disputa desleal, dentro da grade curricular, entre um interessante projeto cultural e as disciplinas regulares, que demandam participação, pontuação e são responsáveis pela pressão sofrida pelos estudantes, que ela chamou de “Ditadura do Enem15”. Destacamos que no período da observação não presenciamos o levantamento das atividades culturais que os estudantes desejariam sugerir ou realizar dentro da escola. No entanto, percebemos a tentativa da coordenação e do grupo de educadores em intensificar a participação de todos nas atividades culturais propostas, destacando sua importância dentro da escola.

O Projeto de Intervenção Teatral Outra atividade que esteve presente em nossas observações é o Projeto de

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Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

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14h00 às 17h00, nas dependências da Biblioteca Pública Infantil e Juvenil da Prefeitura

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Intervenção Teatral nos Diversos Espaços da Cidade, realizado às sextas-feiras, de


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de Belo Horizonte16. O projeto é uma iniciativa do Programa de Bibliotecas da Gerência de Coordenação de Política e de Formação (GCPF), sob a coordenação da professora de teatro Emília Nicolai Curto. Desde 2003, a Secretaria Municipal de Educação - SMED - oferece livros literários no kit de material escolar distribuído gratuitamente aos estudantes das escolas municipais, da Educação Infantil à EJA. Anualmente, além do material escolar específico para cada faixa etária (mochila, cadernos, livros didáticos, caneta, lápis, borracha, agenda escolar, brinquedos pedagógicos para crianças da Educação Infantil, dentre outros), os estudantes levam, para suas casas, títulos das literaturas brasileira e universal. Segundo o Relatório de Atividades do Projeto/2009-2013: Esta política visa à ampliação do processo de leitura e alfabetização por parte dos educandos de nossa Rede e oferece aos estudantes e seus familiares a possibilidade de formação de um acervo pessoal, potencializando a criação do ambiente familiar de leitura e estreitamento do contato com os livros, desde a mais tenra idade. Assim, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte contribui para a distribuição de um bem cultural imprescindível e ainda de difícil acesso à população de nosso país. Contribui, também, para garantir que nossos alunos tenham acesso à cultura e à informação, estimulando-os à leitura e propiciando a ampliação de seu repertório cultural e de sua experiência como leitores (RELATÓRIO DE ATIVIDADES DO PROJETO DE INTERVENÇÃO TEATRAL NOS DIVERSOS ESPAÇOS DA CIDADE/2009-2013, s/d).

Criado em 2009 com o objetivo de estabelecer um diálogo com o kit literário, o Projeto de Intervenção Teatral tem como proposta criar grupos teatrais de rua e de palco, constituídos por estudantes do 2º e 3º ciclos do Ensino Fundamental, da Educação de Jovens e Adultos e de profissionais atuantes nas bibliotecas da rede, produzindo espetáculos a partir dos livros distribuídos:

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A Biblioteca Pública Infantil e Juvenil localiza-se hoje, no Centro de Referência da Juventude situado à Praça da Estação, não mais no primeiro andar do prédio da SMED. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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Também a cidade, através de seus diversos segmentos que circulam nos espaços comuns, recebem os jovens artistas – alunos e profissionais das bibliotecas da Rede Municipal de Educação – que, de certo modo, oferecem à cidade o seu trabalho, fruto daquilo que da cidade recebem. Neste trajeto interativo, todos têm a possibilidade de desenvolver maior responsabilidade, liberdade, autonomia e consciência de serem sujeitos de direitos (civis, políticos, sociais e culturais), numa sociedade de arraigadas desigualdades sociais e econômicas e de acesso à cultura (RELATÓRIO DE ATIVIDADES DO PROJETO DE INTERVENÇÃO TEATRAL NOS DIVERSOS ESPAÇOS DA CIDADE/2009-2013, s/d.).


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Acompanhamos as atividades do projeto no primeiro semestre de 2015. De acordo com os organizadores, todas as pessoas que foram encaminhadas pelas escolas têm garantido pela Caixa Escolar17 uma verba semanal para passagens e para futuros gastos com o figurino. Na presente versão, o grupo conta com a participação de vinte e cinco integrantes, dentre os estudantes, cinco pertencem à EJA de duas escolas municipais. Durante nossa observação, presenciamos exercícios teatrais, diálogos em roda e individuais, leituras e construções de textos. A última etapa do projeto foi a construção de um espetáculo adaptado do livro: O menino no Espelho, do autor Fernando Sabino. Segundo o Relatório de Atividades, são realizadas cerca de trinta apresentações dos espetáculos em diversos espaços da cidade, sendo palco ou rua, incluindo escolas municipais que apoiam o projeto. As estreias acontecem em meados de outubro e o público estimado totaliza, aproximadamente, dez mil espectadores. Segundo os relatórios, apenas uma vez um espetáculo foi construído exclusivamente com os estudantes da EJA. A peça Causos e Memórias foi criada em 2009 e realizou uma apresentação em dezembro do mesmo ano. A partir de então, os estudantes da EJA de toda a rede, com disponibilidades às sextas-feiras à tarde, passaram a compor o grupo único que se forma anualmente. Acompanhamos a preparação do espetáculo O Menino no Espelho, que estreou no Teatro Marília18. Observamos os bastidores, o reconhecimento do palco, a preparação nos camarins, a ansiedade, o coração acelerado, enfim, cada detalhe que um artista passa em sua estreia. Destacamos o respeito dos adolescentes aos participantes mais velhos e a energia positiva que envolvia ambos. É necessário, porém, refletirmos a respeito da inclusão efetiva de todos no referido projeto. A realização das atividades em horário diurno favoreceu a participação de apenas cinco estudantes da EJA, sendo ambos pertencentes ao horário da tarde em suas escolas. Desta forma, o período noturno, que corresponde à escolarização majoritária dessa modalidade, com estudantes trabalhadores, pais ou mães de família,

Caixa Escolar é uma entidade de direito privado que recebe recursos que são destinados especificamente para realização de Projetos de Ação Pedagógica. 18 Inaugurado em 1964 o Teatro Marília compõe o quadro de teatros municipais de Belo Horizonte e localiza-se no bairro Santa Efigênia, na região central. REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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ainda não pôde ser contemplado no Projeto de Intervenção Teatral.


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Reconhecendo a sexta-feira como um horário extraescolar para a EJA da RMEBH e exigindo que os estudantes do 2º e 3º ciclos do Ensino Fundamental estejam matriculados e frequentes em seu contra turno da manhã, percebemos a dificuldade que ainda enfrentam as atividades culturais, com a qualidade do Projeto de Intervenção Teatral, em estabelecer diálogo com o currículo escolar.

Considerações Finais “Vou me embora, vou me embora Deixo aqui meu coração Vou saindo em plena aurora Deixando fulô no chão Tá caindo fulô, ê, tá caindo fulô” Canção Popular de domínio público

Quando adentramos na escola pesquisada, seus documentos internos e externos, suas formas de organização e seus projetos em andamento, verificamos que a cultura popular não é um dado “dado”. Estivemos diante de iniciativas que buscam, timidamente, atribuir relação entre a cultura de seus sujeitos e os processos educacionais vividos em seu interior. A riqueza do teatro que busca o sujeito-espectador e o transforma em sujeitoprotagonista. A contação das histórias de vidas que valoriza as múltiplas identidades presentes no cotidiano do aprender a ler e escrever, dando sentido à busca da leitura do mundo. Os filmes, os museus e os espaços culturais da cidade de Belo Horizonte, que trazem uma outra forma de dialogar com o conhecimento, não só presente nas salas de aula ou disponível por um só educador: presenciamos educandos-educadores. Presenciamos alguns caminhos que já estão sendo trilhados, como um primeiro passo dado. Debates entre educadores e gestores, documentos externos e internos que abordam a cultura dos educandos, investimentos em visitas, mostras culturais e atividades diversas, oficinas de contação de história, grupos de teatro, o palco, a luz, o respeitável público, são exemplos preciosos de ver a cultura se desenrolando.

palavras de ordem são importantes para caracterizar educação e cultura popular, como conscientização, libertação, politização. Essas palavras foram inexistentes nos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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trabalho de Cultura Popular desligado do processo de conscientização”. Algumas

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No entanto, como nos afirma Brandão (2009, p. 732) “não é possível um


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documentos oficiais, nas observações dos ensaios, dos passeios, das apresentações, nos convites e justificativas feitos aos estudantes para comporem tais projetos, enfim, nas falas dos nossos entrevistados. Com exceção dos objetivos narrados por Rosa quanto ao resgate de identidades, no qual “dar valor ao que eles são” pode ser um convite à conscientização. É por esse motivo que utilizamos a rosa desabrochando para ilustrar a palavra timidez, expressando algumas inibições que ainda acontecem no terreno das escolas. Verificamos, com isso, que se faz necessário o desacanhamento, a percepção da necessidade da cultura popular associada à educação, à conscientização, à libertação. Agora não mais pensada como uma cultura de fora oferecida às pessoas, mas a partir delas e construídas com elas, homens e mulheres construtores de uma sociedade melhor, mais justa, mais inclusiva, mais aberta à diversidade.

Referências ARROYO, Miguel G. Educação de jovens-adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, Leôncio José Gomes; GIOVANETTI, Maria Amélia Gomes de Castro; GOMES, Nilma Lino (orgs.). Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 19-50. BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. EJA: a construção de diretrizes políticopedagógicas para a RME-BH. 2000. (Cadernos da Escola Plural). BELO HORIZONTE. Conselho Municipal de Educação/Câmara de Política Pedagógica. Parecer n. 093/2002, de 07 de novembro de 2002. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação Popular na Escola Cidadã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Vocação de criar: anotações sobre a cultura e as culturas populares. Cadernos de Pesquisa. v. 39; n. 138, p. 715-746, set./dez. 2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília. 1988. BRASIL. Lei 9394: diretrizes e bases da educação nacional. 1996. ESTEBAN, Maria T.; TAVARES, Maria T.G. Educação Popular e a escola pública: antigas questões e novos horizontes. In: STRECK, D. R.; ESTEBAM, M. T. (Org.). Educação Popular, lugar de construção coletiva. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 293-307.

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FERREIRA, Luiz Olavo Fonseca. Ações em movimento: Fórum Mineiro de EJA – da participação às políticas públicas. (2008. 123 f.). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

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FAVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática educativa do MEB – Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Autores Associados, 2006.


Artigos Livres FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ____. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GIOVANETTI, Maria Amélia. A formação de educadores de EJA: o legado da educação popular. In: SOARES, L.; GIOVANETTI, M. A.; GOMES, N. L. Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autentica, 2005. p. 243-254. PAIVA, Vanilda. História da educação popular no Brasil: educação popular e educação de adultos. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2003. PEDROSO, Ana Paula Ferreira. Trajetórias formativas de educadores da EJA: fios e desafios. (2015. 220 f.). Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. SILVA, Fernanda A. O. R. Elementos para a construção das especificidades na construção da formação do educador da EJA. (2013. 371 f.). Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. SILVESTRE, Edney. Paulo Freire Contestadores: entrevistas notáveis. São Paulo: Editora Francis, 2003. SOARES, Leôncio J. G. Educação de Jovens e Adultos em Minas Gerais: continuidades e rupturas. (1995. 282 f.). Tese (Doutorado). Faculdade de Educação/Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. SOARES, Leôncio J. G. Educação de jovens e adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. SOARES, Leôncio J.G.; VENANCIO, Ana Rosa. Tensões, contradições e avanços: a educação de jovens e adultos em uma escola municipal de Belo Horizonte. Educar em Revista. v. 23; n. 29, p. 141-156, jan/jun. 2007. STRECK, D. R.; REDIN, E. e ZITKOSKI, J. J. (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. UNESCO, MEC. Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos. Anais [...]. V CONFINTEA. Brasília: MEC, 2004. UNESCO, MEC. Marco de ação de Belém. Anais [...].VI CONFINTEA. Brasília: MEC, 2010.

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VIANNA, Catia M. S. V. Professores de EJA e museus no município do Rio de Janeiro: direitos culturais e aprendizagem ao longo da vida. In: Anais [...] da 37ª Reunião Nacional da ANPEd; 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis: 37ª Reunião da ANPEd: Plano Nacional de Educação: tensões e perspectivas para a educação pública, 2015.

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Resenha

FREITAS, Daniel M. de. Campo de Poder dos Grandes Projetos Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. [1. ed.]. São Paulo: Annablume, 2017.

UMA ANÁLISE BOURDIANA SOBRE OS GRANDES PROJETOS URBANOS DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE Leonardo Gonçalves Ferreira*

O principal objetivo da obra em questão foi desvelar as relações de poder que estruturam a produção dos Grandes Projetos Urbanos (GPU) na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Minas Gerais. O livro, publicado em 2017 pela Editora Annablume, é resultado da pesquisa de doutorado realizada por Daniel M. de Freitas no Núcleo de Pós Graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (2016). A obra foi organizada em seis capítulos. O primeiro apresentou a conexão entre o campo de produção das intervenções urbanas e as determinações econômicas globais (FREITAS, 2017). O autor enfatizou o modo como, desde a década de 1970, os processos de globalização, financeirização e neoliberalização vêm causando expressivas inflexões na política urbana e, especificamente, sobre a materialização de GPU. Esta revisão bibliográfica foi construída a partir de reflexões engendradas por autores que discutem questões próximas ao campo dos GPU e que têm como foco central a questão do poder de decisão no que diz respeito à produção do espaço e aos modos como esse poder estrutura e é estruturado pelas formas urbanas decorrentes. De acordo com Freitas (2017), pode-se afirmar que os GPU contemporâneos estariam diretamente relacionados a um conjunto de inflexões da economia. Essas inflexões na economia global, após a década de 1970, foram marcadas pelos processos de globalização, neoliberalização e maior presença de capitais financeiros na produção do espaço urbano, o que colocou as cidades em condição de arena geográfica preferencial para estratégias de gerenciamento e redução de crises. A descentralização

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Doutor em Ciências Sociais pela PUC Minas e professor do Cefet-MG (Campus Leopoldina). E-mail: lgferreira81@yahoo.com.br

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progressiva substituição do modelo tecnocrático por múltiplas competências público-

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de investimentos urbanos voltados para a competição entre novos centros financeiros e a


Resenha privadas, igualmente acompanhadas por posturas autocráticas e excludentes, foram diretamente relacionadas com a mudança na postura do Estado de regulador para o de empresariamento urbano. Por fim, a manutenção de privilégios que combina ganhos locacionais e operacionais, acabou por intensificar os processos de segregação e de reprodução das desigualdades sociais (FREITAS, 2017). O segundo capítulo aproximou a discussão para o campo do planejamento e da morfologia urbana. Em um primeiro momento, Freitas (2017) reuniu e discutiu um conjunto de características formais e processuais invariantes em uma seleção de intervenções identificadas como GPU. O objetivo foi construir a definição deste objeto de pesquisa. Posteriormente, por meio de um breve histórico teórico e conceitual, sobre o campo da morfologia urbana, o autor não apenas contextualizou como também problematizou o papel da forma urbana frente às determinações econômicas e políticas. A intenção de Freitas (2017) foi a de demonstrar a relevância que a forma assume no contexto urbano contemporâneo, no momento em que um restrito espaço de possibilidades contribui para concentrar o poder de decisão sobre o projeto, e sobre o seu discurso hegemônico, nas mãos de um grupo de agentes dominantes, igualmente restrito. Assim, de acordo com Freitas (2017), a definição dos GPU, a partir de suas características morfológicas, pode ser sintetizada da seguinte maneira: GPU são rupturas na produção do tecido urbano, concebidas como formas fechadas, em escala superior à tradicionalmente praticada no local, gerando, através de hegemonia do projeto em detrimento do plano de longo prazo, objetos icônicos que abrigam atividades restritas e homogêneas” (FREITAS, 2017, p. 46).

O terceiro capítulo identificou as motivações e o papel das grandes intervenções territoriais ao longo do processo histórico de urbanização da RMBH. Freitas (2017) destacou o modo como as heranças históricas influenciaram não apenas na produção dos atuais projetos, mas também como foram mediadas as determinações econômicas e políticas pelo campo do planejamento local. Segundo o autor, o histórico revelou “[...] a lenta consolidação de uma estrutura de poder assimétrica, caracterizada pelo alinhamento de interesses entre agentes econômicos e políticos dominantes, e também

o papel das grandes intervenções no processo de urbanização foi orientado pela abertura

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(FREITAS, 2017, p. 18). Do ponto de vista da morfologia urbana, o autor verificou que

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pelo uso do planejamento como instrumento de estabilização e legitimação desse poder”


Resenha de novas frentes de acumulação e pela construção e imposição de representações da realidade, símbolos de poder e construção de consensos cívicos (FREITAS, 2017). Concluída esta primeira parte dedicada à construção e contextualização dos GPU, no quarto capítulo, o autor descreveu vinte e seis GPU da RMBH, assim como seus principais agentes, sua relação com o território e o modo como foram mediados pelo setor do planejamento (FREITAS, 2017). Deste levantamento resultou a identificação das Características Invariantes dos GPU da RMBH. Estas características foram, então, articuladas, problematizadas, e confrontadas com discussões e conceitos concernentes a diferentes abordagens não apenas sobre teoria do planejamento, como também sobre produção do espaço urbano. As características invariantes identificadas ao longo do capítulo foram agrupadas em três modos de beneficiamento de agentes dominantes no campo de produção: o primeiro formado pelas características que possibilitam ganhos econômicos diretos, subdivididos em ganhos financeiros e ganhos locacionais; o segundo formado pelas características invariantes que possibilitam ganho de poder decisório sobre a produção do espaço; e o terceiro apresenta as características relacionadas aos ganhos no campo do planejamento e seu papel na idealização, legitimação e proteção aos GPU (FREITAS, 2017, p. 203).

De acordo com Freitas, a relação territorial entre os GPU revelou características complementares às invariantes identificadas neste capítulo. Embora projetados e viabilizados como uma intervenção pontual, os GPU são resultado de dinâmicas territoriais e, quase sempre, as reforçam, principalmente no que diz respeito às características socioespaciais e valorização fundiária/imobiliária. Nos GPU do tipo infraestrutura, a decisão política passa pela pressão de investidores para privilegiar tanto áreas com potencial valorização, quanto áreas cujos investidores são também os proprietários dos grandes terrenos. Essa lógica aparece igualmente nos GPU do tipo empreendimento privado. Segundo Freitas, há uma forte dependência entre os projetos e as condições de infraestrutura que, na maioria das vezes, são custeadas pelo poder público. Quando se trata de GPU do tipo reestruturação ou requalificação urbana, os investimentos se concentram em parcelas já valorizadas do território. Geralmente isto é feito buscando a

acumulam condições favoráveis para ganhos privados, mesmo quando existem REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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tendência de concentração dos GPU, tanto públicos quanto privados, em áreas que

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articulação de projetos pontuais próximos. Por fim, o autor pontua que existe uma


Resenha restrições à sua ocupação (FREITAS, 2017). O quinto capítulo utilizou conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu para delimitar o campo de poder dos GPU e caracterizar sua permeabilidade às determinações externas. Em outras palavras, o autor utilizou a teoria de Bourdieu sobre o campo de poder para desvelar as estruturas relacionais e disposicionais que estão presentes na produção dos GPU, colocando ênfase no capital econômico, político e cultural, e no habitus de seus principais agentes. Como estratégia para compreender estas situações, o autor adotou o pressuposto de que as intervenções são produto de uma prática e, por conseguinte, são orientadas por relações sociais entre agentes com maior ou menor poder de decisão. A opção metodológica de estruturar e conduzir a pesquisa a partir da obra de Pierre Bourdieu, e de sua teoria sobre o campo de poder, decorreu deste pressuposto. Desta forma, o objetivo foi não apenas delimitar o campo de poder que oferece as condições para a produção das intervenções descritas, como também problematizar a ordem social que sustenta esta prática. De acordo com o autor, a delimitação do campo de poder foi realizada a partir da identificação e caracterização dos agentes que o compõem, ou seja, todos que produzem ou sofrem efeitos dentro do campo e atuam na mediação de suas determinações externas. Freitas condensou a conclusão parcial do capítulo nos seguintes tópicos. Do ponto de vista relacional, observa-se um campo de produção de GPU que faz a mediação de expressivas determinações políticas e econômicas, ao mesmo tempo em que mantém estável sua estrutura de poder. Segundo o autor, esta estrutura de poder foi delineada nos primeiros anos do processo de urbanização de Belo Horizonte e de sua região metropolitana e se consolidou durante o regime militar e durante a política econômica da década de 1970. Verificou-se que o campo do planejamento, mais vulnerável e permeável, estrutura sua hierarquia de agentes não apenas em função do alinhamento aos mesmos vetores de determinação, mas atua também na viabilidade, legitimação e blindagem aos GPU (FREITAS, 2017). Finalmente, no sexto capítulo, Freitas discutiu - a partir da análise relacional

arquitetos. O ponto de partida para a construção da proposta foi a elaboração de um vetor propositivo em contraposição às características invariantes observadas nos GPU REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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no campo de poder dos GPU com ênfase no papel de planejadores, urbanistas e

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entre os campos e a partir da análise disposicional entre agentes - as alternativas de ação


Resenha analisados. Norteou Freitas (2017) nessa construção, o conceito de Cidade Justa (Just City), da forma como foi empregado por Sennet (2006). O confronto entre os princípios para viabilizar a Cidade Justa e as propostas geradas em oposição direta às características invariantes dos GPU orientou as ações que foram agrupadas por Freitas (2017) nas diretrizes de oposição ao modo como o capital investidor e o poder de seus agentes atuam no campo dos GPU; nas diretrizes de inserção de novos conceitos na disputa entre representações da realidade; e nas diretrizes projetuais e de leitura do lugar (FREITAS, 2017). O principal aspecto da estrutura disposicional do campo dos GPU é o modo como o poder de decisão se concentra nos agentes de maior capital econômico e político, e como estes adquirem e conseguem sustentar não só o próprio capital cultural, mas também os capitais dos agentes a eles alinhados. Dessa forma, consideramos que a desestabilização mais eficaz do campo seria a revisão da estrutura de acumulação de capital político e econômico (FREITAS, 2017, p. 268).

Freitas descreveu suas propostas de atuação com o objetivo de reverter o modo de atuação do capital investidor, e seus efeitos, propondo que os agentes de elevado capital cultural contraponham e desvelem o discurso hegemônico e as práticas dos agentes investidores (FREITAS, 2017). Para o autor, isso pode ser feito, em um primeiro grupo de propostas, tanto se opondo ao entendimento de cidade exclusivamente, enquanto recurso econômico para acumulação, quanto restringindo, regulando e investigando as distorções operacionais da parceria entre setor público e privado. Um segundo grupo de propostas se destina a desenvolver e trazer para dentro do campo novos conceitos e instrumentos que ofereçam não apenas maior capacidade de resistência aos interesses dominantes e à assimetria de poder no campo, como também alternativas de viabilização da Cidade Justa. Por fim, o terceiro e último grupo de propostas apresentado pelo autor diz respeito à necessidade de novas diretrizes de projeto que viabilizem formas urbanas que se apresentem abertas, diversas e democráticas.

Referências

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SENETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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FREITAS, Daniel M. de. Campo de Poder dos Grandes Projetos Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. [1. ed.]. São Paulo: Annablume, 2017.


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Proposta Pedagógica 1 Autores: Raphael Freitas Santos* e Rafaela Carvalho da Silva** Nível de ensino: Anos Finais do Ensino Fundamental; Ensino Médio. Tema: Políticas de inclusão social no pós-abolição e o racismo estrutural: arquivo escolar e memória institucional. Disciplina: História Transversalidade: Transversalidade: Educação para relações étnico-raciais, Educação para a igualdade de gênero.

Descrição sumária do(s) documento(s):

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Estudante de graduação em licenciatura em História na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), FAFICH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas).

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Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor do CEFET-MG (Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais).

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Título: Pedido de Matrícula n. 80 Gênero: Textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) Instituição de guarda: Coordenação de Arquivo e Memória Institucional do CEFET-MG

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Notação do documento: 01.02.02-065 - Antônio de Oliveira Lima - 1940

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Documento 2

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Título: Pedido de Matrícula n. 144 Gênero: Textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) Instituição de guarda: Coordenação de Arquivo e Memória Institucional do CEFET-MG

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Notação do documento: 01.02.02-094 - Argemiro Ferreira - 1939

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Documento 3

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Título: Pedido de Matrícula n. 144 Gênero: Textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) Instituição de guarda: Coordenação de Arquivo e Memória Institucional do CEFET-MG

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Notação do documento: 01.02.02-251 - Fernandes da Trindade Menezes - 1934

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Título: DECRETO Nº 7.566, DE 23 DE SETEMBRO DE 1909 - Créa nas capitaes dos Estados das Escolas de Aprendizes Artífices, para o ensino profissional primario e gratuito Gênero: Textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) Instituição de guarda: Ministério da Educação e Cultura Referência do documento: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf3/decreto_7566_1909.pdf

Objetivos da atividade: A atividade proposta tem o objetivo de utilizar documentos do arquivo escolar em sala de aula, de modo a possibilitar aos alunos certa autonomia na construção do saber histórico. Conhecendo melhor a história da escola em que estudam, os alunos podem entender melhor onde estão inseridos, qual a cultura daquela escola, pensando inclusive nos espaços e como foram ocupados ao longo dos anos. Também visamos relacionar a história da instituição com a história geral, pois considerando o contexto em que o CEFET-MG foi criado, é possível discutir os conceitos de “racismo institucional” e de “racismo estrutural”, analisando as primeiras políticas de inclusão social da população negra, nos primeiros anos da República. Tais políticas de inclusão promovidas pelo Estado brasileiro estavam ancoradas em um discurso de valorização do trabalho e na construção das bases para incluir socialmente a população negra e pobre por meio do trabalho mecânico, reproduzindo as desigualdades raciais no país. Por meio da atividade com documentos históricos, busca-se também promover um senso de preservação do patrimônio escolar e de valorização dos arquivos entre os

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estudantes.

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Procedimentos/estratégia de ensino:

1) Dividir a turma em três grupos e entregar um dossiê de matrícula de alunos para cada grupo.

2) Solicitar que os grupos analisem os documentos do dossiê e reflitam sobre as seguintes questões: Qual o nome do estudante? Onde ele nasceu? Qual a profissão do seu responsável? Com quantos anos o estudante entrou na escola? Para qual curso ele se matriculou?

3) Enquanto os alunos estão analisando os dossiês, projetar na parede ou registrar no quadro um glossário e o seguinte trecho do DECRETO Nº 7.566, DE 23 DE SETEMBRO DE 1909: DECRETO Nº 7.566, DE 23 DE SETEMBRO DE 1909:

Considerando que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes operárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; que para isso se torna necessário não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vício e do crime; que é um dos primeiros deveres do Governo da República formar cidadãos úteis à Nação, Decreta: Art. 1º. Em cada uma das capitais dos Estados da República o Governo Federal manterá, por intermédio do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, uma Escola de Aprendizes Artífices, destinada ao ensino profissional primário gratuito.

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Ourivesaria: trabalho de fabricar objetos com pedras preciosas. Latoaria: trabalho de fabricar objetos com latão. Marcenaria: trabalho de fabricar objetos com madeira. Profícuo: produtivo; útil. Ociosidade: inatividade; estado de preguiça. Artífices: artesão; operário; profissional que realiza trabalhos manuais.

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Glossário:


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4) Solicitar que um integrante de cada grupo apresente as respostas encontradas pelo grupo às questões levantadas pelo(a) professor(a).

5) Solicitar que todos os estudantes reflitam e manifestem suas opiniões sobre as seguintes questões:

5.1Quando foi criado o CEFET-MG e quais eram os objetivos dessa modalidade de ensino, de acordo com os documentos? 5.2 Quais as características comuns entre as pessoas que se matricularam na Escola de Aprendizes Artífices?

6) A partir da constatação de que os estudantes da Escola de Aprendizes Artífices eram todos homens, negros e filhos de trabalhadores manuais de baixa renda, refletir sobre:

6.1 Os conceitos de racismo institucional e racismo estrutural no Brasil, presente na obra de Sílvio Lual. 6.2 As políticas do Estado brasileiro após a abolição da escravidão que criou as bases para a manutenção das desigualdades raciais e de gênero no país, após a abolição da escravidão. 6.3 As medidas que o Estado brasileiro poderia tomar, atualmente, para buscar extinguir

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as desigualdades raciais no país.

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Referências COSTA, João Paulo Rodrigues. O uso do arquivo da escola na aula de história. Disponível em: <https://virtual.ufmg.br/20192/pluginfile.php/211023/mod_resource/content/1/1527-6012-1-PB.pdf>. Acesso em: maio 2020. GIL. Carmem Zeli de Vargas. Arquivos escolares e ensino de história. Criar Educação. Espírito Santo. v. 1, n. 1. 2012. p. 1-13. Disponível em: <http://periodicos.unesc.net/criaredu/article/view/864/817>. Acesso em: maio 2020. GONÇALVES, Nadia G. Arquivos históricos escolares: contribuição para o ensino de história e a história local. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2011/historia/6nadia_artigo.pdf>. Acesso em: maio 2020. LUAL, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

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VIÑAO FRAGO, Antonio.; ESCOLANO, Augustin. Currículo, espaço subjetividade: a arquitetura escolar como programa. 2 ed. RJ: DP&A. 2000. Disponível em: <https://virtual.ufmg.br/20192/pluginfile.php/210946/mod_resource/content/1/arquitetura%20como%20progra ma.pdf>. Acesso em: maio 2020.

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Proposta Pedagógica 2 Autora: Ivana Morais Silva de Carvalho*

Nível de ensino: Fundamental - séries finais e todas as série/ciclo (pode ser usado para comemoração do aniversário de Belo Horizonte). Tema: História de Belo Horizonte em propaganda. Disciplina: História Interdisciplinaridade: Português, Artes. Transversalidade: Temas locais, identidade, pluralidade cultural, ética, pesquisa.

Descrição sumária do(s) documento(s): Título: Capas e Propagandas encontradas na coleção Revista Alterosa Gênero: Textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto, jornal, convite) Iconográfico (formatos: fotografia, desenho, cartaz, cartão-postal) Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – Fundação Municipal de Cultura Referência do documento: Coleção Revista Alterosa Objetivos da atividade: o principal objetivo é trabalhar o papel da propaganda no estudo da história de Belo Horizonte. A proposta da aula foi resultado do “Projeto de Extensão – Ensino e Pesquisa – Belo Horizonte em documentos: Ensino e Pesquisa na formação do professor de História” (orientação das professoras Ana Paula Sampaio Caldeira e Lucimar Lacerda Machado), e

Licenciada em História – Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte; Pós- graduanda em Teologia - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia; Pós-graduada em Memória e Historiografia: identidades e patrimônio cultural em Minas Gerais – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Professora de História na Escola Municipal Luísa Rosália Diniz Kentish (Santa Luzia); ivanamoraiss@gmail.com REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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desenvolvido e aplicado na Escola Paulo Mendes Campos pela então estudante, Ivana Morais


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Silva de Carvalho, denominado “A História pela propaganda”. O objetivo dessa proposta é possibilitar aos alunos um contato direto com a história de Belo Horizonte sob o olhar das propagandas. Assim, o intuito principal da aula proposta é, primeiramente, mostrar aos estudantes a Revista Alterosa (veiculada em Belo Horizonte de 1939 a 1964), contextualizar e discutir aspectos da vida cotidiana e os costumes da época a partir de algumas reportagens e propagandas, e a partir daí pontuar sobre a importância da pesquisa e do pesquisador para a construção da nossa identidade, salientando e evidenciando que essa tarefa está ao alcance de todos.

Aula 1: duração 50 minutos Conteúdo

A aula terá início com a apresentação da importância do trabalho do pesquisador, o contato com as fontes e sua análise. Em seguida, será apresentada a Revista Alterosa (periódico que circulou na cidade entre 1939 e 1964), algumas reportagens e propagandas, contextualizando que ao analisar essas propagandas podemos entender a história de uma época, os costumes, os fatos vividos e a percepção da sociedade da época (particularmente a história de Belo Horizonte), evidenciando, em comparação com as propagandas atuais, várias mudanças ocorridas. A metodologia usada para destrinchar esse conteúdo contempla uma abordagem de uma fonte pouco usual, a propaganda, para se analisar a história, e visa colocar o aluno partícipe de um processo de pesquisa, investigação e produção. Espera-se que, ao final da aula, os alunos possam entender que a história pode ser contada e observada de diversas maneiras, como também a importância do cotidiano quando inserido nesse contexto. Ao final da aula, será dado aos alunos um folheto contendo propagandas antigas presentes na Revista Alterosa, uma pesquisa de campo a ser desenvolvida com seus familiares e a confecção de um anúncio publicitário (disponibilizado em outro arquivo, para ser impresso

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em formato de folheto).

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Procedimentos/estratégia de ensino - a aula será assim distribuída:

A importância da pesquisa o Como os conteúdos chegam aos livros didáticos o Diversos tipos de fontes o O papel do pesquisador Revistas atuais o Exibição de fotos de capas de revistas atuais (impressas e on line) o Problematização: até pouco tempo não havia conteúdo das revistas on line; atualmente as publicações impressas estão acabando Revista Alterosa o Contextualizar o que foi a revista o Publicação destinada a uma elite mineira o Através das publicações e propagandas podemos perceber a transformação da cidade, os costumes da época, o caminhar rumo a uma grande metrópole

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o Para este momento da aula, usar as imagens 1, 2, 3, 4.

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O Arquivo na sala de aula Figura 1 - Revista Alterosa n. 1, 1939/ago.

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Figura 2 - Revista Alterosa 1942/nov.

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O Arquivo na sala de aula Figura 3 - Revista Alterosa 1959/fev.

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Figura 4 - Revista Alterosa 1962/dez.

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O que é propaganda? o Mostrar algumas propagandas presentes na revista contextualizando-as o Destacar em algumas propagandas os costumes vigentes, o preconceito, o machismo, o racismo, dentre outros. o Comparar alguns produtos: propagandas antigas e propagandas atuais. o Para este momento usar as imagens 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11. o Mostrar propagandas de produtos que não existem mais.

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Figura 5 - Revista Alterosa – Anúncio Azeite Maria, 1945/set.

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Figura 6 - Revista Alterosa – Anúncio Sal de Fruta Eno 1943/ago.

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Figura 7 - Revista Alterosa – Anúncio Óleo Jonhson 1946/dez.

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Figura 8 - Revista Alterosa – Anúncio Creme Dental Kolynos 1942.

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Figura 9 - Revista Alterosa – Anúncio Absorvente Modess 1945/set.

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Figura 10 - Revista Alterosa – Anúncio Achocolatado Nescau 1942/jan.

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Figura 11 - Revista Alterosa – Anúncio Fermento em Pó Royal 1946/set.

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Atividade em grupo o Dividir a sala em grupos. o Disponibilizar fotos coloridas de produtos que não existem mais. o Cada grupo será responsável por um produto e deverá criar uma propaganda atual (texto) para esse produto. o O trabalho deverá ser feito em uma cartolina ou papel cartão. o O resultado do trabalho deverá ser apresentado de forma teatral para toda a turma e os cartazes afixados na sala ou em algum local da escola.

Entrega do folheto de pesquisa para cada aluno o Explicação da atividade a ser feita em casa e entregue em outra data a ser marcada o Para esta atividade usar as imagens do folheto 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7

Observação: aula interativa com o uso de Power Point

Aula 2: duração 50 minutos Conteúdo: Esta segunda aula tem como objetivo refletir sobre o tema proposto na primeira aula através da análise dos folhetos de pesquisa entregues e da vivência dos alunos como pesquisadores. A intenção é cada aluno mostrar o resultado da sua pesquisa e da sua criação, e abordar os desafios ao fazer o papel de pesquisador.

Procedimentos/estratégia de ensino - a aula será assim distribuída:

o Apresentação dos folhetos pelos alunos REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 7, n. 7, dezembro de 2020 - ISSN: 2357-8513

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o Apresentação de um vídeo sobre a história da propaganda

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o Revisão breve do conteúdo da aula anterior


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o Debate: o que vocês acharam de ser pesquisador?

Recursos necessários: o Datashow e computador o Cartolina ou papel cartão, lápis de cor, tesoura o Revista Alterosa

Referências FONSECA, Thais Nívea de Lima e. História e ensino de História. Belo Horizonte. Autêntica, 2006. PAIVA, Eduardo França. História e Imagem de Belo Horizonte: Autêntica, 2002. PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de fontes na sala de aula. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p.113-128, dez. 2008 PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 2.ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008. PRIORE, Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p.716. RAMOS, Ricardo. História da propaganda no Brasil: do reclame à comunicação. São Paulo: Publinform, 1970. REVISTA ALTEROSA. Belo Horizonte. Disponível em <www.pbh.gov.br/cultura/arquivo>. Acesso em: 22 fev. 2016.

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SIMÕES, Roberto. História da Propaganda Brasileira. Apostila [19--].

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