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Título O Mistério de Joana d'Arc Título original (francês) Jeanne d'Arc Médium Título em inglês The Mystery of Joan of Arc Autor Léon Denis Director Editorial Eduardo Amarante Tradutor Eduardo Amarante (francês) Mariana Costa Rodrigues (inglês) Coordenação e Revisão Dulce Leal Abalada Revisão Isabel Nunes Grafismo, Paginação e Arte final Div'Almeida Atelier Gráfico www.divalmeida.com/atelier Ilustração e Técnica da capa Gabriela Marques da Costa Arte Digital / Assemblage Digital Joana D'Arc a Celta – 2010 gabriela.marques.costa@gmail.com www.gabrielamarquescosta.wordpress.com www.facebook.com/home.php?#!/pages/Gabriela-Marques-da-Costa/134735599901538
+351 915960299 Impressão e Acabamento Espaço Gráfico, Lda. www.espacografico.pt Distribuição CESODILIVROS Grupo Coimbra Editora, SA comercial.cbr@cesodilivros.pt 1ª edição – Fevereiro 2011 ISBN 978-989-8447-09-8 Depósito Legal nº 322815/11 ©Apeiron Edições Reservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográfico sem a prévia autorização do editor. Projecto Apeiron, Lda. www.projectoapeiron.blogspot.com apeiron.edicoes@gmail.com Portimão – Algarve
Léon Denis
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O Mistério de Joana D’Arc
NOTA DO EDITOR
Esta obra teve a sua 1ª edição no Projecto Apeiron sob o título Joana d'Arc, a Celta, com base na tradução da edição francesa. Esta 2ª edição da obra, O Mistério de Joana d'Arc, foi revista de acordo com a edição inglesa.
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O Mistério de Joana D’Arc
A LINGUAGEM SIMBÓLICA DAS ILUSTRAÇÕES DE O mistério de Joana d'Arc Gabriela Marques da Costa (a pintora) Quando se pensa em Joana D'Arc fazemos logo a associação directa à padroeira da França. Este vulto ímpar, sendo para mim um dos mais marcantes de toda a História Universal, foi sem dúvida uma jovem mulher que no seu tempo teve a bravura e a grande coragem de lutar pelo seu País e pelo seu futuro Rei, Carlos VII, contra tudo e todos. Sempre deu a cara em todas as batalhas que participou, vestida de homem, e com o seu coração repleto de fé vibrante pelo seu grande ideal: a liPintura de Gabriela Marques da Costa bertação de França das garras de InCapa e Contracapa glaterra. Segundo Joana, as vozes que ouvia eram dos seus mentores: Santa Catarina de Alexandria, Santa Margarida e São Miguel Arcanjo, que a impulsionavam a dar a coragem, bravura e libertação de seu povo. Contudo, este coração puro e indefeso foi atraiçoado pela dura, cruel e implacável Inquisição. Ora, a melhor forma de representar esta delicada mas corajosa personagem histórica, foi inseri-la numa ambiência sua. As florestas da região de Lorena, o mesmo local que a viu crescer, acompanhavam-na nas suas viagens, nos seus pensamentos, nas suas intuições auditivas. Este cenário deixa passar ainda ao observador a verdadeira Joana, aquela que está a terminar a sua fase da adolescência e a ver o mundo através das suas comunicações com o Mundo Superior. Esta é sem dúvida a ambiência da capa deste livro. Toda esta ambiência bucólica e verdejante transmite ao observador calma e serenidade. Sendo o verde a cor predominante, esta é
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também como sabemos, a cor da esperança. A esperança de libertar o seu País. Toda esta personagem representa a esperança activa. Falando do plano de fundo, salientam-se algumas flores nomeadamente lírios do campo em amarelo e lilás. Estas flores são autóctones da França, bem como de toda a Europa, e são conhecidas também pelo nome de Flor-de-Lis ou Flor de Íris. Este nome lembra-nos logo a flor estilizada da Heráldica Francesa, bem como, as Flores-de-Lis que Joana continha na sua bandeira. Os lírios do campo a amarelo representam a felicidade simples e inocente desta jovem, bem como a alegria, o poder de decisão e as ideias claras de Joana. Porém, o significado negativo do amarelo também se liga ao pensamento desta jovem, pois significa medo e temor a certos assuntos incompreendidos. Falando dos lírios do campo em lilás, eles trazer consigo o simbolismo espiritual, das intuições e das revelações divinas que Joana d'Arc recebia. Esta cor está intimamente ligada à sensibilidade, espiritualidade e compaixão. No canto superior esquerdo encontramos a Mãe Celta – A Deusa Mãe. Sendo Joana D'Arc descendente do Celtismo, não podia deixar de colocar as suas raízes ancestrais. Esta figura, para a cultura celta era a Deusa mais importante do Panteão. Esta Deusa, para além de representar o Fogo e Luz representa a Protecção e a Justiça. As suas faces apresentam tatuagens tribais celtas pois uma das características deste povo era tatuar-se de forma perene ou apenas em combates e/ou guerras. Em contraponto temos a figura de um Ser Masculino, na borda do lado direito. A sua cor é um ocre alaranjado dando a sensação ao observador de uma personagem forte. Este Ser representa todas as intuições e comunicações vindas das entidades femininas que aconselhavam Joana. Neste caso a figura representada é o Arcanjo Miguel pois Joana d'Arc identificaria as vozes como sendo d'Ele, bem como, de Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida. Destas três personagens a representar optei por escolher São Miguel, pois é muito invocado pela cultura cristã e por ser também o líder dos Exércitos Celestiais. Assim, nesta capa no canto superior esquerdo temos as raízes ancestrais Celtas de Joana D'Arc e no canto superior direito, as suas raízes familiares estão representadas pelo Cristianismo, neste caso – São Miguel Arcanjo. As Luzes azuladas que saem destes dois seres e que vão ao encontro de Joana são uma forma de representar pictoricamente a intuição dada pelo Mundo Invisível. A cor azulada não está representada por acaso, pois representa a inteligência e protecção dada por estes seres. Ainda sobre seres invisíveis, no canto inferior esquerdo são-nos apresentados seres da Natureza, neste caso as Fadas dos bosques. Estas têm como missão preservar e tomar conta
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dos seus verdes e lindos bosques. A expressão destas três fadas é de protecção e de acompanhamento de Joana. As suas tonalidades remetem-nos para brancos transparentes simbolizando a leveza e a pureza do Ser. Passando para o primeiro plano e central, encontramos Joana d'Arc com uma expressão de menina indefesa, com olhar sonhador e cheia de inocência mas com vontade de salvar a sua França. A armadura é o símbolo que melhor define esta personagem feminina sempre representada com vestes masculinas e de armas. Contudo, não podia deixar de se fazer salientar o seu cabelo cortado como que dando a sensação de menina pura. O cavalo em que está montada é branco simbolizando a pureza de Joana bem como a sua luz, bondade, virgindade e isolamento. Por último falta-me falar do alvo estandarte que sempre ostentou nas batalhas em que participou. Nele estão representadas as flores-de-lis de forma abstracta bem como as palavras Jesus e Maria e a representação dos Anjos Celestiais. Esta descrição foi dada por Joana aos inquisidores, dizendo que teriam sido Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida a intuí-la. Quanto à contracapa, o cenário é exactamente o mesmo da capa apenas com um diferença dando assim ao observador a sensação de movimento e de tempo. Apenas são visíveis a luminosidade do verde e as fadas em grande plano do lado oposto ao cenário em que estavam na capa. Isto significa que Joana e os seus mentores passaram por aquele estreito caminho campestre e que apenas as fadas ficaram naquele espaço místico pois é o território delas. Ficaram assim a ver e a admirar esta jovem mulher que recebia intuições dos seres invisíveis e cuja vontade era de melhorar o seu País.
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ÍNDICE
Prefácio
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Introdução
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PRIMEIRA PARTE
A missão histórica da heroína Capítulo I Domrémy
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Capítulo II A situação em 1429
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Capítulo III A infância de Joana d'Arc
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Capítulo IV O poder secreto de Joana 1. O que eram as suas vozes e os poderes análogos antigos e modernos
38
38
Capítulo V Vaucouleurs
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Capítulo VI Chinon, Poitiers e Tours
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Capítulo VII Orleães
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Capítulo VIII Reims
91
Capítulo IX Compiègne
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Capítulo X Rouen – A prisão
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Capítulo XI Rouen – O julgamento
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Capítulo XII Rouen – O Suplício
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SEGUNDA PARTE
A origem druídico-cristã da espiritualidade de Joana
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Capítulo XIII As Missões e a Ideia de Pátria
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Capítulo XIV A Ideia de Humanidade
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Capítulo XV A Ideia de Religião 1. Mensagens proféticas
147 159
Capítulo XVI O Ideal Celta
164
Capítulo XVII Joana d'Arc e o moderno movimento espiritualista
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Capítulo XVIII Retrato e carácter de Joana
193
Capítulo XIX O Génio Militar
207
Capítulo XX Joana d'Arc no Século XX: os seus Admiradores e os seus Detractores
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Capítulo XXI A Imagem de Joana no Estrangeiro
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Conclusão
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O Mistério de Joana D’Arc
Prefácio A obra O Mistério de Joana D’Arc pretende dar a conhecer aos seus leitores uma nova faceta desta jovem heroína francesa do século XV. É de conhecimento geral a sua procedência campesina, humilde, que se tornou lendária (a ponto de alguns, poucos, duvidarem da sua existência) pela missão histórica de que foi incumbida pelos céus, lutando, unindo e libertando a sua pátria do domínio inglês. Se alguns historiadores, como é o caso de Léon Denis, autor da pre-sente obra, fundamentam e realçam o carácter missionário da sua luta a partir da capacidade mediúnica de Joana d’Arc (capacidade de ver e ouvir os espíritos invisíveis das esferas superiores), outros, porém, mais pragmáticos, vêem nela a figura de proa que em vida contribuiu para unir a resistência das hostes francesas, e depois de morta serviu de exemplo para unificar pacificamente uma França desventrada pelo poderio inglês. De qualquer modo, ambos os casos reforçam a ideia do papel desta jovem de 18 anos que se tornou uma lenda na História de França, à semelhança de outras tantas histórias lendárias conhecidas, ou não, que povoam o imaginário dos Anais da Humanidade. A obra, à semelhança do original em francês, está dividida em duas partes: a primeira fala-nos sobre a Missão Histórica da Heroína e, como o próprio título indica, fazemos uma viagem ao passado de Joana até ao seu epílogo. Os dados históricos aqui referenciados são verídicos e balizados em dois documentos principais: o Processo de Condenação, onde constam os Interrogatórios Secretos, e o Processo de Reabilitação de Joana d’Arc onde se incluem alguns Depoimentos interessantes. Ambas as documentações trazem à luz do dia algumas revelações supreendentes quanto ao carácter das visões e audições de Joana e das intenções dos seus algozes; a segunda parte, sob o título As Origens Druídica e Cristã da Espiritualidade percorre o caminho das origens, das raízes internas que forjaram e moldaram o carácter da jovem Joana d’Arc, ao longo das suas várias encarnações, até culminar na missão que teve de cumprir na França do século XV. Um outro aspecto, de entre muitos de interesse, desta obra O Mistério de Joana D’Arc reside nas informações que o autor disponibiliza ao leitor desde o tempo de meninice junto à família e amigos, até à chamada ao cumprimento da sua missão, passando pelos interesses políticos, religiosos e sociais da época, que pululam ao seu redor e são tão profícuos na época.
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A ligação que podemos encontrar entre Joana d’Arc e o povo celta, ou melhor, o pensamento druídico (seja esta filiação espiritual consciente ou não por parte da heroína) resumem-se, por um lado, ao acontecimento histórico da sagração do rei de França, Carlos VII, na Gália, e, por outro lado, à exaltação dos heróis celtas (como, por exemplo, Vercingétorix) que defenderam as suas terras contra o jugo estrangeiro (no caso, romano). A nação francesa nasceu pela luta, pelo combate e libertou-se do domínio inglês na região mítica da Gália (do mesmo modo que a nação portuguesa nasceu da Lusitânia). Podemos depreender que o aspecto espiritual que subjaz à acção missionária de Joana está assente em dois elementos essenciais: o celta e o cristão. Refira-se que a versão francesa desta obra com o nome Joana d’Arc Médium consta de duas partes, sendo que a primeira e a segunda parte tinham por título a Vida e Mediunidade de Joana d’Arc e As Missões de Joana respectivamente; porém, optámos por alterá-los a fim de indiciar mais directamente o tema em questão e tornar mais acessível o seu conteúdo informativo. Saliente-se que a inovação desta obra consiste em dar um aspecto pouco conhecido da heroína: o dom natural da visualização e audição dos seres auxiliares invisíveis aos olhos dos demais mortais, marca específica dos verdadeiros mediúns; digo, verdadeiros, pois na actualidade tal capacidade anda arredada da maioria dos seres humanos por ser demasiado perigosa e estar sujeita a frequentes fraudes. Contudo, no ano em que esta obra foi escrita, em 1910, a doutrina espírita estava em expansão e o autor Léon Denis, se bem que tivesse sido instruído na Maçonaria, não esteve alheio a este desenvolvimento, acabando por ser um dos maiores arautos do espiritismo a par de Alan Kardec, pelo que muitas das informações contidas nesta obra são produto da sua actividade neste domínio. Dulce Leal Abalada Dir. do Projecto Apeiron
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O Mistério de Joana D’Arc
Introdução Nunca a memória de Joana d’Arc foi objecto de controvérsias tão ardentes, tão apaixonadas, como a que, desde alguns anos, se vêm levantando em torno dessa grande figura do passado. Enquanto de um lado, exaltando-a sobremaneira, procuram monopolizá-la e encerrar-lhe a personalidade no paraíso católico, de outro, de forma brutal com Thalamas e Henri Bérenger, ou hábil e erudita, servida por um talento sem par, com Anatole France, esforçam-se por amesquinhar-lhe o prestígio e reduzir-lhe a missão às proporções de um simples facto episódico. Onde encontra Reims a verdade sobre o papel de Joana d’Arc na história? A nosso ver, nem nos devaneios místicos dos crentes, nem tampouco nos argumentos terra-a-terra dos críticos positivistas. Nem estes, nem aqueles parecem possuir o fio condutor, capaz de guiar-nos por entre os factos que compõem a trama de tão extraordinária existência. Para penetrar o mistério de Joana d’Arc, afigura-se-nos necessário estudar, praticar longamente as ciências psíquicas, sondar as profundezas do mundo invisível, oceano de vida que nos envolve, onde emergimos todos ao nascer e onde mergulha Reims pela morte. Como poderiam compreender Joana escritores cujo pensamento jamais se elevou acima do âmbito das contingências terrenas, do horizonte estreito do mundo inferior e material, e que nunca consideraram as perspectivas do Além? De há cinquenta anos a esta parte, um conjunto de factos, de manifestações, de descobertas, projecta uma nova luz sobre os amplos aspectos da vida, pressentidos desde a aurora dos tempos, mas sobre os quais apenas tínhamos até aqui dados vagos e incertos. Graças a uma observação atenta, a uma experimentação metódica dos fenómenos psíquicos, foi-se constituindo, pouco a pouco, uma vasta e poderosa ciência. O Universo aparece-nos como um reservatório de forças desconhecidas, de energias incalculáveis. Um infinito vertiginoso abre-se-nos ao pensamento, infinito de realidades, de formas, de potências vitais, que nos escapavam aos sentidos. Algumas manifestações dessas forças já puderam ser medidas com grande precisão, por meio de aparelhos registadores1.
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Ver Annales des Sciences Psychiques, de Agosto, Setembro e Novembro de 1907 e Fevereiro de 1909.
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A noção do sobrenatural esboroa-se; mas a Natureza imensa vê os limites dos seus domínios recuarem sem cessar, enquanto se revela a possibilidade de uma vida orgânica invisível, mais rica, mais intensa do que a dos humanos, regida por majestosas leis, vida que, em muitos casos, se mistura com a nossa e a influencia para o bem ou para o mal. A maior parte dos fenómenos do passado, afirmados em nome da fé, negados em nome da razão, podem doravante receber explicação lógica, científica. Estão nessa ordem os factos extraordinários que matizam a existência da Virgem de Orleães. Só o estudo de tais factos, facilitado pelo conhecimento de fenómenos idênticos, observados, classificados, registados nos nossos dias, pode explicar-nos a natureza e a intervenção das forças que nela e em torno dela actuavam, orientando-lhe a vida para um nobre objectivo. Os historiadores do século XIX – Michelet, Wallon, Quicherat, Henri Martin, Siméon, Luce, Joseph Fabre, Vallet de Viriville, Lanéry d’Arc, foram unânimes em exaltar Joana, em considerá-la uma heroína de génio, uma espécie de messias nacional. Somente no século XX é que a nota crítica se fez ouvir, e por vezes de forma violenta. Thalamas, professor substituto da Universidade, na sua obra Jeanne d’Arc: l’histoire et la légende2 nunca sai dos limites de uma crítica honesta e cortês. O seu ponto de vista é o dos materialistas: “Não cabe a nós – diz3 – que consideramos o génio uma neurose, censurar Joana por ter objectivado em santas as vozes da sua própria consciência.” Todavia, nas conferências que fez em França, foi geralmente mais incisivo. Em Tours, a 29 de Abril de 1905, falando sob os auspícios da Liga do Ensino, recordava a opinião do professor Robin, de Cempuis, um dos seus mestres, segundo o qual Joana d’Arc nunca existira, e a sua história não passava de um mito. Thalamas, talvez um tanto constrangido, reconhece a realidade da vida de Joana, mas arremete contra as fontes em que os seus panegiristas beberam. Engendra amesquinhar-lhe o papel, sem descer ao ponto de injuriá-la. Segundo ele, Joana pouco ou nada teria feito, pelo que caberia aos habitantes de Orleães todo o mérito de se terem libertado. Henri Bérenger e outros escritores abundaram em apreciações análogas e o próprio ensino oficial como que se impregnou, até certo ponto, dessas opiniões. Nos manuais das escolas primárias, eliminaram da história de Joana toda a componente espiritualista. 2 3
Paclot & C. editores. Ibidem, pág.41.
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Neles já não se alude às suas vozes; é sempre “a voz da sua consciência” que a guia. É notória a diferença. Anatole France, nos seus dois volumes, obra de arte e de inteligência, não vai tão longe. Não tenta deixar de reconhecer-lhe as visões e as vozes. Aluno da École des Chartes4, não ousa negar a evidência, perante a vasta documentação de que dispõe. A sua obra é uma reconstituição fiel da época. Pinta a fisionomia das cidades, das paisagens e dos homens do tempo com mão de mestre, com uma habilidade, uma finura de toque, que lembram Renan. Entretanto, a leitura dos seus escritos deixa-nos frios e desapontados. As opiniões que emite são às vezes falsas, por efeito do espírito de partido, e, coisa mais grave, sente-se, desfolhando-lhe as páginas, uma ironia subtil e penetrante, que já não é história. Na verdade, o juiz imparcial deve dar testemunho de que Joana, exaltada pelos católicos, é denegrida pelos livres pensadores, mais por espírito de contradição e de oposição aos primeiros do que por ódio. A heroína, disputada por uns e outros, torna-se assim uma espécie de joguete nas mãos dos partidos. Há excessos nas apreciações de ambos os lados e a verdade, como quase sempre, é equidistante dos extremos. O ponto capital da questão é a existência de forças ocultas que os materialistas ignoram, de potências invisíveis, não sobrenaturais e miraculosas, como pretendem, mas pertencentes a domínios da natureza, que ainda não exploraram. Daí, a impossibilidade de compreenderem a obra de Joana e os meios pelos quais lhe foi possível realizá-la. Não souberam medir a enormidade dos obstáculos que se deparavam diante da heroína. Pobre menina de dezoito anos, filha de humildes camponeses, sem instrução, não sabendo o A, B, C, diz a crónica. Tem contra si a própria família, a opinião pública, toda a gente! Que teria feito sem a inspiração e sem a visão do Além, que a sustentavam? Imaginai essa camponesa na presença dos nobres do reino, das grandes damas e dos prelados. Na corte, nos acampamentos, por toda a parte, simples vilã, vinda do fundo dos campos, ignorante das coisas da guerra, com o seu sotaque defeituoso, cumpre-lhe enfrentar os preconceitos de hierarquia e de nascimento, o orgulho de casta; depois, mais tarde, os motejos, as brutalidades dos guer-
Nota do Tradutor – Não confundir com a Escola de Chartres. A École Nationale des Chartes é uma grande escola, situada na Sorbonne, em Paris, especializada nas ciências auxiliares da História (in Wikipédia, a enciclopédia livre).
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reiros, habituados a desprezar a mulher, não podendo admitir que uma donzela os comandasse e dirigisse. Juntai a isso a desconfiança dos homens da Igreja, que, nessa época, viam em tudo o que é anormal a intervenção do demónio; esses não lhe perdoaram actuar sem a permissão deles, fazendo jus à autoridade que se arrogavam, e aí estará, para ela, a causa principal de sua perda. Imaginai a curiosidade malsã de todos e, particularmente, dos soldados, no meio dos quais, virgem sem mácula, tem de viver suportando constantemente as fadigas, as penosas cavalgadas, o peso esmagador de uma armadura de ferro, dormindo no chão, sob a tenda, pelas longas noites do acampamento, presa dos acabrunhadores cuidados e preocupações de tão árdua tarefa. Todavia, durante a sua curta carreira, vencerá todos os obstáculos e, de um povo dividido, fragmentado em mil facções, desmoralizado, extenuado pela fome, pela peste e por todas as misérias de uma guerra que dura há perto de cem anos, fará uma nação vitoriosa. Eis aí o que escritores de talento, mas cegos, flagelados por uma cegueira psíquica e moral, que é a pior das enfermidades intelectuais, procuram explicar por meios puramente materiais e terrenos. Pobres explicações, pobres argúcias claudicantes, que não resistem ao exame dos factos! Pobres almas míopes, almas de trevas, que as luzes do Além deslumbram e atordoam! É a elas que se aplica esta sentença de um pensador: o que sabem não passa de um nada e, com o que ignoram, se criaria o Universo! Coisa deplorável: certos críticos da actualidade como que experimentam a necessidade de rebaixar, de diminuir, de anular com frenesim tudo que é grande, tudo que paira acima da sua incapacidade moral. Onde quer que brilhe um luzeiro, ou se acenda uma chama, havereis de vê-los a correr e a derramar um dilúvio de água sobre o foco luminoso. Ah! como Joana, na ignorância das coisas humanas, mas com a sua profunda visão psíquica, lhes dá uma lição magnífica por estas palavras que dirigia aos examinadores de Poitiers e que tão bem se enquadram nos cépticos modernos, nos pretensiosos espíritos superiores do nosso tempo: “Leio num livro em que há mais coisas do que nos vossos!” Aprendei também a ler nele, senhores críticos, e a conhecer os problemas a que aludem aquelas palavras; em seguida, podereis, com um pouco mais de autoridade, falar de Joana e da sua obra.
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Através das grandes cenas da História, ireis ver passar as almas das nações e dos heróis. Se as souberdes amar, elas virão a vós e inspirar-vos-ão. É esse o arcano do génio da História. É isso que gera os escritores pujantes como Michelet, Henri Martin e outros. Esses compreenderam o génio das raças e dos tempos e o sopro do Além perpassa nas suas páginas. Os outros, Anatole France, Lavisse e seus colaboradores são áridos e frios, mau grado o talento, porque não sabem nem percebem a comunhão eterna que fecunda a alma pela alma, comunhão que constitui o segredo dos artistas de escol, dos pensadores e dos poetas. Sem ela não há obra imperecível. Uma fonte abundante de inspiração brota do mundo invisível sobre a Humanidade. Laços estreitos subsistem entre os homens e os desaparecidos. Misteriosos fios ligam todas as almas e, mesmo neste mundo, as mais sensíveis vibram ao ritmo da vida universal. Tal é o caso da nossa heroína. A crítica pode atacar a sua memória: contudo, os seus esforços serão inúteis. A existência da Virgem da Lorena, assim como a de todos os grandes predestinados, está gravada no granito eterno da História, e nada lhe poderia apagar os traços. É daquelas que mostram com a máxima evidência, por entre a onda tumultuosa dos eventos, a mão soberana que conduz o mundo. Para lhe captarmos o sentido, para compreendermos a potestade que a dirige, é mister que nos elevemos até à lei superior, imanente, que preside ao destino das nações. Mais alto do que as contingências terrenas, acima da confusão dos feitos oriundos das liberdades humanas, é preciso que se perceba a acção de uma vontade infalível, que domina as resistências das vontades particulares, dos actos individuais, e sabe rematar a obra que empreende. Em vez de nos perdermos na balbúrdia dos factos, é necessário que apreendamos o seu conjunto e descubramos o laço oculto que os prende. Aparece então a trama, o encadeamento deles; a sua harmonia desvenda-se, enquanto as suas contradições se apagam e fundem num vasto plano. Compreende-se logo que existe uma energia latente, invisível, que irradia sobre os seres e que, deixando a cada um uma certa porção de iniciativa, envolve e arrasta a todos para um mesmo fim. Pelo justo equilíbrio da liberdade individual e da autoridade da lei suprema é que se explicam e conciliam as incoerências aparentes da vida e da História, do mesmo modo que o sentido profundo e a finalidade de uma e outra se revelam àquele que sabe penetrar a natureza íntima das coisas. Fora desta acção soberana não haveria nada mais do que desordem e caos na variedade
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infinita dos esforços, dos impulsos individuais, numa palavra, em toda a obra humana. De Domrémy a Reims, esta acção é evidente na epopeia da Pucela. É que então a vontade dos homens associa-se, em larga medida, aos fins visados lá do Alto. A partir da sagração, porém, predominam a ingratidão, a maldade, as intrigas dos cortesãos e dos eclesiásticos, a má vontade do rei. Segundo a expressão de Joana, “os homens recusam-se a Deus”. O egoísmo, o desregramento, a rapacidade serão obstáculos à acção divina servida por Joana e seus invisíveis auxiliares. A obra de libertação tornar-se-á mais incerta, eivada de vicissitudes, de recuos e de reveses. Contudo, Joana não deixará de prosseguir, mas serão necessários, para o seu cumprimento, um maior número de anos e de mais penosos labores. É, já o dissemos, unicamente do ponto de vista de uma ciência nova, que empreendemos este trabalho. Insistimos em repeti-lo, a fim de que não haja equívoco sobre as nossas intenções. Procurando lançar alguma luz sobre a vida de Joana d’Arc, não nos move nenhum interesse particular, nenhum preconceito político ou religioso; colocamo-nos tão longe dos anarquistas quanto dos reaccionários, a igual distância dos fanáticos cegos e dos incrédulos. É em nome da verdade e também por amor à pátria francesa que procuramos libertar a nobre figura da inspirada virgem das sombras de que tantos a procuraram envolver. Sob o pretexto de análise e de livre crítica, há na nossa época uma tendência profundamente lamentável para denegrir tudo o que provoca a admiração dos séculos, para alterar, conspurcar tudo o que se mostra isento de taras e de nódoas. Consideramos como um dever, que incumbe a todo o homem capaz de exercer, por meio da pena ou da palavra, alguma influência à volta de si, manter, defender, realçar o que constitui a grandeza do nosso país, todos os nobres exemplos por ele oferecidos ao mundo, todas as belas cenas que enriquecem o seu passado e cintilam na sua história. Acção nefasta, quase crime, é tentar empobrecer o património moral, a tradição histórica de um povo. Com efeito, não é isso que o fortalece nos momentos difíceis? Não é aí que ele vai buscar os mais viris sentimentos nas horas de perigo? A tradição e a história de um povo são a poesia da sua vida, o seu consolo nas provações, a sua esperança no futuro. É pelas ligações que ela cria entre todos, que nos sentimos verdadeiramente filhos de uma mesma mãe, membros de uma pátria comum. Assim, convém lembrar frequentemente as grandes cenas da nossa história nacional e pô-la em relevo. Ela mostra-se cheia de
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lições brilhantes, ricas de ensinamentos fecundos e, por isso, talvez seja superior à de outras nações. Desde que exploramos os antecedentes da nossa raça, por toda a parte, em todos os tempos, vemos erguerem-se vultosas sombras, que nos falam e exortam. Do fundo dos séculos elevam-se vozes que avivam em nós sublimes recordações, lembranças tais que, se estivessem sempre presentes no nosso espírito, bastariam para nos inspirar, para iluminar as nossas vidas. Mas o vento do cepticismo sopra e o olvido e a indiferença se fazem; as preocupações da vida material nos absorvem e acabamos por perder de vista o que há de mais grandioso, de mais eloquente nos testemunhos do passado. Nenhuma dentre essas lembranças é mais tocante, mais gloriosa do que a da donzela, que iluminou a noite da Idade Média com a sua aparição radiosa, da qual pôde Henri Martin dizer: “Nada de semelhante ainda se produziu na História do mundo.” Em nome, pois, do passado, como do futuro da nossa raça, em nome da obra que lhe resta completar, esforcemo-nos por lhe conservar íntegra a herança e não hesitemos em rectificar as opiniões falsas que certos escritores formularam em publicações recentes. Trabalhemos para exaurir da alma do povo o veneno intelectual que se lhe procura inocular, a fim de guardarmos para a França a beleza e a força que ainda a farão grande nas horas de perigo, a fim de restituirmos ao génio nacional todo o seu prestígio, todo o seu esplendor, ofuscados por tantas teorias malfazejas e tantos sofismas. É forçoso reconhecer que no mundo católico, melhor do que algures, têm sabido prestar a Joana homenagens solenes. Nos meios crentes, louvam-na e glorificam-na, erigem-lhe estátuas e basílicas. Por sua parte, os republicanos livres-pensadores imaginaram, recentemente, criar em sua honra uma festa nacional, que seria ao mesmo tempo a do patriotismo. Porém, num campo como noutro, nunca chegaram a compreender o verdadeiro carácter da heroína, a entender o sentido da sua vida. Poucos souberam analisar essa admirável figura que se ergue acima dos tempos e domina as mais elevadas concepções da epopeia, essa figura que nos parece mais imponente à medida que dela nos afastamos. A história de Joana é uma inesgotável fonte de ensinamentos, cuja extensão total ainda não foi medida e da qual não se tirou ainda todo o partido desejável para a elevação das inteligências, para a penetração das leis superiores da Alma e do Universo.
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Léon Denis
Há, na sua vida, profundezas capazes de causar vertigem aos espíritos mal preparados; nela deparam-se factos susceptíveis de lançar a incerteza, a confusão, no pensamento dos que carecem dos dados necessários para resolver tão majestoso problema. Daí, tantas discussões estéreis, tantas polémicas inúteis. Mas, para aquele que levantou o véu do mundo invisível, a vida de Joana aclara-se e ilumina-se. Tudo o que essa vida contém explica-se, torna-se compreensível. Vede, com efeito, entre os que enaltecem a heroína, quantos pontos de vista diferentes, quantas apreciações contraditórias! Uns procuram, acima de tudo, na sua memória, uma ilustração para o partido a que pertencem; outros, mediante uma glorificação tardia, sonham aliviar uma certa instituição secular das responsabilidades que pesam sobre ela. Contam-se ainda os que não querem ver nos sucessos de Joana mais do que a exaltação do sentimento popular e patriótico. Parece lícito duvidar-se que, aos elogios que de todos os pontos da França se dirigem à grande inspirada, não se mesclem muitas intenções egoístas, muitos propósitos interesseiros. Pensa-se em Joana, sem dúvida; ama-se Joana; mas, ao mesmo tempo, não pensarão em si próprios, ou no partido em que se filiaram? Não se procurará também nessa vida augusta algo que possa lisonjear os sentimentos pessoais, as opiniões políticas, as ambições inconfessáveis? Muito poucos homens, infelizmente, sabem colocar-se acima dos seus preconceitos, acima dos interesses de classe ou de casta. Bem poucos são os que se esforçam por descobrir o segredo daquela existência e, entre os que o penetraram, nenhum até hoje, salvo casos restritos, ousou erguer a voz e dizer o que sabia, o que via e percebia. Quanto a mim, se os meus títulos são modestos para falar de Joana d’Arc, pelo menos há um que reivindico convictamente: o de estar liberto de qualquer preocupação de partido, de toda a preocupação em agradar ou desagradar. É na liberdade plena do meu pensamento, com a minha consciência independente, isento de qualquer ligação, não procurando, não querendo em tudo senão a verdade, é nesse estado de espírito que entro em tão elevado assunto e vou em busca da chave do mistério que envolve tão incomparável destino.
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1ª PARTE A MISSÃO HISTÓRICA DA HEROÍNA
O Mistério de Joana D’Arc
CAPÍTULO I Domrémy O vale é encantador; uma torrente deslumbrante desliza ao vivo cintilar da luz esplendorosa, é o Mosa. Saint-Yves d’Alveydre
Filho da Lorena, nascido, tal como Joana, no vale do Mosa, tive a acalentar-me a infância as recordações que ela deixou no país. Durante a minha mocidade, visitei amiúde os lugares onde ela vivera. Apreciava vaguear sob as grandes abóbadas das nossas florestas lorenas, outros tantos destroços da antiga floresta das Gálias. Como Joana, inúmeras vezes prestei atenção às harmonias dos campos e dos bosques. Posso dizer que também conheço as vozes misteriosas do espaço, as vozes que, na solidão, inspiram o pensador e lhe revelam as verdades eternas. Homem feito, quis seguir-lhe as pegadas através de França. Refiz, quase que etapa a etapa, a dolorosa viagem. Vi o castelo de Chinon, onde Carlos VII a recebeu, reduzido hoje a ruínas. Vi, ao fundo da Touraine, a pequenina igreja de Fierbois, onde ela mandou que retirassem a espada de Carlos Martel; vi as grutas de Courtineau, onde buscou refúgio durante uma tempestade; em seguida, Orleães e Reims, Compiègne, onde a prenderam. Em nenhum lugar por onde a virgem tenha passado deixei de ir meditar, orar, chorar em silêncio. Mais tarde, na cidade de Rouen (Rouen), sobre a qual paira a sua sombra imensa, terminei a minha peregrinação. Como os cristãos que percorrem passo a passo o caminho que leva ao Calvário, assim percorri a via dolorosa que conduzia a grande mártir ao suplício. Voltei depois a Domrémy. Tornei a contemplar a humilde casinha que a viu nascer; o aposento, arejado por um estreito respiradouro, cujas paredes seu corpo virginal, destinado à fogueira, ro-
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