Também Elas Eram Inocentes!

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Título Também elas eram inocentes! Autor Carlos Moreira Araújo Director Editorial Eduardo Amarante Revisão Isabel Nunes Grafismo, Paginação e Arte final Divalmeida Atelier Gráfico www.divalmeida.com Técnica da capa (Ilustração fornecida pelo Autor) Divalmeida Atelier Gráfico www.divalmeida.com 1ª edição – Junho 2012 ISBN 978-989-8447-21-0 Depósito Legal nº 345294/12 © Carlos Moreira Araújo & Apeiron Edições Reservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográfico sem a prévia autorização do editor. Projecto Apeiron, Lda. www.projectoapeiron.blogspot.com projecto.apeiron@gmail.com


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Esta história faz parte de um imaginário que espero nunca chegue a ser real. Para tal tenho esperança nos homens livres e também nos outros que, por um outro motivo, pensam que a vingança é uma moeda de troca. Todas as pessoas são inocentes até se provar a sua culpabilidade; assim rezam os manuais de justiça. Façamos todos para que não se tenha de provar a culpabilidade de ninguém.



Também elas eram inocentes!

1º CAPÍTULO _________________ A gordura escorria suavemente da espetada que, pendurada no ferro à minha frente, aguardava que eu iniciasse a repartição dos apetitosos pedaços de lulas. O restaurante era acolhedor, pequeno e asseado, e a companhia tinha todos os ingredientes para que a refeição se tornasse minimamente agradável e interessante. Olhei a minha companheira, olhei-a nos olhos, aqueles olhos escuros e expressivos. Aliás, a Leonilde era uma pessoa até certo ponto extrovertida, de pequena estatura, ligeiramente entroncada, cabelo preto e ondulado; por vezes brincava com ela perguntando se não haveria na família alguém de raça negra, mas a companhia era interessante depois de termos passado por tantas coisas. Eram tempos difíceis. O mundo parecia ter enlouquecido. Estava mergulhado num exasperante caos; a droga dominava tudo e todos. – Filipe! Do que é que estás à espera, serve as lulas que acabam por arrefecer. * * * A gordura já não caía na base do porta-espetadas, deixando agora longos fios que iam ligando as várias componentes da espetada. Servi com lentidão, tentando não galardoar o meu coçado blusão com mais algumas nódoas. A Leonilde gracejava: – Tem cuidado, não sujes o “smoking”! Sorri e olhei-a novamente. Não estava melhor do que eu. Vestia um casaco de homem com o forro a espreitar pela manga esquerda. Do mesmo lado o casaco não assentava minimamente. O volume do imenso “bacamarte” que ela usava fazia alarde às suas dimensões. – Sabes! continuou ela afastando o cabelo dos olhos – estou a ficar farta desta vida, sempre mal vestida e com toda a gente a olhar-me de lado e, pior do que tudo, com muito poucas perspectivas de mudança. – Alguém tem de fazer o trabalho sujo, respondi-lhe. – Está bem, mas escuso de ser eu, não achas? – O problema quanto a mim, ainda é o caso de estarmos a lutar contra duas forças! – Está bem, mas isso também há-de acabar um dia, mas deixa-te disso e vamos às lulas! Tirei os pedaços do ferro e bebi um pouco de vinho branco. A minha companheira não falou e mastigava os pedaços da comida com sofreguidão. Uma melancolia invadiu-me. Como as nossas vidas tinham mudado num ano… 365 dias e uma viragem total na vida de tantas pessoas.

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A comida entrava-me na boca, mas não lhe sentia o sabor. Estava desejoso de lhe contar o motivo do jantar. Não estava certo de coisa alguma, mas bem no meu íntimo algo me dizia que finalmente a nossa vida iria mudar. – Leo… e se por acaso tivesse uma grande notícia? A Leonilde parou de mastigar e olhou-me como se não tivesse percebido o que eu acabara de dizer, e com a delicadeza que o nosso recente modo de vida lhe gravara no espírito respondeu-me: – Ainda agora começaste a beber e já estás bêbado! Não ouvi mais nada. Se ela acrescentou algo àquele mimo já não ouvi, já estava muito longe, os meus pensamentos transportavam-me no tempo recuando meses e meses. * * * – Filipe! Filipe! – O que é? – Já são horas! – Já?! – A Clarinha já se está a remexer toda, levanta-te enquanto eu trato da menina! Levantei-me cambaleante e olhei para o relógio, 6.30 AM, o malvado relógio, era todos os dias a mesma coisa. Àquela hora entrava a telefonia a tocar e então que músicas, ou folclore ou um sujeito qualquer a palrar qualquer coisa. Fui à cozinha acender o esquentador tropeçando em tudo o que encontrava pelo caminho. Não sei porquê àquela hora os espaços para passarmos sofrem qualquer encolhimento nocturno. A Clara começava a chorar rabugenta, mas a Justina com uma paciência a quem só a ela conheço foi-lhe falando e a miúda acabou por se calar. Era um dia como os outros, a única diferença era que a Justina levava a Clarinha ao Tribunal onde trabalhava, queria que as colegas vissem a menina... coisas de colegas. * * * Preparei-me e saí para o quintal. O orvalho nocturno deixava os passeios molhados ao que eu correspondia com um pôr de pé muito cuidadoso para evitar escorregadelas. O Tejo, o nosso cão olhava-me abanando a cauda, não sei se feliz por me ver se feliz na expectativa de assistir a qualquer trambolhão da minha parte. Entrei no carro. Estávamos em Janeiro, tudo estava gelado, os próprios bancos tornavam-se incómodos e frios. Fiz uma primeira tentativa de pôr o motor em marcha, mas não resultou. Voltei a sair do carro. O Tejo continuava a fitar-me, talvez agora com um abanar de cauda menos amplo perdendo as esperanças de me ver cair vítima de alguma poça com mais humidade.

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