SNS: 40 Anos Ímpares, 40 Mulheres Notáveis

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ANOS ÍMPARES MULHERES NOTÁVEIS




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ANOS ÍMPARES MULHERES NOTÁVEIS


ESTA PUBLICAÇÃO TEVE O APOIO DE

TÍTULO

SNS: 40 Anos Ímpares — 40 Mulheres Notáveis © Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar e Autoras GRAFISMO

Fernando Cerqueira IMPRESSÃO

Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. ISBN

978-989-96591-9-3 DEPÓSITO LEGAL

463 161/19 Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar Alameda das Linhas de Torres 117, 1769-001 Lisboa https://www.apdh.pt • email: geral@apdh.pt Telefs: 96 366 87 45 • 21 754 82 78


Índice Gratidão — 1979-2019 ...................................................................................

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Prefácio ..............................................................................................................

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40 MULHERES NOTÁVEIS

Adelaide Brissos ..................................................................................................... Alexandra Fernandes............................................................................................. Ana Cristina Guerreiro ........................................................................................ Ana Escoval............................................................................................................ Ana Jorge ................................................................................................................ Ana Maria Santos Silva ........................................................................................ Ana Paula Martins ................................................................................................. Ana Terezinha Rodrigues ..................................................................................... Arminda Costa ....................................................................................................... Beatriz Calado ........................................................................................................ Beatriz Gomes ....................................................................................................... Berta Nunes ........................................................................................................... 5

15 18 21 24 27 30 33 36 39 42 46 48


Celeste Gonçalves ................................................................................................. Conceição Margalha .............................................................................................. Filomena Oliveira .................................................................................................. Graça Eliseu ........................................................................................................... Graça Freitas .......................................................................................................... Graça Raimundo.................................................................................................... Henriqueta Figueiredo .......................................................................................... Inês Guerreiro........................................................................................................ Isabel Abreu ........................................................................................................... Isabel de Souza Guerra ....................................................................................... Isabel Saraiva .......................................................................................................... Isilda Inês ................................................................................................................ Lucília Nunes ......................................................................................................... Manuela Peleteiro .................................................................................................. Margarida França ................................................................................................... Maria da Luz Pereira ............................................................................................ Maria de Belém Roseira ....................................................................................... Maria do Carmo Fonseca .................................................................................... Maria do Céu Machado ....................................................................................... Maria Eugénia Oliveira......................................................................................... Maria José Ribas .................................................................................................... Maria Júlia Matos .................................................................................................. Marta Temido......................................................................................................... Odete Isabel ........................................................................................................... Purificação Araújo ................................................................................................. Suzete Tranquada .................................................................................................. Teresa Paiva ............................................................................................................ Teresa Sustelo.........................................................................................................

51 55 58 61 64 67 70 73 76 79 82 85 88 91 94 97 101 106 109 112 117 119 122 125 128 131 134 138

Posfácio .............................................................................................................. 141

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Gratidão 1979-2019 Quando a APDH decidiu aceitar o desafio que lhe foi colocado e abraçar este projeto de construção de um livro no feminino para assinalar os 40 anos do SNS, foi com grande entusiasmo que as mulheres contactadas aderiram, afirmando a grande honra que sentiam nessa participação, pois tudo o que possamos fazer para de alguma forma, ajudar a manter vivo o SNS e relembrar algumas das muitas mulheres que fazem parte dessa construção é um orgulho. Muitas infelizmente já não estão entre nós e/ou as suas condições de saúde não lhe permitiram a participação, mas estão vivas nos nossos corações e serão sempre lembradas agora e no futuro, pela chama que acenderam e transmitiram para que hoje e amanhã, se assim o quisermos, possamos continuar a ter cuidados de excelência e garantir o acesso com equidade a todos aqueles que deles necessitam. Entre muitas que decerto poderíamos nomear, há aquelas que foram farol e raio de luz no desenvolvimento de uma vasta multiplicidade de atividades, ações, projetos, programas e políticas que sustentaram e sustentam o nosso SNS. Algumas são desconhecidas do grande público, mas de igual importância para esta soberba construção, outras têm ou tiveram maior visibilidade e 7


desempenharam cargos de elevada responsabilidade e impacto. De entre muitas, que aqui podiam e deveriam ficar lembradas, salientamos os nomes de: Ana Sara Cavalheiro Alves de Brito (Enfermagem); Eva Miranda Xavier (Medicina); Fátima Carneiro (Medicina); Laura Guilhermina Martins Ayres (Medicina); Margarida Eugénia Alves Garcia Bentes (Administração Hospitalar); Maria Augusta de Sousa (Enfermagem); Maria Celsa Ferreira Afonso de Carvalho (Medicina); Maria de Fátima Baptista Pinheiro Nogueira (Administração Hospitalar); Maria de Lourdes da Guerra Quaresma Vilhegas de Quinhanes Levy (Medicina); Maria de Lourdes Pintasilgo (primeira e única Mulher que desempenhou o cargo de Primeiro Ministro de Portugal); Maria do Céu Costa Leite (Enfermagem); Maria dos Prazeres Lançarote da Costa Pizarro Beleza (secretária-geral do Ministério da Saúde); Maria Fernanda Navarro da Silva Nascimento (Medicina); Maria José Lobo Fernandes (Medicina); Maria Gracinda Gaspar de Sousa (Medicina); Maria José Nogueira Pinto (Jurista); Maria Manuela dos Santos Pardal (Medicina); Maria Odette Santos-Ferreira (Farmácia); Maria Paula Mourão do Amaral Coutinho (Medicina); Maria Teresa d’Avillez Paixão (Medicina); Maria Teresa de Morais Martins Contreiras (Medicina); Mariana Diniz de Sousa (Enfermagem); Marta Hansen Lima Basto (Enfermagem) e Nídia Rodrigues Mendes Salgueiro (Enfermagem). Embora num livro de Mulheres, também é bom afirmar que sem Homens como António Arnaut, Albino Aroso, Arnaldo Sampaio, Baltazar Rebelo de Sousa, Gonçalves Ferreira, João Pedro Miller Guerra, Coriolano Ferreira, entre outros, teria sido difícil ou até mesmo impossível erguer o SNS.

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Prefácio Felicito a iniciativa da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar. SNS: 40 Anos Ímpares — 40 Mulheres Notáveis ficará para a História da Saúde em Portugal como um registo muito elucidativo do sentir e do contributo de Mulheres que, de forma exemplar, se têm dedicado à prestação de cuidados de saúde, à definição e implementação de políticas, à gestão de serviços e equipamento de Saúde, sem esquecer a promoção dos Direitos dos cidadãos. Algumas das Notáveis eram ainda desconhecidas para mim, com outras tive o privilégio de me cruzar em diferentes momentos e contextos. Foi com muita alegria e emoção que li o testemunho da Dra. Purificação Araújo que conheci como minha médica. Excelente profissional e grande lutadora pelos Direitos das Mulheres. No contexto da minha vida associativa, recentemente, tive o privilégio de trabalhar com a Enfermeira Graça Eliseu no âmbito da Estratégia da Saúde na Área das Demências e criação dos respetivos Planos Regionais. Há mais anos, a Dra. Inês Guerreiro envolveu a Alzheimer Portugal nas ações de formação destinadas aos profissionais da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. 9


A Professora Maria do Céu Machado, enquanto Alta Comissária da Saúde teve um papel muito importante na vida da Plataforma Saúde em Diálogo ao impulsionar a criação do Espaço Saúde em Diálogo de Faro, loja do cidadão para o Doente Crónico, que acaba de comemorar o seu 10.o aniversário. Estes são apenas alguns exemplos da proximidade entre Notáveis homenageadas nesta obra e a vida das associações de doentes. Na qualidade de cidadã e de dirigente associativa, tenho estado próxima da perspetiva das pessoas que recorrem ao Serviço Nacional de Saúde, quer como pessoas que carecem de cuidados de saúde quer como seus cuidadores. Um Sistema com virtudes, que se tem vindo a aperfeiçoar, com avanços e recuos, mas ainda com muitas lacunas. Parece-nos essencial um maior envolvimento dos cidadãos e das associações que os representam, quer a nível da criação e implementação de políticas de saúde ou com implicações na saúde, quer a nível da intervenção como parceiros na prestação de cuidados, tanto gerindo a sua própria saúde quanto como cuidadores. Neste sentido, é de salientar a Lei n.o 108/2019 (Carta para a Participação Pública em Saúde). Há que apostar no reforço dos serviços de proximidade, reconhecendo-se o papel essencial dos cuidados de saúde primários e sua articulação com os hospitais, consultas de especialidade, respostas sociais existentes na comunidade, definindo-se percursos de cuidados que permitam ao cidadão navegar no sistema sem lacunas, labirintos ou duplicações. Acresce que, o envelhecimento da população e o aumento significativo das doenças crónicas, muitas delas altamente incapacitantes, trazem novos desafios para o SNS. Um sistema originariamente preparado para dar resposta à doença aguda tem, cada vez mais, que se adaptar a gerir a doença. Para tal, a promoção da literacia em saúde e a capacitação dos doentes crónicos e dos cuidadores, afiguram-se como prioritários nas políticas de saúde. O mesmo se diga da prevenção e do diagnóstico atempado. Um melhor SNS, adaptado à evolução demográfica e ao perfil dos seus destinatários, só será possível se, por um lado, a Saúde estiver presente em outras Políticas — Sociais, do Ambiente e da Educação, nomeadamente, e, por outro, se doentes e cuidadores estiverem efetivamente comprometidos com a promoção da Saúde e com a gestão da doença. 10


As associações de doentes podem e devem ser reconhecidas como parceiros indispensáveis na resposta aos presentes e futuros desafios que se colocam à Saúde. Sendo mais do que justa a homenagem que a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar faz a todas estas Mulheres Notáveis que, com o seu cunho pessoal, marcaram a diferença no nosso SNS, não podemos esquecer todos aqueles, Mulheres ou Homens, que pela sua descrição, não são incluídos na rede dos Notáveis mas que deram e dão o seu contributo à construção e manutenção desta grande conquista do nosso país. ROSÁRIO ZINCKE

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Adelaide Brissos SOCIOLOGIA, DIREÇÃO DE SERVIÇOS REGIONAL E COORDENAÇÃO DO PRÉMIO BOAS PRÁTICAS EM SAÚDE

Uma carreira de 38 anos, no SNS, com funções a nível distrital, regional e central, como quadro técnico e como docente tem muitos e diversos episódios que me marcaram e decisivamente me ajudaram a crescer como pessoa e profissional. Não escolheria outro setor para trabalhar. O decurso dos anos e os diferentes projetos em que me envolvi deram-me uma clara visão de como pode ser compensador o trabalho de um sociólogo na saúde, contrariamente a algumas opiniões expressas, aquando da conclusão da minha licenciatura. Comecei a trabalhar na área hospitalar, pouco antes do 25 de Abril. Em 1975, foram criadas as Administração Distrital dos Serviços de Saúde (ADSS), tendo desempenhado funções em Évora e Beja. Em 1982, teve lugar a primeira experiência-piloto da integração de três estruturas nos cuidados de saúde primários (CSP), incluindo, à data, os internamentos que não implicassem os cuidados diferenciados — Centros de Saúde (CS) e Hospitais Concelhios e Serviços Médico-Sociais — com a entrada em funcionamento dos CS integrados (C3), Ferreira do Alentejo e Mértola. Tive o privilégio de trabalhar diretamente na implementação destes «novos» Centros de Saúde, uma experiência inovadora. 15


Na década de 80, o Departamento de Estudos e Planeamento da Saúde (DEPS) solicitou o meu destacamento. Das várias atividades desenvolvidas, realço as de coordenação dos Planos de Saúde Integrados do Alentejo e de Castelo Branco. A metodologia baseava-se numa visão multi-setorial dos problemas da região em estudo, com identificação dos fatores que condicionavam o estado de saúde e num processo participado, através das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), com as Instituições do SNS, autarquias e setores sociais (p. ex. educação). No DEPS, o trabalho em equipa e a articulação entre os quadros técnicos, dirigentes e o Diretor-Geral constituíram «uma verdadeira escola». A formação adquirida, ministrada por consultores da OMS, em planeamento, recursos humanos e avaliação e controlo de qualidade, bem como a oportunidade de conhecer outras realidades, como bolseira do Conselho da Europa, facilitaram-me a elaboração de propostas de novas abordagens em planeamento da saúde, entre as quais a articulação do Plano com o Orçamento nos Serviços de CSP, objeto de trabalho em formações realizadas em várias zonas do país e numa publicação, que teve como coautor um médico gestor. Coincidência ou não, as funções que fui desempenhando sempre implicaram um envolvimento direto nas várias alterações orgânicas ocorridas no SNS. À data de criação das ARS, fui convidada para Diretora de Serviços de Planeamento e Apoio Técnico na ARS do Alentejo. Sendo a presente publicação dedicada às mulheres, é curioso referir que aquelas funções dirigentes foram durante muitos anos exercidas por mulheres nas cinco regiões de saúde, sempre existindo entre nós uma estreita colaboração. Além do Planeamento que incluía também os investimentos, financiados pelo OGE e por Fundos Comunitários, fui responsável pelas áreas de formação, sistemas de informação, qualidade e Gabinete do Cidadão, e ainda por alguns estudos na área de recursos humanos, entre outras. Em finais dos anos 90, com um grupo alargado, que coordenei, foi concebida a Estratégia Regional de Saúde do Alentejo. Neste período foi publicada legislação que determinava a criação dos Centros de Responsabilidade Integrada nos Hospitais, processo em que participei, para implementar estas medidas na região. Um novo modelo de gestão que, por razões diversas, teve de esperar muitos anos para ser executado. 16


No âmbito do FEDER e FSE, fui a representante do Alentejo nas Unidades de gestão e nos Comités de Acompanhamento, a nível regional, com sede na CCDR Alentejo e a nível central, na Intervenção Operacional da Saúde (IOS) e depois SAÚDE XXI. A participação nestes trabalhos foi muito rica e a aprovação de alguns projetos foi muito gratificante, quando reconhecido o impacto que estes tiveram ao nível do bem-estar e qualidade de vida das populações. Menciono também a participação ativa no Programa de Cooperação Transfronteiriça — com a Andalúcia e Algarve e com a região Centro e Extremadura. Com a Extremadura, destaco o projeto referente à instalação do PET no Hospital Infanta Cristina, em Badajoz, o qual, mediante um protocolo com a ARS do Alentejo, garantiu aos doentes da região o acesso a exames mais diferenciados, em tempo útil, o que à data, o IPO de Lisboa não conseguia assegurar. Um percurso nunca se faz de forma isolada, e não é demais referir a motivação, competência e seriedade dos profissionais que diretamente colaboraram na Direção de Serviços, bem como a confiança e autonomia técnica que me foi proporcionada pelos diferentes Conselhos de Administração, presididos por excelentes profissionais. Esta vivência na ARS Alentejo foi a experiência mais marcante na minha carreira. Foram catorze anos de trabalho naquela Instituição (1994-2008), com grande envolvimento e dedicação em bons projetos, com reconhecido impacto na população. Neste testemunho dou a conhecer as principais etapas do meu percurso e a forma como as encarei. Entre outros trabalhos, muitos de planeamento em saúde, utilizei as metodologias emergentes nesta área. É, hoje, minha convicção, baseada num conceito de saúde mais abrangente associado à ideia-chave da qualidade de vida e bem-estar, e considerando as dimensões física, psicológica, social, económica, cultural, familiar, relacional, espiritual e ambiental, que o Planeamento em Saúde ganha se enquadrado em estratégias de desenvolvimento de base territorial, através de um modelo de descentralização. E porque a saúde sempre foi uma paixão, já aposentada, surgiu outro desafio — Coordenar o Prémio de Boas Práticas em Saúde® — um estímulo e uma aprendizagem contínua e o privilégio de integrar uma grande equipa, altamente competente e motivada, com a qual é um prazer trabalhar.

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Alexandra Fernandes MEDICINA GERAL E FAMILIAR

Escolhi ser médica para evitar, aliviar, ou pelo menos acompanhar o sofrimento dos meus semelhantes. Mais tarde, quando a especialidade ainda era pouco conhecida (e nada valorizada), escolhi ser médica de família, porque me interessava acompanhar as pessoas ao longo da vida, no seu «habitat natural» e também porque intuía o que mais tarde veio a ser comprovado cientificamente: ter acesso a médico de família contribui mais para a saúde das pessoas do que ter acesso a qualquer outra especialidade médica. Tenho desde sempre trabalhado em exclusividade no SNS, porque me permite tratar do mesmo modo todas as pessoas, independentemente do seu estatuto social, económico, ou cultural e porque me parece ser o melhor meio de alcançar justiça na Saúde. O Serviço Nacional de Saúde, que agora comemora 40 anos de existência, apesar de múltiplas imperfeições e contradições, tem dado passos de gigante no acesso a cuidados de saúde de qualidade, para todos, no nosso País. Tem sido um gosto e um privilégio fazer parte! Poderia contar aqui várias aventuras que tenho vivido como médica de família no SNS: A aventura empolgante, sempre variada e imprevisível, de ser 18


«médica de pessoas»; a aventura laboriosa do desenvolvimento, promoção e reconhecimento da Medicina Geral e Familiar e dos Cuidados de Saúde Primários; a aventura desafiante da formação de muitos e bons jovens médicos de família; a aventura animada da comunicação com o público, através dos Media... Como o espaço é limitado, opto por contar uma história, que tenho vivido na primeira pessoa, desde a minha especialização até hoje: A história da USF Fernão Ferro MAIS. Em 1996, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo lançou um desafio aos profissionais dos centros de saúde: «assumirem-se, em pequenos grupos, como os principais responsáveis pela organização e prestação de cuidados de saúde primários, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde». Era o início do Projeto ALFA — Iniciativas Locais. A equipa de saúde da Extensão de Fernão Ferro, que já há vários anos se vinha empenhando em servir a comunidade em que estava inserida, não perdeu esta oportunidade de adquirir maior autonomia e melhores condições para a prestação de cuidados. E assim, em julho de 1996 entrou em funcionamento o Projeto Fernão Ferro MAIS (Medicina — Acesso — Inovação — Saúde). Uma das características que distinguiu o Projeto Fernão Ferro MAIS de outros projetos ALFA foi o envolvimento, desde o início, de todos os grupos profissionais. Não era um projeto de médicos, mas de toda a Equipa de Saúde. Foi por isso que, quando em 1999 foi proposta a evolução para o Regime Remuneratório Experimental, a Equipa recusou. A partir de 1999, houve uma passagem para segundo plano dos projetos ALFA. Percebemos que tínhamos deixado de ser uma prioridade para a tutela, que passou a ter outras, nomeadamente os centros de saúde de terceira geração, o RRE, a eventual privatização... Quando, em 2006, surgiu o conceito de Unidade de Saúde Familiar (USF) a Equipa de Saúde não desperdiçou a oportunidade de recapturar uma herança do passado: e em 11 de setembro desse ano foi fundada a USF Fernão Ferro MAIS, que viria a passar a Modelo B em 2008. Somos atualmente nove médicos de família (dois dos quais a meio tempo), sete enfermeiras e cinco secretárias clínicas. 19


No decurso dos últimos 23 anos tivemos altos e baixos, mas olhamos com orgulho para o que conseguimos: • Temos prestado cuidados de saúde primários e globais a 13 800 utentes, que são a nossa razão de existir, numa lógica de acessibilidade, qualidade e racionalidade; • Mantivemos sempre uma forte ligação com a Comunidade; • Atingimos ano após ano os objetivos clínicos contratualizados com a Tutela; • Colaborámos de diversos modos com a Administração Regional de Saúde e com o Ministério da Saúde; • Formámos um número considerável de médicos de família e de estudantes de Medicina, Enfermagem e Secretariado; • Participámos em trabalhos de investigação de âmbito nacional e internacional; • Ganhámos prémios e condecorações oficiais. Uma frase que nos define: Trabalho em equipa. Uma missão: Prestar cuidados de qualidade, com boa acessibilidade. Um desejo: Continuar. Uma necessidade: Que haja mais investimento no SNS e nos Cuidados de Saúde Primários. QUE ASSIM SEJA!

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Ana Cristina Guerreiro MEDICINA DE SAÚDE PÚBLICA E AUTORIDADE REGIONAL

Comecei a trabalhar, como médica, em janeiro de 1982, sempre e apenas no SNS. Houve um tempo em que eu dizia muitas vezes que se a Senhora Ministra da Saúde, à data a Dr.a Maria de Belém, 1995-1999, soubesse o quanto eu gostava de trabalhar, não me pagava ordenado. Sim, essa foi, sem dúvida, a minha melhor etapa profissional. Penso que terá sido determinante na minha vida a passagem pelo movimento Guias de Portugal, desde os meus 10 anos, até à ida para a Faculdade. Por diversos motivos: os princípios inerentes, o modelo dos chefes, as relações de amizade estabelecidas e o ensaio de liderança, na posição de chefe de patrulha, que desde muito cedo assumi. Outro marco importante na minha vida profissional foi o primeiro contacto com a Professora Dr.a Fernanda Navarro, num estágio opcional na DGS. Foi o meu deslumbramento com a Saúde Pública. Foram dias de intensa interação, leitura e produção, um salto enorme no meu desenvolvimento profissional e pessoal. A sua atitude profissional foi inspiradora. Com o colega Ernesto Correia, que também me apoiou bastante, rimo-nos muito os três, bem alto, momentos que a minha memória gravou. 21


Quando iniciei o Internato de Saúde Pública na Região Algarve, era Presidente da ARS o Dr. Jorge Albuquerque, médico de Saúde Pública, que acumulava as funções de Delegado de Saúde Regional. Por ser um dos poucos médicos de SP da Região com formação especializada, experiência e uma grande apetência para a Estatística e Epidemiologia, numa atitude de colaboração com a Coordenação de Internato da Zona Sul, dava apoio direto aos Internos de SP. Assim, jovens médicos em formação tinham acesso direto ao Presidente da ARS, para «explicações particulares», em «momentos de aflição». Tenho desta situação boa memória. Talvez por isso, chegada à Região de Setúbal, onde fiquei colocada, fui-me apresentar ao Presidente da ARS. Por acaso, nesse dia o Dr. Luciano Costa estava a despedir-se do cargo e dos seus colaboradores. Trocámos impressões e recordo-o como um bom momento, o Dr. Luciano Costa a sair do cargo mais elevado e eu a entrar na base da carreira — a vida a correr. O PROJAS (Projeto Jovens Animadores de Saúde) foi o projeto da minha vida profissional!... Começou por ser um projeto com metodologia interpares, com alunos adolescentes, que se foi tornando um verdadeiro projeto de Promoção da Saúde, com envolvimento de diversas parcerias, em particular Escolas e Autarquias dos Concelhos abrangidos. Os pontos fortes do projeto, levado várias vezes a iniciativas científicas nacionais e internacionais, como modelo de uma boa prática, foram a respetiva fundamentação teórica e a correta operacionalização dos conceitos, o trabalho de Equipa e ter sido um processo participativo, em todas as suas etapas. Recordo momentos de grande intensidade emocional, utilizando metodologias de desenvolvimento pessoal, com partilha de histórias de vida, sentimentos e emoções, com profissionais adultos e alunos jovens, que marcaram para sempre as nossas vidas. Fica o gosto de sentir que, para aqueles que participaram, fez a diferença. Para nós também. Não esqueço, nos encontros de jovens, nas Pousadas da Juventude, por todo o País, as noites de insónia por escolha própria, para vigilância, à conversa com minha colega Lina Guarda, pontualmente outros, que nos foram sedimentando uma grande amizade, iniciada na reflexão sobre os resultados do dia, sobre a evolução dos nossos jovens, os nossos desempenhos nos exercícios, entrando cada vez mais em nós próprias, na partilha de momentos e pedaços de vida. Há Pessoas que entram em nós devagarinho e, com o tempo, nem conseguimos separar em nós a parte que lhes pertence. A Maria José e o António Cardoso 22


Ferreira deram-me o privilégio de eu fazer parte de uma longa caminhada profissional comum. Integramos um grupo de médicos de Saúde Pública denominados, pelos outros, de «animadores». Isto porque fomos desenvolvendo na nossa prática, metodologias participativas, com processos de animação das comunidades envolvidas. É nossa convicção que, desta forma, após a retirada dos animadores, as comunidades seguem autónomas, mas reforçadas, os seus caminhos próprios. Eu teria eventualmente que nomear outros atores, somos um grupo grande. Mas este casal é especial para muitos de nós, para mim em particular. Têm sido sempre, uma das minhas maiores referências, pessoais e profissionais. Participei, desde uma fase exploratória, na Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, em grupos de discussão, na elaboração de propostas, pareceres e documentos. Conheci um conjunto de profissionais sonhadores que, com muito saber e empenho, conseguiram levar à mudança das unidades de saúde, a partir de modelos experimentais, evoluindo progressivamente para o que hoje temos. Pelo sonho é que vamos... Em agosto de 2008 regressei ao Algarve, responsabilidade partilhada com o Dr. Rui Lourenço, à data Presidente do CD da ARS, que me desafiou para funções de nível regional. Também aqui tenho experiências enriquecedoras a partilhar. Na Direção do Departamento de Estudos e Planeamento (DEP), sublinho a participação nos projetos Internacionais Transfronteiriços e na Rede Europeia de Regiões de Saúde (ENRICH). A partir de 2012, já no Departamento de Saúde Pública e Planeamento (DSPP), com funções atribuídas por lei às Autoridade de Saúde, a especificidade de uma região turística reforça a importância de alguns programas como a Vigilância da Qualidade das Águas Balneares, a Prevenção e Controlo da Doença dos Legionários, a Prevenção e Controlo das Doenças transmitidas por Vetores, incluindo rede de vigilância entomológica (REVIVE) e, mais recentemente, a validação da componente de vigilância da saúde humana nos Estudos de Avaliação de Impacte Ambiental. Destaco como uma experiência construtiva e bem conseguida, o trabalho conjunto dos cinco Departamentos de Saúde Pública Regionais no âmbito dos Observatórios de Saúde Regionais, na elaboração partilhada dos Perfis de Saúde, bem como a participação, numa primeira fase, na elaboração de documentos e preparação de propostas no âmbito da Reforma da Saúde Pública, com momentos de grande exigência e desenvolvimento profissional. Somos uma pequena equipa de gente extraordinária. 23


Ana Escoval ECONOMIA E ADMINISTRAÇÃO HOSPITALAR, ALTA DIREÇÃO DA SAÚDE, DOCÊNCIA E INVESTIGAÇÃO

Nasci no Alentejo e muito jovem, em 1970, iniciei funções no «novo» Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, tendo tido a oportunidade de vivenciar por dentro as dificuldades das pessoas, numa região muito pobre e carenciada, mas também tive oportunidade de acompanhar o reforço, em 1971, a partir da intervenção pública nas políticas de saúde e na orientação do novo papel do Estado no sentido de prover diretamente a promoção da saúde e a prevenção da doença, assim como, com o advento de 1974, em que chegava o marco maior para a concretização de sonhos e aspirações de um povo. A criação de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal, equitativo e gratuito no momento da utilização concretizou uma das aspirações de Abril de 1974. O Serviço Médico à Periferia (SMP) entre 1975 e 1982 representou para as populações do Alentejo uma oportunidade única para a tomada de consciência dos seus direitos a cuidados de saúde. Foram vários jovens médicos que vinham da cidade grande para levar a medicina ao interior carenciado. Estas equipas que muitas vezes tinham dificuldade em entender o linguajar das pessoas, foram acolhidas pelas comunidades que os ajudaram a erguer o futuro 24


sistema de saúde pública e, assim, estavam criadas as condições para o desenvolvimento do SNS. Este pequeno contributo relata, de modo sucinto e parcial, a minha vivência da conceção, da gestação e das circunstâncias do nascimento do SNS, no nosso contexto e procura deixar uma mensagem centrada no futuro e na responsabilidade que a todos cabe para uma renovação estrutural de todo o SNS, com formas de organização inovadoras e adaptativas, pese embora seja ainda necessário melhorar a articulação e a cooperação com outros sectores, nomeadamente o social, em particular para as pessoas que necessitam de cuidados de longa duração, dado que o aumento da longevidade e das doenças crónicas colocam enormes desafios e exigem profundas mudanças nas abordagens do cuidar, da promoção da saúde nestas situações e naturalmente do suporte social, familiar e comunitário. Se quisesse e pudesse falar dos últimos 40 anos num único parágrafo diria que o acesso aos cuidados de saúde e a saúde das(os) portuguesas(es) teve um impacto fortíssimo por força da criação do SNS e nos resultados alcançados nos principais indicadores de saúde, que bem o atestam e nos colocam em lugar cimeiro quando nos comparamos com outros países, nomeadamente os europeus. Por tudo isto devemos ser gratos às mulheres e aos homens que foram construindo este pilar da nossa democracia — o SNS que continua a ser o garante da equidade no acesso aos cuidados. O desenvolvimento do SNS implicou o sistemático estudo e adequação dos recursos financeiros disponíveis, dos modelos de financiamento e das modalidades de pagamento. É aí que me vejo e revejo deste sempre, tendo participado em variadíssimas funções e colaborações, destacando: (I) no final da década de 70 e início da de 80, pela mão do Professor Augusto Mantas na implementação do Plano de Contabilidade para os hospitais, no grupo que apoiou todos os profissionais que trabalhavam nos serviços de contabilidade no país e que com os escassos recursos financeiros garantiam as contas certas na prestação de cuidados a todos os cidadãos que procuravam os serviços hospitalares; (II) ainda na década de 80 participei na elaboração de um estudo sobre Reavaliação do Ativo Imobilizado para os Organismos de Saúde e dei apoio na reorganização dos Serviços Financeiros e de Aprovisionamento e Património de algumas instituições de Saúde, em todo o país e ilhas; (III) no final da década de 80 25


integrei a equipa responsável pelo desenvolvimento do Sistema de Pagamento Prospetivo (SPP), através dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH), nos hospitais portugueses, liderada pelo Dr. João Urbano, coordenando a normalização da codificação de artigos de consumo e de centros de custo, visando a melhoria na determinação dos custos dos serviços e cuidados prestados nos hospitais e ainda, no desenvolvimento de vários projetos de melhoria da eficiência hospitalar; (IV) no final da década de 90 participei na criação das agências de contratualização e no desenvolvimento das metodologias de distribuição de recursos aos hospitais, tendo a partir daí desenvolvido toda uma linha de investigação nesta área que deu lugar à tese de doutoramento; (V) em 2008 desenvolveu-se o preço compreensivo para algumas doenças, como por exemplo a Insuficiência Renal Crónica, o VIH/Sida e outras, enquanto inovação no financiamento. Envolvi-me sempre em participação ativa na gestão pública de âmbito do SNS, dedicada à ação de Administração Hospitalar e, todo o trabalho ao longo destas quase cinco décadas assenta na preocupação de maior e melhor acesso aos cidadãos, através duma maior transparência e responsabilização na distribuição dos recursos disponíveis. Sabemos que o SNS cria valor para os cidadãos e suas famílias e, de uma forma inegável, para a economia do país. É uma das expressões mais nobres da democracia portuguesa. E também sabemos que concretiza a solidariedade do todo coletivo na proteção da vida humana e no bem-estar de todos, pois é um fator para a coesão e para o desenvolvimento social porque atenua desigualdades em saúde e promove mais funcionalidade individual, social e coletiva. Por tudo isso importa dar-lhe continuidade, porque importante, importante... são mesmo as pessoas, as famílias e as comunidades. Muito obrigada a todas aquelas e aqueles que, diariamente, constroem o SNS.

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Ana Jorge MEDICINA DE PEDIATRIA E GOVERNAÇÃO NA SAÚDE

Falar do meu percurso profissional, com cerca de 46 anos e selecionar alguns episódios mais marcantes ou significativos não é tarefa fácil. Sou médica, pediatra e embora tenha exercido tarefas tão díspares como ser pediatra clínica, ter exercido funções na administração da saúde e ser ministra da saúde, escolhi episódios, relacionadas com a criança, em diferentes aspetos. A escolha da especialidade de pediatria decorre de um feliz acaso. Em 1974 frequentava o Estágio Clínico obrigatório, quando chega a revolução de Abril. Nesse ano, trabalhei sob a orientação de Abílio Mendes, pediatra no Hospital de Santa Maria, que me propõe substituí-lo no Dispensário Materno-Infantil em Alenquer, porque tinha de ir trabalhar na revolução. Este dispensário, pertencia à Junta Distrital de Lisboa, atendia crianças até aos dois anos de idade sem direito a assistência médica e medicamentosa no sistema de Previdência Social. Os medicamentos, incluindo suplementos vitamínicos, de que necessitavam desesperadamente dadas as carências alimentares, eram facultados gratuitamente. Estas famílias não tinham capacidade financeira para os adquirir na farmácia da comunidade, nem tinham direito à comparticipação. 27


Em 1975 acompanhei de perto a criação do Serviço Médico à periferia tendo, por razões familiares, participado durante alguns períodos numa das equipas no Alentejo interior. Mas é no ano seguinte que integro uma equipa de sete médicos sediada em Alcácer do Sal, com a responsabilidade de apoiar este concelho e o de Grândola, mas com o trabalho mais intenso em Alcácer. Neste período e neste contexto único destaco o apoio à área materno infantil: conseguimos criar uma consulta de saúde infantil, na qual todas as crianças eram atendidas, independentemente do tipo de assistência a que tinham direito. Com o apoio da DGS e da Administração Distrital da Saúde de Setúbal conseguimos, de forma inédita, abrir um centro de saúde com consulta de saúde infantil para todas as crianças sendo as responsabilidades financeiras partilhadas entre a Caixa de Previdência e a Direção-Geral da Saúde. Neste espaço funcionou também uma consulta de saúde materna e de planeamento familiar tendo esta, sido precedida de reuniões abertas à população, e de encontros intensos realizadas à noite com algumas mulheres, líderes da comunidade. Uma outra atividade que foi decisiva em muitas das minhas opções profissionais, foi o trabalho numa equipa de saúde escolar no centro de saúde de Caneças. Tratava-se de uma zona da periferia de Lisboa, num bairro de construção clandestina sem saneamento básico, as crianças não tinham acesso à vigilância de saúde, tendo inúmeros problemas de saúde e familiares, com o insucesso escolar no 1.o ciclo a bater nos 53% (o nacional era de 35%). Todo este contexto de adversidade fez-me pensar a pediatria como o ramo da medicina responsável pela saúde das crianças de forma compreensiva, com uma visão e ação global. A preocupação com a criança no seu todo, a doença crónica com ou sem deficiência associada, a importância da articulação com os serviços da comunidade, da saúde do ensino e do apoio social, foi decisivo no abraçar um novo desafio — a abertura do serviço de pediatria no Hospital Garcia de Orta, sob a liderança de Torrado da Silva, com quem vinha a partilhar, desde há algum tempo, muitas destas preocupações. A preocupação com o acolhimento e estadia das crianças nos serviços de pediatria levaram-me a colaborar com o setor de Humanização dos Serviços de Saúde à Criança do Instituto de Apoio à Criança e, é neste âmbito, que após 28


ter participado numa formação na Universidade Marc Blosch em Estrasburgo, trago para Portugal a semente do Projeto Música nos Hospitais. A implementação do Trim-Trim Dói-Dói, em 2000, linha de orientação telefónica dedicada à saúde das crianças, só possível com envolvimento de todos os serviços de pediatria e centros de saúde, foi outro dos projetos que considero relevante. A definição da Idade Pediátrica, para o atendimento nos serviços de Saúde, até aos 18 anos, a 1 de junho de 2010, dando cumprimento ao 1.o artigo da Convenção dos Direitos da Criança, bem como a publicação do Decreto-Lei, conjunto com os Ministérios do Trabalho e segurança Social e da Educação, sobre a organização da Intervenção Precoce em Portugal, são a concretização de dois objetivos pelos quais me bati durante mais de uma década. E, não podia deixar de fechar esta minha viagem com o PIO — Programa Intervenção em Oftalmologia. Considero que foi um dos projetos mais marcantes na minha passagem pelo Ministério da Saúde. Não por ser o mais importante, mas pelo que se vivia na altura, com doentes a viajarem para Cuba por iniciativa dos seus autarcas, e pela forma de organização da resposta. Propusemos que os serviços de Oftalmologia dos hospitais públicos organizassem um sistema de resposta às necessidades de tratar os doentes com cataratas. Envolvemos ARS, Conselhos de Administração de Hospitais, mas também os Diretores dos Serviços de Oftalmologia, que assumiram publicamente a sua adesão ao programa. Ficou-me na memória uma discussão com uma senhora deputada, à saída da apresentação do programa, em que me confrontou com a sua dúvida sobre se o SNS teria a capacidade de responder e se não deveria antes recorrer à contratação externa de privados. Defendi, com toda a convicção, que acreditava que era possível, não sem o temor de poder falhar. Mas a realidade foi favorável, o SNS respondeu e os doentes foram tratados na sua maioria, dentro do sistema público.

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Ana Maria Santos Silva MEDICINA INTERNA E DE SAÚDE PÚBLICA E DIREÇÃO DE SERVIÇOS NACIONAL

Quando, em setembro de 1971, foi promulgada a reforma do sistema de saúde e assistência, conhecida por Reforma Gonçalves Ferreira, alguns de nós, a terminar a licenciatura em medicina e com uma visão mais holística da saúde, ficámos na expectativa do que poderia seguir-se. Assim, concluída a licenciatura, frequentámos o Curso de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (1973), após o que uma parte decidiu abandonar de imediato a via hospitalar e concorrer para o cargo de delegado de saúde dos serviços locais, assegurando com os colegas que, em 1975, iniciaram o Serviço Médico à Periferia (SMP) a criação dos Centros de Saúde de primeira geração. Outros, entre os quais me incluía, optaram pela formação médica hospitalar até à conclusão do internato da especialidade. Em setembro de 1979 foi publicada a Lei n.o 56/79, criando o Serviço Nacional de Saúde (SNS), tornando-se impossível resistir ao desafio de contribuir para a implementação de um sistema de saúde de acesso universal e prestador de cuidados integrados de saúde, desde a sua promoção e vigilância, passando pela prevenção da doença e pelo seu diagnóstico e tratamento. Tomada a decisão de abandonar uma carreira hospitalar já estabelecida, a 30


opção foi por um concelho limítrofe de Lisboa (com uma população de 37 000 habitantes), à época predominantemente rural, mas que numa década passou a fortemente industrializado e com áreas que, pela maior proximidade e acessibilidade a Lisboa e Setúbal, desenvolveram características suburbanas. Nesta fase de transição (1980 até à integração dos serviços locais em 1982), os recursos materiais, técnicos e humanos estavam sob alçada dos Serviços Médico-Sociais (SMS), portanto fora da minha jurisdição, contando, como responsável pelo Centro de Saúde (CS), com apenas 11 médicos do SMP e cinco enfermeiras com a excelente prática do Instituto Maternal. Após várias tentativas foi cedido um espaço administrativo e de dois gabinetes médicos no posto dos SMS, na sede do concelho, e no posto do Pinhal Novo onde estavam colocadas as enfermeiras. Assim se iniciou a prestação de cuidados de saúde dirigidos a grupos específicos da população: crianças até aos seis anos, grávidas e mulheres em idade fértil e população escolar com a aplicação do Programa Nacional de Vacinação. Com a chegada de novo grupo do SMP, que iniciou funções com uma estrutura já minimamente organizada, foi possível abrir três novas unidades de saúde em zonas rurais do concelho, distantes e sem acessibilidade fácil aos serviços já existentes, o que se fez com cedência de instalações por parte das respetivas juntas de freguesia. O velho Hospital Concelhio estava totalmente desaproveitado, exceção ao internamento com 20 camas, funcionando em regime asilar. Tinha autonomia administrativa e financeira e era dotado de um quadro de pessoal que contemplava apenas pessoal de enfermagem e auxiliar. Constatando-se a insuficiência de resposta no ambulatório face às necessidades da população e com a colaboração dos médicos do SMP, que foram essenciais neste período pré-integração dos serviços e anterior à criação da carreira de clínica geral, entrou em funcionamento (julho 1980) um serviço de atendimento permanente (24 horas durante a semana, período diurno aos fins de semana) que contribuiu para aliviar a Urgência do hospital distrital de Setúbal. Apesar das carências existentes, cerca de 80% dos casos atendidos tinham resolução local, recorrendo-se ao hospital apenas nos que requeriam cuidados diferenciados ou exames complementares de diagnóstico. O bom relacionamento funcional com o hospital distrital foi também fulcral para modificar o regime de internamento no hospital concelhio, que passou a ser feito através do serviço de atendimento permanente e por referenciação 31


distrital de casos crónicos passíveis de tratamento local, bem como de situações agudas cuja resolução fosse viável localmente com recurso a meios complementares distritais. Com a integração de todos os serviços de saúde locais em 1982 — SMS, Hospital Concelhio, serviços dependentes da Direção-Geral da Saúde processo moroso, feito de sobressaltos e dificuldades, o CS passou a dispor de nove extensões dispersas pelo concelho e de uma unidade de internamento com serviço de atendimento permanente na vila de Palmela, assegurado pelos médicos do SMP. A existência de uma estrutura organizativa criada nos dois anos anteriores, bem como a colocação progressiva dos médicos da carreira de clínica geral, deram suporte importante à integração das várias unidades e do pessoal aí colocado, a maioria proveniente dos ex-SMS. Foi uma fase difícil, mas havia, na generalidade dos profissionais, interesse em fazer algo novo e melhor em prol da população, o que permitiu ir vencendo obstáculos. A estratégia utilizada teve em conta a especificidade de cada anterior unidade de saúde e o tipo de população por ela abrangido e, principalmente, o fomentar do envolvimento pessoal e coletivo dos profissionais, estimulando o trabalho de equipa e a reciclagem progressiva nas várias áreas de atividade. O pessoal de enfermagem, dos ex-SMS, teve formação nas áreas da vacinação, saúde materna e infantil, planeamento familiar e saúde escolar, assegurada pelas cinco enfermeiras de saúde pública que durante seis meses se deslocaram às unidades de saúde. Deste modo foi possível descentralizar a vacinação que passou a ser feita em todas as unidades e contar com enfermeiros aptos a apoiar os médicos em todas as valências. A coexistência de médicos dos ex-SMS e de clínicos gerais condicionou também alguns problemas iniciais na organização da prestação de cuidados, que se foram resolvendo com a saída de uns e a plena integração de outros, de tal modo que, passado menos de um ano após a integração as inscrições nas listas destes médicos já se fazia por agregado familiar. Valeu a pena a criação do SNS, hoje manifesta na evolução positiva dos indicadores gerais da saúde da população e na eliminação ou controlo de algumas doenças. Mas a sua sustentabilidade depende de todos nós, seja pelo esforço do Estado e dos profissionais da Saúde, ou do modo como assumimos individualmente, na família e na comunidade a responsabilidade pela proteção e promoção da nossa saúde. Sem a colaboração e a consciencialização de todos, não há SNS que resista. 32


Ana Paula Martins FARMÁCIA CLÍNICA, DOCÊNCIA E BASTONÁRIA

A minha história com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é tão anónima como é a da maior parte dos portugueses. Fez sempre parte da minha vida, da vida da minha família, acompanhou-nos sempre nos bons e nos maus momentos. Nas equipas profissionais, que são o maior capital do SNS, encontrei quase sempre a excelência, o respeito, a infinita dedicação. Nos últimos anos, também assisti e vivi na primeira pessoa, situações que demonstram que o investimento no SNS é urgente. Precisa de mais financiamento, melhor organização, precisa de se reinventar para atrair capital humano, mais transparência na decisão, mais abertura à participação e partilha com os cidadãos que são a sua razão de ser. E colocar o cidadão no centro é garantir que fazemos uma avaliação e uma interpretação adequadas sobre as suas necessidades e expetativas, promovendo a saúde em todas as políticas e, por essa via, a sustentabilidade do sistema de Saúde como um todo. Acredito profundamente que só com cidadãos mais ativos, mais informados, que se envolvam e participem mais nos debates importantes que Portugal tem pela frente, seremos capazes de imprimir a necessária mudança no SNS. Nunca como hoje foi tão importante e necessário, que cada um de nós assuma 33


a sua responsabilidade na mudança que queremos ver, no País que queremos ser. E o SNS será aquilo que nós portugueses formos capazes de concretizar através das nossas escolhas. Não devemos permitir que ninguém o faça por nós. Tal como o SNS, a nossa democracia exige a nossa atenção e nossa inspiração pelo bem comum. O SNS faz bem à democracia, contribui para o desenvolvimento do país, para uma população mais saudável, mais produtiva. Atrai inovação e coloca-a ao serviço das pessoas. O SNS é hoje parte integrante das nossas vidas. Algo com que todos os portugueses se habituaram a viver. Ao qual recorrem com maior ou menor frequência. Nem sempre foi assim. Foi longo o caminho que tivemos que fazer para acompanhar a evolução que, na Europa, já se fazia sentir e que, em Portugal, tardava. Na construção da nossa democracia, o SNS é, seguramente, o reflexo da nossa ambição de saúde para todos, a concretização da nossa solidariedade enquanto povo, o assumir inequívoco do combate às desigualdades nos nossos pilares constitucionais. Hoje, o SNS é uma estrutura madura de 40 anos — que esta obra assinala. Deixou a juventude e está em plena fase adulta, mas começa agora a olhar para a sua própria saúde, a bem da sua longevidade. O carinho que os portugueses por ele nutrem assim o justifica. Independentemente dos ciclos políticos, todos lhe deram uma merecida atenção. Afinal, é uma garantia de igualdade e coesão social que não deixa ninguém para trás. Todos temos a nossa relação com o SNS e todos o reconhecemos pela sua presença no início, durante e no fim da nossa vida. Todos passámos por diferentes experiências que, independentemente da nossa satisfação, nunca colocaram em causa o apoio e o carinho que sempre dedicamos ao SNS. Passaram 40 anos e hoje sabemos que, respeitando os mesmos princípios, teremos de encontrar novas abordagens para novos desafios como a transição demográfica, os impactos da inovação tecnológica, a interpretação do que são os direitos, liberdades e garantias na sociedade do século XXI. E que o sucesso do SNS no futuro, dependerá muito da capacidade de promover uma melhor organização dos cuidados, da valorização pela responsabilização e autonomia profissional, pela capacidade de pensar global mas respondendo localmente às necessidades concretas do quotidiano das pessoas. 34


A evolução no SNS é algo de incontornável. Não se decide, exclusivamente, na letra da lei. Acontece, porque a transformação é permanente na vida das sociedades. E, independentemente dos modelos, dos debates, até da decisão política, esta evolução é impulsionada, simultaneamente, pelas necessidades das pessoas e pelo contexto económico e social do País. Porque o SNS é o coração do sistema de Saúde e pela importância que tem neste ecossistema, a sua transformação é um determinante dos resultados em saúde dos portugueses. O SNS tem de ser uma marca de sucesso, que atrai os profissionais e que, pela sua qualidade e credibilidade, garanta aos portugueses a segurança necessária na promoção da saúde e na prevenção da doença. Orgulho-me também de fazer parte e representar, à data de hoje, uma profissão antiga que, no passado e no presente, sempre deu inequívocos contributos para o desenvolvimento do SNS. Os farmacêuticos estão dispersos pelo país, numa rede de farmácias e laboratórios clínicos de proximidade, nos hospitais, no cluster industrial da saúde, nas universidades e nos centros de investigação. Fazem parte do capital humano que, por falta de organização e de uma estratégia ao serviço das pessoas, não é por vezes adequadamente valorizado, perdendo-se assim oportunidades de fazer o que ainda não foi feito.

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Ana Terezinha Rodrigues TECNOLOGIA DE SAÚDE EM RADIOLOGIA E GESTÃO DA QUALIDADE

As lembranças que guardo ligadas à saúde vêm desde a minha adolescência. Aos treze anos já me voluntariava para trabalhar na Casa do Povo da minha Terra e apoiar aqueles que precisavam de orientação e que recorriam aos serviços médicos e sociais que aí laboravam. Aos dezassete, no período de férias, dei o meu primeiro passo de ligação ao SNS, com a proposta voluntária de ocupação dos tempos livres no Hospital Distrital de Portimão. Este pedido foi recebido com estranheza, uma vez que o hospital não contemplava este tipo de programa. Após sua concordância lá fui eu como voluntária para apoiar os doentes e os profissionais do SNS. E eis que, desde aí, nunca mais larguei a Saúde. Em 1981, ingressei na Escola Técnica dos Serviços de Saúde de Lisboa, sediada em Entrecampos, para realizar o Curso de Radiografista, o qual, mais tarde, deu origem à Licenciatura em Radiologia. Acabei o Curso em junho de 1984 e de imediato voltei para o Algarve, para o Hospital de Portimão, que se encontrava carenciado de jovens especialistas na Radiologia, mas não sem antes me inscrever em vários hospitais de Lisboa. E foi o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, que me escolheu. Em Outubro, fiz as malas e rumei para a metrópole, para fazer face a uma nova etapa da minha vida. Foram muitos os 36


ensinamentos que aí adquiri com uma equipa de médicos e técnicos fantástica. Destaco alguns nomes que marcaram o início da minha vida profissional, nomeadamente a qualidade e rigor do conhecimento ministrado pelo meu primeiro Diretor de Serviço, Dr. Jorge Saldanha, que muito contribuiu para hoje ser quem sou. O Dr. Jorge Xavier de Brito, a Dra. Margarida Botelho de Sousa e o Técnico António Dourado são alguns dos que também marcaram o meu desempenho. À data, este hospital era uma pérola no tratamento e reabilitação da doença cardíaca, e também o Dr. Seabra Gomes, Cardiologista exigente e homem de grande capacidade crítica, em muito influenciou a minha conduta profissional. A 16 de dezembro de 1991, foi inaugurado o Hospital Garcia de Orta (HGO). No mesmo dia abracei este Hospital, no qual ainda hoje trabalho e que considero a minha segunda casa. Em maio de 1992, já era Técnica Coordenadora do Serviço de Imagiologia. A meu lado, grandes nomes da Radiologia e Cardiologia Portuguesa, a Dra. Ana Maria Figueiredo, o Dr. Carlos Cyrne, a Dra. Helena Vidal, o Dr. Hélder Pereira, que contribuíram, de uma forma ou outra, para o perfil de gestão que viria posteriormente a integrar as minhas competências, e cujo conhecimento académico adquiri na academia do ISCTE. As ausências junto do marido e filhas, para estudar Gestão em Saúde, foram uma constante em que vivi e se arrastou durante mais de uma década. Valeu a pena e em nada me arrependo, uma vez que, a gestão sempre me correu nas veias. Durante duas décadas, cresci e tenho a consciência dos muitos técnicos de diagnóstico e terapêutica que ajudei a crescer na escola da radiologia portuguesa. Paralelamente, em 2000, fui convidada, pela Escola Superior de Saúde Egas Moniz, para coordenar a Licenciatura em Radiologia, cargo que exerci até 2015, altura em que foi extinto devido à requalificação do ensino das tecnologias da saúde e à cisão das áreas da imagem numa só licenciatura de raiz. Entretanto, já outro projeto tinha vingado. Em 2011, propus, juntamente com a colega e amiga Dra. Cristina Almeida, ao Presidente da Cooperativa Egas Moniz, Prof. Doutor Martins dos Santos, de quem guardo muito boas e saudosas recordações, a criação de uma Pós Graduação em Coordenação de Unidades de Saúde. Durante sete anos, exerci o cargo de coordenadora e docente da mesma e, tive a honra da colaboração de muitos amigos que me ajudaram a levar este projeto a bom porto. Destaco a Prof. Doutora Maria do Rosário Dias, a Prof. Doutora Ana Escoval, o 37


Prof. Doutor Albino Lopes, a Dra. Paula Breia, a Dra. Iria Velez, o Dr. Luís Amaro, a Dra. Teresa Machado Luciano, o Prof. Doutor Rui Martins e a Prof. Doutora Noémia Lopes, alguns dos quais recordo nas minhas memórias. No entanto, e sem desprestigiar todo o corpo docente, agradeço a todos os que contribuíram para o seu sucesso. A vida associativa, desde cedo e ainda enquanto estudante, influenciou a minha conduta profissional, tendo em 2001 sido convidada a pertencer aos Corpos da Direção da Associação Portuguesa dos Técnicos de Radiologia, Radioterapia e Medicina Nuclear (ATARP). Em 2008, fui nomeada Presidente da ATARP, tendo exercido o cargo durante três anos com empenho, seriedade e convicção de que tudo foi feito para a elevação das profissões que representávamos ao mais alto nível do seu reconhecimento. O ano 2010 marcou a última década da minha vida com a chegada de um novo Conselho de Administração ao HGO que se afirmou de mudança, inovação e desenvolvimento. Fui convidada pelo Dr. Daniel Ferro e pela enfermeira Odília Neves a abraçar o Projeto da Acreditação reconhecido pelo CHKS, organização responsável pela acreditação internacional de organizações de saúde no âmbito da gestão da qualidade, uma vez que, desde o ano 2000 que tentávamos obter este reconhecimento, embora sem sucesso. É então em 2011 que nos vimos reconhecidos internacionalmente com o primeiro prémio de acreditação. Marcou-se assim um novo rumo na minha vida profissional, no qual me mantenho até à data. Destaco os prémios de acreditação obtidos em 2012 e 2016, sempre na sequência de novos e mais exigentes programas. Também em 2014 fomos agraciados, em Londres, com uma Menção Honrosa na categoria de «Quality Improvement» no CHKS TOP AWARDS 2014 e é nos TOP AWARDS 2018 que ganhámos o 1.o Prémio Internacional na mesma categoria, motivo de orgulho nacional.

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Arminda Costa ENFERMAGEM DE REABILITAÇÃO, DOCÊNCIA E INVESTIGAÇÃO

Serviço Nacional de Saúde e Ensino de Enfermagem: traços e sentidos de (des)continuidade Quatro décadas depois da criação do SNS, muito mudou na saúde dos portugueses. Há mais hospitais, mais médicos, mais enfermeiros e outros profissionais de saúde, menos mortalidade infantil e maior esperança de vida à nascença. Neste mesmo período, muito mudou no Ensino de Enfermagem. Desafios sucessivos. Neste percurso, qual a narrativa, quando relaciono o SNS com o ensino de enfermagem? Longe vão os tempos (e já não os conheci), em que o ensino de enfermagem era tutelado pelos hospitais e os médicos decidiam o que os enfermeiros deviam aprender/saber. A ritmos diferentes, as Escolas de Enfermagem foram surgindo, criando espaços de alguma autonomia e, em 1975, havia Escolas de Enfermagem em todos os distritos exceto nos de Aveiro e Setúbal. A formação de enfermeiros e de enfermeiros especialistas, até 1988, foi considerada uma formação profissional, embora não tenha passado incólume às transformações operadas na sociedade portuguesa, no pós 25 de Abril, 39


sobretudo na sua ligação com o SNS; basta recordar a reforma de 1977 e a relação/obrigação de ação comunitária obrigatória. O DL n.o 480/88 de 23 de dezembro integrou o ensino de enfermagem no Sistema Educativo Nacional, no subsistema Ensino Superior Politécnico. Foi uma meia festa: I) as escolas adquirem uma dupla tutela: Ministério da Saúde e Ministério da Educação, o que se revelou complexo e pouco funcional; II) O ensino de enfermagem foi integrado no subsistema Ensino Superior Politécnico e não no subsistema Ensino Universitário. Razões? Prevaleceu e prevalece a subalternização que marcou a profissão durante décadas, a dificuldade em perceber o cuidado de enfermagem como uma produção científica e autónoma de respostas sistemáticas às necessidades dos utentes do SNS, pese embora o grande manancial de estudos com resultados sensíveis às intervenções de enfermagem. Escrevemos na altura que não houve coragem política para ter um olhar de futuro sobre o Ensino de Enfermagem, antecipando e definindo uma estratégia plural de ensino superior para esta grupo profissional, baseada em novos modelos de organização e de formação. A partir daí... foi a lei do salve-se quem puder! Hoje existe um número considerável Cursos de Enfermagem, para a dimensão do país... mas há um déficit crónico de enfermeiros no SNS! Em 1988 o legislador considerava: «o desenvolvimento do Ensino de Enfermagem que foi verificado entre nós, ajustado aos níveis internacionais, principalmente dos países europeus, é orientado para a busca constante pela melhoria da assistência...» O que aconteceu então? Liderança de cuidados, cuidados de saúde primários, pesquisa sobre as melhores respostas às condições de saúde dos utilizadores, sistemas de informação... caminhos dos novos percursos de formação dos enfermeiros, agora numa licenciatura de quatro anos, realizada em Escolas Superiores de Enfermagem. Integrei o grupo de trabalho de nomeação ministerial, incumbido da elaboração do pacote legislativo relativo ao enquadramento do Ensino de Enfermagem como Curso de Licenciatura no Sistema de Ensino Superior Politécnico. A participação neste grupo de trabalho multiprofissional (1998) ficou marcada pelo entusiasmo e eficácia do trabalho com os docentes das ESEnf e destes com os enfermeiros das instituições, pela partilha de opiniões e pela seriedade com que os decisores políticos souberam respeitar o trabalho do grupo. 40


Passamos ao lado do movimento europeu para a Universitarização do Ensino de Enfermagem: L/M/D: «FINE recognizes the changing and growing health care needs of European populations. Nurses therefore must be able to anticipate and respond to these needs. This will require a constant evaluation of competences that nurses will need to provide appropriate care for individuals, families and communities... Regarding the European Qualifications Framework (EQF): nursing education should be at levels 6, 7 and 8 (Bachelor, Master, Doctorate).» A Lei de Bases da Saúde defende que o cidadão é o centro do SNS. Os enfermeiros, animados por novos modelos de formação e empenhados em reverter o binómio teoria prática (década de 90), mercê do papel da investigação no âmbito dos cuidados de enfermagem, mobilizam o paradigma integrativo que preconiza que a pessoa é o centro de cuidados de enfermagem, alicerçado no modelo de transição. Entre estas sinergias, gostaria de recordar o maior projeto desenvolvido no âmbito da formação em enfermagem (1995-2000), cujo objetivo foi promover a nível nacional o debate sobre filosofias e modelos curriculares, subsidiando a clarificação do objeto da disciplina de enfermagem. A relação entre os lugares da formação e os lugares da intervenção permitiram construir uma estratégia de desenvolvimento de parcerias institucionais que, em alguns casos, ainda perduram. O Ensino de Enfermagem, tal como o SNS, tem evoluído ao longo dos tempos, refletindo as mudanças e ambiguidades profissionais: ora mais tecnicistas e normativos, ora economicistas, ora enfatizando as ciências sociais e humanas e as ciências médicas e exatas. São as (des)continuidades de tudo o que é humano. Os enfermeiros são conhecedores do valor do seu contributo para a qualidade fornecida pelos serviços de saúde às pessoas. Será que os decisores políticos o (re)conhecem? É relevante a elevada produção científica existente e internacionalmente considerada sobre Fenómenos de Enfermagem/Diagnósticos de Enfermagem/Prescrição de Intervenções de Enfermagem. Traços identitários e (des)continuidades têm marcado estes 40 anos. A sua evolução deverá enquadrar-se no espaço europeu de educação, promovendo a harmonização e desenvolvimento de competências inter e transdisciplinares para a resolução dos complexos problemas de saúde. 41


Beatriz Calado MEDICINA DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA E CONSULTORIA NACIONAL DE SAÚDE MATERNA

Nasci em São Paulo, Brasil e vim para Portugal em finais de 1968 para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa ao abrigo do Acordo de Intercâmbio Luso-Brasileiro. Licenciei-me em 1975. Os Hospitais Civis de Lisboa tinham iniciado o ensino pré-graduado e por opção, transferi-me para esses hospitais para cursar as cadeiras clínicas. Dessa decisão resultou a oportunidade de ter como orientadora em Ginecologia e Obstetrícia, na Maternidade Magalhães Coutinho (MMC), a Dra. Maria Idália Correia, em quem a competência e o rigor profissional se aliavam a uma enorme sensibilidade e compreensão para com as dificuldades que as mulheres enfrentavam, então, na vivência da sua sexualidade. Estávamos em 1974, a contraceção só era autorizada para fins médicos, as complicações do aborto e a multiparidade eram as primeiras causas de morte materna. Mas o clima de abertura e entusiasmo era propício a assumir grandes desafios. Foi nesse contexto que Dra. Maria Idália organizou a primeira consulta de Planeamento Familiar (PF) dos hospitais da zona sul, para onde eram encaminhadas as dezenas de mulheres com complicações de aborto clandestino que recorriam ao serviço de urgência da MMC. Participei como voluntária 42


na equipa de urgência da Dra. Maria Idália e na consulta de PF, oficializada por força da legislação de 1976 e foi neste contexto que «vesti definitivamente a camisola» por uma gravidez desejada e em segurança. O modo como decorreu esse primeiro contato com a especialidade foi determinante para a minha orientação profissional futura. Cumpri o Serviço Médico à Periferia (SMP) no Concelho de Odemira em 1977/78; levava já na bagagem alguma prática que me viria a ser muito útil junto de uma população com elevadas taxas de analfabetismo e alcoolismo, de parto domiciliar e mortalidade infantil; um tempo em que a vivência da sexualidade era expressa como «quando o meu marido se serve de mim». O acesso aos cuidados de saúde era dificultado pela dispersão da população, pelo péssimo estado das vias de comunicação, pela pobreza e a quase absoluta falta de recursos materiais e humanos. Era o País real com que nos confrontávamos, longe da zona de conforto a que estávamos habituados nos hospitais centrais. Estou convicta de que para nós médicos, o SMP representou um enorme desafio, exigiu imaginação, esforço e dedicação, mas foi também, uma experiência insubstituível como profissional de saúde. Para as populações, foi a oportunidade para a tomada de consciência do seu direito a cuidados de saúde. Estavam criadas as condições para o desenvolvimento do SNS. A Lei de bases estava em discussão pública. Devo à Dra. Maria Idália a visão holística da especialidade, o gosto pelo trabalho em equipa, o apoio no desbravar de novos caminhos como o atendimento às adolescentes e a sexologia, e o incentivo para concorrer ao lugar de especialista em Ginecologia e Obstetrícia do quadro da Direção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários, que ocupei em 1988, na Divisão de Saúde Materna e PF, transitando em 1993, para a Direção-Geral da Saúde, Divisão de Saúde Materna, Infantil e dos Adolescentes. Decorridos quase 10 anos desde a criação do SNS já se reconheciam resultados positivos nos indicadores de saúde da mulher e da criança. É verdade que a proteção da maternidade, a educação sexual e o PF beneficiaram desde cedo de Legislação que balizou e orientou no caminho a seguir. Mas também é verdade que o facto de a Divisão ser dirigida por uma pessoa competente e firme na prossecução dos seus objetivos como a Dra. Maria da Purificação Araújo, foi determinante para o sucesso da implementação do programa. A estratégia era 43


simples — definição de orientações técnicas com evidência científica, formação e avaliação. Vivi repetidamente esse processo, uma fórmula que aprendi e não mais abandonei. Havia uma estreita ligação aos serviços locais feita através de um médico coordenador distrital. Muitos dos bons e rápidos resultados obtidos deveram-se a essa proximidade do terreno e ao empenhamento generoso, nem sempre devidamente reconhecido, desses colegas. As condições de assistência materna e neonatal existentes nos hospitais públicos eram em alguns locais degradantes e exigiam uma reestruturação urgente do setor. Com essa missão, é nomeada em 1988 a primeira Comissão Nacional Materno e Neonatal constituída por obstetras e neonatalogistas e pelos dirigentes de todas as Direções Gerais do Ministério da Saúde, incluindo a DGCSP, representada pela Dra. Purificação Araújo. O facto de aí estarem reunidos todos os intervenientes necessários ao processo, permitiu que fossem encerradas dezenas de maternidades nos hospitais concelhios, reequipadas unidades, definidas as competências e os recursos técnicos e humanos dos níveis de cuidados, a respectiva área geográfica de influência e o modo de articulação entre os mesmos, através da rede da referenciação materno-infantil (RRMI). Foi assegurado o transporte de emergência dos recém-nascidos de alto risco e criadas as Unidades Coordenadoras Funcionais (UCF) essenciais para a circulação de informação e a articulação eficaz entre os dois níveis de cuidados. Houve resistências de vária ordem, avanços e recuos na implementação da RRMI, mas à medida que se consolidava, mais evidente se tornava a justeza dessa opção. Em 1996 com a aposentação da Dra. Purificação, assumi a chefia da Divisão. Ao longo dos 10 anos de convívio próximo; ganhei competências, alarguei o meu horizonte profissional e aprendi — diplomacia, persistência e resiliência. Foi um grande desafio ocupar o seu lugar e manter o respeito institucional que lhe era devido. A prestação de cuidados à mulher e à criança estava consolidada; indicadores como mortalidade perinatal, parto hospitalar e uso de contraceção demonstravam o trabalho realizado. O que se seguiu foi no sentido de dar resposta às novas exigências resultantes do progresso científico e dos anseios de uma população cada vez mais informada e consciente dos seus direitos, através do reforço da qualidade dos cuidados prestados na RRMI, como p. ex., com o Programa de Diagnóstico pré-natal. 44


Terminei em 2009 a carreira no SNS, não sem antes ter tido a oportunidade de coordenar o grupo de peritos que regulamentou a Lei n.o 16/2007 que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas por opção da mulher. Foram elaborados os documentos técnico-normativos e criado o registo central dessa atividade para monitorização e avaliação. A IVG segura passou a integrar os cuidados prestados na RRMI. Boa forma de encerrar um ciclo e terminar o meu percurso no SNS. Uma nota final aos que partilharam comigo esta aventura; aos que me eram próximos e aos muitíssimos, com as mais diversas formações, vindos de Instituições da Saúde, outros Ministérios, Ordens Profissionais, Sociedades científicas, ONG, Associações de doentes que trouxeram o seu saber e disponibilidade. Obrigada a todas e todos que fizeram, fazem e continuarão a fazer a diferença.

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Beatriz Gomes MEDICINA DE ANESTESIOLOGIA E DA DOR

Em Setembro do ano 1979, mês e ano em que foi criado legalmente o Serviço Nacional de Saúde (SNS), iniciei o meu primeiro ano de Internato de Anestesiologia. E porquê Anestesia? Sempre tive um intenso desejo de contribuir para o alívio da dor e do sofrimento e o Anestesiologista é o médico que alivia a dor, durante e depois da cirurgia. No meu percurso de Anestesiologista, fui fortemente marcada pelo grau de realização e satisfação profissional que esta área me conferia. Nos últimos anos da década de 80, um evento de grande relevância na minha vida pessoal — sofrimento do meu filho mais novo por doença oncológica — levou-me a não querer que nenhum doente que de mim dependesse fôsse exposto a idêntica provação. Desde então, todo o meu empenho e dedicação focou-se no diagnóstico e na terapêutica da dor crónica, alvo que ocupa a Medicina da Dor. A Medicina da Dor é o ramo da Medicina que tem como objetivos o estudo da dor, prevenção, avaliação, tratamento e reabilitação das pessoas com dor. A dor tal como a febre, são os principais biomarcadores clínicos, e motivo 46


clássico de consulta com reconhecido impacto físico, comportamental, ocupacional e socioeconómico O entusiasmo e empenhamento colectivo, meu e de outros profissionais de saúde, culminaram com a criação do Centro Multidisciplinar do Hospital Garcia de Orta (HGO) em Outubro de 1992. Este Centro foi possível, graças ao acolhimento e percepção da sua importância e utilidade que à época tiveram os gestores do SNS. O trabalho deste Serviço foi sempre sustentado e alimentado, não só pelo afincado trabalho dos seus profissionais que sempre vestiram a «camisola» pela causa, como também pelas sucessivas direções do SNS e do HGO. A evolução científica e clínica deste ramo da Medicina tem sido vertiginosa nos últimos 25 anos, o que nos tem obrigado a uma intensa e constante atualização dos conhecimentos teóricos, e respetiva aplicabilidade na atividade assistencial, designadamente em recursos humanos especializados no âmbito dos profissionais de saúde, e do equipamento e dispositivos médicos a que têm de recorrer. A complexidade progressiva da Medicina da Dor e dos numerosos e difíceis casos clínicos que nos são encaminhados, quer por outras especialidades hospitalares médicas e cirúrgicas quer pela Medicina Geral e Familiar, justifica que esta disciplina evolua de uma atual Competência da Ordem dos Médicos para uma Especialidade autónoma, com o reconhecimento do SNS. Com efeito estes serviços, Centros ou Unidades Dor, são uma parte importante dos sistemas de saúde, pois prestam um serviço valioso a todos aqueles que precisam de tratamento da dor. O desenvolvimento e aprofundamento da Medicina da Dor, como nova vertente das Ciências Médicas e da Clínica, afigura-se como promissor no contexto do crescimento da eficácia do SNS. Entende-se que este tem por desiderato o interesse da comunidade. Nesta medida, acredito num prognóstico positivo da evolução da Medicina da Dor no Serviço Nacional de Saúde.

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Berta Nunes MEDICINA GERAL E COMUNITÁRIA, DIREÇÃO DE UNIDADE LOCAL DE SAÚDE E DE AUTARQUIA

Os cuidados primários são essenciais para a sustentabilidade do SNS Formei-me em medicina na Faculdade de Medicina do Porto em 1980 e decidi ser médica de família, numa altura em que ainda não existia a carreira legislada, muito menos consolidada. Vivendo na cidade do Porto resolvi ir trabalhar para Trás-os-Montes para o centro de saúde de Alfândega da Fé (nasci numa pequena aldeia, não gostava muito de viver na cidade). Trabalhei 25 anos como médica de família e fui aprendendo a gostar cada vez mais da minha profissão. Na minha opinião o que contribuiu para esse «gostar cada vez mais», foi toda a formação e todo o conhecimento que adquiri, ao mesmo tempo que ia exercendo a profissão e os desafios que tivemos de enfrentar para afirmar a carreira (fui ativa na Associação de Médicos de Clínica Geral e no Sindicato dos Médicos do Norte) Vi alguns colegas meus ficarem desgastados e até com o síndrome de burn out, na minha opinião porque não aproveitaram para se formarem e evoluírem 48


como pessoas, uma oportunidade única que oferece a profissão de médico de família. Aprendemos a conhecer as pessoas e no meu caso a conhecer e estudar uma cultura diferente daquela que eu conhecia. Com essa finalidade estudei Antropologia e fiz um doutoramento nesta disciplina científica com um trabalho sobre as ideias e práticas das pessoas de uma pequena aldeia do concelho de Alfândega da Fé, publicado em livro com o título O Saber Médico do Povo. A profissão e a carreira evoluíram muito e a noção de que tínhamos de criar uma nova cultura e um novo modelo para compreender a doença e o doente, contrapondo ao modelo biomédico o modelo biopsicossocial (a que eu acrescentaria ainda a componente cultural que tem um impacto grande na forma como as pessoas adoecem e reagem à doença) fez parte da afirmação da nossa identidade como carreira médica. Nestes primeiros anos de afirmação da medicina familiar como especialidade médica e não como uma medicina indiferenciada, foi também importante a evolução da organização e da melhoria do funcionamento dos centros de saúde, bem como a compreensão de que em medicina familiar, não só o médico de família conta, mas toda uma equipe de profissionais de forma a dar uma resposta de proximidade ao maior número de problemas de saúde possível, enviando para os cuidados hospitalares só uma pequena parte das situações clinicas: as mais complexas e que exigem outros conhecimentos ou tecnologias. Como Diretora do Centro de Saúde de Alfândega da Fé (1996-2002) implementei no centro de saúde a teleradiologia, a telecardiologia, a fisioterapia e outras técnicas importantes para dar resposta a problemas que podiam ser resolvidos em proximidade e evitar as longas distâncias que as pessoas tinham de percorrer para aceder a estes cuidados de saúde, além de começar a trabalhar a figura da enfermeira de família, dando às enfermeiras a possibilidade de desenvolverem as suas competências e poderem contribuir mais para os cuidados de uma lista de utentes em parceria com o/a médico/a de família. Em 2005 fui convidada para coordenar a sub-região de saúde de Bragança e continuei a desenvolver esta ideia de equipa multidisciplinar de cuidados primários de saúde incluindo psicólogos, assistentes sociais, cardiopneumonologistas, terapeutas da fala, dentistas, assistentes sociais, nutricionistas, etc., em todos os 49


centros de saúde, dando assim respostas de proximidade a necessidades existentes de uma forma mais profissional, retirando ao médico de família o «peso» de ser psicólogo, assistente social, nutricionista como tinha de ser antes de ter a possibilidade de ter estes profissionais nas equipas. Ao mesmo tempo fomos construindo e equipando os vários centros de saúde de forma a que os profissionais e os utentes tivessem respostas de qualidade em proximidade. Trabalhamos também a área da qualidade com o objectivo de centrar a organização nas necessidades dos utentes sem descurar as necessidades dos profissionais, co-criando uma cultura de avaliação e melhoria contínua. Tudo isto com a participação de todos os profissionais e com uma relação muito próxima com os mesmos, construindo em conjunto uma cultura organizacional que melhorou muito a auto estima e a motivação de todos. Muitos dos problemas do serviço nacional de saúde são problemas organizacionais e de motivação dos profissionais, pelo que, não é só com mais dinheiro que se resolverá os problemas existentes. Muitas destas «conquistas» tiveram grandes retrocessos no tempo da troika e ainda não estamos ao nível de antes da crise, pelo que temos de fazer mais esforços nesse sentido. Estou convicta de que temos de recentrar cada vez mais os cuidados de saúde na promoção, prevenção e nos cuidados primários, para que o nosso sistema de saúde seja sustentável. Temos de trabalhar mais com outros parceiros da comunidade em especial as autarquias tendo sido dado um primeiro passo muito importante, com o dossier da descentralização de competências para as autarquias, iniciado na legislatura anterior e que agora terá de ser acompanhado, avaliado e alargado. A equipe multidisciplinar de cuidados primários deve existir em todos os centros de saúde para responder às necessidades de saúde das comunidades. Evitar a fragmentação de cuidados, mas articular com os parceiros da comunidade cada vez mais é muito importante, sendo também fundamental continuar a diminuir os problemas de articulação dos cuidados primários com os cuidados hospitalares. O Serviço Nacional de Saúde pode e deve ser melhorado e nós todos, profissionais e cidadãos, temos de cuidar dele como uma mais-valia para a nossa democracia e para o bem-estar e qualidade de vida de todos nós. 50


Celeste Gonçalves MEDICINA DE SAÚDE PÚBLICA, AUTORIDADE REGIONAL E DOCÊNCIA

O meu percurso profissional começou num célebre dia em que decidi optar pela carreira médica de clínica geral, no concelho de Anadia, em 1983, contrariando a habitual escolha por uma especialidade hospitalar. Estudei e residi em Coimbra, numa das poucas repúblicas de raparigas de então. Era um ambiente fantástico de convívio entre os estudantes, de solidariedade e de intervenção social, de acordo com as grandes mudanças políticas que então se operavam em Portugal e que, em Coimbra, em particular, se vivenciavam com muita intensidade entre os estudantes. Um ano antes, em 1981, fiz o Serviço médico à periferia, em Cantanhede, uma experiência extraordinária, integrada num grupo de 13 elementos, um projeto inovador de prestação de serviços médicos de proximidade. Foi um passo importante que antecedeu a criação dos cuidados de saúde primários. Pela primeira vez uma equipa de médicos, coesa, com um plano de ação concreto, «tomou conta» da saúde daquela comunidade. Recordo-me da satisfação das pessoas e do carinho que tinham por nós. E do nosso entusiasmo pelo trabalho desenvolvido. Foi uma fase decisiva e emocionalmente muito rica que me impulsionou a percorrer todo o meu percurso no âmbito da saúde comunitária. 51


Assistia-se em 1983 à criação dos novos centros de saúde integrados — centros de saúde de primeira geração, integrando cuidados preventivos e curativos, levando a que o SNS desenvolvesse uma extensa rede de infraestruturas por todo o país de hospitais e centros de saúde, e desta forma garantir o acesso ao SNS a todos os cidadãos independentemente da sua condição social e económica. O incremento do trabalho de equipa, a prestação de cuidados globais e integrados, e o estabelecimento de alguns objetivos de saúde alimentavam o meu entusiamo pelo trabalho desenvolvido junta das famílias e da comunidade em Anadia e mais tarde na Costa da Caparica, onde colaborei com o colega Luís Marquês, influenciando-me com os seus sábios conselhos e o bom senso da sua vasta experiência. Pelo caminho, em 1984/85 fiz o curso de Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública, uma passagem decisiva para todo o meu percurso posterior na carreira médica de saúde pública, com início destas funções, em 1987, no centro de saúde do Seixal. A década de 80 foi uma época áurea de grandes mudanças na Saúde, no que respeita à evolução dos conceitos de saúde e ações concretas a nível Nacional e Internacional. A nível Internacional, baseado no relatório Lalonde, foi desenvolvida a ideia de «olhar para a saúde da cidade», como sendo um espaço com características e estratégias específicas de intervenção, a conferência de Ottawa, 1986, adoptou novos conceitos de promoção de saúde a nível local; e IIona Kickbusch, OMS, lançou dois grandes projetos europeus de promoção de saúde: a rede europeia das cidades saudáveis e a rede europeia das escolas promotoras de saúde. A nível Nacional, em 1986 em Lisboa, o Prof. Sakellarides organizou em colaboração com a OMS, o primeiro simpósio anual das cidades saudáveis, com a presença de 21 cidades e de 17 países europeus. O Projeto Cidades Saudáveis é um projeto de desenvolvimento a longo prazo que procura colocar a saúde na agenda dos decisores das cidades e constituir um grupo de pressão para a Saúde Pública a nível local. Contribui para novos modelos de organização e estratégias de promoção da saúde, com envolvimento dos diferentes setores. 52


Nesta época encontrava-me no centro de saúde do Seixal como médica de saúde pública. Um concelho com grande dinâmica de participação comunitária, pluralidade de projetos sociais, forte liderança política local, em especial o então Presidente Eufrásio Filipe e a vereadora Corália de Almeida. Enquanto membro da Direção da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, em 1989, tive oportunidade de participar na organização de uma conferência — Promoção de saúde Pública e convidado o Dr. Agis Tsoros, coordenador do projeto das cidades saudáveis — OMS. Na altura conjuntamente com o colega de saúde pública e meu amigo António Luz, grande entusiasta e pioneiro da saúde comunitária na Amadora, convidámos os respetivos Presidentes das câmaras da Amadora e do Seixal para reunião conjunta com o Dr. Agis Tsoros. E assim se iniciou em Portugal, de uma forma organizada, o desenvolvimento do Projeto das cidades saudáveis nestes municípios. Para mim foi um período de grande entusiasmo e de grandes desafios, para o qual contei com uma equipa técnica extraordinária, que gostava de abraçar novas experiências. O empenho permanente dado pela vereadora Corália ao projeto foi determinante para o sucesso do mesmo. Desenvolveu-se uma nova forma de trabalhar em saúde pública: decisões em saúde partilhadas com diferentes setores sociais, repensar em estratégias de envolvimento de parcerias, identificar as prioridades em saúde incorporando os determinantes de saúde, utilizar estratégias de comunicação entendível por todos, e manter a «chama viva» de participação de todos, relevando ganhos em saúde alcançados, através de estudos de investigação realizados. Foram chamados a «pensar saúde» pela primeira vez, instituições como os órgãos autárquicos, o setor social, empresas, habitação, educação, ambiente, movimento associativo, etc. na construção do Plano de Desenvolvimento de Saúde Local do Seixal. Esta forma de trabalhar perdura até aos dias de hoje, como se estivesse entranhado na rotina das instituições. Seguiram-se mais tarde outros municípios de Norte a Sul do Pais e dos Açores. Atualmente existe a Rede Portuguesa dos Municípios Saudáveis, constituída por 57 municípios, coordenada pela Dr.a Mirieme Ferreira do município do Seixal. O facto de o poder local ter reconhecido um papel importante na promoção da saúde pública tem sido um grande avanço na intervenção em saúde pública em Portugal. 53


A experiência e os conhecimentos adquiridos enquanto coordenadora do projeto Seixal Saudável, durante cerca de 20 anos, permitiu-me aplicá-los nas mais diversas situações do meu percurso profissional: enquanto assessora do Gabinete de Saúde da Câmara Municipal de Loures, (1990-97), a primeira Câmara do País a ter na sua estrutura orgânica um Gabinete de Saúde; enquanto prof.a auxiliar convidada na Escola Nacional de Saúde Pública, através de formação neste âmbito aos diferentes alunos; nos diferentes projetos intersectoriais de promoção da saúde a nível Regional e Local (Idosos, Adolescentes, Grupos Sociais mais vulneráveis, Estratégias Locais de Saúde, etc.) Enquanto funções de assessoria no Ministério da Saúde, tive oportunidade de incorporar estes conceitos nos diferentes documentos e grupos de trabalho que me envolvi, quer no âmbito da reforma da saúde pública quer no da reforma dos cuidados de saúde primários (1997-2008) Pelo caminho, fui apoiada por várias instituições, programas e muitas pessoas ligadas a projetos muito interessantes e também por pessoas anónimas da sociedade que com o seu saber e vivências eram verdadeiras fontes inspiradoras do trabalho no terreno. Tive oportunidade de contactar com várias experiências internacionais, aquando das reuniões anuais da rede internacional das cidades saudáveis, que constituíram um bálsamo para a ação e motivação. Ao escrever esta passagem profissional não posso deixar de agradecer a todos os que partilharam comigo o trabalho, o entusiasmo, os ânimos e os desânimos, neste percurso. E foram muitos... Uma obrigada a todos! Tive a sorte de vivenciar uma época gloriosa de grandes mudanças e reformas no serviço nacional de saúde, de partilhar o entusiamo com pessoas e equipas extraordinárias com verdadeiro espírito de missão, numa época de desenvolvimento de uma jovem democracia que se vivia em Portugal. Tenho esperança que o Serviço Nacional de Saúde se reforme no sentido da universalidade, competência, prestador de cuidados globais e integrados a toda a população, em tempo útil, e continue a ser um modelo a seguir para uma sociedade mais justa e solidária.

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Conceição Margalha MEDICINA GERAL E FAMILIAR, DIREÇÃO DE SERVIÇOS E DE UNIDADE LOCAL DE SAÚDE

A História de Vida de uma Mulher aos 60 anos em 4873 caracteres! Nasci em Beja, em 1958, segundo filho, de uma fratria de três, de um casal de professores primários. Realço o ano de 1974, altura em que frequentava o 6.o ano do ensino secundário. Como candidata ao ensino superior, fui chamada para o «Serviço Cívico», que realizei no Hospital Distrital de Beja, durante um ano. Este foi o meu primeiro contato com os serviços de saúde, tendo desempenhado funções na admissão ao serviço de urgência. Sob a coordenação do saudoso Dr Lam, médico internista dedicado à área da diabetes, colaborei nos rastreios da diabetes e hipertensão realizados nas comunidades rurais, o que me alertou para as condições de saúde desta população, com escassos recursos financeiros e grande dificuldade de acesso à saúde. Do rastreio resultou a deteção de vários casos destas patologias, posteriormente encaminhados para consultas hospitalares. Em 1976, ingressei na Faculdade de Medicina de Lisboa, onde fiz todo o meu percurso formativo. Após a licenciatura, em 1983, regressei a Beja para o internato geral, realizado no Hospital Distrital de Beja. Trabalhei então nos 55


recém-criados centros de saúde de 2.a geração, que englobavam os antigos centros de saúde e os «postos das antigas caixas de previdência», de acordo com o Decreto-lei n.o 310/82, de 3 de agosto, que veio definir as carreiras médicas e criou a carreira médica de clínica geral. Embora a pediatria fosse a minha especialidade de eleição, esta experiência direcionou a minha escolha para a carreira de Medicina Geral e Familiar, que iniciei em janeiro de 1986. Comecei funções nas extensões rurais de Beringel, Trigaches e São Brissos, onde permaneci durante sete anos, mantendo igualmente o contato com o ambiente hospitalar, onde prestava serviço de urgência. Destes tempos recordo o termo carinhoso com que os utentes mais idosos me chamavam «a menina Sr.a Dr.a», a grande estranheza e por vezes relutância, com que muitos utentes reagiam aquando do exame objetivo, sobretudo quando havia necessidade de ser mais «intrusivo». Dediquei-me também à área da tuberculose, a partir de 1989, colaborando com o pneumologista Dr Fonseca Antunes, no Serviço de Tuberculose e Doenças Respiratórias de Beja. Em 1992, assumi as funções de Coordenadora do Serviço, então já denominado Centro Diagnóstico Pneumológico, desenvolvendo atividades clínicas, de epidemiologia, planeamento e avaliação do programa no distrito. Os colegas do Centro de Saúde elegeram-me Diretora do Centro de Saúde em 1996. E aqui, iniciei as minhas funções dentro da administração dos serviços de saúde. Adquiri o Grau de Generalista da Carreira Médica de Clínica Geral em 1997 e o Grau de Consultor em 1998, tendo, em 2002, sido provida na categoria de Assistente Graduada Sénior da Carreira Médica de Medicina Geral e Familiar, após concurso público. Nesta fase, frequentei várias formações nas áreas de gestão dos serviços de saúde e da qualidade. Participei no grupo de trabalho para a Reestruturação dos Serviços de Urgência do Hospital José Joaquim Fernandes de Beja, tendo sido a interlocutora na ligação Cuidados Saúde Primários (CSP)/Cuidados Secundários, tendo culminado com a criação da Unidade Básica de Urgência de Beja, a funcionar 24 horas por dia e os sete dias da semana, nas instalações do Centro de Saúde de Beja. Em 2000 fui convidada para Coordenadora da Sub-Região de Saúde de Beja, cargo que desempenhei durante dois anos. Com este convite, considerei impor56


tante aprofundar os conhecimentos na área da gestão. Adquiri a Competência em Gestão de Serviços de Saúde pela Ordem dos Médicos em junho de 2003. Em finais de 2002, e até dezembro de 2005, regressei à prática Clinica no Centro de Saúde de Beja, mantendo uma lista de utentes e as funções de Diretora do Centro de Saúde. Sendo a gestão em saúde já um bichinho latente em mim, no final de 2005 fui convidada para integrar o Conselho Diretivo da ARS Alentejo, na qualidade de vogal, cargo que exerci entre 2006 e 2011, sob a presidência da Dr.a Rosa Matos. Neste período, gratificante em termos profissionais, ficou a saudade da parte clínica, da qual abdiquei para desempenhar estas funções. Contudo, tive oportunidade de participar em grandiosos projetos dos quais me orgulho, nomeadamente a Reforma dos CSP, a Rede de Cuidados Continuados Integrados, o Programa da Intervenção Precoce na Infância no Alentejo, o Rastreio do Cancro do Colo do Útero, e as bases do Rastreio do Cancro do Cólon e Reto. Recordo com saudade este período, onde a camaradagem e espírito de equipa existente entre os profissionais que integravam essa ARS, tornavam fácil atingir os objetivos a que nos proponhamos. Em novembro de 2011, regresso ao Centro de Saúde de Beja, tendo sido para mim desafiante voltar a exercer clínica. Torno-me também orientadora do internato médico de MGF, contribuindo para a formação de novos profissionais. Como não há duas sem três, como diz o ditado do nosso povo, em abril de 2017, aceitei novamente o desafio da gestão e sou nomeada Presidente do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo EPE, cargo que desempenho atualmente. Ciente de muitas limitações, muito se tem conseguido fazer e orgulho-me da equipa que lidero. Em suma, o meu percurso profissional acompanhou o desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde. Com total empenho e dedicação, considero que contribui, em alguma medida, para a melhoria das condições de saúde da população que sirvo, e a quem me tenho dedicado ao longo da Vida. E porque acredito no SNS, desejo sinceramente que a minha filha, que abraçou igualmente a carreira médica, exercendo pediatria na ULSBA, EPE, curiosamente na especialidade com que sonhei no início da minha carreira, possa dentro de 40 anos integrar as Comemorações dos 80 anos deste NOSSO Serviço Público. 57


Filomena Oliveira TECNOLOGIA DE SAÚDE EM RADIOLOGIA E DOCÊNCIA

Terminado o Curso Complementar do Liceu em 1977 e ainda no rescaldo do 25 de Abril de 1974, optou por não ingressar no recém-criado Ano Propedêutico, mas abraçar a oportunidade de emigrar como estudante para os Estados Unidos da América, tendo-se candidatado ao Curso de Radiologia sem que houvesse uma justificação aparente para essa escolha. Com o suporte familiar assegurado, partir para um país desconhecido, para uma realidade totalmente diferente da vivida na época em Portugal, e ir à descoberta de uma área da medicina da qual praticamente nada sabia, era uma grande aventura e desafio. Frequentou o curso de Radiologia no Hospital da Universidade da Pensilvânia, tendo-se identificado de imediato com o curso. As matérias eram aliciantes e o ambiente hospitalar rapidamente se entranhou e acomodou em si, indicando que esta seria a sua profissão de futuro. Terminado o Curso regressa a Portugal e seis meses depois integra o Serviço Nacional de Saúde, iniciando a sua atividade profissional naquele que viria a ser a sua segunda casa — o Hospital Geral de Sto. António, no Porto. Escreveu Fernando Pessoa que «Para vencer — material ou imaterialmente — três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, 58


e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.»* Considera-se que aquele elemento indefinível, único mas decisivo, surgiu ao ser colocada no Serviço de Neurorradiologia, pois a atividade assistencial aí realizada, das técnicas de diagnóstico ao tratamento, e o apoio e estímulo por parte das sucessivas direções do Serviço contribuíram para o seu crescimento pessoal e profissional e para a pessoa em que se tornou. A ligação ao doente, que recorre ao nosso serviço para tratamento, leva a que se partilhem vitórias e fracassos e se criem laços, que perduram por vezes ao longo dos anos «Passei para os cumprimentar, falo muitas vezes em vocês e nos exames e tratamentos que me fizeram...» A constante vontade de fazer mais e melhor, o acompanhar o desenvolvimento de técnicas angiográficas, novas tecnologias como a tomografia computorizada e, posteriormente, a ressonância magnética, foram motores suficientes para não abrandar, mas sim investir sempre na formação, não esperar pelas oportunidades, mas sim antecipá-las. Também cedo percebeu, de uma forma simplista, que estando o doente no centro da atividade hospitalar, para que lhe sejam prestados os melhores cuidados de saúde, é fundamental que os vários intervenientes no processo, as várias especialidades e profissionais, sejam conhecedoras entre si, percebendo as necessidades de cada um, as suas dificuldades, dinâmicas e expectativas. Não olhar só para si, mas também perceber o que a rodeia e crescer olhando não só para o presente, mas também, e acima de tudo, para o futuro. Ao exercício profissional enquanto técnica de Radiologia, juntou-se a docência e orientação de alunos das Escolas de Saúde, considerando que era também da sua responsabilidade contribuir para formação de futuros profissionais de saúde. A docência passou a ter um papel relevante na sua vida tendo colaborado com a Escola Superior de Saúde do Porto entre 1984 e 2006. Durante todos esses anos foi também formando os novos Técnicos de Radiologia que entravam no Serviço. Também a componente de gestão não lhe foi indiferente, sendo paulatinamente introduzida na sua atividade diária. * Silva, P. Citações e Pensamentos de Fernando Pessoa, 12.a edição, 2016, Casa das Letras: Alfragide.

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Em 2003 é nomeada Técnica Coordenadora da Imagiologia, cargo que mantém até ao presente. Nesse âmbito, sempre coordenou os Recursos Humanos da sua área profissional, distribuindo-os pelos serviços do departamento, afetando-os aos vários equipamentos, garantindo assim a sua melhor prestação, bem como uma maior rentabilização dos recursos tecnológicos existentes. Na procura da excelência e da melhoria contínua da qualidade, o Hospital aderiu em 2000 ao Projeto de Acreditação da Qualidade pelo King’s Fund e a convite do Presidente do Conselho de Administração, integrou o grupo que iria liderar o projeto. Sem dúvida um enorme desafio! Nessa altura pouca ou nenhuma cultura da qualidade existia, não querendo de alguma forma dizer que havia má prática, antes pelo contrário, o Hospital sempre se regeu pela excelência. Mas faltava muita coisa da qual nem sequer nos apercebíamos. Foi um salto qualitativo, um ultrapassar de muitos obstáculos, que conduziu a um sistema instalado e a uma cultura de qualidade e segurança do doente, hoje enraizada na Instituição. Integrou esse grupo até 2009. A empresarialização dos hospitais públicos em 2002 introduziu novos modelos de gestão. Foram criados órgãos de gestão intermédia por departamento, constituídos por três elementos: um diretor médico, um administrador hospitalar e, no caso do Departamento de Imagiologia, um técnico de diagnóstico e terapêutica. Por nomeação do Conselho de Administração passou a integrar esse órgão, no qual se mantém até ao presente. Foi um período de mudança, motivação, investimento pessoal e profissional, definição de novos objetivos e metas para os atingir. Todos queriam contribuir para o sucesso da Instituição, contribuir para um SNS melhor, garantindo o melhor tratamento e satisfação do doente. Ao longo dos anos foi colaborando com a Administração Central dos Serviços de Saúde e com os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, contribuindo com pareceres sobre matérias relacionadas com a profissão, ou integrando grupos de trabalho para o desenvolvimento de plataformas de gestão de património, equipamentos, instalações, entre outras. O estímulo tem sido constante, porque também são várias as áreas a que se dedica e porque a equipa que lidera se vai tornando mais jovem, trazendo consigo novas exigências e desafios. 60


Graça Eliseu ENFERMAGEM COMUNITÁRIA E COORDENAÇÃO REGIONAL DE CUIDADOS CONTINUADOS

Quando em outubro de 1978 entrei para o então Curso Geral de Enfermagem em Évora – provavelmente à semelhança de muitos outros jovens — não fazia a mais pálida ideia do que era isto de ser enfermeira. Do meu imaginário infantil permanecia a representação das imagens de alunas do meu Pai, com enormes quepes engomados e de uniformes de um branco imaculado, perfiladas e muito direitas. Recordo-me de que, anos mais tarde, no decurso de um internamento hospitalar, após um diagnóstico de Alzheimer, algumas daquelas alunas recorreram a certas medidas de contenção devido ao estado de agitação do meu Pai. Ele, furioso, (considero eu, num raro momento de lucidez) gritou-lhes: «Se soubesse o que sei hoje, não vos tinha ensinado o que ensinei.» No decorrer do curso, é criado o Serviço Nacional de Saúde como um direito consagrado na Constituição. No currículo académico, a fundamentação científica é colocada a par dos procedimentos técnicos. As imagens dos quepes engomados desvanecem-se. Para início do meu percurso profissional escolhi um hospital de âmbito concelhio. Estamos em 1981 — o 25 de Abril ainda era garrido nas suas cores 61


— é aprovada a carreira de enfermagem e eu não me queria perder numa organização impessoal, fria e, como se dizia então, em serviços com tecnologia de ponta com aparelhos cheios de som e de luzes. Preferi um lugar onde os instrumentos para a prestação de cuidados eram semelhantes aos que hoje encontraríamos num qualquer museu dedicado à História da Saúde em Portugal. Mas, de alguma forma, ali o tempo para os doentes fez com que ainda hoje recorde alguns dos seus rostos. Entretanto o Serviço Nacional de Saúde agitou águas e as organizações desassossegaram-se. As profissões reconfiguraram-se e tomaram espaços até aí desconhecidos. A modificação do perfil de necessidades da população obrigou à adoção de modelos mais flexíveis. Os Cuidados de Saúde Primários foram fundamentais na alteração do paradigma da Saúde em Portugal. Segui o caminho natural ao aprofundar conhecimentos e consolidar princípios através de um curso de especialização em enfermagem na área comunitária. Em Arraiolos, as organizações, apesar de interessadas no bem comum, não obtinham resultados maiores do que a soma das partes. A formalidade no relacionamento não favorecia um modelo de intervenção conjunta. Numa avaliação intuitiva, e face às minhas competências clínicas aliadas a características pessoais, resolvi intervir na comunidade de forma diferente do esperado. Apresentei-me aos dirigentes de cada instituição com a pretensão de, em conjunto, pensarmos uma intervenção integrada. A partir daí foi simples. O modelo pressupunha encontros sem formalidade e sem pressões institucionais, e que os elementos sentissem pertença ao grupo. Participaram ativamente nos projetos escolas, autarquias, instituições de abrangência social, associações de diferentes índoles e, em conjunto, promovemos e dinamizamos o trabalho em rede, potenciando ganhos em saúde. Estas atividades, embora enquadradas na área da promoção da saúde, ganharam uma dimensão para além das paredes do Centro de Saúde, fluíram e tomaram vida própria: um idoso, ao participar no planeamento, na confeção de adereços e no percurso pedestre das «marchas populares» talvez não se apercebesse de que estava a melhorar a sua condição de saúde, tal como um estudante, inserido no clube de fotografia da escola, ao captar imagens da população nos passeios, também não valorizava aquilo que hoje se chamaria um projeto Inter-Geracional... 62


Foram seis anos de extraordinária intensidade. O empenho das instituições e a cumplicidade dos profissionais permitiu que o meu papel fosse o mais fácil de desempenhar: o de facilitadora. Coincidentemente foram anos de grande crescimento e consolidação para a Enfermagem em Portugal. A publicação do Regulamento do Exercício Profissional de Enfermagem e a criação da Ordem dos Enfermeiros garantiu e obrigou, e continua a obrigar, a um olhar interno e à reflexão sobre a profissão. A participação nos primeiros órgãos sociais desta instituição consolidou a minha perceção da importância do desempenho do enfermeiro e da qualidade dos cuidados prestados. No final dos anos 90 surgem os primeiros diplomas legais tendentes à articulação dos cuidados de saúde e sociais, forçando a pensar numa estratégia comum e concertada tendo em conta o envelhecimento da população. O resultado do nosso trabalho foi, na região Alentejo, a constituição de respostas integradas em função da avaliação das necessidades da pessoa nas suas múltiplas dimensões. Quando em junho de 2006 surgem as primeiras experiências-piloto da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, a experiência de trabalho em parceria foi facilitadora do funcionamento em equipas multi e pluriprofissionais, com a partilha dos problemas globais da pessoa em situação de dependência de forma a gizar um plano comum de intervenção: para nós, o ovo de Colombo. Fazer parte deste projeto desde o seu início, participar enquanto elemento da Equipa de Coordenação Regional do Alentejo, ser atualmente sua coordenadora, ter colegas que todos os dias me ajudam a encontrar o caminho certo, ter integrado a equipa de apoio ao Coordenador Nacional para a reforma da Saúde dos Cuidados Continuados Integrados (participando a nível nacional na consolidação deste nível de cuidados), trabalhar com pessoas que considero excelentes profissionais e ver todos os dias crescer estas intenções é algo que me enche de orgulho e me faz acreditar que este caminho foi percorrido desta maneira por ser uma filha do Serviço Nacional de Saúde. O resultado do trabalho que temos conseguido desenvolver, considero-o modelar, enquadrador da filosofia de um efetivo trabalho em equipa e maior que a soma das suas partes. Também acredito que, um dia, quando eu for alvo dos vossos cuidados, a qualidade neles presente me permitirá dizer, ao contrário do meu Pai: «Ainda bem que vos soube ensinar o que ensinei...» 63


Graça Freitas MEDICINA DE SAÚDE PÚBLICA, ALTA DIREÇÃO E AUTORIDADE NACIONAL

Num contexto histórico irrepetível, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi construído numa sinergia ímpar entre os valores e direitos humanos e o enquadramento jurídico português e em 40 anos ajudou a transformar Portugal. A família era então a principal responsável por quase toda a ordem assistencial, incluindo a educação, a proteção social e a defesa da saúde. Com a Constituição de 1976 assiste-se a uma evolução profunda na defesa do direito à saúde, base da criação do SNS em 1979, tornando possível a garantia constitucional (1982) de que «todos têm o direito à saúde e o dever de a defender e promover». Permitam-me aqui breves notas pessoais. O meu nascimento num hospital com muito poucas condições. A infância sem acesso regular a vigilância da saúde e a vacinas que nem sempre estavam disponíveis; o médico nem sempre presente; o enfermeiro muitas vezes o recurso mais acessível. As lágrimas da minha Mãe. A ausência de alguns colegas. As famílias alargadas, uma sorte, e a sua preocupação com as chamadas «poupanças para a doença». Em 1980, termino a licenciatura em Medicina e inicio a saga de ser «P», ou seja, «Internato de policlínica», tendo chegado a P5. 64


Nestes anos, fui, a par do Internato Médico, quase todo no Hospital de Santa Maria, médica da «Caixa» nos arredores de Lisboa. No «estágio» de Saúde Pública em Ponte de Sôr, fui médica em Centros de Saúde de primeira geração e, por muito pouco tempo, em «Casa do Povo». Finalmente pude escolher uma especialidade, a de Saúde Pública, que terminei no final da década de 80, iniciando funções como Assistente de Saúde Pública no Centro de Saúde da Ajuda em Lisboa. Tendo-me licenciado em 1980, toda a minha atividade como médica decorreu já com o SNS, à exceção de uma passagem pela Direção de Serviços de Saúde de Macau no início dos anos 90. Voltando ao SNS, é clara a sua dimensão solidária quando «o acesso ao SNS é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social» permitindo a acumulação sucessiva de direitos de saúde que posicionam Portugal num lugar de destaque. Aos ganhos objetiváveis, acrescem ganhos intangíveis como o sentimento de segurança, perante o risco e a doença. Em 40 anos, a taxa de mortalidade infantil passou de 26,0 mortes por 1000 nados vivos em 1979 para 3,2 em 2018. Este valor deve-se à promoção da saúde sexual, reprodutiva e materno-infantil e ao Programa Nacional de Vacinação (PNV) mas, também, aos direitos que a Democracia concretizou nos domínios das condições sanitárias e ambientais, da educação e da proteção laboral. O PNV é fundamental pelos ganhos em saúde que gera e, tenho tido o privilégio de o gerir desde 1996, como Chefe da Divisão de Doenças Transmissíveis, como Subdiretora-Geral durante 12 anos ou agora como Diretora-Geral. Como médica, principalmente nas mais de duas décadas na DGS, considero que promovo a Saúde Pública e que, terei influenciado positivamente indicadores de saúde, concretizados pelo SNS, pelo Sistema de Saúde, pela Sociedade Civil ou diretamente pelos cidadãos. O atual ritmo transformacional da civilização humana torna as expectativas, valores, exigências e necessidades profundamente voláteis. O acesso a informação frequentemente falsa e a tendência crescente de acreditar que mais é melhor, alteram a perceção e espectativas dos cidadãos perante o sistema de saúde. Também os determinantes estão em mutação: o clima e a degradação do ambiente, a demografia, as transições epidemiológicas, o digital, o ruído na 65


comunicação, as desigualdades e assimetrias, a inovação tecnológica e os custos de um bem sem preço. Urge, portanto, um olhar reflexivo, extenso e profundo, sobre o SNS do futuro, num movimento de transformação e reforço. Um SNS melhor cujo modelo de gestão e financiamento evolua para dar resposta a polos de tensão, como a rapidez da evolução social e da perceção dos valores, que ultrapassam frequentemente a sua capacidade adaptativa. Um SNS com capacidade de previsão e análise da evolução dos determinantes da saúde, das necessidades dos cidadãos, dos resultados das intervenções, capaz de fazer o diagnóstico e o prognóstico da situação, identificando as variáveis, as suas causas e as suas consequências, avaliando-se em permanência, encontrando soluções e prestando contas sobre a relação dos resultados com o investimento realizado. Um SNS que consolide a sua posição cimeira na promoção e proteção da saúde, na prevenção da doença (da primária à quaternária) e na prestação de cuidados. Um SNS que seja o garante do direito universal à saúde, exigente no compromisso do acesso a intervenções adequadas, efetivas, seguras, eficientes e humanizadas, instrumento de combate a desigualdades e assimetrias, promotor de equidade e coesão social. Um SNS competitivo, moderno e humanista, no qual profissionais de excelência se orgulhem de trabalhar em prol da saúde dos cidadãos e da sociedade, garantindo a sua credibilização, prestígio e sustentabilidade. Como médica e Diretora-Geral da Saúde, tudo farei para que a DGS esteja presente, com exigência, rigor e sentido de responsabilidade pública, no planeamento e programação das atividades de promoção da saúde e prevenção da doença bem como da política nacional para a qualidade no sistema de saúde. Participaremos na concretização de sistemas de informação, que acrescentem evidência à evidência, que monitorizem e avaliem resultados e que, de forma transparente, os partilhem. Comprometo-me também a comunicar, com parceiros e concidadãos, o que for sabendo e aprendendo. Como cidadã quero o que todos queremos, saúde, respeito, bons cuidados e uma vida longa, o que me interessa é sentir-me mais saudável, mais ativa, mais útil e mais velha e, o que quero para mim, quero para o outro. 66


Graça Raimundo TECNOLOGIA DE SAÚDE EM DIETÉTICA E DOCÊNCIA

Ao longo da minha vida profissional fui-me apercebendo que era necessário dar visibilidade à nutrição no SNS e no país em geral. Neste propósito e em conjunto com a anterior responsável do Serviço de Nutrição e Dietética realizamos as I e II Jornadas de Alimentação e Dietética do HESE, EPE. Embora este evento pareça pouco relevante, teve no meu crescimento profissional e pessoal um impacto enorme. Após a realização destas jornadas, em 1999, fui convidada pela então coordenadora do Curso de Dietética para incluir o corpo docente desde curso, ministrado na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, escola na qual anos atrás frequentei enquanto aluna. Convite esse que aceitei com todo o entusiasmo e empenho, era uma oportunidade única, uma vez que nessa época sentia-me insatisfeita, queria mais, queria estar próxima da inovação, queria ter oportunidade de beber novos ensinamentos, mais ciência, enfim, queria crescer! Paralelamente a esta minha atividade de docência, as questões da profissão e da nutrição sempre foram muito importantes e determinantes no meu percurso. A nutrição e os dietistas continuavam a ser pouco valorizados pela sociedade, era necessário dar-lhes visibilidade. Os caminhos percorridos pela Associação 67


Portuguesa de Dietistas não me agradavam, o rumo seguido pela profissão de dietista muito menos. Sempre fui uma entusiasta destas questões as quais partilhava e discutia com os alunos, e futuros dietistas, incentivava-os a serem críticos, ativos e pró-ativos. E como a semente lançada à terra dá os seus frutos, quando os meus primeiros alunos se tornaram profissionais, quiserem revitalizar a APD e tive o privilégio de ser incluída neste projeto, como presidente da direção da Associação Portuguesa de Dietistas. Os tempos ao leme da APD foram difíceis, conturbados, repletos de lutas e vicissitudes, mas também repletos de ânimo e de vontade de fazer a diferença, sabia que APD era vital para os dietistas e para a nutrição no SNS e em Portugal. Em 2009 fomos surpreendidos com o projeto de criação da Ordem dos Nutricionistas. Os nutricionistas desenvolviam a sua atividade profissional na mesma área dos dietistas, era difícil para os restantes profissionais de saúde e mesmo para os utentes distinguir o que uns e outros faziam, para além destas dificuldades também entre os nutricionistas e os dietistas o clima não era amistoso. Nesta sequência defendi e desenvolvi com a equipa que integrava os corpos sociais da APD, todos os esforços junto da Assembleia da República e do Ministério da Saúde para que a Integração dos dietistas na Ordem dos Nutricionistas fosse possível, e contra ventos e marés em 14 de dezembro de 2010 é publicado o 1.o Estatuto da Ordem dos Nutricionistas, no qual estava espelhado que a Ordem iria regular o acesso e o exercício da profissão de nutricionista e de dietista. Este foi o primeiro passo para unificação destas profissões. Em abril de 2011 fui nomeada pela então ministra da saúde, Dra. Ana Jorge, como elemento da Comissão Instaladora da Ordem dos Nutricionistas. Nesse mesmo ano fui convidada pela Prof. Doutora Alexandra Bento, atual bastonária da Ordem dos Nutricionistas, a integrar a sua lista candidata aos órgãos da Ordem como vice-bastonária, cargo que exerci no primeiro mandato. O primeiro mandato da Ordem foi conturbado, a regulação de duas profissões tão semelhantes pela mesma ordem não era possível. Tornou-se necessário desenvolver todas as ações essenciais para que a convergência da profissão de dietista para a profissão de nutricionista fosse uma realidade, o que se materializou com a publicação do segundo estatuto da Ordem dos Nutricionistas. 68


Este foi um caminho longo e duro, mas ultrapassadas as barreiras foi possível criar sinergias em prol de um bem maior, o superior interesse público. Hoje somos uma só profissão, falamos a uma só voz, com a convergência beneficiámos todos, a ordem, os nutricionista e o cidadão. Esta conquista foi sem dúvida o meu maior contributo para o SNS, a defesa da nutrição e do superior interesse do cidadão.

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Henriqueta Figueiredo ENFERMAGEM DE SAÚDE FAMILIAR, DOCÊNCIA E INVESTIGAÇÃO

A história da enfermagem de saúde familiar é coletiva e colaborativa. Revejo-a em mim, na perspetiva em que as motivações e oportunidades me possibilitaram o privilégio de tentar contribuir, com uma pequena parte, para o seu desenvolvimento. E perspetivo-me nela porque é também a minha história, no que sou como ser multidimensional. O exercício profissional como enfermeira, no contexto dos cuidados de saúde primários (CSP), de 1988 a 2001, possibilitou-me uma aprendizagem interpessoal e significativa com as famílias, inenarrável pela sua profundidade. Por um lado, o iniciar de uma consciência identitária da importância do ser enfermeiro, e, por outro lado o inicio de um itinerário, repleto de inquietações, convicções e interações, que transformaram a saúde familiar na minha «missão» de vida, numa perspetiva integrativa que tem pautado o meu agir. Em 1991, no Centro de Saúde de Torres Novas, materializamos a equipa nuclear de saúde, tendo integrado o grupo para a implementação do trabalho em equipa. Desafio árduo, mas concretizável. Conhecia cada uma das famílias, identificando a sua composição familiar, o seu domicílio, as suas crises decorrentes das transições inerentes ao seu ciclo vital, como se fizessem parte do meu mapa mental. Em 1990 a Sub-Região 70


de Saúde de Santarém (SRSS) tinha normalizado a Ficha Familiar. Para a conceção de cuidados eu tinha como referencial o Modelo Teórico de Orem, acrescentando a taxonomia de NANDA, na formulação dos diagnósticos. Tenho como relíquia alguns destes registos, que integram a minha história. Colaborei, em 1995, na elaboração do quadro de referencia adotado pela SRSS, direcionado à autonomia do individuo e da família. Ao utilizá-lo foi possível integrar novos conceitos que permitiram a operacionalidade, como a elaboração do «Roteiro de colheita de dados/intervenção familiar» apresentado ao grupo de «Análise e Reflexão sobre os registos de enfermagem da SRSS», do qual era membro. Foi criado um grupo de trabalho para a sua implementação, permitindo a sua monitorização e aprimoramento. Neste percurso de exercício clínico, ainda destaco, no âmbito da coordenação do Programa de Formação em Serviço, a responsabilidade de implementar processos formação-ação, no âmbito da intervenção familiar. Responsabilidade traduzida em exigência e caminho de oportunidade, coletiva, para o desenvolvimento da enfermagem de saúde familiar. Esta foi a narrativa do alicerce, fundamento inspirador, para que na carreira de docente de ensino superior, iniciada em setembro de 2001, na Escola Superior de Enfermagem do Porto. Do curso de Doutoramento emergiu o Modelo Dinâmico de Avaliação e Intervenção Familiar (MDAIF), pretendendo ser orientador da tomada de decisão dos enfermeiros face às necessidades das famílias, enquanto alvo de cuidados de enfermagem. Sob proposta da MCEEC, o Conselho Diretivo deliberou, em dezembro de 2011, adotar o MDAIF como referencial teórico e operativo em Enfermagem de saúde familiar. Este modelo está integrado em conteúdos programáticos de planos de estudos, em diversas instituições de ensino de enfermagem, com as quais tenho colaborado, assim como é utilizado como referencial teórico em investigação. Mais relevante, a internalização, do MDAIF, pelos enfermeiros com quem tenho tido o privilégio de partilhar processos de formação-ação nesta área, em contextos tão diversos, do sul ao norte do continente e regiões autónomas. A disseminação, experimentação e identificação de resultados reais decorrentes das intervenções dos enfermeiros, sustentadas pelo MDAIF, permitiu a sua internacionalização, estando elencado pela International Family Nursing Association, como um dos modelos para a prática de enfermagem com as famílias. 71


Destaco as atividades de consultadoria, apoio conceptual e formação no Projeto de Implementação do Enfermeiro de Família na Região Autónoma dos Açores. Pois se a teoria oferece o que pode ser tornado explicito, a clínica é mais complexa e tem mais realidades do que as que podem ser adaptadas à teoria. Relevo a participação na Comissão de Apoio do Colégio de Especialidade de Enfermagem Comunitária (CEEC) da Ordem dos Enfermeiros (OE), de 2008 a 2014, nomeadamente nas propostas de regulação da Enfermagem de Saúde Familiar. A Mesa do CEEC da OE, no assinalar do Dia Internacional da Família, em 2014, deixou um agradecimento pelo meu contributo à Enfermagem de saúde familiar, o qual amplio para todos os enfermeiros de CSP. Ter sido representante da OE no International Council of Nurses (ICN) para a temática family nursing/family Health, até 2015, foi uma experiência inigualável. No que se refere à investigação, constituindo-se como fator de desenvolvimento empírico-conceptual, o projeto de investigação, de cariz internacional: «MDAIF: Uma ação transformativa em CSP» sediado na ESEP/CINTESIS, pretende a construção de novos saberes e novas práticas em enfermagem de saúde familiar. A Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Familiar, emergiu com vista à otimização das respostas às necessidades das famílias, num processo contínuo de construção de soluções inovadoras, num paradigma globalizante e integrativo. Agradecendo a todos, que são muitos, a honra e privilégio do que aprendi com cada um. Foram os vossos saberes, as vossas práticas, as vossas inquietações e dúvidas que me permitiram que a enfermagem de saúde familiar se mantenha hoje um atributo identitário, do que sou e do que pretendo continuar a ser.

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Inês Guerreiro SOCIOLOGIA, COORDENAÇÃO REGIONAL E NACIONAL DE CUIDADOS CONTINUADOS

Inês Guerreiro, a «mãe da Rede» numa viagem para Ítaca Gosto de me ver como uma mulher de causas sociais e tenho, como princípio, que a espécie humana só melhora com o envolvimento social, com os laços comunitários e relacionais que estabelecemos. A consciência daí resultante determina toda a nossa existência. Nesta caminhada para a «altitude» da vida, posso olhar em retrospetiva e perceber que o meu percurso tem sido um arco que se foi construindo desde cedo, havendo quem me chame «a mãe da Rede» porque, em 2005 fui a responsável por criar de raiz a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). Sou por natureza otimista. E esse otimismo foi forjado ao longo do meu crescimento. Madeirense de nascimento, onde vivi até aos 45 anos com exceção do período em que me licenciei em Ciências Sociais e Políticas na Universidade Técnica de Lisboa e mais dois anos em que trabalhei na Warner Brothers e Columbia Pictures, em Lisboa. Na Madeira, tive a responsabilidade de lançar a Política Integrada para as Pessoas Idosas, no início dos anos 80, e dirigi também a Segurança Social, até 73


1996. Foi também na década de 90, que aí se criou o serviço de apoio domiciliário a idosos, articulado entre a Segurança Social e os Centros de Saúde, tendo sido lançado igualmente o programa de habitação para as pessoas com mais de 65 anos, integrado na política de habitação social na Madeira. Gosto de pensar que sou uma Fazedora de Mudanças. Em Lisboa, desde 1996, fui responsável por medidas de desenvolvimento social e comunitário e programas de formação para os desempregados de longa duração e beneficiários do Rendimento Mínimo Garantido durante o II Quadro Comunitário de Apoio. Na minha passagem pela Cruz Vermelha Portuguesa (durante sete anos, parte como assessora da Dra. Maria de Jesus Barroso Soares) reorganizei e relancei toda a Ação Social e criei um Plano de Formação para todo o país com o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional. A CVP passou a dispor de serviços profissionalizados de ação social com respostas enquadradas na política de proteção social ao nível do país. Foi em 2001 que o ministro da Saúde, António Correia de Campos, me convidou para organizar os Cuidados de Saúde de Longa Duração em Portugal. Era então António Guterres primeiro-ministro, e legislou-se pela primeira vez uma Rede estruturada de respostas nessa área, que integrava já a Saúde e a Segurança Social, bem como outros parceiros sociais. Infelizmente, esta pretensão nunca saiu do papel (Rede Mais), apesar de ter sido um trabalho de coordenação muito alargado entre profissionais do Ministério da Saúde e da Solidariedade e Segurança Social. Entretanto, caiu o Governo e a Rede ficou adiada. Em 2005, e novamente com António Correia de Campos e a sua equipa — Francisco Ramos e Carmen Pignatelli, secretários de Estado — sou chamada de novo. O país estava mais envelhecido, com respostas sem homogeneidade, serviços dispersos e sem garantia de acesso nesta área. Era o momento ideal para uma reforma a todos os níveis. Juntaram-se vontades políticas e profissionais; peritos e investigadores, parceiros sociais, o Serviço Nacional de Saúde, a rede social pública e nasceu a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. Foi um trabalho de uma equipa «missionária», desenvolvido pela Unidade de Missão dos Cuidados Continuados Integrados e pelos serviços e organismos da Saúde e da Segurança Social; as ARS e os Centros Distritais da Segurança 74


Social, os hospitais e os centros de saúde de todo o país, as Misericórdias e Instituições de Solidariedade Social e as entidades privadas que quiseram integrar esta Rede. Pela primeira vez passou a haver em Portugal o direito à reabilitação para os mais dependentes e idosos. O foco na carga da doença exige uma abordagem e intervenção continuadas. Eu fui o motor e assumi a liderança, mas a prioridade política forneceu o enquadramento e a oportunidade. Acho que correu bem. A Rede fez-se e ficou, apesar das incompreensões. Em 2014, quando me reformei, já existiam cerca de 6600 lugares de internamento em respostas diferenciadas e especializadas; mais de 7000 lugares em equipas domiciliárias nos ACES; um Plano Nacional de Cuidados Paliativos em execução, segundo as orientações da OMS, com 200 camas de internamento na RNCCI, equipas em vários hospitais e centros de saúde; equipas de Gestão de Altas em todos os hospitais do SNS; equipas coordenadoras locais e regionais para acompanhamento, avaliação, acesso e qualidade da Rede. Mas a Rede foi mais longe. Publicou-se toda a legislação para os cuidados continuados integrados em Saúde Mental e estabeleceram-se modelos de referenciação e articulação entre níveis de cuidados. Sem dúvida que o trabalho mais importante da REDE foi ter iniciado a Viagem para Ítaca, como gosto de lhe chamar. Vivemos, agora, um momento histórico em que temos cada vez mais pessoas de muita idade com dependências várias, severas e complexas. As famílias sentem-se abandonadas, os cuidadores sobrecarregados vivem num difícil equilíbrio com a responsabilidade que implica ser cuidador de um dependente. A nossa expectativa de chegar a idades muito avançadas é um desafio, diria mesmo é O DESAFIO para o século XXI. As políticas de trabalho, emprego, saúde, habitação, educação, mobilidade, proximidade, e a forma como estruturamos toda a sociedade (sem esquecer a inovação e os desafios tecnológicos) terão de contar com este NOVO grupo da população. Atualmente, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, integro o Conselho Consultivo para o Projecto «Lisboa, Cidade de Todas as Idades», o qual tem por base a preocupação de intervir na cidade e nos recursos existentes para garantir a inclusão e participação de todos os cidadãos que nela vivem, com especial atenção para os mais velhos. E, também aqui, tenho muito para ajudar... A Mudar! A minha Viagem para Ítaca continua! 75


Isabel Abreu FARMÁCIA CLÍNICA, DOCÊNCIA E REGULAÇÃO DO MEDICAMENTO

Nascida numa vila da Beira Alta e com laços muito próximos a profissionais da saúde, cedo me apercebi dos enormes problemas dos cidadãos, em termos de cuidados de saúde. Ouvi relatos de mães que tinham os seus filhos em casa e que, por viverem em sítios de difícil acesso, não lhes foi possível resistir a complicações graves que lhes causaram a morte e/ou do bebé. Ficou-me gravada para sempre a figura de um médico, Dr. José de Andrade de Assis e Santos, que dedicou a sua vida a tratar as populações, deslocando-se durante semanas aos locais mais recônditos, sem esperar qualquer espécie de retribuição. Muitas vidas terão sido salvas com este gesto. Também por esta vivência não poderia deixar de afirmar que a criação do SNS foi de facto a maior conquista do 25 de Abril. Uma homenagem especial aos que lutaram pela sua criação e aos profissionais que abnegadamente continuam a defender o serviço público, garantindo o acesso e a utilização de cuidados de saúde com equidade e qualidade. Sou farmacêutica e embora o meu percurso profissional não tenha estado directamente ligado ao SNS, penso que de alguma forma a minha atividade contribuiu também para a melhoria dos cuidados que são prestados aos cidadãos pelo SNS. 76


A criação do INFARMED foi um importante contributo para que o SNS dispusesse de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade no mercado. Através da informação aos profissionais de saúde e cidadãos foi dado um importante passo para a utilização mais racional dos medicamentos. Integrei a equipa do Infarmed desenvolvendo várias actividades, mas retenho com particular satisfação o trabalho no acompanhamento e implementação das directivas comunitárias relativas a dispositivos médicos. Os dispositivos médicos são uma tecnologia médica com uma enorme relevância na prestação de cuidados de saúde, que podem salvar vidas, melhorar a saúde e contribuir para cuidados de saúde sustentáveis. Nesta área, a minha atividade desenvolveu-se em várias frentes, designadamente na colaboração com os profissionais de saúde e com outras entidades nacionais correlacionadas com este sector para garantir a utilização segura dos dispositivos médicos e também no apoio à indústria nacional, criando valor, garantindo postos de trabalho e elevando a qualidade, a segurança e o desempenho dos dispositivos pelos quais são responsáveis. Todo este trabalho não foi fácil, mas nem por isso deixou de ser estimulante. As empresas nacionais, muitas delas anteriormente pertencentes ao setor têxtil, não entendiam a necessidade das novas exigências impostas pela integração dos produtos no sector da saúde. Com o sentido de missão e de dever público acompanhámos o crescimento de muitas empresas, enquanto outras se viram obrigadas a ficar pelo caminho. Com os profissionais de saúde, habituados ao sector do medicamento em que o Infarmed está presente em todas as fases do seu ciclo de vida, apoiando todas as vicissitudes que possam ocorrer, não foi fácil gerir as expectativas para a utilização de produtos sujeitos a livre circulação, em que uma vez aprovados num Estado Membro da União Europeia, por entidades que não as autoridades de saúde, embora por elas controladas, possam ser comercializadas em Portugal. Trabalhámos em conjunto para alcançar confiança e garantir a qualidade e segurança dos produtos. Também no sector da distribuição, maioritário em Portugal, o caminho foi-se fazendo com alguma dificuldade. Muitas das empresas não faziam a mínima ideia de que os produtos que vendiam eram dispositivos médicos. Criámos regras nacionais para o sector e com muita formação o sector foi 77


normalizando, contribuindo para a utilização segura destes produtos de saúde. Um particular apreço por todos aqueles que ao longo dos anos se têm empenhado no desenvolvimento do sector, adaptando-se à constante inovação terapêutica, com ganhos evidentes na prestação de cuidados de saúde de qualidade. Afastada da vida ativa, seria difícil para mim não dar continuidade ao percurso na área da saúde e, por isso, aceitei com muito agrado participar na atividade da Fundação para a Saúde — SNS, uma iniciativa de «cidadania responsável». Identificando-me com a missão da Fundação «na prossecução de ações e projetos nas áreas da saúde, assistência social e de solidariedade» e na confiança e respeito por todos os que a integram, esta atividade constituiu para mim uma enorme mais-valia em termos humanos e de promoção do conhecimento em saúde.

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Isabel de Souza Guerra TECNOLOGIA DE SAÚDE EM FISIOTERAPIA E DOCÊNCIA

Foi admitida como fisioterapeuta no Hospital do Ultramar, em 1970, após dois anos de experiência profissional no Centro de Reabilitação de Alcoitão. Desde logo se apercebeu que tinha entrado num mundo diferente. Doentes agudos, acamados com necessidade de intervenções imediatas, efetivas, e rápidas para beneficiarem de altas precoces, contrariamente aos projetos de reabilitação com intervenções a longo prazo. Tal análise ditou a sua estratégia de intervenção, indo ao encontro dos doentes em qualquer serviço onde se encontrassem. Em 1974 (pós 25 de Abril), passou a designar-se Hospital de Egas Moniz, enquanto decorriam as comemorações do centenário deste cientista e, na sequência da extinção do Ministério do Ultramar transitou para a tutela da Secretaria de Estado da Saúde. A Fisioterapia é transferida para o novo hospital, recém-construído e com instalações substancialmente aumentadas. À medida que o hospital crescia, crescia também o número de fisioterapeutas obrigando ao desenvolvimento de novas competências. Assim, fez formação específica na área de amputados, escolioses e saúde da mulher, respectivamente na Alemanha, França e Reino Unido, sempre em instituições tidas como de topo na fisioterapia. Todas estas especialidades são imediatamente implementadas na 79


unidade e é dada formação aos outros fisioterapeutas. Fez também numerosa formação numa nova área, a da terapia manual e, foi novamente o Serviço, pioneiro no País na utilização e divulgação destas novas técnicas, não só muito eficazes no tratamento da dor, mas também na relação custo-eficácia pelo diminuição do número de intervenções. Dada a importância crescente das Unidades de Cuidados Intensivos não só no HEM, mas também nos outros grandes hospitais do País, com a consequente necessidade de fisioterapeutas especializados, promove em parceria com a Associação Portuguesa de Fisioterapeutas (APF), formações em Cuidados Intensivos (CI) para Fisioterapeutas. É o primeiro hospital com fisioterapeutas especializados em cuidados intensivos, a dar apoio de fisioterapia às UCI, sete dias na semana. O serviço passa a ser procurado por muitos fisioterapeutas para estágios pós básicos em CI e o modelo obtém forte reconhecimento por parte das equipas que atuam nessas unidades. Mantém a coordenação da Unidade de Fisioterapia, tendo sempre como objetivo a melhoria dos cuidados prestados e a satisfação dos utentes e dos profissionais. Reestrutura o serviço, criando uma política de distribuição dos fisioterapeutas por quatro grandes áreas (musculoesqueléticas, cardiorrespiratórias, neumusculares e ambulatório) para cobertura da totalidade do Hospital e, também com o objetivo de que os fisioterapeutas, não só se tornarem peritos na área em que trabalhavam, como no sentido de uma maior responsabilização dos profissionais no desempenho da sua actividade e um maior interação nas equipes pluridisciplinares. Este modelo, completamente inovador, perspetivava já a existência de fisioterapeutas especialistas em áreas específicas. Introduz no Serviço um modelo de gestão participativa por objetivos, com excelente envolvimento de todos os colegas e cria um sistema de formação em serviço e de avaliação contínua da qualidade. Após vários concursos públicos, em que atinge o topo da carreira, em 1991 é nomeada, em comissão de serviço, Fisioterapeuta Diretora, cargo que lhe acarreta maiores responsabilidades, mas que representa também um desafio, como topo da estrutura hierárquica dos profissionais do serviço, sendo também, a nível do SNS, a única fisioterapeuta detentora desse cargo. Ainda nesse ano é nomeada consultora para a «Actualização do Programa de Ambulatório de Medicina Física e Reabilitação» do Grupo de Programação dos Hospitais da Direção-Geral dos Hospitais. Participa em vários projetos internacionais, e no ano de 1997 é nomeada Represen80


tante Nacional no projeto MEMPhiS: projeto-piloto, sob a égide do programa Leonardo Da Vinci, representado pela Direção-Geral XXII da Comissão da Comunidade Europeia. Candidata-se e é aceite para «HOPE Exchange Programme 2004 for Hospital Professionals». Este programa é organizado pela «European Hospital and Healthcare Federation» (HOPE). Participa neste programa durante quatro semanas, na Holanda e na Suíça. Ao longo de mais de trinta anos de atividade hospitalar, teve a honra de liderar uma excelente equipa de profissionais que responderam sistematicamente ao desafio da mudança, do profissionalismo e da qualidade, a quem deixa um enorme agradecimento, pois com o seu contributo a unidade foi considerada um local de referência para os fisioterapeutas portugueses. Durante todo este tempo contribui com extensa documentação para o desenvolvimento da fisioterapia no SNS, chamando a atenção para o papel preponderante dos fisioterapeutas e as mais-valias do seu contributo a todos os níveis dos cuidados. Durante toda a vida profissional foi ainda docente em várias escolas de fisioterapia tanto a nível de licenciaturas, pós-graduações e mestrados que muito contribuíram para o seu desenvolvimento. A par de tudo isto, mantém intensa atividade associativa, quer a nível nacional quer internacional, junto do Comité de Ligação do Fisioterapeutas da União Europeia, da Confederação Mundial de Fisioterapia (WCPT) e da Região Europeia da WCPT. Foi presidente da APF por cerca de 20 anos sempre tentando partilhar o seu conhecimento com a comunidade da fisioterapia. Entre muitos outros projetos, conduziu com outros profissionais empenhados, o processo de criação da Ordem dos Fisioterapeutas. A este projeto, de impacto fundamental na vida da população e dos fisioterapeutas portugueses, tem dedicado muito do seu esforço e persistência ao longo dos últimos 20 anos, tendo sido finalmente concretizado.

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Isabel Saraiva ECONOMIA E GESTÃO NA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

Considero-me uma homenageada muito grata à Direção da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar (APDH) por se ter lembrado de mim. Mas também me considero uma testemunha privilegiada das últimas quatro décadas do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e em particular do papel da Indústria Farmacêutica. Das estórias guardarei silêncio — não só por estarem vivos muitos dos intervenientes mas também e principalmente por se me afigurar pouco elegante recordar ações e omissões que aos olhos deste ano da graça de 2019 — repleto de pessoas, causas e instituições politicamente corretas — podiam parecer ou aparecer como inconvenientes. O exercício de funções de Direção Executiva na Apifarma desde a década de 1980 fizeram de mim e do meu desempenho profissional simultaneamente observadora e agente das alterações que a adesão à então Comunidade Económica Europeia promoveu e exigiu. Para os portugueses do século XXI o Portugal dos anos 80 aparece como uma fotografia esbatida e quase irreconhecível. Quem se lembra do que representava uma despesa anual per capita do SNS de 83,3 euros? Uma esperança de vida que ia pouco além dos 70 anos? Uma 82


taxa bruta de natalidade de 12,6‰? Quem se recorda do que representava um SNS incipiente, ou uma demografia sem problemas? Foi sobre esta realidade que se construíram as políticas públicas da Saúde, que se desenvolveu o SNS, que se melhoraram indicadores, que se ganharam anos de vida. Foi ainda sobre esta realidade que se iniciaram as alterações que obrigaram a novas formas de trabalho e a novas formas de relacionamento, impondo disponibilidade para entender e atender aos argumentos das partes — enfim para negociar. Foi um caminho que concretizou uma visão da Indústria integrada num exigente contexto Europeu: entre 1990 e 1995 foi publicado um vasto conjunto de diplomas legais que, para além de acolherem mais de trinta anos de disposições comunitárias, regularam matérias determinantes como os Ensaios Clínicos, a Publicidade dos Medicamentos, o Código da Propriedade Industrial, e enquadraram a atividade do sector Farmacêutico, que se estruturava e consolidava. Foram anos de Inovação: a celebração do primeiro Protocolo de Sustentabilidade Financeira com os Ministérios da Saúde e da Economia; as Campanhas de Sensibilização, explicando a função social da Indústria Farmacêutica e o seu contributo para a Saúde, isto é, a identificação da Dimensão Estratégica de um Sector parceiro determinante do Serviço Nacional de Saúde. Foram anos em que áreas de intervenção absolutamente originais se iniciaram como, por exemplo, o Ambiente — quando dele pouco se falava — ou as Parcerias com as Associações de Doentes — quando poucos as reconheciam. Foi um caminho feito com persistência, com resiliência e pela parte que me tocou com imenso entusiasmo. Mas as minhas memórias e contributos não se esgotam naqueles anos novos. Já reformada, diagnosticada com uma doença respiratória crónica e colaborando ativamente com organizações de doentes tanto nacional como internacionalmente, o privilégio voltou a bater à minha porta: fui convidada pela Senhora Dra. Maria de Belém Roseira para fazer parte da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde. 83


Não tendo dúvidas sobre a valia do projeto de proposta apresentado (a tempo e em tempo) pela referida Comissão, deixo aqui o meu testemunho numa pessoalíssima nota sobre aquele documento. Porque comporta uma dimensão humana, porque considera as especificidades e as vulnerabilidades de determinados grupos sociais, porque dá uma atenção redobrada às determinantes da Saúde, ao envelhecimento, à inovação nas políticas e na ciência, porque atende explicitamente aos direitos e deveres das pessoas, confirmando o direito de associação e representação, num quadro de reconhecimento do direito à proteção da Saúde como «direito humano e direito constitucionalmente protegido», abrangendo todas as fases das nossas vidas, considero que o output da Comissão é uma inestimável ajuda para pensar e organizar um Serviço Nacional de Saúde para Portugal. Há que o fazer.

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Isilda Inês ENFERMAGEM DE SAÚDE MENTAL E PSIQUIÁTRICA E GESTÃO DE SERVIÇOS

Nasci no dia de S. João de 1954, na aldeia do Pego, bonita aldeia de casas baixas, caiadas de branco, sou pegacha e ribatejana, povo conhecido como trabalhador, de resposta pronta e disposto a atravessar o mundo para conseguir os seus objetivos. Passados seis meses, o pai faleceu vítima de septicemia no hospital de Abrantes. Fiquei ao cuidado da mulher mais conciliadora que eu conheço, a minha mãe, então com 19 anos, e da avó Zefa uma mulher força da mãe natureza, carregada de bondade nos seus olhos azuis, os meus maiores exemplos de vida. Quando tinha seis anos, o meu avô materno caiu de um sobreiro, sofreu fratura da coluna, foi internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC). Dias depois, vi visitá-lo, parecia que entrei num outro mundo, pessoas vestidas de branco, cuidavam do meu avô, com tanto saber, faziam tudo o que eu gostaria de saber fazer ao avô, mas não sabia, foi aí que decidi quando for grande quero ser enfermeira. Aos 17 anos, vim para a Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, concretizar o meu sonho. A minha vida de estudante, teve vários episódios que 85


me marcaram, um deles foi a minha primeira noite de estágio, na Medicina (HUC), na noite do inesquecível dia 25 de Abril de 1974 (Revolução de Abril), ao sair do estágio, perante todos os cenários, o sono desapareceu, tive a sensação que foi uma bênção ter iniciado o meu estágio nesse dia, Ainda hoje sinto isso. O último estágio do curso, foi de Enfermagem Psiquiátrica, a psiquiatria era diferente de todas as especialidades, a população de internadas eram maioritariamente mulheres ignoradas, sós, tristes, deprimidas, delirantes, alucinadas, que existiam entre aquelas paredes, olhavam-me com apelo, desprezo, carinho, raiva, mas sempre subjacente estava um pedido de ajuda na comunicação verbal ou não-verbal. O meu percurso profissional, progrediu com Abril, em 1974, à época as mulheres eram quase desprotegidas, apenas 25% das estavam empregadas; das quais 86% eram solteiras e 50% tinham menos de 24 anos, auferiam salários mais baixos em cerca de 40% que os homens, o marido podia proibir a mulher de trabalhar fora de casa, mães solteiras não tinham qualquer proteção legal, e o homem era o chefe de família. A ausência de muitos direitos vedados às mulheres, eram/são responsáveis pelo equilíbrio da sua saúde mental. Iniciei a vida profissional, na unidade de Psiquiatria Mulheres dos HUC, (relação que durou mais de 40 anos), com a realidade clínica que encontrei, senti que tinha de ter conhecimentos mais sólidos para melhor executar a «arte do cuidar». Daí o objetivo, ser enfermeira especialista em saúde mental e psiquiatria, tinha que estar melhor preparada, prestar cuidados diferenciados. Obrigada à excelente profissional, Enfermeira Geral, Helena Correia, pelo estímulo para esse projeto. Em 1987, ingressei na Escola de Enfermagem Psiquiátrica de Lisboa, tive o privilégio de conhecer uma diretora excecional, Enfermeira Ana Sara Alves de Brito, com um conhecimento imenso da saúde mental, da psiquiatria e da saúde em geral. O curso marcou-me para toda a vida, ainda hoje, são muitas vezes, essas fontes do conhecimento que me inspiram. Assisti a cenários comoventes, chocantes ou revoltantes, como o da menina de treze anos, desde pequenina vivia numa capoeira, brincava com as galinhas, suas únicas companheiras de solidão, a situação foi denunciada, um dia estava 86


de serviço, quando entrou aquela criança de olhos azuis, caminhando apoiada nos quatro membros, olhar petrificado e completamente em pânico, deixou-me assim, sem palavras, apenas consegui esboçar um sorriso triste, tentar dar-lhe a mão (missão impossível) e nesse dia, as lágrimas rolaram dentro e fora de mim. Foco o caso conhecido da «nossa Cancan», doente esquizofrénica «crónica», que acompanhou quase toda a minha vida profissional, que foi melhorando e tornando-se mais afável, mesmo ternurenta, com a toma da nova geração de antipsicóticos. Por fim, a mulher que entrou quase cadáver, com 37 kg, olhos marejados de lágrimas e horror à comida, quis ser manequim e viver com a moda, mas no seu trajeto de vida, viveu apenas com um homem que a violentava todos os dias, verbal e fisicamente. A anorexia nervosa sempre me fascinou, a monografia da licenciatura — «Padrões de beleza, moda e anorexia nervosa» — constituiu uma aprendizagem inesquecível, a motivação da orientadora Prof. Doutora Helena Quaresma, mulher com conhecimento profundo da saúde mental, coração enorme, foram fontes de referência, para o humanismo e saber. Nas noites do cuidar fiz alguns poemas, falavam das mulheres e do seu sofrimento clínico no internamento, alguém soube e desafiou-me a publicá-los, aceitei o desafio e nasceu o livro Histórias de Mulheres em Saúde Mental, conteúdo cujo relato de cada poema, é o caso clínico de uma mulher. Em 2007 e a convite da Astra Zeneca publiquei a sua 2.a edição. Aposentei-me, como enfermeira chefe, da unidade onde iniciei funções, nem tudo foi fácil, sendo a saúde mental «o parente pobre da medicina», mas!... foi gratificante liderar um universo maioritariamente feminino, incentivámo-los ao seu enriquecimento pessoal e profissional pedagógico, cujo alvo de cuidados era um universo de mulheres. Privilegiámos a prevenção, fizemos processos formativos destinados à população em geral. Foi uma aposta na qualidade e melhoria da qualidade de vida das/dos nossos doentes e dos cidadãos em geral. À minha família, às «minhas doentes», equipa multidisciplinar de Psiquiatria Mulheres, Direção de Enfermagem, CHUC em geral e ao Serviço Nacional de Saúde, porque contribuíram, para a pessoa que sou hoje. Bem hajam.

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Lucília Nunes ENFERMAGEM, BIOÉTICA, DOCÊNCIA E REGULAÇÃO PROFISSIONAL

Licenciada em Enfermagem e em Filosofia, mestre em História Cultural e Política e em Ciências de Enfermagem, pós-graduada em Bioética, doutorada em Filosofia, com agregação em Filosofia, especialidade Ética, e em Enfermagem. Professora Coordenadora com agregação, Departamento de Enfermagem, Escola Superior de Saúde, Instituto Politécnico de Setúbal. Atualmente, vicepresidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que representa no Conselho Nacional de Saúde, membro da Comissão de Ética para a Saúde do Centro Hospitalar de Setúbal e do Conselho de Ética da Universidade do Minho. Membro fundador da Sociedade Portuguesa de História da Enfermagem. Em 2019 recebeu a medalha de serviços distintos, grau Ouro, do Ministério da Saúde. Às vezes, parece difícil acreditar que há poucas décadas as coisas eram tão diferentes. Nos idos de 1982, quando comecei a trabalhar no Hospital de Santa Marta, a nossa realidade, que considerávamos na vanguarda, parece hoje algo entre a fábula e o mito. Em coisas simples como as seringas serem de vidro e as agulhas de metal ou em aspetos mais estruturantes, como as ocorrências 88


de Enfermagem escreverem-se em livros de atas e as informações clínicas circularem em papeletas azuis. Escolhi trabalhar nos Hospitais Civis de Lisboa por serem uma grande Escola, ainda que à época não houvesse história das diplomadas da Cruz Vermelha irem para os Hospitais Civis. Uns excertos de narrativa biográfica podem ser interessantes quando há elementos que são partilhados por uma geração — gente que acompanhou os percursos, tanto em termos científicos como técnicos, políticos e sociais. Ainda assim, é difícil escolher episódios — como me disse Costa Macedo, quando lhe perguntei o que tinha sido mais significativo na sua vida, «no seu tempo, cada coisa era muito importante.» A experiência na prestação de cuidados e na chefia de serviços potenciaram uma forma de olhar para a profissão e para a saúde de maneira integradora e eclética, sempre na valorização da formação, da investigação e do diálogo interprofissional, que se constituem suportes fundamentais para o desenvolvimento. Bem dizia Dinis de Souza, que «é preciso encontrar equilíbrios na pluralidade.» As trajetórias de cada um de nós são co-construídas com outros, com debates e sinergias. Se há uma responsabilidade e um papel individual, não menos relevante é a reflexão conjunta e o desenvolvimento partilhado. Ter estado envolvida no processo de implementação da avaliação do desempenho dos enfermeiros, na década de 90, no então Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional do DRH do Ministério da Saúde, foi uma das experiências desafiadoras do meu passado. Com enorme regozijo, acompanhei os tempos de debate pré-criação da Ordem dos Enfermeiros, a passagem para o Ensino Superior, o desenvolvimento do ensino, o reforço da investigação clínica. Lembro-me de ser especialista, em Santa Marta, e de desenvolvermos programas de formação e trabalho de investigação em serviço, sem ser por requisito do âmbito académico mas porque queríamos fazer melhor e sustentar o que fazíamos. Ou de ser enfermeira chefe e congregar as equipas em torno da organização dos cuidados, de reflexão sobre as práticas clínicas, numa altura em que a formulação de normas e manuais ainda era rara. Os primeiros três mandatos do funcionamento da Ordem foram marcados por atividade constante, desafios de estudo e de deliberação, quer no Conselho 89


Jurisdicional, quer no Conselho de Enfermagem. O mais complexo parecerá ter sido o primeiro mandato, sob o lema «Melhor Enfermagem, Melhor Saúde», pois toda a regulação profissional era nova, tudo estava por fazer, e vivíamos a necessidade de andar com passos bem fundamentados, suportados em evidências e não em antecedentes ou históricos. Mas depois, a compreensão das responsabilidades trouxe outras e mais complexidades, em diversos planos. Eventualmente, esta é uma experiência humana partilhada, de vivermos em planos diferentes, às vezes no mesmo dia. Acumulava o meu quotidiano de enfermeira chefe e, depois, de professora numa Escola pública recém-criada, com as atividades da ética e deontologia, da formação e da regulação profissional, incluindo «tarefas de longa duração», como foram a elaboração dos perfis de competências dos enfermeiros especialistas e o Modelo de Desenvolvimento Profissional. Em representações internacionais, reuniões e grupos de trabalho, do International Council of Nurses ou da European Federation of Nurses Associations, percebi melhor o valor do que estavamos a fazer em Portugal e sentia muita satisfação, um contentamento fundamentado, pelo nosso desenvolvimento. Não tenho, hoje, a menor dúvida sobre a importância das políticas de saúde, da investigação, do serviço público e da natureza profundamente ética do SNS — e considero que são ganhos dos percursos. Mesmo que seja preciso rever estratégias e dialogar horas a fio, persistências que aprendi com Augusta Sousa e Lubélia Melo. Porque às vezes é preciso encontrar ou fazer plataformas de consenso para partir delas em construção. Um dos eixos estruturantes do meu percurso é o da investigação como instrumento de suporte, que aprendi na especialidade e se fortaleceu no doutoramento e na vida docente. Os especialistas de saúde mental sabem que, em muitas situações, o estigma da área se lhes aplica e é quase anti-natura que se desvalorize o que tanto se precisa. O trabalho do PReSaMe, uma investigação de base-comunitária, visando identificação das respostas em saúde mental nas plataformas supraconcelhias de Setúbal e do Alentejo Litoral, entre 2014 e 2017, é bem o exemplo de fazer a confluência entre o ensino, a investigação e a área social. Porque a Saúde é necessariamente intersetorial e interdisciplinar, e precisamos de encontrar caminhos que agreguem e majorem os nossos potenciais. 90


Manuela Peleteiro MEDICINA GERAL E FAMILIAR E DIREÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE

...o que é que NÓS fizemos... no Serviço Nacional de Saúde? A vantagem que a nossa geração reconhece na evolução do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao longo de 40 Anos, justifica-se pela memória da diferença. Os Retalhos da Vida de Um Médico, de Fernando Namora, estavam ainda bem perto da realidade que se vivia fora dos centros urbanos. A Saúde Pública foi a pioneira do salto qualitativo que se iniciou em 1971 com os primeiros Centros de Saúde (Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio), em que a Vacinação e os programas de vigilância de Saúde Infantil, da Grávida e o Planeamento Familiar, eram as prioridades e as bases de todo um corajoso plano de saúde nacional. Esses Centros de Saúde eram «habitados» por Enfermeiras com grande determinação e seguras da importância da sua actividade. Os Médicos que éramos nós em fase do Internato Geral, mais parecíamos «caloiros» quando chegávamos para o estágio de Saúde Pública. Éramos imediatamente «postos em sentido»!! 91


Não havia tempo para intervalos... e que surpresa: ao contrário do ambiente hospitalar, donde vínhamos, éramos nós que estávamos na 1.a linha da decisão. Havia uma agenda a cumprir e consultas com horas marcadas. Um «banho» de realidade e responsabilidade: grávidas, crianças, diabéticos... Nos dias da Saúde Escolar, conduziam-nos num Volkswagem de cor beige, a caminho das campanhas de vacinação e da educação para a saúde. Ficámos logo a perceber que para além das paredes do Hospital, onde e até então, tínhamos estado protegidos e num papel passivo, havia todo um outro mundo: enorme, apaixonante e exigente, dos Cuidados de Saúde. A promoção e a prevenção eram as atraentes e motivadoras novidades. Os cuidados curativos pertenciam aos Serviços Médico-Sociais onde se praticava Clínica Médica e Especialidades e onde as consultas eram «acompanhadas» (no gabinete) por administrativos que preenchiam os cabeçalhos das receitas. Hoje é difícil de imaginar, não é!? Com o Serviço Médico à Periferia crescemos e percebemos o que a Comunidade esperava de nós e por nós... uma fantástica (e ao mesmo tempo assustadora) oportunidade de intervir de imediato, e de ainda apreciar os efeitos. Estava tudo por fazer... A Conferência de Alma-Ata, em 1978 Com a criação do SNS e no início dos anos 80, fomos mais uma vez colocados em todo o país, e aí sim, sabíamos que se estruturava uma Carreira que viria a ser a moldura da nossa actividade. O convite para formar a Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral (recebemos uma carta ainda em stencil...) foi o desafio aglutinador que se contrapunha ao isolamento que receávamos. A APMCG (mais tarde APMGF/Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar) foi, desde o início, a estrutura essencial que, para além das disposições legais, foi criando o ambiente de identidade e de qualidade que queríamos atingir. Os Institutos de Clínica Geral trouxeram-nos a formação pós-graduada e os textos de apoio enquadraram o que ainda hoje é a organização de cuidados. Os Encontros anuais promovidos pela Associação eram galvanizadores e envolviam os Médicos de Família colocados em todas e tão diferentes regiões. 92


A percepção da nossa relevância no panorama da responsabilidade dum SNS e a certeza de que a ninguém, senão aos Cuidados de Saúde Primários, cabe a missão de cuidar, de transmitir as determinantes para a saúde e ainda de estar atentos aos sinais precoces de doença, dá-nos a garantia de nos sabermos essenciais!! As ideias foram surgindo (os timoneiros Vitor Ramos, Luis Pisco, António Branco, António Rodrigues, José Luis Biscaia, Eduardo Mendes, entre tantos outros) e era necessário pô-las em prática!! Os documentos (O Livro Azul, 1991) foram marcos num tempo em que tudo era descoberta e vontade. A Equipa de Saúde iniciava os seus passos. Os Projetos Alfa, os RRE (...), as Unidades de Saúde Familiares, os Agrupamentos de Centros de Saúde, foram-se sucedendo e implementando. ...o que é que NÓS fizemos... no Serviço Nacional de Saúde? Com a certeza de que só dependia de nós a satisfação dos objetivos, pusemos «mãos à obra» e entre momentos mais heróicos e outros menos conseguidos, entre receios e algum arrojo, está à vista o que alcançámos até hoje... e que vai sempre... ser melhor. A exigência dos Cidadãos e a dos Profissionais, tem sido um imprescindível (e criativo) guião. Os normativos da Direção-Geral de Saúde, as estratégias regionais e a contratualização não nos deixam distrair. O privilégio de olharmos para esta construção que é a que nós conseguimos, supera sempre alguma frustração de não termos conseguido melhor. Os Portugueses e o Serviço Nacional de Saúde bem o merecem!!

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Margarida França ADMINISTRAÇÃO E DIREÇÃO HOSPITALAR, GESTÃO DA QUALIDADE E DOCÊNCIA

«The Choluteca River Bridge is in Honduras. It was built for strength in 1938. It proved its strength in 1995, when Hurricane Mitch came to Honduras. It survived: strong, proud, as designed. Just one problem, though. The river moved. The Choluteca Bridge is still strong, but it’s useless... The bridge to the future is not the bridge of the past.» Donald M. Berwick, Promising Care, 2014

Iniciei funções como Administradora Hospitalar no dia 1 de setembro de 1989 na Maternidade de Júlio Dinis, no Porto, que registava na época um número de partos que não fazia antever a baixa de natalidade que vivemos hoje. Fui tendo a oportunidade de experienciar funções muito diferenciadas, pela dimensão ou natureza dos hospitais, no continente e na Região Autónoma dos Açores, no INEM e nos serviços centrais do Ministério da Saúde o que foi extraordinariamente enriquecedor não só pela natureza das funções, mas igualmente pelas diferentes perspetivas de abordagem ou «formas de olhar» e «pensar» o SNS. No quadro da primeira década da minha atividade como administradora hospitalar, valorizo particularmente as funções de administra94


dora-delegada do pequeno hospital de São Paio de Oleiros (posterior Hospital de São Sebastião, Santa Maria da Feira) que me alargou os horizontes e, numa pequena dimensão, me obrigou a tomar decisões em todas as áreas da administração e a pensar o Hospital no seu todo. Permitiu-me, pois, tomar consciência dos diversos níveis de decisão do sistema de saúde e dos cenários em que se desenrola a administração hospitalar. Mas do conjunto do meu percurso profissional relembro, sobretudo, momentos desafiantes como a participação no Conselho Diretivo do INEM, entidade que pela missão e cultura interna gera em todos quantos a vivenciam uma profunda ligação emocional e sentimento de criação de valor. O desafio foi enorme na época (2006-2008), dado que acompanhou a reforma dos serviços de urgência e o fecho de algumas maternidades, o que gerou um crescimento de mais do dobro dos meios humanos e dos meios de socorro, bem como da criação das ambulâncias SIV (Suporte Imediato de Vida). Mas verdadeiramente marcante, em termos pessoais e profissionais, foi a experiência no Instituto da Qualidade em Saúde. O IQS foi criado pela Portaria n.o 288/99, de 27 de abril, como serviço do Ministério da Saúde dotado de autonomia científica, técnica e administrativa, na dependência do Diretor-Geral da Saúde, exercendo a sua atividade a nível nacional com delegações no Porto e Coimbra nas instalações transitadas dos extintos Institutos de Clínica Geral. Foi-lhe atribuída a Missão de proceder à «...definição e desenvolvimento de normas, estratégias e procedimentos que visem a melhoria contínua da qualidade na prestação dos cuidados de saúde no quadro da política de saúde superiormente estabelecida.» A minha colaboração com o IQS começou com a preparação da parceria com o King’s Fund Health Quality Service que assumia como objetivo a criação de um programa nacional autónomo de monitorização e certificação da qualidade organizacional dos hospitais portugueses a partir do modelo do KFHQS. Posteriormente assumi as funções de diretora-adjunta e em 2005 de Diretora do IQS tendo, por isso, testemunhado a evolução da gestão da qualidade em saúde, mais em particular no SNS, no período de 1999 a 2006. O entusiasmo de participar numa atividade inovadora e a intensa adesão dos profissionais, forneceram uma energia inigualável aos projetos e profissionais do IQS. Aquando dos trabalhos preparatórios do 3.o QCA foi pela primeira vez 95


considerada uma medida de investimento nas competências e capacidade organizacional das unidades de saúde, uma vez identificado um défice organizacional das unidades do SNS. Desta forma, foi possível obter financiamento através do SAÚDE XXI que permitiu ao Ministério da Saúde ser pioneiro no conjunto dos países do sul da Europa, através de programas sistemáticos e integrados nos cuidados primários e nos hospitais, designadamente com a aplicação do MoniQuor e do Programa Nacional de Acreditação de Hospitais, entre outros. A abordagem nacional da Qualidade em Saúde foi apresentada e elogiada em fóruns internacionais. O IQS privilegiava a descentralização, o trabalho em equipa com os profissionais das unidades de saúde nos seus locais de trabalho, dava voz aos profissionais através da publicação dos seus projetos na revista Qualidade em Saúde, facilitava apoio aos projetos individuais de investigação e promoveu redes de troca de conhecimento e experiências que perduraram informalmente após a sua extinção. Penso que esta forma de atuar terá sido preponderante no sucesso das atividades do IQS e no impacto registado. É, pois, com uma enorme satisfação que verifico hoje, e a título de exemplo, a disseminação da atividade da gestão do risco e dos sistemas de notificação pela quase totalidade das unidades hospitalares, da proliferação dos certificados de acreditação e certificação no SNS, setor social e privado, da criação de gabinetes e serviços da Qualidade, da formação contínua em qualidade e segurança do doente e, no fundo, de uma cultura da Qualidade expressa na linguagem dos profissionais, nos seus níveis de exigência e boas práticas. Gostaria, com este testemunho de enaltecer o salto qualitativo da evolução da Gestão da Qualidade no SNS, bem como de relevar a importância, como profissional da saúde e em particular, como administradora hospitalar, da necessidade de manter uma mente «inquieta», contrariando o conforto do «nosso espaço», da necessidade de criar pontes entre organizações e participar em redes de conhecimento, da formação contínua e da inovação na convicção de que na saúde será sempre possível fazer mais e melhor.

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Maria da Luz Pereira MEDICINA GERAL E FAMILIAR

Pediram-me para contar uma história. A minha história é a história de todos aqueles com quem tive o privilégio de me cruzar ao longo deste caminho e que se aventuraram comigo na Mudança. Desde muito cedo que a proximidade e a continuidade do cuidado foram aspetos que me seduziram na prática da medicina geral e familiar e dei os primeiros passos na comunidade de Fernão Ferro, em 1987, local onde ainda faço o meu trabalho e onde ao longo dos anos fui privando com pessoas da saúde e da comunidade que acreditaram e permitiram desenvolver projetos inovadores, verdadeiros tubos de ensaio. A coordenação da extensão de saúde de Fernão Ferro entre 1992 e 2006 permitiu um conhecimento profundo da comunidade e levou à criação de inúmeros projetos em parceria com as instituições locais e com a autarquia, que culminaram com a atribuição de menção honrosa para o trabalho «Conhecer melhor para agir melhor», no encontro Healthier Communities Award, Health Care Forum (EUA, 1994). Em 1996 a equipa de Fernão Ferro estava já a liderar um novo desafio, o «Projeto Alfa, iniciativas locais» — FFmais — Medicina, Acesso, Inovação, Saúde — verdadeiro desafio para a Mudança. 97


O desafio prosseguiu: o projeto RRE — Regime Remuneratório Experimental surgiu mas a forte coesão da equipa afastou-nos desse caminho, dado que a remuneração experimental se aplicava apenas aos médicos e não aos restantes membros da equipa; apesar do desinteresse da tutela, a equipa construiu um novo modelo de intervenção que traduzia a importância equitativa de todos os elementos da equipa para o sucesso do seu desempenho, nomeadamente na qualidade do cuidado prestado e consequentemente nos resultados obtidos (Liderança do Projeto FFmais — Qualidade 2004). Foi então possível partilhar a experiência FFmais como membro do Grupo Técnico para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, em 2005. Foram definidas linhas estratégicas que permitiriam a implementação do novo modelo organizacional em agrupamentos de centros de saúde (ACeS), responsáveis por diferentes unidades de saúde com recursos assistenciais complementares. A reforma dos cuidados de saúde primários aconteceu e o projeto FFmais transformou-se na primeira unidade de saúde familiar — USF FFmais —, que coordenei de 2006 a 2009 durante todo o processo de candidatura para modelo A e posteriormente para modelo B. Na realidade, a Mudança tardou para as unidades do ACeS que não as unidades de saúde familiar e foi necessário reinventar estratégias para que a Mudança prosseguisse. Tive assim a oportunidade e o privilégio de trabalhar no Grupo de Coordenação Estratégica para os Cuidados de Saúde Primários entre 2010 e 2011, e no Grupo Técnico para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários entre 2011 e 2012. Foram anos de grande empenho e dedicação, embora de «pequenos passos». Foram também anos de aprendizagem, de admiração e respeito por estes lutadores tranquilos mas persistentes. Em 2010 aceitei o convite para presidente do conselho clínico do ACeS Seixal-Sesimbra, ficando a trabalhar em tempo parcial na USF FFmais e posteriormente, apesar da reorganização dos ACeS, continuei como presidente do concelho clínico e saúde do ACeS Almada-Seixal até 2018. Aprendi com os melhores a visão e a reponsabilidade na gestão e organização dos cuidados de saúde, na resolução de conflitos e aprendi com a dedicação e excelência científica e humana da grande maioria dos profissionais de saúde do «meu» AceS. Durante este último período, presidi à Comissão de Qualidade e Segurança, implementando uma nova área na organização dos cuidados de saúde primá98


rios, reforçando a importância do serviço de Gestão do Risco, unidade funcional inovadora, já com muito trabalho desenvolvido no âmbito da segurança dos doentes e dos profissionais. Estive também a trabalhar na unidade coordenadora funcional Almada-Seixal, na vertente da saúde da Mulher, de 2010 e até esta data. Esta experiência foi muito estimuladora, com grande partilha de ideias, e concretização de projetos com uma verdadeira integração de cuidados, desde a continuidade do circuito da Mulher com necessidade de cuidados até à uniformização de procedimentos e à implementação de projetos inovadores. Foi também sempre desafiante e enriquecedor para mim poder partilhar conhecimento e experiência e, nesse sentido, estive sempre disponível para estar com os mais novos, quer como orientadora de formação do Internato Médico de Medicina Geral e Familiar, quer como tutora de outros níveis e áreas de formação, nomeadamente com a participação regular no Curso de Especialização em Saúde Pública, na unidade curricular «Princípios e Práticas de Promoção da Saúde — os cuidados de saúde primários como mediadores», na Escola Nacional de Saúde Pública, desde 2008. Foi também muito interessante a minha passagem pelas organizações profissionais, com especial destaque para a direção da Delegação Distrital da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral de 2002 a 2004 e para a Ordem dos Médicos, onde participei como membro do Conselho Consultivo da Distrital de Setúbal nos triénios 2005-2007 e 2008-2010. Tem sido um percurso inacreditável! Por vezes apercebo-me de que toquei muitas pessoas, talvez mais pelo desassossego, mas recebi com certeza muito mais do que dei. Em 2016 a USF FFmais festejou 20 anos de trabalho em equipa e construíu uma Memória — em palavras ditas e escritas, e em imagens, que estão registadas e expostas, para que a Memória não se apague. E agora estou de volta, com dedicação exclusiva ao meu trabalho como médica de família na minha comunidade berço. Continuo desassossegada. Porque a comunidade de Fernão Ferro não é o que era: a sociedade precipita-se no dia a dia, a identidade local perde-se na invasão multicultural, a política perdeu a Memória... 99


Estes aspetos têm particular importância nos cuidados de saúde primários porque os princípios da proximidade, da contiguidade e continuidade dos cuidados implicam respostas locais, necessariamente diversificadas pelas suas características políticas, sociais e culturais. É preciso não bloquear esta diversidade de respostas, e não penalizar a inovação. Para o Serviço Nacional de Saúde é este o atual desafio e a Mudança é urgente — estaremos a responder às necessidades sentidas pelos cidadãos? Como médicos de família até podemos ser os pilares da construção desta Mudança, mas a obra edificada será defeituosa, com função limitada, se estivermos sozinhos. A proximidade e a continuidade do cuidado só poderá ser assegurada com a valorização de todos os profissionais de saúde. Eu diria que, em vez de falarmos exclusivamente da atribuição de um médico de família a todos os portugueses, deveríamos falar da disponibilização de cuidados de saúde primários a todos os portugueses que o desejarem. A Medicina Geral e Familiar e os médicos de família podem e devem ser os promotores desta mudança de pensamento, abrindo espaços de cooperação inovadores, co-experimentando e co-avaliando. Certamente que nunca perderemos ou esgotaremos as nossas competências e saberes, pelo contrário, ganharemos espaços para aprender, ensinar, investigar e abordar a complexidade do nosso trabalho com mais segurança e satisfação. «O desastre maior que pode ocorrer num projeto político-social-cultural é não desenvolver uma memória própria», Manuel Valente e Vítor Ramos, em 2003, na introdução «Da Memória». Obrigada pelo privilégio de fazer parte desta Memória.

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Maria de Belém Roseira ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, GOVERNAÇÃO NA SAÚDE E AÇÃO LEGISLATIVA

A minha nomeação como Ministra da Saúde em 1995 constituiu, de certa forma, o corolário de uma vida profissional de, ao tempo, mais de 20 anos de contacto com a formulação de políticas públicas nas áreas da Segurança Social, do Trabalho e da Saúde e de desempenho de funções de administração em várias instituições da área o que me permitira cruzar a conceptualização com a sua aplicação à realidade. Essa época de contacto mais direto com instituições prestadoras de cuidados e pessoas com vivências muito dolorosas foi um período de aprendizagem excecional e uma experiência muito enriquecedora que me permitiu encontrar a minha escala de prioridades relativamente a problemas e me permitiu ficar a conhecer, na sua complexidade e dureza o trabalho de muitos profissionais de saúde que só posso classificar como seres humanos de excelência! Embora nunca tivesse sido governante, a chefia de gabinete do Ministro Maldonado Gonelha aproximou-se muito de uma experiência semelhante. Na verdade, não existindo nenhum Secretário de Estado na equipa governativa — foi o tempo do Bloco Central a par da intervenção financeira do FMI — a complexidade e a multiplicidade de problemas a enfrentar e a escassez de 101


recursos para lhes fazer face implicavam que a chefe de gabinete tinha que representar frequentemente o Ministro, quer na gestão direta de dossiers de grande complexidade e responsabilidade, quer na representação externa. Esta circunstância proporcionou uma oportunidade de aprendizagem ímpar. Trabalhou-se muito e esforçadamente. Recorde-se que Portugal ainda não tinha aderido à então CEE, que o valor para investimentos era próximo de zero, as necessidades para satisfazer imensas, as reivindicações sindicais muito aguerridas e, as incertezas enormes. Surgiu, então, a epidemia da SIDA e com ela a noção de que apesar dos progressos da ciência que já se sentiam como promissores, a incerteza, a insegurança, o risco, os flagelos continuariam a ser uma constante que obrigavam a uma sofisticação de instrumentos para os enfrentar que ainda ninguém tinha conseguido criar. Apesar disso, foram feitos grandes progressos em conjunto com uma equipa de altos dirigentes do Ministério de uma competência, dedicação, educação e lealdade extraordinárias. E, porque estamos a celebrar Mulheres, recordo com saudade Maria dos Prazeres Beleza, Secretária-Geral do Ministério e a Professora Laura Ayres no Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge. A minha nomeação como Ministra da Saúde não foi desejada por mim. Não correspondeu a um projeto de vida. Mas a partir do momento em que as circunstâncias levaram a que tal acontecesse foi uma tarefa de corpo inteiro e a tempo inteiro. Constituía a oportunidade para levar a cabo um conjunto de transformações imprescindíveis para uma correta governação da Saúde e para isso precisava de uma equipa competente, esforçada e determinada. Sabia que a tarefa era quase impossível, pois a área da Saúde não era prioritária para efeitos de afetação de recursos financeiros. As prioridades estratégicas do Governo eram a Educação e o combate à pobreza. Mas como a minha vocação no espaço público não era o protagonismo pessoal mas antes o investimento no desenvolvimento do país, eu sabia que essas prioridades, a prazo — que não o prazo de um governo — se traduziriam em melhores indicadores de saúde, em ganhos de saúde para as pessoas. Por outro lado, também conhecia, por experiência própria, a enorme resistência à mudança, sobretudo numa máquina tão complexa e tão cheia de idiossincrasias como aquela que tinha a responsabilidade de governar. 102


Assim, a estratégia a seguir teria que ser a de intervenções disruptivas cirúrgicas e controladas que suscitassem simultaneamente a confiança e a emulação para que pudessem ser replicadas não por imposição de cima para baixo mas antes de baixo para cima. A constituição do gabinete não obedeceu a critérios de filiação partidária mas antes a critérios de competência e de idoneidade. Nem conhecia algumas das pessoas que convidei para trabalharem comigo depois de me ter assegurado que o seu perfil correspondia ao pretendido. Apliquei à constituição do gabinete o que tinha aprendido nos diferentes períodos em que também integrei alguns e afirmo com segurança e convicção que tive um gabinete extraordinário. Sinto uma enorme gratidão para com todas aquelas pessoas fantásticas e de uma dedicação e sensibilidade acima do expectável que conseguiram relacionar-se com todos os que as procuravam com competência, dedicação, entusiasmo e delicadeza. Seguiu-se a identificação de pessoas para lugares chave e que tivessem o know-how e a capacidade para, em equipa, trabalharem no sentido da transformação tranquila mas profunda que pretendia levar a cabo. Por felizes circunstâncias da vida, o Professor Sakellarides que dirigia o Departamento que na Organização Mundial de Saúde Europa estava a trabalhar na reforma dos Sistemas de Saúde aceitou o desafio de regressar a Portugal para modernizar o SNS e desenvolver instrumentos que o operacionalizassem. Tendo como foco a natureza dos projetos a empreender, ajustei a orgânica e a equipe dirigente do Ministério sem criar nenhuma nova estrutura e descentralizando a sede de uma das subdireções-gerais da Direção-Geral da Saúde para Coimbra. Todos se empenharam com um enorme entusiasmo apesar dos escolhos que a governação pública em Portugal sempre acarreta. E assim se iniciou um projeto de modernização da administração pública da saúde que, na minha concepção, poderia ser o motor da reforma da administração pública em geral porque a saúde encerra em si todos os ingredientes para o conseguir: está muito próxima das pessoas, é valorizada por elas, serve-as em situação muito especial, designadamente quando estão em sofrimento, o que obriga a respostas mais céleres e eficazes, tem instrumentos já muito sofisticados de medição e de avaliação do que realiza e tem potencialidades 103


extraordinárias em termos de desenvolvimento humano e económico que são frequentemente desaproveitadas. E assim surgiu o planeamento estratégico*, que veio para ficar, embora com insuficientes exercícios de avaliação e do qual decorreram, coerentemente, todas as transformações: a contratualização dos orçamentos em função de objetivos a atingir, abandonando progressivamente o critério do histórico que não estimula nem premeia; experimentaram-se novos modelos organizativos nos cuidados de saúde primários acompanhados de um projeto remuneratório experimental associado ao desempenho — os projetos Alfa — que deram origem às Unidades de Saúde Familiares; os Centros de Responsabilidade Integrados, nos hospitais, com critérios semelhantes; os sistemas locais de saúde com uma forte intervenção de saúde pública; as unidades locais de saúde com integração de cuidados; a autonomia de gestão, em termos hospitalares e de grupos de centros de saúde; a criação do Instituto da Qualidade; um programa nacional de humanização do SNS; a articulação com a Segurança Social, entre outras matérias, na avaliação do índice de dependência dos idosos para identificação de responsabilidades partilhadas nos cuidados continuados e as redes sociais locais para combater as determinantes sociais causadoras de doença; fez-se um forte investimento na modernização das carreiras dos profissionais com importante componente de responsabilização; imperou a transparência na relação com a comunicação social; reforçou-se a saúde pública designadamente através das Escolas Promotoras de saúde; incentivou-se a investigação científica. Um sem fim de alterações que, quando objeto de avaliações independentes, foram sempre premiadas ou distinguidas. Para além disso, investiu-se de forma expressiva na cooperação com os países de expressão portuguesa numa antecipação estratégica de objetivos de desenvolvimento sustentável. Infelizmente a falta de continuidade das políticas representa um prejuízo enorme para o país. Um dia alguém se encarregará de fazer essa avaliação. * Prática que eu não tinha conseguido implementar no IPO, ao contrário da Misericórdia de Lisboa, porque à época falar em instrumentos de gestão a médicos era quase um sacrilégio. Estamos hoje já muito longe dessa conceção.

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Basta pensar como poderíamos estar hoje em termos de sensibilização para a importância de comportamentos saudáveis se se tivesse mantido e até alargado o número de escolas promotoras de saúde — em 1999 mais de um milhar — em vez de se ter acabado com o projeto logo no governo seguinte. Perderam-se 20 anos de formação e sensibilização dos jovens! O que é um facto é que as reformas empreendidas foram tão bem avaliadas pela OMS que em 1999 fui eleita por unanimidade Presidente da Assembleia Geral da mesma entidade, o que muito me honrou e distinguiu pois foi uma eleição pessoal e não do país. Evidentemente que fiz questão de a pôr a render ao serviço de Portugal.

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Maria do Carmo Fonseca MEDICINA GENÉTICA, DOCÊNCIA E INVESTIGAÇÃO FUNDAMENTAL

Fiz o ensino secundário em Almada e foi nas aulas de Ciências da Natureza que despertou o meu fascínio pela Biologia. Terminado o liceu, em pleno período pós-revolucionário, prestei serviço cívico no Hospital Egas Moniz e preparei-me para o exame de acesso à Universidade. Relativamente à escolha do curso, e após alguma hesitação, acabei por ceder ao argumento do meu pai: a licenciatura em Medicina permite uma grande diversidade de opções profissionais. Ingressei na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1977 e logo no primeiro ano apaixonei-me pela Biologia Celular. Com forte incentivo do Professor David-Ferreira, comecei a participar em projetos de investigação no laboratório. Durante os anos clínicos participei voluntariamente nas Urgências e dei assistência no bloco operatório, o que me ajudou a concluir que a minha vocação não era a clínica mas sim a investigação laboratorial. O meu Doutoramento foi desenvolvido sob supervisão do Professor David-Ferreira no laboratório por ele dirigido no Instituto Gulbenkian de Ciência. Terminado o Doutoramento, consegui uma bolsa de pós-doutoramento para trabalhar no Laboratório Europeu de Biologia Molecular em 106


Heidelberg, na Alemanha. Aí vivi, pela primeira vez, a fantástica sensação de fazer parte do maravilhoso mundo da ciência global, de trabalhar e confrontar ideias com cientistas de várias nacionalidades e com diferentes especializações. Fruto do acesso a instrumentos e metodologias inovadoras, tive a oportunidade de descobrir uma nova estrutura dentro do núcleo celular, que veio a atrair muita atenção da comunidade internacional acabando mesmo por gerar algumas controvérsias e rivalidades. Voltei em 1992 porque me sentia pronta para liderar o meu próprio grupo de investigação e porque o queria fazer em Portugal. Comecei a dar aulas práticas de Biologia Celular na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, primeiro como Monitora e depois como Assistente. Em 1993 passei a ser responsável por toda a organização da disciplina de Biologia Molecular da Célula. Em 1997 fiz a «Agregação» e em 1998 fui aprovada no concurso para Professora Catedrática, cargo que sempre desempenhei em dedicação exclusiva. Fruto da minha estreita colaboração com a Professora Leonor Parreira, o conteúdo programático e metodologia de ensino da disciplina de Biologia Molecular da Célula foram progressivamente evoluindo no sentido de uma maior aproximação aos problemas médicos. Em 2007 participei ativamente no processo de revisão curricular dos anos pré-clínicos e, em colaboração com o Professor Luís Costa, introduzimos a nova área disciplinar de Oncobiologia lecionada no 3.o ano. No final da década de 1990, o Ministro Mariano Gago lançou um programa de financiamento plurianual destinado a centros de investigação de excelência denominados Laboratórios Associados. Fui convidada, por um grupo de Professores da Faculdade, para coordenar o processo de candidatura e negociação com a Fundação para a Ciência e Tecnologia que culminou com a criação, no final de 2001, de um Laboratório Associado afiliado à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que se viria a designar Instituto de Medicina Molecular (iMM). Assumi a Direção executiva do Instituto, sendo Presidente o Professor João Lobo Antunes. Ao longo de 15 anos o iMM expandiu o número de investigadores de cerca de 60 para mais de 600 e tornou-se um centro de referência na investigação biomédica em Portugal, com uma crescente projeção internacional. O iMM tem funcionado como um polo atrator de jovens mentes brilhantes oriundas de todo o mundo, promovendo o acesso 107


à investigação científica das novas gerações de médicos em formação no Hospital Universitário de Santa Maria. Em 2014, após a jubilação do Professor Lobo Antunes, assumi o cargo de Presidente, passando a Direção para a Professora Maria Mota. Como Presidente do iMM, passei a integrar o Conselho Diretivo do Centro Académico de Medicina de Lisboa e o Conselho Geral da Universidade de Lisboa. Em 2009 fui nomeada Diretora, em Portugal, do Programa Harvard Medical School (HMS) — Portugal, uma parceria internacional financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e cujo órgão de governação, em Portugal, era constituído pelos Diretores de todas as Escolas Médicas Portuguesas e todos os Laboratórios Associados da área da biomedicina. O Programa promoveu a colaboração entre equipas de investigadores em Portugal e em Harvard e treinou dezenas de jovens médicos Portugueses na prática da investigação clínica. Publiquei o meu primeiro trabalho de investigação original em 1981, era ainda estudante na Faculdade. Hoje sou autora de aproximadamente 150 publicações internacionais, incluindo artigos originais, artigos de revisão e capítulos de livros, que perfazem mais de 10 mil citações. A investigação desenvolvida pela minha equipa tem contribuído para um melhor conhecimento de como funcionam os genes humanos. O nosso trabalho foca-se nas moléculas de RNA e uma das nossas mais recentes descobertas revelou um tipo de RNA que, ao ser manipulado, reverte o envelhecimento celular.

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Maria do Céu Machado MEDICINA DE PEDIATRIA, ALTA DIREÇÃO DA SAÚDE E DOCÊNCIA

Professora Catedrática jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa (FMUL), Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Vice-Presidente da Academia Portuguesa de Medicina e da European Federation of the Academies of Medicine. Foi Presidente do INFARMED (2017-19), Vice-Presidente do Conselho Nacional de Saúde (2016-17), Alta Comissária para a Saúde (2006-11), Diretora Clínica do CHLN (2013-14) e Hospital Fernando Fonseca (HFF 2005-06), Diretora dos Departamentos de Pediatria do Hospital Santa Maria (2011-17) e HFF (1996-2006). Foi Presidente: Conselho Geral da Universidade de Évora (2010-12), Comissão de Saúde da Criança e Adolescente (2004-09), Conselho Nacional de Oncologia (2009-11), Colégio de Pediatria (1994-95) e Vice-presidente do Conselho Nacional de Luta contra a SIDA (2007-11). Licenciatura em Medicina (FMUL 1972), Doutoramento em Medicina (Faculdade de Ciências Médicas 1997), Agregação em Pediatria (FMUL 2013). Especialidade Pediatria (1983), Subespecialidade Neonatologia (2005), Competência em Gestão (2003) Oito Bolsas de Investigação, dois Prémios Bial de Medicina Clínica. Grande Oficial da Ordem de Mérito (2010), Medalha de Ouro Ministério Saúde (2012), 109


Prémio Carreira (Sociedade Portuguesa Pediatria 2018) e Medalha de Mérito (Ordem dos Médicos 2019). A minha vida profissional começou antes do 25 de Abril e acompanhou a evolução da medicina e da saúde em Portugal. Se eu quiser definir 40 anos num parágrafo direi que a saúde dos portugueses melhorou de forma prodigiosa mais do que qualquer outro país europeu, como o demonstram todos os indicadores. Para isso, foi essencial a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que continua a ser o garante da equidade no acesso aos cuidados. No entanto, o Sistema de Saúde português que integra serviços públicos, privados e sociais é essencial na resposta que o SNS não consegue cumprir integralmente. Entrei no estágio de prática clínica (hoje internato geral) em 1973, e escolhi os Hospitais Civis de Lisboa (hoje CHLC) apesar de ter frequentado a Faculdade de Medicina e o Hospital Santa Maria. No Hospital dos Capuchos, onde fiz Medicina e Cirurgia, numa enorme e única sala, a enfermaria tinha 60 camas para homens e outro tanto para mulheres, o director sentava-se na beira da cama com mais 30 médicos para discutir a história clínica. A urgência do Hospital de S. José era caótica, mas sentíamo-nos muito úteis. Foi Mateus Marques, figura inspiradora da Pediatria que me influenciou na escolha da especialidade após ter efetuado estágio no Pavilhão D do Hospital Curry Cabral. A humidade escorria nas paredes, os cobertores eram castanhos e ásperos e, na epidemia de cólera, internávamos famílias inteiras e deitávamos os bebés nas gavetas da secretária que colocávamos no chão pois não havia mais berços. Os pais não estavam autorizados a estar junto do filho durante o internamento e, se tinha uma doença infecciosa como uma meningite, recebiam informação clínica duas vezes por dia e não o viam durante 10 dias. No entanto, não sentíamos a doença e a morte, como hoje. Os recursos não eram muitos, a tecnologia escassa, mas os médicos diagnosticavam a doença através da história clínica tal qual história policial à descoberta de um criminoso. Surge então o 25 de Abril de 1974 e novas políticas de saúde, implementadas nos cinco a 10 anos seguintes. Em 1979, é criado o SNS e em 1983, os Cuidados Primários para o que penso que o nosso Serviço Médico à Periferia constituiu a base da Rede de Centros de Saúde. 110


Nosso porque éramos um bando de médicos recém-licenciados, entusiastas da revolução e desejosos de cuidar de pessoas. Propusemos e lutámos pela criação do Serviço Médico à Periferia pela percepção de que havia populações sem médico e, sem acesso aos cuidados mais básicos. ...Tire a camisa para eu auscultar, disse eu a um homem que se queixava de tosse e febre, no gabinete da Casa do Povo. Ó menina, respondeu aterrorizado, eu tomo um banho e volto amanhã, com uma camisa lavada (Coruche, 1975). Vivi depois nos Hospitais D. Estefânia, Alfredo da Costa, Amadora e Santa Maria, uma medicina com enormes progressos, a internacionalização dos cuidados e a brutal (sim brutal) evolução tecnológica e do conhecimento médico com uma subespecialização que, apesar da pulverização de cuidados, permite saber e experiência profundos em áreas restritas. Sob o ponto de vista de gestão, matéria pela qual me interessei precocemente (1989), assisti aos hospitais SA e depois EPE e de certa forma à empresarialização dos hospitais públicos que tinha vivido no Hospital Fernando Fonseca, público mas com a gestão privada do grupo José de Mello Saúde. Muito mais tarde e já como Alta Comissária da Saúde apercebi-me da importância do planeamento e do Plano Nacional de Saúde. É apenas em 2006 que é criado o Grupo de Missão dos Cuidados Continuados. Quando outros países já tinham consciencializado que era necessário e imperativo tirar as pessoas dos hospitais, Portugal tinha zero camas mas em poucos anos conseguiram-se 70% das necessidades (o que ainda é insuficiente). Melhorámos os indicadores e conseguimos mais equidade. Margaret Chan, ex-presidente da OMS, no seu discurso de abertura da Assembleia Mundial em Genebra em 2010, lembrou que os indicadores que os países apresentam são médias nacionais e que não tem qualquer significado expressivo se não forem colmatadas assimetrias: if you miss the poor, you miss the point. Apontam-nos progressos extraordinários considerando o atraso em que estávamos e, por isso, devemos continuar com o mesmo ritmo nos próximos 40 anos: planeamento de recursos humanos, estruturas e equipamento, autonomia de gestão e responsabilização das administrações das instituições, relacionamento e articulação exemplar com privados, auditorias de qualidade. O SNS foi criado, cresceu e desenvolveu-se. É tempo de evoluir para cuidados equitativos de excelência. 111


Maria Eugénia Oliveira ENFERMAGEM DE SAÚDE INFANTIL E PEDIÁTRICA E GESTÃO DE SERVIÇOS

Conclui a minha formação inicial de enfermagem no mês e ano em que o Homem pousou na Lua. Na cidade onde me formei e desenvolvi toda a minha atividade profissional estava em curso a revolta estudantil, presságio de que algo estaria reservado à minha geração ansiosa de mudança. Era imperioso sacudir o pensamento único e o obscurantismo limitadores do desenvolvimento das nossas potencialidades. O foco do ensino de enfermagem incidia fundamentalmente nas áreas de dependência do trabalho médico (administração de medicamentos, execução de pensos, preparação dos materiais para a realização de exames especiais para além das tarefas ligadas à higiene e conforto do doente). O arsenal terapêutico era reduzido e nos serviços de internamento de Medicina sentia se o aroma das papas de linhaça, mezinha muito utilizada no tratamento de algumas doenças pulmonares. A aplicação de ventosas era uma técnica muito treinada nas aulas práticas de enfermagem, pois integrava terapêuticas prescritas com bastante frequência. Estávamos nos anos finais da década de 60, no advento dos antibióticos da investigação farmacêutica e médica. 112


As estruturas de Saúde resultavam da adaptação de edifícios existentes, nada adequadas à prestação de cuidados de saúde com o mínimo de dignidade. A falta de recursos materiais e humanos era gritante, obrigando permanentemente à improvisação. As enfermarias eram verdadeiras camaratas com lotações de 30 a 40 camas o que determinava uma grande falta de privacidade. A pessoa doente era completamente despida da sua identidade ficando reduzida ao número de cama que ocupava. No boletim de admissão estava bem visível o estrato social de onde provinha, sendo assim classificados como pensionistas, porcionistas e os indigentes. Os primeiros tinham direito a um quarto particular que dispunha de condições hoteleiras razoáveis e de médico assistente, pagando naturalmente os honorários estabelecidos, os classificados como porcionistas ficavam os dedos vazios de anéis, pois as parcas economias não eram suficientes para pagar os cuidados recebidos. Os indigentes, designação que ainda hoje é chocante eram de facto os deserdados da vida, pois não dispunham de quaisquer meios. O reconhecimento social do trabalho de enfermagem era muito fraco, sendo uma profissão silenciosa, praticamente invisível, quase como um sacerdócio e muito conotada como auxiliar do médico. Foram necessárias algumas décadas de transformações no ensino de enfermagem, na integração no ensino superior, no acesso à formação especializada em diversas áreas, acesso a mestrados e doutoramentos. No contexto do exercício em unidades hospitalares houve o reconhecimento dos contributos dos enfermeiros gestores dos serviços e na presença nos órgãos de direção e administração. O que marcou a diferença na minha modesta opinião foi a tomada de consciência na assunção e desenvolvimento das atividades autónomas focando a atenção nas necessidades em cuidados de enfermagem tendo como horizonte uma visão holística. O meu percurso profissional pode dividir-se em duas partes. Nos primeiros nove anos adquiri experiências de prestação de cuidados nos adultos em áreas de complexidade — três anos no serviço de reanimação dos Hospitais da Universidade de Coimbra e seis anos em Unidades de Diálise. Há ainda a particularidade de ter sido convidada no ano de 1973 para organizar um novo serviço de hemodiálise no Hospital dos Covões de Coimbra. Cumpri o compromisso assumido, com todo o meu empenho e dedicação. Em consequência de alguns incidentes que se registaram durante o PREC, os quais feriram a 113


minha dignidade profissional, logo que foi possível pedi a minha transferência para o Hospital Pediátrico, instituição que integrava o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) Iniciei assim a segunda parte da minha vida profissional no Hospital Pediátrico no dia 1 de janeiro 1978. Esta Unidade resultou da transferência do serviço de Pediatria dos Hospitais da Universidade para estas novas instalações em junho de 1977, Ano Internacional da Criança. Este equipamento hospitalar tinha como Missão dar resposta às necessidades em cuidados de saúde da Criança, reduzir as taxas mortalidade infantil, absolutamente vergonhosas para uma sociedade democrática em construção. A população Infantil da região Centro dispunha finalmente de instalações próprias, embora resultantes da adaptação do edifício do extinto sanatório feminino. Ter integrado a equipa que ergueu esta obra de assistência infantil que foi determinante na consecução na redução das taxas de mortalidade para indicadores comparados com os países mais desenvolvidos, foi de facto um enorme privilégio do qual me considero muito orgulhosa e agradecida pela oportunidade. A minha colaboração efetiva só se iniciou no ano 1980 motivado pelo facto de ter estado ausente (três meses no Centro Hospitalar do Funchal com o objetivo de iniciar um novo serviço de hemodiálise e um ano letivo para formação na área da gestão dos serviços de enfermagem). Terminada a formação e regressada ao serviço, aguardava-me um enorme desafio que consistia em preparar a abertura da unidade de cuidados intensivos. Em colaboração com o Professor Torrado da Silva, (insigne neonatologista) realizámos um trabalho notável pois esta unidade foi considerada de excelência por toda a comunidade científica. As instalações fisica obedeciam aos requisitos mínimos, mas à luz das atuais exigências não teriam obtido autorização para cuidar de bebés recém-nascidos, bebés com grande prematuridade, crianças vítimas de acidentes rodoviário, infeções graves, intoxicações e outras patologias. A constituição do corpo de enfermagem foi objeto de rigorosa seleção de entre as enfermeiras com experiências diversas em pediatria. Delineámos um curso intensivo que compreendia as diversas especificidades e particularidades e exigências do rigor nos gestos e atitudes inerentes a trabalho em UCI. Foi um trabalho exaustivo, eivado de alguns contratempos que culminou com abertura oficial em fevereiro de 1981. Os primeiros meses exigiram um enorme 114


investimento, sem horários de saída do serviço para que nada falhasse, apoiando os enfermeiros, incutindo-lhes segurança Por ter sido aprovada no concurso para enfermeiros supervisores no CHC, tomei posse do respetivo lugar no ano de 1985, abraçando assim mais uma vez um enorme desafio. Conhecedora das especificidades dos diversos serviços, alarguei a minha dimensão de gestora ao integrar o conselho Diretivo da Instituição, ou seja uma responsabilidade acrescida. A função de supervisão tinha uma conotação negativa no sentido em que as enfermeiras a entendiam como um tipo de policiamento. Consciente desta realidade, usando de estratégias adequadas, foi possível conquistar o apoio das enfermeiras chefes para as mudanças imperiosas e responder de uma forma mais eficiente às necessidades das crianças e famílias. As necessidades em cuidados de enfermagem eram crescentes, motivadas pela diferenciação clínica, pela oferta de tratamentos clínicos inovadores e porque na realidade o Hospital Pediátrico se tinha afirmado como um Hospital de referência a nível Nacional Neste contexto fizemos um trabalho pioneiro de definição de políticas que compreendiam áreas ligadas aos padrões de qualidade de cuidados de enfermagem, dotação de recursos humanos tendo em consideração os indicadores de gestão, a diferenciação técnica dos serviços e as necessidades em horas de cuidados de enfermagem, gestão dos recursos materiais tendo como preocupação a relação custo benefício, o desenvolvimento de políticas de satisfação profissional, política de formação profissional e investigação. O clima de trabalho alcançado, o apoio Conselho Diretivo do Hospital, o envolvimento de parceiros externos como as Escolas Superiores de Enfermagem de Coimbra e de S. João do Porto, o entusiasmo das líderes das equipas, o feedback permanente dos resultados e dos insucessos, criou uma dinâmica de trabalho fantástica. Organizámos diversos congressos de enfermagem como forma de divulgação de todo o trabalho realizado. Não nos permitíamos apresentar comunicações teóricas, mas antes os resultados do trabalho realizado no âmbito dos diversos projetos em curso. É evidente como acontece em qualquer processo que tivemos alguns reveses nesta caminhada, mas rapidamente ultrapassámos contratempos, pois o que nos movia era sempre o Bem-estar da Criança e Família e a vontade inabalável de sermos o Melhor Hospital Pediátrico do país. 115


O Serviço Nacional de Saúde, que agora completa 40 anos de existência, foi a experiência mais bem sucedida da nossa sociedade democrática quando comparada com outros sistemas. O SNS tem sido uma enorme e excelente Escola de formação dos melhores profissionais de saúde e provocou a emergência de novas profissões na saúde, a acumulação de novos saberes e experiência, estimulou a investigação científica e a sua aplicação na prática. O impacto na população traduziu-se em enormes ganhos em saúde, aumento da esperança média de vida desaparecimento de algumas doenças infantis, promoção da saúde pública, prevenção de doenças evitáveis, diagnóstico e tratamento precoces de muitas doenças e muitas outras vertentes da vida da população.

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Maria José Ribas MEDICINA GERAL E FAMILIAR

Sempre quis ser médica. Não me lembro de querer ser outra coisa. E quando me pergunto se quereria mudar, não me vejo a fazer nada mais. Porquê? Porque saio de manhã de casa com um objetivo, com um propósito. E não há nada melhor do que ir trabalhar e atravessar um dia que faz sentido. Trabalhar com a noção de que estamos ao serviço do outro e de que no fim do dia fizemos a diferença para um conjunto de vidas que, talvez, ficaram um pouco melhores, só por nossa causa. E, ainda melhor, divertir-me a trabalhar, gostar do que faço em cada momento. Achar desafiante a consulta seguinte. Perceber que sou capaz e posso ajudar. E que faço parte de algo maior em que acredito, algo que permite prestar cuidados de saúde de enorme qualidade a todos, independentemente da cor da pele, da idade, do sexo, da religião ou do estrato social. Senão, vejamos um exemplo: não é provável que Paulo e Vítor se venham a encontrar na vida. Um é jurista e deputado e outro é sem abrigo e desempregado. Ambos são meus doentes e procuram os meus cuidados regularmente. E é isso que me fascina: poder colocar à disposição de dois cidadãos com experiências de vida diferentes e opções bem opostas, os mesmos cuida117


dos, os mesmos direitos e o mesmo acesso à promoção da saúde, à prevenção da doença e ao tratamento da mesma quando esta surge. E saber que, chegado o momento, ambos terão o mesmo desvelo por parte dos seus cuidadores, mesmo que seja no seu fim de vida. Escolhi ser médica de família porque é a especialidade mais abrangente de todas, porque está bem no centro da comunidade, porque acompanha igualmente novos e velhos, homens e mulheres, doentes e saudáveis, saudáveis e doentes e nos mantém a nós, médicos, a estudar tudo para o resto da nossa carreira. Sim, sou médica do Serviço Nacional de Saúde, um dos melhores serviços de saúde do mundo, não só pela sua qualidade técnica, ou pela qualidade dos seus profissionais, mas também pela transversalidade, solidariedade e universalidade que lhe são subjacentes. E não, não quereria fazer nada mais se tivesse de voltar a escolher.

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Maria Júlia Matos ENFERMAGEM DE SAÚDE PÚBLICA E GESTÃO DE SERVIÇOS

Todo o percurso profissional, como enfermeira, decorreu nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), sempre com a forte convicção de que para garantir a aplicabilidade dos desígnios do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a qualidade da resposta desde nível de cuidados, é determinante. O SNS é público, universal e tendencialmente gratuito, sendo na sua essência uma resposta solidaria do Portugal Democrático, que cumpriu ABRIL nos seus valores fundamentais. Iniciou funções, na área da prestação de cuidados de enfermagem, no Centro de Saúde (CS) de Ourique. O acesso da população à saúde, em meio rural, era bastante deficitário, por falta de meios de transporte e pelos fracos recursos económicos. A oferta dos cuidados teve o valor acrescido do Serviço Médico à Periferia (Centros de Saúde de Primeira Geração). Implementou-se uma resposta de proximidade (por área geográfica), deslocando-se a equipa de saúde às aldeias, em local e horário, acordado com a população. O enfoque dos cuidados foi a dinamização da vacinação e a promoção da vigilância de saúde da mulher e da criança. Foi dado um forte contributo para a melhoria da cobertura vacinal e dos indicadores nas citadas áreas. 119


A assertividade na comunicação foi dominante na prática dos cuidados, dada a baixa escolaridade da população. Recorda um episódio vivenciado com uma jovem recém-casada, a qual tinha instruído para o uso de contracetivo oral e que, passado algum tempo, pretendia mudar de método alegando que todos os dias tomava a pílula à mesma hora e ia dormir, enquanto o marido ia beber para a taberna. Tratava-se de uma comunicação não estabelecida. A orientação dada, foi no sentido de fazer a toma quando se fosse deitar, a fim de incutir uma regra promotora de adesão terapêutica. Tendo entendido que, após a toma, em hora certa, se devia deitar. Esclarecido o equívoco, a jovem continuou com o mesmo método e o marido reduziu as idas à taberna. No CS da Costa da Caparica, vivenciou a importância da adequação dos cuidados aos contextos (zona urbana). Destaca-se o contributo, para a qualificação do Programa de Saúde Escolar, tendo como estratégia central a cooperação da comunidade escolar. No CS da Cova da Piedade, iniciou a prestação de cuidados de enfermagem especializados em saúde comunitária. Com a formação adquirida qualificou a prestação dos cuidados, destacando nesse sentido, o contributo dos resultados de investigações e de outras evidências. Em 1994, foi convidada pela Diretora do CS do Seixal, Dra. Mariana Dupont, para integrar a Direção, como Vogal de Enfermagem (exerceu durante 10 anos), acumulando quatro anos com o CS de Amora. Este convite, o qual agradece, foi o ponto de partida para iniciar uma aliciante trajetória profissional (20 anos) na área da gestão, pelas vivências, desafios, partilha e cooperação, contando com o valor acrescido da dinâmica de trabalho em parceria, que caracteriza o Município do Seixal, designadamente, através do Projeto Seixal Saudável e da Rede Social. Colaborou com a Direção na definição da estratégia de trabalho a implementar. Passou por conhecer o estado de saúde da população, problemas dominantes, respostas existentes, capacidade instalada, acessibilidade aos cuidados, recursos da comunidade e parcerias. Dinamizou medidas para: otimização dos recursos e meios; aumento gradual da capacidade instalada; promoção da formação; reorganização da prestação de cuidados garantindo a qualidade, acessibilidade, continuidade e articulação dos mesmos. 120


Colaborou na implementação de um serviço de atendimento permanente, promovendo a acessibilidade e minimizando idas indevidas ao Hospital Garcia da Orta, assim como de outras respostas, em função dos problemas identificados. Foi responsável pela dinamização da intervenção comunitária, favorecida por uma Unidade Móvel, cedida por acordo de parceria. Dinamizou a organização dos cuidados continuados integrados, mediante uma filosofia de prestação de cuidados com foco na humanização, discussão de casos em equipa multidisciplinar, na parceria e no papel do cuidador informal. Beneficiou do valor acrescido do Grupo intersetorial para a área do idoso, criado na sequência de uma abordagem da Delegada de Saúde, Dra. Celeste Gonçalves, sobre a problemática do idoso no Concelho do Seixal. Este historial, facilitou a dinamização das medidas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrado, criada em 2006, em que esteve implicada. No âmbito da reforma que criou os Agrupamentos dos Centros de Saúde (ACES), liderou uma equipa motivada, em torno de uma candidatura espontânea, que levou à implementação da UCC Seixal, com a finalidade de assegurar a prestação de cuidados de saúde em contexto domiciliário e comunitário às pessoas, famílias e grupos mais vulneráveis. Assumiu a coordenação da UCC desde o início em outubro de 2010 até 31 de janeiro de 2014, data da sua aposentação. Sucedeu-a, na Coordenação a Enfermeira Susana Santos, que tem desenvolvido um excelente trabalho, na lógica da qualificação e inovação. O atual estado de Saúde da População que integra o Município do Seixal, é demonstrativo do esforço de TODOS, para o projeto conjunto de Mais e Melhor Saúde para TODOS, e respetiva defesa do SNS. Por fim, destaca que nada fez sozinha, e agradece a todos os que partilharam este percurso, com uma nota para: as suas referências pelo exemplo; aos parceiros pela negociação; à tutela pela confiança; aos diferentes grupos profissionais pela cooperação, aos professores das Escolas Superiores de Enfermagem (ensinos clínicos) pela valorização; aos enfermeiros que ombro a ombro com rigor, determinação e competência, dignificaram a qualidade dos cuidados de enfermagem e aos utentes/famílias e comunidades pela interação e valor dos «detalhes» que perduram no tempo. 121


Marta Temido ADMINISTRAÇÃO HOSPITALAR, ALTA DIREÇÃO E GOVERNAÇÃO NA SAÚDE

Quando a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar me lançou o desafio deste contributo, entendi que só o poderia aceitar subvertendo-o ligeiramente. Nestes 40 anos do SNS, a homenagem ao «SNS no feminino» é especialmente devida às mulheres que participaram na sua construção e àquelas que não desistem de trabalhar para o manter e modernizar, mas também às mulheres cuja saúde melhorou e àquelas que foram salvas da morte por força dos serviços nele prestados. Elas são um coletivo onde cabem muitos nomes, muitos rostos e muitas vidas. Este testemunho é-lhes dedicado. Desde a génese que a força de trabalho do SNS é predominantemente feminina, uma tendência que se tem acentuado, com as mulheres a representarem, hoje, quase 77% do total de efetivos. Elas são 63% dos médicos, 84% dos enfermeiros, 83% dos assistentes técnicos e 77% dos assistentes operacionais, para citar apenas alguns exemplos. Esta característica tem óbvios impactos em termos de equilíbrio entre a vida pessoal, familiar e profissional, que as estatísticas não conseguem revelar. Recordo a carta de C., recentemente enviada à ministra da saúde: «Estou na casa dos 30, sou casada, tenho duas 122


filhas pequeninas (...). Sou Médica de Família desde 2017. (...) E vou durante os 70 km que me separam de casa com um aperto no coração (...) custa mesmo sair de casa com a de dois anos aos gritos fica comigo mamã. Não posso filha, tenho meninos e outros senhores que estão doentes e a mamã tem de os ir curar. Mamã, eu estou doente, fica a curar-me a mim.» Fica um amargo de boca em quem sabe que o SNS é feito de gente que cuida de gente. Ainda que, cinco dias depois da criação do SNS, a publicação do Decreto-Lei n.o 392/79, de 20 de setembro, tenha tido o objetivo de «garantir às mulheres a igualdade com os homens em oportunidades e tratamento no trabalho e no emprego», ainda que a Lei n.o 62/2017, de 1 de agosto, e a Lei n.o 26/2019, de 28 de março, tenham aprovado o «regime da representação equilibrada entre homens e mulheres» nos órgãos de empresas públicas e da Administração Pública, são profundas as raízes sociais, económicas e políticas em que assenta a descriminação de género e há muito a fazer para tornar o ambiente de trabalho no SNS mais igualitário. A saúde da mulher é uma das áreas em que o impacto da criação do SNS é mais visível. Desde logo, em termos de mortalidade materna; depois em termos de saúde sexual e reprodutiva. Salienta-se que, pouco antes da criação do SNS, a taxa de mortalidade materna no país era de 42,9 por 100 000 nados-vivos, sendo, hoje, de 10,4 óbitos; que, em 1979, houve 9740 nados-vivos de mulheres com menos de 18 anos e, no ano passado, 1151. Salienta-se ainda que o planeamento familiar, a interrupção voluntária da gravidez, a procriação medicamente assistida, a luta contra a violência doméstica sobre as mulheres e a mutilação genital feminina representam, presentemente, direitos adquiridos e causas de combate em que o SNS assumiu um claro papel na melhoria da saúde da população, na proteção face aos riscos financeiros da doença e na resposta às expectativas da comunidade — afinal, os três principais objetivos de qualquer sistema de saúde. Mas também nesta vertente é longo o caminho que importa continuar a percorrer, como resulta demonstrado da interseção dos Objetivos 3 e 5 de Desenvolvimento Sustentável, que fixam as metas de «garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para todos» e «alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas». De resto, é reconhecido que se a diferença na 123


esperança média de vida entre homens e mulheres afeta, especialmente, os primeiros, a mesma penalização, de sentido inverso, se revela quando se comparam os anos vividos com incapacidade por uns e outras, o que justifica especial atenção nas políticas públicas. Termino com uma nota pessoal. Tinha quatro anos quando o SNS foi criado e há quase 20 anos que nele trabalho. A minha vida cruzou-se com a de muitas destas mulheres; destas mulheres com quem aprendi e com quem tenho orgulho em trabalhar, destas mulheres que percorrem os nossos serviços de saúde, destas mulheres com quem me sento na sala de espera enquanto aguardamos a chamada para a consulta. Elas são o meu «SNS no feminino».

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Odete Isabel FARMÁCIA CLÍNICA HOSPITALAR

Cerca de nove anos decorreram desde a data em que passei à condição de aposentada e receber este convite para integrar como co-autora a publicação SNS: 40 Anos Ímpares — 40 Mulheres Notáveis, enche-me de regozijo e emoção. Sinceros agradecimentos à Direção da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar (APDH), em especial à Sra. Prof. Doutora Ana Escoval, por tão honrosa distinção. Entendo-a como resultante do caminho que percorri desde 1965 como farmacêutica hospitalar. A todas as minhas «notáveis» companheiras apresento as minhas saudações. Sou licenciada em Farmácia pela Universidade do Porto; fui a primeira mulher eleita como Presidente de Câmara após o 25 de Abril; orgulho-me de ser fundadora e presidente por 10 anos consecutivos da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares (APFH); e entusiasma-me, de especial forma, ter testemunhado a criação do Serviço Nacional de Saúde e a sua importância na evolução da Farmácia Hospitalar (FH) e da sociedade portuguesa. Numa «viagem» retrospectiva e cronológica, recordo: 1965 — Serviços Farmacêuticos do Hospital de São José — Foi aí, nessa inesquecível escola de conhecimento científico e humano, que o entusiasmo 125


aconteceu, com a integração numa equipa de excelentes profissionais e o envolvimento profundo com o medicamento, desde a sua preparação, controlo de qualidade e distribuição, aos resultados clínicos. Ao longo dos 45 anos de intensa e diversificada atividade, face às enormes potencialidades da FH, esse entusiasmo nunca esmoreceu. 1971 — Comissão Inter-Hospitalar do Norte — A responsabilidade de fomentar e coordenar a atividade farmacêutica hospitalar nos Hospitais «Distritais» e «Concelhios» da Zona Norte permitiu, face à realidade desoladora que então se vivia, uma experiência marcante pelas dificuldades que tivemos de suplantar, pela constatação da indiferença da Administração Pública, mas sobretudo pelos resultados alcançados. 1974 — Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) e a Revolução de Abril — No dia 4 de março de 1974, acompanhada pelo Prof. Doutor Carlos Silveira (autoridade máxima da FH cheguei ao CHC, onde nos esperava o Prof. Doutor Bissaya Barreto que dirigia esta unidade e que, depois dos cumprimentos formais me orientou rapidamente para o que viria a ser o meu futuro, «nesta casa quem manda é o doente.» Sem instalações, sem equipamento e especialmente sem pessoal, foram enormes as dificuldades que se me depararam mas as necessidades dos doentes foram sempre a nossa prioridade. Os tempos inigualáveis do 25 de Abril permitiram a rápida integração numa extraordinária equipa multidisciplinar, que proporcionou as condições necessárias a um período riquíssimo de intervenção profissional e cívica. Ao longo de 20 anos, trabalhámos arduamente, para o reconhecimento da enorme importância dos Serviços Farmacêuticos. Foi este também o tempo da minha candidatura, só por um mandato, à Câmara da Mealhada em lista do Partido Socialista. 1979, SNS — O SNS é uma das principais marcas da democracia portuguesa, reconhecido como um dos mais importantes pilares da coesão social. É uma iniciativa política regulamentada pela Lei do SNS de 1979, que se apoia em três colunas «universal», «gratuito» e «geral», e na qual o estado se constitui garante da saúde de todos os cidadãos. Ao Dr. António Arnaut e à sua equipa se deve a forma como se converteu um direito à saúde, formal, abstrato e teórico, num direito real, positivo e 126


atuante, garantindo que cada português, no momento necessário, independentemente da sua condição, disponha dos cuidados de saúde de que precisa. Entre 1978 e 2008 o progresso na saúde dos portugueses foi enorme. Desde logo pela melhoria da acessibilidade, pela definição das carreiras dos profissionais de saúde e pela obtenção de mais e melhores instalações e equipamentos para prestação de cuidados adequados às necessidades dos doentes. Isto foi visível pela melhoria da esperança e da qualidade de vida dos portugueses no geral. O nosso trabalho incluía uma abordagem multidisciplinar das questões da terapêutica farmacológica administrada aos doentes em internamento ou aos abrangidos pela legislação de cedência em ambulatório hospitalar, bem sustentada na Política do Medicamento aprovada pela Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) local. Nesse complexo meio hospitalar, apesar de todas as dificuldades, lá fomos avançando, progressivamente, na procura de colaboração interprofissional e de parcerias claras, nomeadamente com a Indústria Farmacêutica (IF), o que veio a culminar nos Hospitais da Universidade de Coimbra. 1995, Serviços Farmacêuticos HUC — Mais uma vez, a reunião de uma excecional equipa permitiu aplicar a filosofia profissional que tão entusiasticamente defendíamos «uma prática correta no cumprimento da nossa missão ou seja, para além das atividades farmacêuticas assumir no hospital a gestão da tecnologia mais comummente utilizada — o medicamento.» A distinção com o «Grau Ouro» recebida das mãos da então Ministra da Saúde Dra. Ana Jorge, no Dia Mundial da Saúde/2010, que distingue as personalidades que mais contribuíram para a «obtenção de ganhos em saúde ou para o prestígio do SNS», encheu-me de orgulho. Considerei e considero um explícito sinal de respeito pessoal e reconhecimento pelos serviços prestados pelas equipas que ao longo dos anos liderei. De todos sou devedora daquilo em que me tornei, pois tenho a certeza que, sem a sua colaboração não teria sido possível a concretização dos projetos em que me envolvi.

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Purificação Araújo MEDICINA DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA E CONSULTORIA EM SAÚDE MATERNA

O problema da mulher levou-me a optar pela Ginecologia e Obstetrícia. Percebi que esta era a área em que podia ajudar melhor as mulheres, que eram prejudicadas na nossa sociedade. Eram diminuídas, reduzidas. Por conseguinte, para mim estava em causa a sua defesa, de um ente que era mais fraco socialmente. Foi isso que me dirigiu para uma especialidade ligada fundamentalmente à mulher. Os direitos das mulheres foi sempre um campo que me apaixonou muito. E foi sempre esse o meu campo de batalha: no Planeamento Familiar, na legalização do aborto, que era uma das principais causas de morte materna, na melhor vigilância da gravidez e assistência ao parto O Planeamento Familiar era a medida fundamental para, inclusive, prevenir o aborto, ou seja, impedir uma gravidez que não era desejada. Por conseguinte, a minha grande luta foi exatamente o Planeamento Familiar, introduzi-lo a nível dos serviços de saúde. Foi um pouco difícil dado que, logo à partida, estavam, muitas vezes, em causa as convicções das próprias pessoas. Lembro-me de uma enfermeira que foi formidável, aqui na periferia de Lisboa. Disse-me: «Eu sou católica, tenho um irmão que é padre, mas 128


defendo o Planeamento Familiar». Era necessário fazer um grande trabalho de sensibilização, o Planeamento Familiar nem sequer era aceite no país. Sentiam-se resistências por parte do regime e da Igreja. Existiram discussões acesas e abertas com intervenientes da Igreja que, não sendo favoráveis à legalização do aborto, não eram também favoráveis ao Planeamento Familiar. Como é óbvio, estamos todos de acordo que é melhor não haver aborto mas, se há, ele deve ser praticado em boas condições e até determinado limite. E a melhor luta contra o aborto seria o Planeamento Familiar. Isto parecia muito simples e muito lógico, capaz de ser facilmente aceite, contudo, não o era. Não queriam a legalização do aborto, mas também não queriam o Planeamento Familiar, que ia evitar o aborto. Aí existia uma contradição muito grande. Recordo que, à época, ainda não havia o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não existiam centros de saúde. Em 1970, com o apoio do então Diretor-Geral da Saúde, Dr. Arnaldo Sampaio, e através da Associação para o Planeamento da Família (APF), que foi introduzida em Portugal em 1967, começámos a introduzir o Planeamento Familiar de uma forma mais ou menos clandestina, mais ou menos disfarçada, «subversiva» até, e conseguimos fazer formação aos técnicos de saúde nos dispensários materno-infantis, que era algo ainda muito longínquo do SNS. O SNS, aprovado em 1979 veio, naturalmente, reforçar todas estas ações. Mas a educação sexual e o planeamento familiar continuaram a ser assuntos tabu e alvo de múltiplas pressões, de que é exemplo o despacho emitido em 1980 (já após a aprovação do SNS), onde se lê que «na falta de autorização expressa dos pais ou representantes legais, deve ser negado aos menores não emancipados o acesso às consultas de planeamento familiar.» No início dos anos 70, nascia-se ainda muito mal em Portugal. Os indicadores de saúde, específicos da saúde materno-infantil, mostram valores elevados que se situavam entre os piores dos países europeus, daí eu ter sempre defendido arduamente o trabalho de parto hospitalar, que continuo a defender. Estou totalmente de acordo que se humanize o serviço de obstetrícia, nomeadamente no que respeita ao acompanhamento do parto, mas continuo a pugnar pelo parto hospitalar, porque sabemos que durante o trabalho de parto pode ser preciso, por exemplo, uma cesariana, que implica a existência de um bloco operatório. 129


Na década de 60, tive oportunidade de colaborar na dinamização do método psicoprofilático do parto sem dor, introduzido em Portugal pelo Dr. Pedro Monjardino. Durante o meu internato na Maternidade Alfredo da Costa, o meu chefe de equipa de serviço, que depois foi diretor da maternidade, o Dr. Jorge Brás, pôs-me em contacto com os internatos em Obstetrícia e Ginecologia em Inglaterra, que duravam três meses. Foi lá que, pela primeira vez, ouvi falar sobre o Teste de Papanicolau. Fiquei deslumbrada. Fazer a prevenção do cancro do colo do útero era um avanço incrível. O Teste de Papanicolau foi posteriormente integrado nas consultas do Serviço Nacional de Saúde. Mas, 40 anos após a criação do SNS, nós, os profissionais de saúde, devemos estar satisfeitos — a mensagem passou, os objetivos do programa de Planeamento Familiar foram entendidos: melhorar a saúde reprodutiva da mulher, permitir que o casal tenha o número de filhos que deseja e quando deseja tê-los, a possibilidade universal de um parto hospitalar, evitar o aborto mas também conseguir a sua despenalização.

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Suzete Tranquada FINANÇAS, ASSESSORIA E DIREÇÃO DE SERVIÇOS NA ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE

As minhas atividades desenvolveram-se sempre na área económico-financeira e obviamente o seu âmbito foi alargando à medida que evoluí na carreira dirigente. Assim, destaco por áreas e muito resumidamente como mais relevantes, as seguintes: 1. Contabilidade geral e analítica no SNS A concepção e implementação do Plano Oficial de Contas do Ministério da Saúde em todos os Serviços do SNS (POCSS) e mais tarde da adaptação deste ao Plano Contas Nacional (POCMS). Contribui igualmente para a Normalização da Contabilidade Analítica dos Hospitais elaborando o Plano de Contabilidade Analítica dos Hospitais (PCAH) e promovendo a sua implementação. Estas atividades foram desenvolvidas no seio do Grupo de Normalização Contabilística do Ministério da Saúde de que fui coordenadora. Dinamização de múltiplas sessões de trabalho para a divulgação destes Planos. Elaboração em co-autoria do livro Noções Gerais de Contabilidade dos Serviços de Saúde. 131


2. Gestão económico-financeira dos serviços de saúde e do SNS Tratamento de toda a informação, relativa às verbas concedidas pelo Ministério das Finanças ao SNS e respetivas afetações pelos grupos dos diferentes serviços e Programas Específicos que nele existem. Gestão e seguimento das verbas fixadas. Análise da informação contabilística enviada por todos e cada um dos serviços do SNS preparando as análises trimestrais e os Relatórios e Contas, com especial responsabilidade nos Relatórios de Orçamento e Contas do SNS publicados de 1987 até 2001. 3. Financiamento do SNS e dos seus serviços Apoiei e executei as atividades necessárias para a preparação do pedido ao Ministério das Finanças da verba anual do SNS. Fui co-responsável pelo financiamento das diversas instituições do SNS e, outras do Ministério da Saúde que eram por ele financiadas, e ainda pelas verbas afetas aos programas específicos Colaborei em 1980-81 no grupo de trabalho para o desenvolvimento dos modelos de financiamento dos Hospitais em que pela primeira vez o financiamento se realizou como resultado da respetiva «produção». Implementei com outros técnicos esta metodologia de distribuição anual de verbas. Em finais dos anos 80 colaborei ativamente com o Serviço de Informação para a Gestão dos Serviços de Saúde na definição dos custos dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos concebendo designadamente a metodologia de afetação dos custos dos Hospitais pelos diversos GDH segundo o processo aplicado aos Hospitais de Maryland — USA. Coordenei o grupo de trabalho que uniformizou em todos os serviços do Ministério da Saúde as tabelas de preços de faturação aos subsistemas. Mais tarde colaborei na propostas de preços das tabelas de faturação anual aos subsistemas de saúde. Colaborei e dinamizei estudos que definiram o modelo de financiamento das ARS por capitação ajustada e custos de algumas doenças crónicas e procedi à sua implementação (com outros técnicos). No âmbito da minha designação em 1997 para a Comissão de Contas (CC) da Comissão Administrativa da Saúde e Segurança Social dos Trabalhadores 132


Migrantes da União Europeia fiz aprovar em Bruxelas a alteração do rácio ativo/pensionista e os custos médios anuais portugueses faturáveis em termos de montantes fixos. Reuni múltiplas vezes em Portugal e em diversos países da UE com os representantes desse grupo de trabalho (CC) assim contribuindo, com o apoio dos serviços do Departamento das Relações Internacionais, para aumentar a cobrança do nosso país e gerir as dívidas. 4. Atividades várias Pertenci ao Grupo de Trabalho que propôs superiormente os projetos de diploma que regulamentaram a lei de bases da Saúde e o Estatuto do SNS. Colaborei com o Instituto Nacional de Estatística desde 2001 na elaboração das Contas Satélite da Saúde segundo as regras da OCDE, realizando para isso os estudos e desenvolvendo as metodologias para o tratamento da informação financeira do SNS que mais tarde tive a oportunidade de aplicar até 2009. Pertenci a diversos Grupos de Trabalho, alguns interministeriais, para a realização de Proposta de Protocolos de Acordo em várias áreas, das quais destaco o de Nefrologia com Cabo Verde e a Convenção com Angola. Participei na Comissão Administrativa dos Trabalhadores Migrantes da União Europeia no âmbito da regulamentação do novo Regulamento Comunitário 883/2004 procedendo, juntamente com representantes da Segurança Social a propostas de regulamentação para o capítulo das prestações em espécie de doença e maternidade. Muito mais haveria para dizer sobre atividades, tarefas, formações realizadas, trabalhos executados, grupos de trabalho a que pertenci, protocolos que propus ou dei pareceres. Foi uma vida profissional muito cheia e muito diversificada e é com enorme gosto que ainda hoje encontro colegas e colaboradores por todo o país que me falam com todo o agrado destes tempos e alguns até com enorme gratidão. Tive um grau de realização profissional muito elevado e de uma forma geral tive muita satisfação com o trabalho que fiz, com as pessoas com quem trabalhei na consciência que ajudei a lançar e a desenvolver fortes raízes nas várias áreas em que trabalhei.

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Teresa Paiva MEDICINA DE NEUROLOGIA, NEUROFISIOLOGIA E CLÍNICA DO SONO

Uma vida entre a clínica e a investigação Quando me formei em 1969 a saúde em Portugal era má, com prevalências altas de morte de recém-nascidos, de doenças infecciosas como a tuberculose, e de maus hábitos como o alcoolismo. Nas consultas a queixa mais frequente era a cefaleia, inserida numa história de maus tratos, vindos do pai ou do marido, que alcoolizados chegavam a casa e batiam... Nos «bancos» eram comuns as «bebedeiras» nos homens e as crises histéricas nas mulheres, reproduzindo descrições de Charcot, do século XIX. No Toxinas, o bar do HSM, os funcionários iniciavam o dia, bebendo uns copos de vinho. O país era pobre, triste e doente. Foi neste ambiente que surge, primeiro uma greve dos médicos recém-formados do meu curso, que, saídos do internato geral, não tinham vagas garantidas para o exercício duma especialidade. Desta greve, nacional e eficaz, mas ainda de caráter meio estudantil, haveria de sair uma segunda greve, essa de médicos de todo o país que lutavam pelas carreiras médicas. 134


Foi um momento fundamental da Medicina Portuguesa, antes do 25 de Abril, no qual de certa forma se enxertaria, uns anos mais tarde, o Serviço Nacional de Saúde. Fui para a Holanda em 1972. No Brain Research Institute tive um treino em Neurociências com o Prof. Lopes da Silva que me marcaria para o resto da vida. Para além disso aprendi, com as saudades, a gostar de Portugal. Voltei em 1975, para um país cheio de esperança e onde tudo parecia possível. Tudo começou a mudar, o país já não era triste, deixou de ser tão pobre e a saúde melhorou. Melhorou graças a gerações de profissionais de saúde e ao Serviço Nacional de Saúde. Passámos, em Saúde, a estar entre os melhores do mundo (12.o lugar em 2000 dados da OMS). Em que lugar vamos estar em 2020? Era bom trabalhar nos Hospitais; tinha um enorme orgulho no meu Hospital e no meu Serviço. Foi fundamental ter Mestres, que admirei, respeitei e me marcaram. Destaco na Neurologia os Professores Miller Guerra e João Alfredo Lobo Antunes, na Medicina Fernando Pádua e Maria de Lourdes Levy, na Investigação Lopes da Silva e David Ferreira. No Hospital foi bom fazer coisas novas que não existiam e eram precisas: — A Consulta de Cefaleias, em 1976, foi criada com Jorge Santos para tratar «um mal que mói, mas não mata», «uma dor que não se vê». A consulta pegou raízes e multiplicou-se. Hoje há consultas de Cefaleias em muitos hospitais, médicos de grande gabarito a encabeçá-las e a Sociedade Portuguesa de Cefaleias. — O Laboratório de EEG do Centro de Estudos Egas Moniz do qual fui responsável em 1980 por nomeação do Prof Miller Guerra. Difícil de início, posto que parte do staff se opunha frontalmente a qualquer modernização, a qual para além de urgente era fundamental, quando nada era feito de acordo com recomendações internacionais. Mas tudo se mudou. O dinheiro de ensaios clínicos pagou as obras, a Eletroencefalografia voltou a ser dignificada e o laboratório respeitado. Hoje, a cargo da Profa. Carla Bentes, moderno, renovado, capaz de boa prática de Neurofisiológica, enche-me de orgulho. — Depois veio o Sono, em 1983, essa grande paixão intelectual, clínica e científica que passou a ocupar a minha vida médica. A Consulta de Cefaleias 135


fora um objetivo e a Electroencefalografia uma nomeação, o Sono porém surgiu por um acaso e conjugação de circunstâncias: doentes com apneia do sono, tecnologias por engenheiros do IST que se adaptavam como uma luva ao estudo do sono. Nessa altura não se falava em Sono como disciplina médica. Em 1987 tudo moderno: quarto insonorizado, monitorização vídeo-EEG, mobília de madeira, paredes forradas, «o quarto mais luxuoso do Hospital». Houve o apoio da Janssen Farmacêutica (Drs. Albert Wauquier e Elsa Lara), uma equipa multidisciplinar de pessoas brilhantes que fizeram Doutoramentos e Mestrados (Agostinho Rosa, Filipe Arriaga, Ana Fred, Rogério Largo, Pedro Lima e outros), a supervisão do Prof. Nunes Leitão, enquanto outros se tornavam técnicos excelentes (José Telles, Rosa Santos). Com o Laboratório a funcionar muitos médicos lá aprenderam e se treinaram; uns bem e outros nem tanto. O Doutoramento veio em 1992, atrasado pela pesada rotina hospitalar, a vida familiar e os deveres de mãe. No mês do Doutoramento decorreu o concurso para Chefe de Serviço de Neurologia, com três concorrentes, e uma única vaga. Março de 1992 foi por isto e pela morte da minha mãe, um mês particularmente duro. Na Agregação em 1997 foi tudo mais agradável. O Tema da lição «Tempo, ritmos e funções cerebrais» na altura inovador, ainda me é dominante nas linhas de pesquisa e na abordagem quotidiana dos doentes. O Doutoramento foi marco para a atividade científica, posto que após desenvolvi a maioria dos projetos nacionais e internacionais. De 1996 a 1999, fui Coordenadora do Project ENN — European Neurologic Network, subsidiado pela Comissão Europeia, com um orçamento de 2 000 000 ECU. Foi, no tempo do fax, um trabalho ciclópico posto que incluía 39 parceiros europeus, tinha objetivos alargados e orçamento elevado; uma equipa gestora de primeira água, Prof. Ana Escoval e Dra. Madalena Teles de Araújo, tornou-o possível. Do projeto resultou uma teleconsulta em Neurologia entre Santa Maria e os Centros de Saúde da área, que funcionou com êxito e vantagens, mas que infelizmente não vingou quando foi necessário que a ARS de Lisboa tomasse a seu cargo a manutenção informática. Apesar de tudo, as vantagens da Teleconsulta foram quantificadas, publicadas e merecedoras de um prémio BIAL. 136


De 2003 a 2016, fui Prof. Convidada do Instituto Superior Técnico e integrei a Comissão Organizadora da Licenciatura em Engenharia Biomédica, posteriormente Mestrado integrado, em conjunto com os Profs. Lopes da Silva, Dias de Deus, Sampaio Cabral, Teresa Peña, Leonor Parreira entre outros. De 2005 a 2012, coordenei o Mestrado em Ciências do Sono, da Faculdade de Medicina de Lisboa. Duas experiências marcantes posto que permitiram contactos multidisciplinares, constituíram uma inovação formativa que exigia rigor e plasticidade, capacidades pedagógicas e científicas. Reformei-me em 2006. Desde aí as atividades clínica e científica aumentaram significativamente.

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Teresa Sustelo ADMINISTRAÇÃO E DIREÇÃO HOSPITALAR

Uma história de amor com algumas «infidelidades» Iniciei a minha carreira nos Hospitais Civis de Lisboa com o nosso grande Prof. Vasco Reis meu querido Mestre e Amigo a quem muito devo. Primeiro em estágios, depois como Administradora nos Serviços Comuns. O Grupo Hospitalar reunia sete hospitais (S. José, Capuchos, Curry Cabral, Sta. Marta, D. Estefânia, Desterro e Arroios) e tinha vários Serviços Comuns que prestavam serviços a todos eles: aprovisionamento, pessoal, financeiros, hoteleiros, auditoria e outros. Vivia-se uma época de ouro num grupo hospitalar onde nasceu a Faculdade de Medicina de Lisboa e onde se criou a carreira médica. O Serviço de Urgência, vulgo «Banco de São José», foi onde comecei como administradora. Era uma realidade extraordinária. Pela dimensão, incluía unidades de cuidados intensivos médicos, cirúrgicos e neurocirúrgicos. Pelo movimento, com 950 atendimentos diários. Pela qualidade dos protagonistas que tornavam aquele famoso «Banco» numa inesquecível escola para gerações de clínicos. 138


Assim começou uma história de amor. Foi interrompida, algum tempo depois, com a minha colocação no H.D. Barreiro. Sabia que voltaria... Por nomeação ministerial integrei a comissão instaladora do Instituto Nacional de Sangue onde fiz um trabalho com os profissionais de Lisboa e Porto, altamente gratificante. Fui depois nomeada Subdirectora-geral da Direção-Geral dos Hospitais. Esta experiência permitiu-me conhecer todos os hospitais do país e avaliar as melhores formas de organização, gestão e prestação de cuidados. Trabalhando diretamente com o Dr. Albino Aroso, então SE da Saúde, fui imensamente privilegiada já que o considero um dos melhores governantes que passou pela área da Saúde, uma personalidade fascinante. Durante este período de «ausência» dos HCL eles sofreriam grande transformação. Acabaram os serviços comuns, autonomizaram-se os hospitais, tornando-se realidades independentes e auto-suficientes. Era altura de voltar. Nomeada administradora-delegada do subgrupo hospitalar Capuchos/Desterro/Arroios. Foi um regresso a casa. Adorei. Profissionais profundamente empenhados ajudaram-me a desenvolver projetos de modernização e inovação numa instituição muito diferenciada. Foram seis anos de trabalho intenso e muito compensador. Em 1997 fui convidada a «trair». Nomeada administradora-delegada do CA do Hospital de Santa Maria. Era o Hospital rival. Era uma realidade completamente diferente, dominada pelo pendor académico. O Hospital Universitário por excelência. Os desafios passavam também por aí, conciliando a vertente académica e a investigação, com a prestação de cuidados. Experiência de que guardo muito boa memória. Regressei a casa em 1999 na sequência de nomeação para administradora-delegada do H.D. Estefânia. Foi uma realidade nova, num hospital pediátrico, em que reencontrei o espírito dos HCL. A cultura de serviço, dedicação e empenho que sempre admirei. A criação dos Hospitais SA foi um momento revolucionário da gestão hospitalar em Portugal. Exigia-se uma enorme responsabilização, mas dava-se, finalmente, poder e autonomia aos gestores nomeados. Tive o privilégio de ser nomeada Presidente do CA do Hospital de Santa Marta SA. Foi a experiência mais marcante da minha vida profissional. A motivação que se conseguiu disseminar no coletivo hospitalar foi impressionante. Estabe139


leceu-se uma sintonia entre órgãos de gestão, de direção e técnicos que deu lugar a uma cascata de objetivos que todos conheciam e em que todos se reviam. O clima dentro do hospital era de um verdadeiro espírito de corpo, em que todos remavam entusiasticamente na mesma direção pugnando para que aquele fosse o melhor hospital do ranking em que estava inserido. Em 2005, deu-se uma nova transformação no estatuto jurídico dos hospitais que se transformaram em EPE. Nesta altura foram acrescendo às minhas responsabilidades, gradualmente, os restantes hospitais que outrora tinham integrado os HCL. Foi criado o Centro Hospitalar Lisboa Central e fui convidada a presidir ao seu CA. O grande objetivo desta criação era preparar a substituição destes antigos hospitais pelo novo grande hospital de Lisboa que se iria construir, denominado Hospital de Todos-os-Santos, recordando o hospital que o terramoto de 1755 destruíu. Foi uma tarefa ciclópica gerir cerca de 1500 camas, quase 8000 profissionais dispersos por seis hospitais com instalações e equipamentos altamente degradados e desatualizados enquanto, simultaneamente se preparava o futuro. E o futuro implicava uma nova organização do trabalho e dos recursos que era importante começar. Era uma nova mentalidade e cultura organizacional que tínhamos de criar e difundir. Estudámos os modelos organizacionais e funcionais dos mais modernos e eficientes hospitais. Avaliámos e debatemos os modelos com os profissionais em múltiplos encontros e reuniões de modo a esclarecer o mais possível todos os intervenientes. Quando foi ultimada esta fase fez-se uma votação pelos representantes dos serviços que abarcou mais de um milhar de pessoas. Foi assim feita a escolha de um modelo absolutamente centrado no doente, sem serviços, mas com áreas de atuação integrando especialidades que concorriam para o tratamento das diversas patologias quer médicas, quer cirúrgicas. Um grande plateau técnico de grande diferenciação apoiava todo o hospital. Tornava-se assim possível passar à elaboração do programa funcional que estaria na base da elaboração do projeto do novo hospital. Assim se fez. Foi aberto um Concurso Público Internacional que não chegou a ser adjudicado. Tenho o namoro interrompido, mas a minha razão e o meu coração estarão sempre com os Hospitais Civis de Lisboa. 140


Posfácio Foi com surpresa que recebemos o pedido para redigirmos o Posfácio deste Livro, tendo aceite o mesmo com muita satisfação. Somos ambas mulheres, integramos a Comissão Executiva de Comemoração dos 40 aniversários do Serviço Nacional de Saúde (Despacho n.o 2580/2019, de 13 de março), e talvez por isso tenha surgido o convite. Não vislumbramos, de resto, qualquer outra razão excecional que pudesse justificar o convite que nos foi dirigido. Este Livro pretende realçar o intenso trabalho realizado por 40 notáveis mulheres, que, por mérito próprio, e por vezes com grande sacrifício pessoal, tiveram o privilégio de exercer as funções que lhes conhecemos, destacando-se dos seus colegas do sexo masculino que as vinham desempenhando. A existência de quotas para as mulheres tem vindo a ser discutida (e por vezes aplicada) em diversas áreas da sociedade civil e órgãos de soberania, levando-nos a ponderar da sua real e efetiva necessidade. A julgar pelo feito alcançado por estas 40 mulheres, somos levados a responder pela negativa. 141


Dirão algumas vozes que a fixação das ditas quotas significa um menosprezo pelo trabalho das mulheres e que devemos atingir os lugares de responsabilidade, pelo reconhecimento da nossa competência e mérito. Foi o que estas 40 mulheres conseguiram, tal como tantas outras que aqui não foram consideradas, razão pela qual a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar decidiu distingui-las, reconhecendo-lhes neste livro os feitos alcançados. São mulheres que, pela forma como lideraram e desempenharam as suas funções, contribuíram para a construção do nosso Serviço Nacional de Saúde e que devem e podem inspirar e empoderar tantas outras mulheres que lhes seguirão. Nos dias que correm, a taxa de feminização do Serviço Nacional de Saúde é de 76,5% (2018), com muitas mulheres a ocuparem lugares de liderança de topo, desde Diretoras-Gerais a Presidentes do Conselho de Administração, todas por virtude do devido e reconhecido mérito. É um livro que ressalva percursos da liderança feminina ao longo dos 40 anos do SNS, esperando que neles se reflita um futuro repleto de potencial no masculino e no feminino. CATARINA SENA RITA SÁ MACHADO Comissão de Comemoração do 40.o Aniversário do SNS

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