Contos Fantásticos

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Amor e Morte, o InefĂĄvel MistĂŠrio dos Amantes


Título Contos Fantásticos – Amor e Morte, o inefável mistério dos amantes – Título Original Contos Fantásticos Autor Teófilo Braga Coordenação e revisão Eduardo Amarante Grafismo, Paginação e Arte final Div'Almeida Atelier Gráfico www.divalmeida.com Ilustração e Técnica da capa Gabriela Marques da Costa Arte Digital / Assemblage Digital Romantismo Expectante – 2010 gabriela.marques.costa@gmail.com www.gabrielamarquescosta.wordpress.com www.facebook.com/home.php?#!/pages/Gabriela-Marques-da-Costa/134735599901538 +351 915960299 Impressão e Acabamento Espaço Gráfico, Lda. www.espacografico.pt Distribuição CESODILIVROS Grupo Coimbra Editora, SA comercial@coimbraeditora.pt 1ª edição – Novembro 2010 ISBN 978-989-8447-04-3 Depósito Legal nº 318339/10 ©Apeiron Edições Reservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográfico sem a prévia autorização do editor. Projecto Apeiron, Lda. www.projectoapeiron.blogspot.com apeiron.edicoes@gmail.com


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A LINGUAGEM SIMBÓLICA DAS ILUSTRAÇÕES DE CONTOS FANTÁSTICOS

Gabriela Marques da Costa (a pintora) É uma capa muito poética, a apelar ao Amor, ao Amor ausente, à Saudade, aos Desamores, Beleza de rios, Paisagens poéticas... Amor shakespeariano bem como camoniano. As imagens são bem europeias e apelam à melancolia do Amor. Penso que a imagem revela bem o hino ao amor. A harmonia das nuances cromáticas são bastante românticas e suaves. Falando especificamente das cores das vestes das personagens, os tons pastel misturam-se com os azuis, rosas e vermelhos. Os poucos tons esverdeados (os da natureza) representam o amor esperançado; os azuis, a Pintura de Gabriela Marques da Costa Capa e Contracapa aristocracia e nobreza das personagens, enquanto os rosas a meninice e a inocência feliz que contrapõem com os vermelhos, representando a paixão, o sangue e a morte; o branco a pureza; o cinza a tristeza, a melancolia e a paragem no tempo. Optei por colocar em cenário de fundo folhas de papel antigas, pois simbolicamente estão a representar as histórias de cada personagem e acima de tudo porque o título do livro fala em CONTOS Fantásticos. As flores tinham de aparecer pois o seu simbolismo está estritamente ligado ao amor/ desamor. Especificamente amores-perfeitos, rosas e violetas campestres. O amor-perfeito simbolicamente é dedicado à deusa Minerva e é também o símbolo da glorificação do trabalho, mas também está associado ao amor romântico duradouro - amor para toda a vida. Quanto às rosas, no Ocidente é a flor que mais simbolismo tem; é uma flor consagrada a muitas deusas da mitologia; símbolo de Afrodite, Vénus, Ísis e Lakshmi. A rosa representa o ápice da paixão, o sangue e a carne mas ao mesmo tempo pureza e virgindade (Maria). Os botões de rosa simbolizam o segredo. Em relação às violetas campestres, representam a tranquilidade da espera, o sossego

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e a calma. Simbolizam também a espiritualidade e intuição das personagens, mas ao mesmo tempo representa presságio e luto amoroso. A janela em forma de arcada representa os pensamentos e as vontades de todas as personagens que se encontram fora dela, e a imagem que se encontra dentro da janela representa aquilo que elas desejam: atrair o amor para elas mesmas, mergulhar no sonho da alegria e felicidade conjugal. Criei a janela com duas arcadas representando assim o número DOIS. Este simboliza amor e compreensão. Representa também a atenção do parceiro para com a sua amada. É o número da dualidade, do companheirismo e do amor mútuo. Falando especificamente num pormenor da contracapa, fiz de forma que ao colocar o texto parecesse o preenchimento da forma de um espelho imaginário.

Outros elementos suplementares de interpretação (Dulce Leal Abalada) Esta obra tem a particularidade de ser muito rica pela quantidade de elementos simbólicos que encontramos nas ilustrações. Desde o Cúpido que juntando o seu rosto ao ouvido de uma dama como que segreda os mistérios do Amor; ou não fosse ele o deus dessa dádiva que aquece os corações, correspondente ao Eros grego. De fundo, como também na contracapa, vemos o templo de Deméter, a deusa da Natureza, símbolo da fertilidade e da protecção da Vida. Um outro símbolo encontramos tão antigo quanto a humanidade – a representação mítica dos Contos de Fadas de uma princesa que encontra o seu príncipe encantado que a desperta para a vida e vivem felizes para sempre. Porém, o corpus central das ilustrações na obra coloca-se nas várias representações de modelos femininos que constam na capa. Desde logo confere à obra o seu carácter psicológico, dual, conflituoso, dramático. A mulher está representada nos seus vários matizes desde os tempos remotos, onde pela representação da dupla janela viajamos no tempo em que se banhava nas águas da mãe natureza, até às manifestações mais sofisticadas de poder de sedução sobre o homem. É certo que muitas outras interpretações poderão ser extrapoladas destas imagens e, a esse propósito, não desejaria deixar de citar uma que pela sua pertinência retrata uma época que, se bem que estranha hoje, não é muito distante. Nesse sentido passo a citar a minha mãe, Esperança, que tendo sido há alguns anos monitora de arte da Universidade da Terceira Idade (U.I.T.I.) no Museu Calouste Gulbenkian, me fez ver algumas características nesta capa sobre o papel que a mulher então detinha na sociedade do século passado, com todos os seus códigos e significados que faziam parte do jogo amoroso. “Só o título desperta em nós recordações mais ou menos remotas - a idade da fantasia, do imaginário, do sobrenatural, que para nós na altura era natural; depois

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as histórias, os contos que antigamente eram transmitidos na linguagem escrita, daí a folha de papel antiga abrangendo toda a página, que nos dias de hoje se foi encurtando e actualmente sintetizando, através do telefone, telemóvel, SMS, emails... “E em histórias de amor é sempre a mulher a protagonista. Daí a representação de várias mulheres, através dos tempos e condições sociais, diferenciados pelas suas vestes, urbanas e rurais, inseridas nas paisagens bucólicas; e no tema do amor, todas as mulheres são iguais, qualquer que seja o seu nascimento. “Na contracapa, a mulher debruçada sobre o peitoril da janela em atitude saudosa, lembrou-me os meus tempos de estudante de literatura –“as canções de amigo”: “Muito me tarda o meu amigo na Guarda” de que nós fazíamos estribilho para disfarçarmos as saudades que sentíamos dos nossos namorados... Também merece atenção a figura atenta e receptiva ao Deus Eros, ou ao Cupido dos Romanos. “O fundo atapetado de várias flores, cada uma com o seu significado, hoje apenas lembrado pelos mais idosos e que não merecia ser esquecido, embora na prática desnecessário, pois a oferta de uma flor em especial era testemunho do sentimento inspirado; era uma linguagem muda, mas simbólica. Lembro ainda, não há muitos anos, em certas aldeias de França, era tradição no 1º de Maio, os rapazes premiarem ou criticarem as raparigas da aldeia, depositando durante a noite, à porta de cada uma delas, uma flor (ou um cardo) que a dignificava ou penalizava segundo os sentimentos que provocava neles. “Recordo-me das conversas da minha avó com as suas amigas, de certa maneira passando-me testemunho da época, sobre a linguagem dos leques, um excelente meio de comunicação de coisas mais prosaicas que as flores, o modo como se davam as respostas aos pretendentes, fossem do seu agrado ou não, ou marcação de encontros, à saída da missa ou uma ida à costureira, o leque, quer fosse pela sua posição quer pelo manuseamento, tinha um papel preponderante. “Na capa, há um ser que se debruça, querendo como que penetrar no livro e em equilíbrio instável, certamente proporcional ao grau de curiosidade que o conteúdo do mesmo lhe desperta. Enquanto uma das heroínas parece escutar, talvez, “as pancadas de Molière, convidando à Função.” “Porque um bom livro é como um palco, onde se consegue ver e ouvir as personagens.”

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ÍNDICE

Carta a José Fontana (da 1ª edição) Preliminar As Asas Brancas O Véu A Estrela d'Alva (conto marítimo do século XVI) Lava de um Crânio Beijos por Facadas (conto de uma serenata em Espanha) La Blanca Palomica (o desgosto de Lope de Vega) A Ogiva Sombria As Águias do Norte (conto polaco) De um estudante da Lituânia ao Poeta anónimo da Polónia Fragmentos de uma elegia polaca O Relógio de Estrasburgo (conto de 1352) Um Erro no Calendário (episódio da história da inquisição em Espanha) A Adega de Funck (conto baseado nas notas de Hoffmann) Revelação de um Carácter O Sonho de Esmeralda O Evangelho da Desgraça Aquela Máscara A Rosa de Sáron (poema em prosa) Os Quatro filhos d'Aymon (conto do cerco do Porto) Ódio de Inglês (comentários ao conto de Teófilo Braga), de Gomes Leal

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Carta a José Fontana (da 1ª edição)

Meu caro editor, Disse-me que esperava um prólogo, para começar a publicação dos Contos; lembrou-me escrever-lhe um capítulo de estética sobre esta forma literária. O público não gosta de abstracções. Por minha vontade desistia do prometido; limito-me porém a algumas considerações históricas. A forma do conto é de origem oriental. As fábulas de Bidpaï foram o primeiro ensaio para fazer sentir uma moralidade abstracta por meio de uma ficção interessante. É pelo século XII que esta criação do génio do Oriente aparece na Europa, imitada na Disciplina clericalis de Moisés Sephardi, conhecido depois da sua conversão ao cristianismo com o nome de Petrus Alphonsus. A Disciplina clericalis, escrita em latim bárbaro, para ensino dos clérigos, compõe-se de trinta e sete contos e apotegmas 1, que o autor imagina dados por um árabe a seu filho na hora da agonia. A popularidade do livro foi dispondo os ânimos para a cultura desta forma literária. O Conde de Lucanor de D. João Manuel, algumas das ficções do Gesta Romanorum, o Decameron de Boccacio, os Contos de Canterbury, ressentem-se bastante do livro do judeu convertido da Huesca. Uma criação do génio céltico e germânico é o mundo feérico; elaborada lentamente na fantasia popular, animada nesses tipos de Melusina, Morgane e Urgante, dos trovadores da Idade Média, cantada depois nos galanteios de Boiardo e Ariosto, Spencer e Shakespeare, tornou-se o divertimento infantil dos Contes bleus, os contos de fadas, coligidos nas Notte piacevoli de Straparole, publicadas no século XVI, e no Pentamerone de Giambattista Basile em 1637. O conto é a forma literária da lenda. Boccacio no Decameron, naquelas transições instantâneas do ridículo ao patético, revela uma face profunda da história, o estado dos espíritos na terrível peste de 1358. A imaginação era tão perigosa como o contágio; a distracção calculada, o prazer egoísta dos jardins de Pampinea, a indiferença, o cepticismo que se desenvolve nas grandes calamidades, 1

N. do R. – Dito breve e memorável de pessoa ilustre. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

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só podiam suspendê-la na exageração do terror. Nos contos da Idade Média há uma mistura de devoção e desenvoltura; no Heptameron da rainha de Navarra, as aventuras cavaleirescas, as intrigas de amor, os padres e monges seduzindo as noviças, entretecem-se com reflexões morais, e de quelque leçon de la sainte Écriture. É a mesma antítese fatal que parodia a exaltação religiosa nos ritos grotescos da Igreja. A Idade Média retratou-se em todas as suas criações, mesmo nos fabliaux e no conto. O conto é a passagem do fabulário para a linguagem da prosa, ingénua, rude, de uma franqueza maliciosa muitas vezes, e desenvolta. O conto era uma situação inventada para aproveitar um dito feliz, um repente engenhoso dos serões das cortes e dos castelos; nasceu daquele génio primitivo, com que Froissart narrava a história. Demogeot, na sua História da Literatura Francesa, considera os contos do século XVI como alheios ao desenvolvimento intelectual; é uma afirmação menos verdadeira por absoluta. A actividade deste período, a fecundidade e originalidade verdadeiramente caóticas reproduzem-se em Rabelais, o criador de Gargântua e Pantagruel. A Renascença com as ficções gregas e romanas desnaturara o conto. No século XVII ele torna-se volumoso, arrebicado de galanice e galantaria amaneirada. As atenções tinham refluído sobre os trabalhos filosóficos; ficaram as criações imaginativas em poder das Gamberville, de Scudery, de La Calprenède e quejandos, que as alongaram fastidiosamente com pieguices sentimentais, por essas séries indefinidas de volumes da Polexandra, Caritea, Cytherca, Cassandra, Faremundo, Ibraim ou o ilustre Bassa, Artamene ou o grande Ciro, Clélia e Almahide. Os heróis apaixonados são Anacreonte conversando em amáveis versos, Bruto e Lucrécia, Horácio Cocles e Clélia, movidos pelos interesses da sociedade moderna; a majestade escultural da antiguidade e da história em presença das pequeninas intrigas tocara o cúmulo do ridículo! O movimento, a convulsão filosófica do século XVIII aparece também no romance e no conto. Lesage escalpeliza a natureza humana, e o Gil Blas é a síntese das observações profundas; o abade Prévost analisa as paixões numa luta íntima, recôndita, e procura os sentimentos novos que cintilam dos que se embatem e se destroem. Manon Lescaut é uma das verdades eternas do sentimento humano, a contradição do que mais se aspira e idealiza, a vontade negando-se, mobilizando-se nos multíplices desejos que tumultuam na alma. Voltaire filosofa também nos seus Contos. Diderot, sobretudo, a inteligência mais robusta do seu tempo, matemático, artista criador pela re-

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flexão e inspiração, reduz ao interesse do conto, à peripécia da acção as verdades mais abstractas. Na assombrosa maravilha de arte, o Neveu de Rameau, mostra a maldade disfarçada em virtude pelas conveniências; todos nos horrorizamos ao ver ali o nosso retrato; sentíamos aquilo, mas não tínhamos a coragem, a abnegação para dizê-lo. O sobrinho de Rameau mostra-se infame, ao passo que é sublime de razão, porque diz tudo o que pensa. Vê-se agitarem-se naquele cérebro em ebulição todos os processos intelectuais. Na Religiosa, Diderot evoca as dores cruciantes e desconhecidas, sofridas nas trevas por um coração ingénuo, que é o ludíbrio do interesse egoísta, do fanatismo estúpido, e da superioridade brutal. Este conto por si é uma revolução latente. A análise delicadíssima dos pequenos sentimentos que formam a grande luta na alma da Religiosa não é inferior ao quadro do quietismo de Michelet no processo da Cadière, e excede por muitas vezes a profundidade com que Manzoni no Promessi Sposi retrata as agonias da desgraçada Genoveva no convento de Monza. Uma vez descobertos estes segredos do sentimento, o conto deixou de ser individual; o romance é o desenvolvimento de uma tese da vida na sociedade. Richardson é a admiração de Diderot; Goëthe descobre Diderot à Alemanha, traduzindo a sua obra-prima; ele mesmo isola os sentimentos do amor e o dever no Werther e chega pela arte à conclusão lógica do suicídio. Hoffmann, o caricaturista das paixões, de uma individualidade extravagante, nas criações abstractas daquela imaginação de hipocondríaco deixa-lhes o incompleto do maravilhoso; mais tarde os editores dão aos seus contos o nome de fantásticos. Nos Contos de Hoffmann há uma série de observações psicológicas, de impressões instintivas que suprem a falta de imaginação; os seus contos são o diagnóstico de uma alma doente. É o lado que os torna apreciáveis, apesar do capricho e grotesco dos tipos a que a mente alucinada dá forma. Os Contos de Edgar Poë, a imaginação mais extraordinária da América, têm o fantástico da insolubilidade dos problemas filosóficos que constituem a acção; tocam às vezes a alta metafísica. Tendo de transigir com as materialidades da vida, na esterilidade da indigência pede a inspiração ao álcool; ele sente a excitação lúcida que lhe dá a força espantosa da invenção, mas conhece já em si a tremulência, que é a decomposição inevitável, e exclama no meio da fadiga: Não há pior inimigo do que o álcool! Edgar Poë é a força da imaginação e do ideal suplantada pelo positivismo de uma sociedade manufactureira e orgulhosa do seu carácter industrial; nos seus Contos há a alucinação profética da doidice.

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A forma do conto é estudada em todas as literaturas da Europa; trazendo a lume este pequeno trabalho, só nos inspira a boa vontade de corresponder ao movimento que observamos lá fora. Que mais teríamos a dizer de um livro simples que lhe não desnaturasse a intenção. Coimbra, 8 de Março de 1865 Teófilo de Braga

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PRELIMINAR (Fevereiro de 1894 – Teófilo Braga)

Vai para trinta anos que estão publicados os Contos Fantásticos. Em boa verdade, nunca mais passei os olhos por este livro, que me aparece agora como obra de um estranho. Não tornei a ler esses contos, não por um afectado desdém pela minha obra, desdém que condeno em todo o escritor que se não preocupa com a coordenação definitiva dos seus trabalhos, mas porque este pobre livro ficara ligado a impressões dolorosas cuja renovação evitava. Foram reunidos em volume em 1865 os Contos Fantásticos no meio das refregas da conhecida Questão de Coimbra; publicara a maior parte deles no Jornal do Comércio, em cuja colaboração literária auferia uns tantos reis com que ia seguindo o meu curso na Universidade. De repente achei-me cercado de ódios. Cortaram-me os víveres na empresa do jornal, nas aulas de Direito tiraram-me a mesquinha distinção académica, os críticos espalmaram-me rudemente, os livreiros recusaram-se a dar publicidade ao que escrevia, e os patriarcas das letras com o peso da sua autoridade sorriam com equívocos sobre o meu valor intelectual, chegando a circularem lendas depressivas do meu carácter e costumes que só consegui desfazer com uma vida às claras e cheia de ignorados sacrifícios. Outro qualquer ter-se-ia rendido. Vi-me forçado a inverter as bases da minha existência, abandonando a Arte que me seduzia, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-me à crítica, à erudição, à ciência, à filosofia. Neste campo os meus erros e exageros bem merecem ser perdoados. Só muito tarde é que consegui conciliar em mim estas duas tendências do espírito; mas não pensava em reimprimir os Contos Fantásticos, a não ser um dia numa colecção de coisas avulsas constituindo a ingénua miscelânea das minhas Juvenilia. Uma carta do meu bom amigo António Maria Pereira surpreendeu-me, manifestando o desejo de fazer uma nova edição destes Contos. Como recusar-me a uma tão honrosa proposta? Ressalvei a condição de rever isso de que nem já formava ideia. Foi assim que tive de ler os Contos Fantásticos, do rapaz de vinte e dois anos que existiu em mim, e a frio pude julgar da impressão por eles produzida.

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Achei ali uma fraca penetração do mundo subjectivo ou moral, encoberta com o esforço das comparações poéticas e dos epítetos; desgostou-me o estilo em que a prosa se confunde com o verso, apresentando ainda a falta de nitidez de quem não pensa com segurança. E quanto ao drama da vida, que é o tema eterno das obras de arte, notei também pouco movimento, as situações são narradas em vez de sucedidas. O que salva então o livro? Uma pequena coisa, que é tudo: a paixão. Ao fim de trinta anos ainda achei ali calor, a ardência de um organismo que se queima, a vibração sensorial de uma mocidade plena que se lança de peito aberto ao combate da vida. Foi esta paixão flagrante que fez com que esses Contos não ficassem esquecidos no Jornal do Comércio de 1865. Voltando então de umas férias para Coimbra, felicitou-me Eça de Queiroz, afirmando-me que nos cafés em Lisboa cortavam-se os folhetins, quando traziam algum conto meu. Nesse mesmo ano José Fontana quis publicá-los num livro, que seguiu o seu fadário, sendo o mais glorioso o andar na algibeira do célebre engenheiro João Evangelista, que morreu devorado por uma violenta paixão amorosa. O pequeno livro estava na mesma afinação da sua alma. Cartas, que ainda guardo, me falaram da impressão de um ou outro conto, por esse tempo. Tudo isto me lembrou ao sentir que efectivamente o fogo que há nesses mesquinhos quadros se comunica. E neste dilema dos dois amores, em que ainda se debate o espírito, atraído para a arte e seduzido pela ciência, hoje repassando as páginas deste livro, é com uma certa piedade saudosa que o deixo reviver na publicidade, e lhe inscrevo com a frieza do qualificador inquisitorial: feitas as emendas necessárias pode correr.

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AS ASAS BRANCAS

Sempre o mesmo olhar doloroso! Uma constante expressão de mágoa, esse abandono, que é o tédio da vida! Porque é que na flor dos anos, quando a existência se purpúrea com todas as graças que se entrevêem apenas em sonho e se veste das alegrias que a rodeiam, como uma criança enfeitando-se distraída com as florinhas espontâneas, tu, bela, sentida, deixas reflectir pela transparência da tua face pura um clarão pálido e incerto como de agonias e desespero, como a fosforescência de um grande mar que estua? Diante de ti sente-se uma opressão estranha, a mudez sagrada de uma grande floresta, o terror gélido, de quem entra na caverna de uma sibila. Porque é que os teus vinte anos, as formas arrebatadoras do teu flexuoso corpo de sílfide, que verga pela dor, mais lânguido e gentil do que a palmeira solitária embalada nas bafagens mornas vindas da amplidão remota do deserto, como é que toda esta adolescência, que te cinge como auréola de encanto e atractivos, me faz ter medo de ti, me prende a voz temerosa e balbuciante, que ousa às vezes perguntar-te: – Donde vieste? Em que cismas? Que véu te acena e está chamando de longe? Porque te escondes dos olhos que choram de ver-te assim desolada, na consternação de uma angústia intraduzível por palavras humanas? Porque não falas, e nos contas o que sofres? Porque te deixas ficar horas esquecidas com a mão firmada ao rosto, suspensa numa contemplação divina, irradiante, de um modo, que ninguém ousa dizer se és da terra, se és a incarnação de alguma essência arcangélica que anda errante no mundo a santificar o amor no sofrimento?

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