Histórica

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A POLÊMICA NO FINAL DO OITOCENTOS BRASILEIRO Milena da Silveira Pereira Tobias Barreto, mestre e companheiro de Sílvio Romero na “Escola do Recife”, comentou certa vez que a crítica nesse historiador sergipano sempre andou lado a lado com a polêmica, isto é, o crítico e o polemista, disse Barreto, “faziam no autor uma tal aliança que infalivelmente haviam de depenar quem lhe caísse nas unhas”. Aquilo que o crítico deixava, continua Barreto, “o polemista ia atirando fora, sendo o resultado ficarem os pobres autores completamente despidos”.1 José Veríssimo, igualmente, chegou a afirmar que a "tinta de escrever embriagava-o" a ponto de perder a cabeça. Outra passagem ilustrativa dessa fama do historiador sergipano foi a declaração de Araripe Júnior, seu contemporâneo na Faculdade de Direito do Recife, o qual revelava que quando Romero apareceu no Rio de Janeiro “dir-se-ia que uma cascavel, vinda dos sertões de Sergipe, tinha-se emboscado à rua do Ouvidor e ameaçava a todo o mundo com a violência de sua mortífera peçonha”.2 Apresentá-lo como um agitador, como um crítico polêmico e apaixonado ou como uma “imagem nervosa do país” tornou-se um lugar-comum tanto nos estudos sobre Romero quanto na historiografia literária brasileira. Todavia, surge, então, a partir dessas afirmações sobre o caráter polemista de Sílvio Romero, um problema: será que este estilo belicoso de Romero foi singular no período? A polêmica pode ser considerada uma prática, ou seja, um traço estruturante do pensamento dos letrados do terceiro quartel do século XIX? Já de saída podemos apresentar algumas declarações de intelectuais do período que participaram do inquérito literário de João do Rio – O Momento Literário. Félix Pacheco, por exemplo, figura proeminente do Simbolismo, pontua que “quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada”.3 Elísio de Carvalho, outro entrevistado, se define como “um apaixonado, um homem de idéias extremas, um espírito combativo, um enérgico, um impulsivo, podemos dizer sem exagero que sou um rebelde nato”.4 Gustavo Santiago, igualmente, vai afirmar que “nunca o Brasil intelectual andou um quarto de hora mais belicoso”.5 Esse discurso acerca da necessidade de se ter uma crítica acirrada e de se manter polêmicas foi sempre um dos traços característicos dos intelectuais do tempo. Brito Broca, um conhecedor de longa data da história social de nossas letras, nesse sentido, ressalta que a polêmica fez parte do quadro de costumes literários da época,6 ou seja, a polêmica, para os letrados do final do século XIX e início do XX, foi tomada como um gênero literário e muitas vezes como o principal meio de propagação de idéias. Era a polêmica, como nos mostra Carlos Süssekind de Mendonça,"o entretenimento predileto dos intelectuais” do final do Oitocentos, isto é, o intelectual desse período que queria aparecer, explica Mendonça, "já sabia o recurso mais eficiente de que dispunha:

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BARRETO, T. apud ROMERO, S. História da Literatura Brasileira (1888). 7a ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980. 5 v, p. 34. 2 ARARIPE JÚNIOR, T. A. Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária. (seleção e apresentação de) Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978, p. 319. 3 PACHECO, F. apud RIO, J. O Momento Literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, s/d [1906], p. 170. 4 CARVALHO, E. apud RIO, J. Op.cit. p. 263. (grifo do autor) 5 SANTIAGO, G. apud RIO, J. Op.cit. p.293. 6 Cf. BROCA, B. A Vida Literária no Brasil – 1900. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960, p. 201.


aguardava uma oportunidade para entrar em polêmica com quem quer que fosse, a propósito dos assuntos em que se sentisse mais à vontade".7 É verdade, a propósito, que a polêmica de um modo geral pode nos levar a pensar em reflexão rápida, superficial, movida pelo calor da hora, ou mesmo, em textos repletos de muito tempero, de defesas apaixonadas, de interpelações irônicas, de xingamentos explícitos e de um sem-número de outros atrativos. Todavia, é verdade também que no afã de criticar ou se defender, os literatos do período criaram textos que são muitas vezes permeados de fina erudição. Os produtores da polêmica, segundo George Ermakoff, em seu estudo sobre grandes polêmicas do século XIX e do XX: mergulhavam de corpo e alma na contenda sem os apetrechos eletrônicos de que hoje dispomos, produzindo textos intermináveis, como se fossem rios caudalosos represados em suas mentes a escoarem através da pena, em ritmo alucinante, varando dias e noites de trabalho solitário, pelo simples prazer de se fazer prevalecer perante a opinião da sociedade leitora.8 A necessidade de afirmação desses letrados do final do Oitocentos9 era tão forte que Machado Neto, em seu estudo sociológico sobre a vida intelectual brasileira, vai afirmar que “o pequeno público leitor tinha de ser disputado, o que envolvia o grupalismo, a guerra de cotéries literárias, a polêmica, os elogios mútuos, as metáforas bélicas”.10 Essa idéia, a propósito, de disputa, luta e polêmica é sustentada, como declaram os intelectuais da época, em grande medida, pela teoria evolucionista11, a qual justificava a violência de tais debates como necessária à propagação das novas idéias e ao aperfeiçoamento cultural e social. Afinal, segundo Roberto Ventura, "na ótica de Romero e de seus contemporâneos, cabia à polêmica contribuir para o processo de seleção e depuração das obras e escritores, lançados ao público na luta pela existência”.12 Nesse afã de defender seu lugar na intelectualidade brasileira, a grande maioria dos letrados se agrupavam em coteries ou “igrejinhas”, o que colaborou significativamente para a agitação e efervescência desse período. Machado Neto, por exemplo, chegou a definir essas “panelinhas literárias” como uma “associação de ajuda mútua na República das Letras”. Em cada fase do período, continua Machado Neto, “uma igrejinha intelectual estava na berlinda da vigência” e era alvo predileto tanto dos elogios como dos ataques, ou seja, foi constante, no Brasil, a existência de um grupo literário que se constituiu, de um modo geral, como o grupo oficial e dominou a vida literária. É muito difícil, contudo, definir as “igrejinhas” dominantes e as que almejavam esse posto, em razão da mobilidade de suas posições táticas, da rapidez com que faziam e desfaziam alianças, da rivalidade de ocasião, entre outros fatores. Além disso, essa não é nossa preocupação central nesse breve estudo, queremos apenas

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MENDONÇA, C. S. Sílvio Romero. Sua Formação Intelectual (1851-1880). São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1938, p. 76. 8 BUENO, A. e ERMAKOFF, G. (org). Duelos no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005, p. 8. 9 Não só nos intelectuais do final do século XIX se tornou notória a necessidade de afirmação, mas também em toda a vida intelectual brasileira isso foi uma constante. 10 MACHADO NETO, A. L. Estrutura Social da República das Letras (Sociologia da Vida Intelectual Brasileira – 1870-1930). São Paulo: Edusp, 1973, p. 24. 11 Sobre evolucionismo...... 12 VENTURA, R. Estilo Tropical: história tropical e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 80.


mostrar um pouco da efervescência desse fim do século XIX para tentar perceber o papel que a polêmica teve nesse cenário. Assim sendo, Brito Broca, no seu esforço de apresentar uma história social de nossas letras, vai afirmar que a vida literária no final do XIX e início do XX sobrepujou a literatura e que as polêmicas se colocaram mais no terreno da vida literária do que da literatura. Havia, segundo Broca, uma necessidade entre os intelectuais do período de viver a literatura, ou seja, estes homens buscavam “literalizar o trato cotidiano da existência”.13 Esse viver a literatura, especialmente pelos boêmios, se fazia, em grande parte, na Rua do Ouvidor – “estreita ágora mundana e literária onde se faziam e desfaziam os mitos e os prestígios da vida intelectual”.14Ali se encontravam os principais cafés, confeitarias, jornais e livrarias, os quais possuíam, em certa época, cada um a sua “igrejinha” efetiva. O mais famoso dos estabelecimentos, de acordo com os estudos sobre a vida literária, foi a Livraria Garnier, onde se reunia o grupo de Machado de Assis. Este, que nunca freqüentava os cafés ou as confeitarias, se encontrava na Garnier todas as tardes com José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Coelho Neto, Taunay, Nabuco e outros, para um café, depois do fechamento da Revista Brasileira. Dessas tertúlias nascera, tempos depois, a Academia Brasileira de Letras. João Luso, a propósito, em seu A Sublime Porta, para ilustrar o papel da Livraria Garnier, escrevia que: ficar ali de perna trançada, o ombro contra o batente, as duas mãos solidamente apoiadas no castão da bengala, eis a decisiva demonstração de talento ou de valor que a história exige para conscientemente se pronunciar.15 Nessa luta pela vigência das coteries ou igrejinhas, os intelectuais, na maioria das vezes, se posicionam no elogio dos amigos, ou seja, os amigos eram sempre uns gênios, escritores de talento, homens brilhantes, além de outros tantos adjetivos mais. Qualificar, assim, de gênio o escritor amigo era quase tão trivial como uma qualquer regra de polidez e, em contrapartida, ao elogio para “os nossos”, correspondia o ataque e perseguições aos “deles”. Silva Ramos em seu depoimento a João do Rio chegou a declarar que o principio fundamental da crítica entre nós era o seguinte: “os nossos amigos são uns gênios, os outros são todos uns alarves”.16 E nesse fogo cruzado dos elogios mútuos, Coelho Neto, em seu A Conquista, interroga que “se não aparecer um homem de coragem que se ponha à dominação da grei dos turiferários ficaremos reduzidos a que, faça favor de dizer, a que?” E responde que há de “ser implacável. Se tivessem talento, muito bem, mas são todos uns nulos, sem originalidade, sem estilo e pretensiosos como tudo. Chefes!...Ora pelo amor de Deus!”.17 Sílvio Romero, a propósito, salienta que: se algum merecimento me pode caber como crítico e historiador literário é ter sido sempre o defensor constante dos talentos provincianos contra a estreiteza de espírito revelada pelos criticalhos do Rio, no menosprezo sistemático que tem por norma contra todos os que não fazem parte da panelinha do elogio mútuo, em

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BROCA, B. Op.cit.,p. 37. Cf. MACHADO NETO, A. L. Op.cit. , p. 201. 15 LUSO, J. apud BROCA, B. Op.cit. , p. 41. 16 RAMOS, S. apud RIO, Op.cit. , J. p. 179. 17 COELHO NETO apud BROCA, B. Op.cit. , p. 129 14


que se dessoram a si próprios e fazem moer quantos lhes são adversos, nomeadamente os bons escritores provincianos”.18 A guerra das “panelinhas” literárias, a polêmica, a troca de elogios, as metáforas belicosas foram, então, algumas constantes perceptíveis nos escritos dos intelectuais do tempo. Machado Neto, nesse sentido, declarou que “raro era o homem de letras e até, mesmo, o homem público que tivesse passado a vida sem experimentar a vivência belicosa da polêmica”.19 E não somente havia o polemista, vale pontuar, mas ainda um público das polêmicas. Segundo Machado Neto, nos jornais, os polemistas “representavam para um público que aplaudia e fazia prognósticos e – quem sabe?! – até... apostas”. Esse público das polêmicas acompanhava fielmente as disputas, com uma atenção quase esportiva, e se constituíram como um “auditório ressonante que assistia diariamente aos grandes lances polêmicos das vedetas da pena”.20 Diante dessas colocações sobre o papel da polêmica no universo literário do final do Oitocentos brasileiro, vale indagar: qual era o principal meio de divulgação dessas polêmicas? Destaque especial merece o jornal, o qual deu condições necessárias para a existência de uma vida intelectual tão intensa no Brasil. João do Rio, a propósito, em seu inquérito literário perguntou a todos os entrevistados os efeitos do jornalismo para a literatura. Olavo Bilac, por exemplo, responde que “o jornalismo é para todos os escritores brasileiros um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal”.21 Sílvio Romero, igualmente, declara que “o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o criador da literatura brasileira [...]. É no jornal que tem todos estreado os seus talentos; nele é que tem todos polido a linguagem, apreendido a arte da palavra escrita”. Declara ainda que é pelo jornalismo que “os homens de letras chegam a influir nos destinos deste desgraçado país entregue, imbele, quase sempre à fúria de politiqueiros sem saber, sem talento, sem tino, sem critérios, e, não raro, sem moralidade”.22 Ao contrário desses entusiastas do jornal, Clóvis Beviláqua, em seu depoimento, afirma não ser muito simpático ao jornalismo. Alega, sem negar o seu valor cultural, que daqueles “que nele trabalham, esgota as energias, dispersa os esforços e alimenta a superficialidade”, e, em contrapartida, aqueles “que nele bebem idéias, mais vezes perturba do que orienta, mais vezes agita paixões do que esclarece opiniões”. E completa, “é uma forte projeção de luz envolvida em densa fumarada”.23 Do mesmo modo, Guimarães Passos vai asseverar que o jornalismo é “péssimo. O Jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há trocos; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo”.24 Malgrado seja possível notar, no inquérito de João do Rio, apologistas e críticos do jornalismo, não se pode negar o valor que o jornal teve nessa época. A colaboração para a imprensa se apresentava como uma trilha concreta em direção à profissionalização dos escritores e ao aumento de prestígio e influência política desses homens de letras. Sérgio Miceli, por exemplo, em seu livro Poder, Sexo e Letras na República Velha, afirma que “toda a vida intelectual era dominada pela grande

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ROMERO, S. apud BROCA, B. Op.cit., p. 28. (grifo nosso). MACAHDO NETO, A. L. Op.cit., p. 147. 20 IDEM 21 BILAC, O. apud RIO, J. Op.cit , p. 10. 22 ROMERO apud RIO, J. Op.cit., p. 49. 23 BEVILAQUA, C. apud RIO, J. Op.cit., p. 111-112. 24 PASSOS, G. apud RIO, J. Op.cit., p. 150. 19


imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais”. 25 Além disso, Flora Sussekind, em Cinematógrafo de Letras, pontua que a linguagem do literato no final do XIX foi tomando uma dimensão de escrita jornalística, ou seja, o “simples fato de trabalharem na imprensa diária, em contato com a visão de cada dia como condensação privilegiada da História, parece sugerir a esses poetas uma espécie de forma literária de passagem, moldada no jornal”.26 Esses intelectuais não só conceberam um novo estilo de escrita, a jornalística, como também criaram, nesse período, um vocabulário beligerante próprio. George Ermakoff, igualmente, declara que houve uma “transmutação de pacatos intelectuais em guerreiros da palavra”.27 Guerreiros estes que transformaram a linguagem da crítica em um jargão de guerra, criando um vocabulário específico para se referirem tanto à vida literária como às suas obras e os títulos de suas obras. De acordo com Machado Neto, por exemplo, para se referirem a carreira literária, as palavras eram “liça, luta, embate”, para falar da ascensão literária “fala-se sempre em batalha, pugnas, combates”.28 Esses viperinos do final do Oitocentos, portanto, criaram uma linguagem bélica própria e exemplos desse vocabulário foi o famigerado neologismo polêmico de Sílvio Romero, Zeverissimações, em sua obra de ataque a José Veríssimo, ou alguns títulos de suas obras, como Doutrina contra Doutrina, Provocações e Debates. Tais títulos biliosos, todavia, não eram encontrados somente nas obras de Sílvio Romero, mas também em livros como o de Lúcio de Mendonça, intitulado Vergastas, ou na obra de Valentin Magalhães, com o título de Cantos e Lutas, entre outros. Mas os considerados campeões de polêmicas, no terceiro quartel do século XIX, foram: o já apresentado Sílvio Romero, bem como Medeiros e Albuquerque, que teve suas polêmicas compiladas pelo filho e lutou com grande parte da intelectualidade da época, como, por exemplo, João do Rio e Rui Barbosa; e Carlos de Laet – apresentado, muitas vezes, como um lendário do jornalismo combativo, um polemista até a morte – marcou, igualmente, o cenário de polêmicas com a sua célebre batalha com o português Camilo Castelo Branco, o famoso “polemista invencível”. Todos esses homens possuíam personalidades fortes e conduziram com agressividade sua vida literária. Todavia, Sílvio Romero foi considerado, pela historiografia sobre o período, o mais constantes dos polemistas nacionais. Esse título recebido por Romero, nesse sentido, pode ser tomado como umas das razões de sua fama ter chegado ao ponto de contemporâneos como Chrysanto de Brito declararem que "ouvia falar do autor da História da Literatura Brasileira como destes destruidores terríveis, cujo fim é sempre a demolição", ou seja, "como destes homens que transformam a pena sistematicamente numa arma de combate, pelo prazer somente de destruir e arrasar".29 Clovis Beviláqua, ao contrário, grande amigo de Romero, vai defendê-lo afirmando que “caía sobre as cabeças abaçanadas uma atmosfera de luta; e esse meio eletrizante sacudia todos os nervos e incitava coragem a todos. Sílvio Romero, que era uma organização talhada para a vida gnostica das letras, abraçou-se naquela febre”.30 25

MICELI, S. Poder, Sexo e Letras na República Velha. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.15 SÜSSEKIND, F. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnicas e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 99. 27 BUENO, A. e ERMAKOFF, G. (org). op.cit. p. 8. 28 Cf. MACHADO NETO, A. L. Op.cit., p. 150. 29 Estudo de Sílvio Romero por Chysanto de Brito, p. V. Cf. BRITO, C. de. “Sylvio Romero (Resenha Synthetica)”. In: ROMERO, S. Discursos. Porto: Livraria Chardron, 1904. 30 BEVILAQUA, C. Épocas e Individualidades: estudos literários. Rio de Janeiro: H. Garnier LivreiroEditor, 1888, p. 126. 26


A bem da verdade, havia sim outros meios de se adentrar na vida literária naquele tempo. Nas palavras de Felix Pacheco, afora a luta e a demolição do adversário para entrar no meio, “o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil – elemento seguro e infalível para a subida rápida”31, como bem nos ensina, vale lembrar, Machado de Assis, em seu clássico conto A Teoria do Medalhão. A análise dos escritos dos homens de letra do final do século XIX e mesmo os estudos sobre a vida literária do período nos mostram, ao fim e ao cabo, a presença de um padrão de escrita polêmico, ou seja, a polêmica, nesse período, se tornou um traço estruturante da produção intelectual. E Sílvio Romero, apesar de sua vultuosa obra de polêmica e sua pejorativa fama, fez coro a seus contemporâneos e compartilhou das práticas consolidadas pelos homens do seu tempo. PALAVRAS-CHAVE: História, literatura, polêmica, Sílvio Romero e século XIX. Milena da Silveira Pereira: Bacharel em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Atualmente, desenvolve um projeto de mestrado, "Sílvio Romero: um pensamento embriagado de polêmica", junto ao Programa de PósGraduação em História e Cultura Social da UNESP/Franca, com o financiamento da FAPESP. BIBLIOGRAFIA: ARARIPE JÚNIOR, T. A. Araripe Júnior: teoria, crítica e história (seleção e apresentação de) Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978. BEVILAQUA, C. Épocas e Individualidades: estudos literários. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1888. BRITO, C. de. “Sylvio Romero (Resenha Synthetica)”. In: ROMERO, S. Discursos. Porto: Livraria Chardron, 1904. BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil – 1900. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960. __________. Naturalistas, Parnasianos e Decadentistas: vida literária do Realismo ao pré-Modernismo. Campinas: Edunicamp, 1991. BUENO, A. e ERMAKOFF, G. (org.) Duelos no Serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005. CHARTIER, Roger. Historia Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988. FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992. LACAPRA, D. History and Criticism. Nova York: Ithaca, 1985. MACHADO NETO, A. L. Estrutura Social da República das Letras (Sociologia da Vida Intelectual Brasileira – 1870-1930). São Paulo: Edusp, 1973. MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Sílvio Romero. Sua Formação Intelectual (18511880). São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1938. MICELI, S. Poder, Sexo e Letras na República Velha. São Paulo: Perspectiva, 1977. RIO, João do. O Momento Literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, s/d [1906]. 31

PACHECO, F. apud RIO, J. Op. cit. , p. 170.


ROMERO, S. História da Literatura Brasileira (1888). 7a. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980. 5 v. SÜSSEKIND, F. Cinematógrafo de Letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história tropical e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


Sylvio Romero e Arthur Guimarães - Estudos sociaes: o Brasil na 1ª década do século XX – Problemas Brasileiros. Lisboa, A Editora, 1911. (APESP 330.981R672e).


Sylvio Romero - Hist贸ria da literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Livraria Jos茅 Olympio, 1943. (APESP 869.909R672h).


A Igreja e os usos políticos do passado Alfredo César da Veiga No livro organizado por François Hartog e Jacques Revel a respeito dos usos políticos do passado1, os autores advertem para o risco de se fazer uma revisão instrumentalizada com fins políticos quando se recorre a fatos passados, trazendo ao debate interpretações impróprias e simplificadoras. A recorrência ao passado sempre foi a atitude preferida da Igreja ao tentar explicar ao mundo a sua missão de ser para todas as nações “o sacramento universal da salvação”2. Esse recurso não foi utilizado apenas por um grupo de teólogos e historiadores da religião considerados da ala conservadora, como também por aqueles que se declaram abertamente da ala progressista. Neste artigo pretendo discorrer sobre a problemática estabelecendo um tempo delimitado entre aquilo que se convencionou chamar de modernidade de um lado e pósmodernidade, de outro sem, no entanto, marcar esses acontecimentos como uma sucessão cronológica, evitando, assim, o quanto possível, o “demônio das origens”, o qual Marc Bloch considerava o inimigo satânico da história. Minha escolha irá recair, sobretudo, na imagem como fonte de persuasão, especialmente quando veiculadas às camadas com menos acesso à educação. O padre, com seu discurso, atinge menos o coração do fiel do que a estátua ou a figura de um santo. O período escolhido abrange dois momentos da história da Igreja. De um lado, a Teologia da Libertação, que nasce impulsionada sob o ritmo de uma Modernidade negada, até a Reforma encetada pelo Papa João XXIII, de 1963 a 1965, e cujo ocaso acontece num clima cultural denominado por muitos de Pós-Modernidade, que traz de volta uma Igreja preocupada não tanto com o sujeito, mas com a sua própria sobrevivência num clima de nova desconfiança das instituições terrenas e proclamando o retorno à espiritualidade. As correntes modernizantes que sacudiram a Igreja e que culminaram no Concílio Vaticano II (1962-1965) auxiliaram na gestação dessa Teologia. No bojo de tais correntes havia questionamentos ainda não resolvidos, frutos da Reforma e do mundo moderno, mas que foram simplesmente deixados sem resposta ou deliberadamente ignorados por uma instituição que prescindia da história quando se tratava de prover experiência religiosa. Para o crente, segundo essa corrente, basta uma luz interior para ter acesso à fé3. O Concílio significou, mais que uma reforma nas estruturas eclesiásticas, um envolvimento com o mundo que antes desprezava e considerava locus do mal4, de forma a romper o muro de separação que vez ou outra insistia em se levantar entre as esferas temporal e espiritual. Ao anunciar o Concílio Vaticano II, o papa João XXIII deixou clara a sua intenção em “abrir as janelas da Igreja a fim de deixar entrar nela um ar fresco do mundo exterior”5, abandonando, assim, lentamente, uma postura condenatória e preferindo outra, de conciliação e diálogo. Os ares do Concílio chegaram aos teólogos da América Latina quando, por ocasião da Segunda Conferência dos Bispos Latino-americanos (CELAM) em 1968, 1

Les usages politiques du passè. Paris: Editions de L’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001 Conc. Vat. II, DecretoAd Gentes, 1 3 Marc BLOCH. Apologia da história, p. 57 4 Contribuiu muito para afirmar essa idéia a Encíclica do papa Pio IX: Quanta Cura (Quantos cuidados), de 1864 onde abordava os oitenta erros que o cristão deveria evitar. O primeiro deles era a tentativa de identificar Deus com o mundo. 5 Rebecca CHOPP The praxis of suffering, p.15 2


produziram-se documentos que convidavam o cristão a fazer uma análise mais profunda da situação injusta e desumana dos nossos povos, vítimas de um colonialismo interno e externo, gerador de violência e opressão. A condição pós-moderna, no entanto, produziu uma espécie de eclipse nas teorias veiculadas pela TL, e o aparente triunfo do capitalismo global fez cair por terra seus discursos, juntamente com o fim das esperanças de um mundo socialista. A Igreja da Conferência de Medellin, que queria maior conscientização e participação, cede lugar a uma outra, mais clerical e hierárquica, acentuadamente fechada em si mesma. A primeira, assimilando os valores modernistas, procurava romper com a Modernidade enquanto sinônimo de uma civilização ocidental que baseia sua prática no uso do homem pelo homem e na exploração das riquezas dos países pobres com clara finalidade de manter a opulência dos mais ricos e poderosos. A segunda, nunca teve a intenção de romper, mas de assimilar os valores da sociedade pós-industrial. As duas alas, durante todo esse período, lutaram ferozmente na tentativa de obter espaço de influência dentro da instituição, e para isso cada uma, à sua maneira, utilizou os mesmos meios de persuasão: o uso do passado como força política para reforçar sua razão de ser no presente. Como isso aconteceu na prática? Da mesma forma como sempre foi: o apelo à Tradição da Igreja, representada pelos ensinos bíblicos e pelos escritos das primeiras autoridades cristãs em matéria de fé. Essa postura tem o significado simbólico de fornecer um ancoradouro seguro em tempos de intempéries, de forma que é fato pacífico e sempre aceito ao longo de quase vinte séculos que, se algo vale para a Tradição, deve valer também para a teologia tout court. Vejamos como a recorrência à força da Tradição foi utilizada por pensamentos tão díspares numa tentativa de justificar o presente num passado que representa permanência e estabilidade. Se, por um lado o passado é o ponto de encontro das duas tendências, o que as separa é questão de saber em qual passado elas irão buscar suas fontes. No que diz respeito à Teologia da Libertação, a práxis social é a matéria prima da sua fundamentação teórica, e numa tentativa de justificar sua hermenêutica, a tradição bíblica se tornou o ponto convergente de investigação. Nesse caso, os fatos antigos servem não somente no sentido de buscar justificativa ideológica para as lutas assumidas pelos agentes pastorais, mas principalmente, como memorial para os dias de hoje, uma recordação da ação divina na história da caminhada de um povo em todas as épocas. Tendo a tradição bíblica como ponto de partida, é fácil perceber como os heróis do presente encarnam os do passado, numa tentativa de construção de um ideário. Os guardiões da assim chamada Verdadeira Tradição nunca deixaram de lembrar os perigos de uma tal interpretação sociológica da religião, especialmente quando passa pelo viés marxista. A mesma postura de interpretação dos textos sagrados é usada também pelos teólogos da libertação para ajudá-los a enfrentar tal oposição. Utilizando a mesma fonte, deixam claro que fazem parte da mesma Igreja, isto é, mostram seu desejo de continuar sendo parte integrante da Tradição, condição indispensável para sua catolicidade. No campo da linguagem, o esquema simbólico se torna a coluna dorsal na construção da mensagem. Personagens, situações, experiências do mundo bíblico são selecionados e transformados numa pragmática do tempo presente. Nesse sentido, a imagem de um Deus Libertador, que no Antigo Testamento conduzia o povo da escravidão no Egito para uma terra livre, transforma-se no Deus que quer, nos dias de hoje, conduzir o povo sofrido do Terceiro Mundo para uma terra livre dos interesses neocolonialistas e imperialistas. Nessa mesma linha, a luta contra o Faraó serve de inspiração na luta a ser encetada contra o governo dos países explorados, e até mesmo a

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fé monoteísta, que era uma espécie de garantia da unidade de um povo ou de uma sociedade com apenas uma classe econômica6, tornou-se a base de sustentação da fé dos teólogos da libertação na sua luta contra a idolatria do capital. Papel preponderante têm os profetas, que nos tempos bíblicos assumiam o encargo de anunciadores, nessa releitura, assumem uma nova missão: a de denunciadores dos processos de exploração e injustiça perpetrados pelos povos estrangeiros que introduzem não mais seus ídolos tipificados por estátuas, mas por suas ideologias cuja finalidade seria a de cimentar o sistema de dominação. Os salmos se tornam o grito do pobre contra a violência do rico: O Senhor libertará o pobre que pede auxílio e o desvalido, privado de ajuda. Ele terá compaixão do fraco e do indefeso e salvará a vida dos pobres. Da opressão e da violência lhes resgatará a vida e o sangue, que é precioso a seus olhos (Salmo 72,12-14) No Novo Testamento, Jesus é o protótipo do Libertador. Ele não veio para os ricos, mas para os pobres e desvalidos. Sua prática é toda voltada para aliviar seus sofrimentos e conduzi-los ao Reino, que não significa, necessariamente, o céu, mas muito mais, a promessa de uma nova terra que tem início aqui e agora, no centro da História do homem. Ainda faz parte essencial na releitura das fontes do passado, a figura da Virgem Maria. Mais do que ser simplesmente a santa, ela é, sobretudo, a mulher: exemplo de luta contra a discriminação e opressão do forte e do poderoso. Seu canto é repetido pelas comunidades em busca de libertação: “Dispersou os orgulhosos, derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lucas 1, 51). Da década de 1980 em diante, a economia se globaliza, os regimes autoritários na América Latina e no Leste Europeu cedem espaço aos processos democráticos e a sociedade se entrega sem reservas à alta tecnologia, inaugurando, assim, aquilo que se convencionou chamar de Pós-Modernismo. Se o Pós-Moderno é um fato ou tão somente a restauração de um modernismo domesticado que ganhou força com um retorno político conservador na era Kohl-Thatcher-Regan, ou, por outro lado, de acordo com os seus críticos, simplesmente um jogo de marketing, não importa agora. O que importa é o fato de que o Pós-Moderno esconde o sintoma de uma profunda transformação cultural da sociedade ocidental. No campo da religião, contrariando previsões pessimistas sobre o seu fim, percebe-se, ao contrário, não somente uma sobrevivência, mas, sobretudo, uma busca ansiosa e angustiosa de sentido que a religião traz. Porém, essa busca não vem acompanhada de sua versão tradicional. O interesse se revela na procura de um sagrado sem compromisso, uma espécie de catarse que reduz a experiência religiosa à mera terapia, um cristianismo que o sociólogo David Lyon compara ao Magic Kingdom “onde tudo é fantasia, ilusão, superfícies escorregadias, realidades revisadas, múltiplos significados e centrado no princípio do prazer7”. Nesse caso, a Igreja da pós-modernidade reage tirando sua força de um passado onde representou ao mesmo tempo a estabilidade da tradição e o triunfo da sua força política. Pode-se facilmente perceber essa tendência na arquitetura e na decoração das novas igrejas. Hoje, os artistas cristãos, passando pela rica Europa até os rincões africanos, 6 7

Marcelo de BARROS SOUZA e José CARAVIAS. Teologia da terra, p. 149 Jesus in Disneyland, p. 11

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recorrem à arquitetura românica e ao ícone bizantino a fim de assegurar ao homem contemporâneo um espaço que represente ao mesmo tempo, ascese e refúgio contra os males do mundo. O interesse pelo religioso é fruto da perda de identidade comunitária e remédio ao caos e à desordem contemporâneos. Nesse caso, a Igreja recorre novamente à autoridade da tradição que evoca um tempo imóvel, identificado no ícone bizantino através dos olhos amendoados e constantemente abertos, parecendo congelar o olhar para algo além deste mundo, numa clara decisão de abandonar a realidade imediata e conduzir o fiel de volta a um espaço harmônico e belo, protótipo da cidade espiritual. Portanto a Igreja, nas suas várias visões de mundo, nas tendências direitistas ou esquerdistas, sempre fez uso do passado para justificar ora uma, ora outra dessas tendências movendo seus seguidores fiéis entre duas realidades: passado e presente. O problema ao revisitar o passado aparece quando se tenta fragmentá-lo, com o intuito de proceder a uma apropriação indiscriminada de uma ou mais de suas partes a fim de presentificar algo carregado de sentido a uma determinada cultura apenas. Um passado assim, dificilmente pode servir de explicação ou conhecimento histórico devido à sua excessiva simplificação. Tal recurso pode tirar do passado o significado que lhe é próprio ou mesmo destituí-lo completamente de sentido. Um passado mutilado serve para intensificar um direito divino de pretensão à verdade, reduzindo a complexidade da autonomia e da discordância e conduzindo à repetição de um mito regulador que promete reduzir o conflito e enraizar o sujeito num presente que representa unicamente continuidade, sem tropeços, sem sobressaltos. O uso indiscriminado do passado como justificativa de ações presentes pode transformar o tempo num tempo mimético, cuja função é a de parodiar, subvertendo a verdade e relegando-a ao mundo da aesthesis, produzindo, assim, uma “sociedade esquizofrênica”, incapaz de discernir a verdade das aparências, como afirmou Baudrillard8. O uso político do passado pode reduzir o tempo a um eterno presente, sem perspectiva de futuro, retirando, da história, a lógica da evolução. Seria tirar da natureza humana a sua força histórica, a sua capacidade de mudar e reinventar o futuro. Seria esquecer que o passado construiu a sua própria história, e seu uso indiscriminado pode trancafiar o homem dentro da fatalidade de um destino do qual ele não construiu e não participou.

AUTOR: ALFREDO CÉSAR DA VEIGA, Mestre em Estética e História da Arte (USP); Doutorando em História Social (USP); Pesquisador da relação Arte e Sagrado e Membro da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte) E-mail: acv@usp.br

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<I>Simulacros e Simulação</I>, p. 133

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BIBLIOGRAFIA BARROS SOUZA, Marcelo e CARAVIAS, José. Teologia da terra. Petrópolis: Vozes, 1988 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991 BLOCH, Marc. Apologia da história. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2002 CHOPP, Rebecca. The praxis of suffering: An interpretation of liberation and political theologies. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1989 HARTOG, François e REVEL, Jacques. Les usages politiques du passè. Paris : Editions de L’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001 LYON, David. Jesus in Disneyland. Malden, MA: Polity Press, 2000

As conseqüências do 2º Concílio do Vaticano. Folha de São Paulo 09 de dezembro de 1965. (APESP 05/232.)

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Cidade do Vaticano na época do Concílio. Folha de São Paulo 09 de dezembro de 1965. (APESP 05/232).

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CORPO E ARTE CONTEMPORÂNEA: o mosaico polimorfo em Farnese de Andrade André Luiz de Araújo

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A obra “A grande alegria”, datada de 1966-1978, considerada pelo artista mineiro Farnese de Andrade um de seus primeiros objetos, revela-nos elementos de composição necessariamente contemporâneos. A assemblage2 composta de fragmentos de boneca, bolas de vidro, fragmentos de madeira e de caixa de vidro torna-se, portanto, resultado de um agrupamento de matérias presentes no mundo usadas pelo artista para experimentação. Nesse sentido, o artista contemporâneo é um artista experimental. Num estudo sobre Lygia Clark e o conceito de arte contemporânea, Suely Rolnik descreve que um dos aspectos do que muda e se radicaliza no contemporâneo é que, a partir do momento em que a arte passa a trabalhar qualquer matéria do mundo e nele interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte é uma prática de problematização: decifração de signos, produção de sentidos, criação de mundos. É exatamente nessa interferência na cartografia vigente que a prática estética faz obra, sendo o bem-suceder da forma indissociável de seu efeito de problematização do mundo. O mundo liberta-se de um olhar que o reduz às suas formas constituídas e à sua representação para se oferecer como matéria trabalhada pela vida, como potência de variação e, portanto, como matéria em processo de arranjo de novas composições e engendramento de novas formas (ROLNIK, 2002, p. 44-45). Diferente da pobreza de experiência a que Walter Benjamin relaciona a vida moderna, Farnese torna-se implacável por operar a partir de sua vivência. Ele foi um construtor: mergulhou nas vísceras humanas, apropriou-se de objetos encontrados no lixo, de esqueletos de animais, do descartável, dos dejetos produzidos pela sociedade de consumo, onde tudo é efêmero. Escolheu as imagens, enclausurou-as em oratórios, imobilizou-as em caixas de vidro, por conseguinte, atomizou-as em poliéster (resina). Esses objet trouvé3 carregam consigo um tempo, uma memória, uma história capturada e transformada pelo artista em assemblages.

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Mestrando em História Social pela PUC-SP. Bolsista CNPq. E-mail: andreharaj@gmail.com. Objeto artístico produzido pelo agrupamento de materiais diversos. 3 Objeto encontrado na natureza, como pedaços de madeira, conchas ou pedregulhos, que adquire um valor estético pelas transformações sofridas ao longo dos anos. Torna-se obra de arte pela intervenção do artista. O conceito surgiu com o movimento surrealista. 2

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Nesse sentido, conclui Suely Rolnik que, nesse momento, a arte participa da decifração dos signos, das mutações sensíveis, inventando formas pelas quais tais signos ganham visibilidade e integram-se ao mapa vigente. A arte é, no entanto, uma prática de experimentação que participa da transformação do mundo (ROLNIK, 2002, p. 45-46). Na série “Anunciação”, datada de 1972, Farnese trabalha com uma santa, fragmentos de ornato, borboleta, taça com ovo e madeira, ex-voto/seio, fotografias resinadas e oratórios com portas espelhadas. Na perspectiva estética, o sentido desse agrupamento de objetos é presentificar o futuro e o passado, ou seja, é criar por meio do simbolismo temas relacionados ao tempo. O tempo terrestre, mas também o tempo divino. Tempo do começo e do fim. Tempo cronológico e cíclico. Na dissertação de Romilda F. P. Barreto, Anunciação – a anjo de “mil asas”, a narrativa poética de Farnese fala de temas relacionados ao tempo. O tempo que regula a dinâmica da vida e da morte. O tempo que foi e não volta mais, o tempo vivido e o quase esquecido4. Assim, na definição de Beatriz Sarlo, a arte é futuro, mesmo quando trabalha com o passado. O rétro, o revival podem ser programas estéticos cuja validade só pode ser julgada pelo repertório de respostas aos problemas semântico-formais que propõem, pelas questões que deixam em aberto e pela forma como relacionam-se com outras perguntas anteriores, dando-as por encerradas ou dialogando com elas. Beatriz Sarlo escreve a propósito das vanguardas artísticas europeias: “[...] transformaram esse aspecto da modernidade num ponto central de seu programa: o presente como tempo absoluto, forma atual do futuro, de onde se pode reler o passado: Lautréamont contemporâneo dos surrealistas; ou então, Kafka e seus precursores, o presente como doador de sentido ao passado.” (SARLO, 2005, p. 56). Outro aspecto interessante sobre o artista moderno é que, no século XIX, já existia a negação do pensamento da arte como representação. Lembremos que Cézanne dizia que o que ele pintava era a “sensação”. Mas o que vem a ser a sensação? Na definição de Deleuze, a sensação tem um lado voltado para o sujeito (o sistema nervoso o movimento vital, o “instinto” o “temperamento”, todo o vocabulário comum ao Naturalismo e a Cézanne) e um lado voltado para o objeto (“o fato”, “o lugar”, “o acontecimento”), ou seja, é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto quanto sujeito. Assim, continua Deleuze, “[...] a lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo ’livre’ ou desencarnado da luz e da cor (impressões) que está a Sensação, mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maça. A cor está no corpo, a sensação está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que 4

BARRETO, R. F. P. Tempo em suspensão: objeto reconvocado em Farnese de Andrade. Dissertação (Mestrado em Artes)– Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Espírito Santo, 2008. p. 141.

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está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentando determinada sensação (o que Lawrence, falando de Cézanne, chamava de ‘o ser maçãnesco da maçã’).” (DELEUZE, 2002, p. 42-43). Portanto, faz parte do processo de transição do moderno para o contemporâneo a subjetividade do artista e seu contato com as coisas do mundo. Suely Rolnik inteiraria: a arte contemporânea leva essa virada da arte moderna mais longe. Se o artista moderno não representa o mundo com base em uma forma que lhe é transcendente, mas, no lugar disso, decifra e atualiza os devires do mundo, baseado em suas sensações, e o faz na própria imanência da matéria, já o artista contemporâneo vai além não só dos materiais tradicionalmente elaborados pela arte, mas também de seus procedimentos (escultura, pintura, desenho, gravura etc.). Ele toma a liberdade de explorar os materiais mais variados que compõem o mundo, e de inventar o método apropriado para cada tipo de exploração (ROLNIK, 2002, p. 45-46). Contudo, a arte farnesiana é composta por uma vasta produção na área do desenho, da gravura, da pintura e do objeto. Sendo este último o analisado para responder a nossa indagação: como escrever uma história do corpo na arte contemporânea? Para Denise Sant’Anna, escrever uma história do corpo não é uma tarefa fácil de concretizar, porque tudo o que se relaciona com o assunto é, de um modo geral, remetido para as zonas mais obscuras da conduta humana. O corpo é o lugar do que se esconde ao olhar, do que se furta à promiscuidade, é o espaço da intimidade e da dissimulação dos subentendidos, do que não se diz ou vê de imediato. Realizar uma história do corpo é um trabalho tão vasto e arriscado quanto o de escrever uma história da vida. Mesmo se restringindo ao estudo do corpo humano, são incontáveis os caminhos e numerosas as formas de abordagem: da medicina à arte, passando pela antropologia e pela moda, há sempre novas maneiras de conhecer o corpo, assim como possibilidades inéditas de estranhá-lo (SANT’ANNA, 2002, p. 3). Farnese de Andrade é um dos poucos artistas, assim como Lygia Clark e Hélio Oiticica, que pertenceram e contribuíram com sua genial produção a um momento de transição nas artes plásticas brasileiras. Do Moderno ao Contemporâneo, do Concretismo ao Neoconcretismo, cada um em sua singularidade teve, no cerne de sua produção, o corpo como inspiração ou preocupação. Para Linda Hutcheon, no campo da arte, a manifestação do corpo perfaz uma (re)configuração de mudanças constantes, cujas circunstâncias socioculturais inscrevem a reflexão crítica, cada vez mais dinâmica de condições adaptativas a estratégias discursivas, evidenciado no seu uso como suporte, linguagem, tema, conteúdo etc. Explorado por

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temporalidade, contingência e instabilidade, historicamente o corpo sempre foi alvo temático dos artistas para além da performance. Contudo, sua maleabilidade de subtrair a representação contemporânea ajuda a (re)descobrir “novos/outros” caminhos inimagináveis. Linda acrescenta que, nesse percurso de possibilidades, a noção de corpo privilegia-se do estado da arte e adentra ao universo da subjetividade, em que surgem variantes poéticas do próprio processo de criação da obra. Nesse caso, a poética aqui deve ser lida e vista como uma estrutura aberta em constante transformação (HUTCHEON, 1991). O trabalho de Farnese propõe uma exploração radical e poética da problemática do corpo: o questionamento da matéria, da aura, da morte física, da relação entre corpo e memória, do erotismo, da dialética do real e da imagem, da natureza e da cópia fabricada. Investiu no conflito e não na harmonia proposta pela sociedade capitalista em homogeneizar as aparências. Farnese caminha entre as diversas políticas do corpo que se afirmaram nos últimos 40 anos. A historiadora Denise Sant’Anna descreve em seus estudos sobre as políticas do corpo, que no ano de 1960 na arte, há metamorfoses do corpo que modificam como forma de protesto e suas influências estão em domínio diversos da cultura: da antimoda à body art, passando pelas metamorfoses corporais dos “modernos primitivos”, existe uma considerável contestação à homogeneização das aparências, ao imperativo “seja sempre jovem” e à intensa exploração comercial. Nesse campo inserem-se os artistas que utilizam seus corpos para denunciar coações sociais, sexuais e identitárias. Em certos casos, passa-se do corpo da pintura do quadro para o próprio corpo do artista (SANT’ANNA, 2002, p. 20) No Brasil, o pioneirismo de Lygia Clark foi em buscar na psicanálise a experiência de trabalhar junto com a arte, as políticas do corpo, e o de Hélio Oiticica, em incluir o corpo do espectador em sua obra, promovendo a interação corpo e obra. Ambos faziam parte do movimento neoconcreto, que se preocupava com a interação e a sensação do espectador com a obra. Lygia com os seus bichos e objetos “relacionais” e Hélio Oiticica com seus “pangarolés” e performances públicas. Farnese não pertenceu a nenhum movimento artístico, pois optou por prosseguir sua pesquisa individual, porém jamais fora das preocupações relacionadas às transformações das sensibilidades na arte do seu tempo. A força motriz de Farnese, chamada “desassossego”, evoca a cena do grande artesão de corpos, em que o poder de criação que emana das mãos do artista se concretiza na apropriação da matéria. A partir dessa apropriação, a metamorfose corporal só é possível quando depositados os sentimentos humanos mais profundos.

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Segundo Francis Bacon, a sensação é o que passa de uma “ordem” a outra, de um “nível” a outro, de um “domínio” a outro. É por isso que a sensação é a mestra de deformações, agente de deformações do corpo5. A sensação em Farnese está na dramaticidade contida na composição dos objetos que realizam muito melhor a sua potência enquanto arte. O terror, a violência, o anjo, a santa, a mãe, a família podem denunciar sensações ambivalentes, ao contrário de parecer desumanizar o corpo nas assemblages, as obras de Farnese transcendem o limite da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do lúdico e do monstruoso, do prazer e da dor, da bondade e da crueldade, do sagrado e do profano. Nesse sentido, podemos pensar no conceito do corpo paradoxal na obra do artista mineiro. Portanto, neste momento, contudo, um dos aspectos que nos interessa na obra farnesiana é um dos seus elementos de composição, “as bonecas”6, são elas que significam esse paradoxo. O uso do corpo artificial como alegoria reveste uma dimensão antropológica fundamental. Estética, História e Psicanálise não seriam excessivas para compreender o fenômeno. Considerando a obsessão do artista pela vida e pela morte, o contexto histórico em que ele está inserido (o período de Guerra Fria no mundo e das ditaduras na América Latina), sua obra faz-nos mergulhar no universo dos sentimentos humanos, capaz de transformar o corpo simbólico numa possibilidade de sensação. É difícil a obra do artista não sensibilizar seus espectadores. Num estudo sobre as modificações corporais na cultura contemporânea, Francisco Ortega escreve que “[...] a dor é um elemento fundamental nessas modificações, uma via de acesso ao corpo vivido numa cultura como a nossa, na qual a dor é um anacronismo que deve ser suprimido, um escândalo intolerável numa sociedade que não reconhece mais nem o sofrimento nem a morte como constitutivos da condição humana (Le Breton, 1998), sociedade auxiliada por uma medicina que não trata a dor como fato existencial, que possui uma dimensão social, cultural e histórica (Morris, 1993), mas como um dado fisiológico, ou antes, patológico, passível de ser medicalizado. A autenticidade da dor, como investimento subjetivo na matéria corporal presente nas modificações corporais, constitui uma resposta a uma cultura de anestesia sensorial e de patologização da dor e do sofrimento.” (ORTEGA, 2008, p. 64).

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BACON, F. Pintura e Sensação. In: DELEUZE, G. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 43. 6 As bonecas eram usadas pelos surrealistas André Masson, Salvador Dali, Hans Bellmer e Man Ray para denunciar a desumanização e para propor novas formas anatômicas do corpo. Em suas obras, o corpo era apresentado fragmentado, dilacerado e considerado artificial. Adaptado de: MORAES, Eliane R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 66-67.

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Vale lembrar que o caminho de Farnese é o de mão dupla. O corpo na arte contemporânea é fragmetado, mas também totalitário. No texto “o corpo no fio da existência”, Denise Sant’Anna descreve sobre o corpo na contemporaneidade, “[...] que mais do que salválo, trata-se de transmutá-lo completamente. Nosso único bem ou nosso único mal, o corpo tende enfim a ser o último espaço disponível a diversos experimentos, tão criativos quanto destrutivos.”7 Nesse sentido, inevitavelmente, o corpo já é uma nova fronteira.

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SANT’ANNA, D. O corpo no Fio da Existência. In: ______ et al. Corpo. São Paulo: Itaú Cultural, 2005. p. 106.

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Referências bibliográficas BARRETO, R. F. P. Tempo em suspensão: objeto reconvocado em Fanese de Andrade. Dissertação (Mestrado em Artes)– Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Espírito Santo, 2008. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. COSAC, C. Farnese Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. DELEUZE, G. Francis Bacon – A lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. ROLNIK, S. A subjetividade em obra: Lygia Clarck, artista contemporânea. Revista Projeto História, São Paulo, n. 25, 2002. SARLO, B. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, Arte e Meios de Comunicação. São Paulo: EDUSP, 2005 SANT’ANNA. D. É possível realizar uma história do corpo? In: SOARES, C. Corpo e História. Campinas: Autores Associados, 2002. ______. O corpo no Fio da Existência. In: ______ et al. Corpo, Itaú Cultural, 2005.

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